Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
207/18.4T8AMD.L1-2
Relator: VAZ GOMES
Descritores: MORTE PRESUMIDA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–  O tribunal “a quo” foi levado a pensar que, da mesma maneira que os sucessores de uma das classes preferem aos das classes seguintes, assim também a legitimidade activa, nos termos do art.º 100, do Cciv, para a acção de declaração de morte presumida se deveria atribuir prioritariamente aos herdeiros das classes anteriores. E como, nessa ordem, a mãe do requerido (e cônjuge ou filhos) estariam em lugar anterior ao da requerente que é tia do requerido (por isso integrando a alínea d) do n.º 1, do art.º 2133, do CCiv, enquanto que o cônjuge e descendentes integram a alínea a), o cônjuge e os ascendentes integram a alínea b), entendeu que a autor não podia vir formular esta pretensão enquanto se não provasse que inexistia mais nenhum herdeiro antes de si.

II–  Da letra do preceito, em primeiro lugar, nenhuma ordem ou prioridade legitimativa para o pedido decorre, limitando-se ele a estender sobre a mesa a qualidade de todos quantos podem pedir a declaração de morte presumida. O que importa ao legislador é o interesse que possa ser revelado; o que da norma simplesmente decorre é que qualquer dos interessados que tenha sobre os bens do ausente direitos que dependam da condição da sua morte pode pedir a declaração de morte presumida. Portanto, neste sentido, não cremos que esta disposição deva andar a par daquela que estabelece a classe de sucessíveis do art.ºs 2133 do CCiv


(Sumário da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão:


RELATÓRIO.


APELANTE/AUTORA: AM... (representada em juízo pelo ilustre advogado F...C..., com escritório na C.P., A..., conforme cópia do instrumento de procuração de 6/6/2017 de fl. 4)
APELADO/RÉU: FC..., alegado ausente
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Com os sinais dos autos.
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Valor da acção: 30.001,00 euros (valor indicado na petição inicial)
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I.1. Inconformada com a decisão de 17/5/2018 de fls. 21/24 (ref.ª113048350),que julgou a Autora parte ilegítima na acção de declaração de morte presumida do réu FC... de quem é alegadamente tia por, em suma, não obstante ser parente sucessível enquanto colateral até ao 4.º grau (art.ºs 2133/d e 2147 do CCiv), só é herdeira se alegar e demonstrar que o requerido não é casado, não tem filhos, é órfão não tem irmãs e sobrinhos, não alegando ser herdeira por falta de herdeiros das outras classes referidas, não tem legitimidade face ao art.º 100 do CCiv para instaurar a acção, consequentemente absolveu o réu da instância dela apelou a Autora em cujas alegações conclui em suma:
a)- A Autora é tia do réu, não é do seu conhecimento o paradeiro da mãe do réu, sendo o progenitor falecido, desconhece se a mãe do réu é viva ou morta, se o réu foi ou não casado se tem filhos irmãos ou sobrinhos, o que a Autora sabe é que o réu esteve em Portugal em 2004 obteve documento de identificação e indicou uma morada nos EUA para a qual foi enviada uma carta que se encontra nos autos, da qual não obteve resposta, nada mais sabe do que isto (Conclusões 1 a 7, 14, 16 a 18)
b)- O art.º 100, do CCiv, estabelece os requisitos para a declaração da morte presumida, nenhuma ordem ou prioridade legitimativa para o pedido decorre, limitando-se ele a estender e a revelar a qualidade de todos quantos podem pedir a declaração de morte presumida, o que da norma decorre é que qualquer dos interessados que tenha sobre os bens do ausente direitos que dependa da condição da sua morte pode pedir a declaração de morte presumida, o art.º 100 não anda a par dos art.ºs 2133 e 2134 do CCiv, o reconhecimento de legitimidade da Autora para a acção não significa que se esteja a reconhecer-lhe algum direito concreto aos bens da herança ou pelo menos o direito na medida da sua invocação concreta, o direito concreto aos bens do ausente só entrarão na esfera da requerente de acordo com as regras de sucessão legítima (art.ºs 2133 e ss), as quais não deixarão de ser cumpridas em momento posterior, o art.º 2133 do CCiv não serve para definir a legitimidade para o uso da acção tendente à declaração de morte presumida, porque o seu objectivo é o de simplesmente definir as classes de herdeiros nos termos do art.º 2134 no momento da partilha, o art.º 100 não depende da sua articulação com o art.º 2133 nem com a ordem de chamamento do art.º 2134 do CCiv, a Autora demonstrou ser interessada na morte presumida do sobrinho, tendo ocorrido erro de interpretação das disposições legais citadas (Conclusões 8 a 13, 15, 19 a 34]

Termina pedindo a revogação da decisão.

I.2.- Não houve contra-alegações.

I.3.- Nada obsta ao conhecimento do recurso.

I.4:- Questão a resolver: Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e de aplicação das disposições legais dos art.ºs 100, 103, 2133 e 2134 do CCiv.

II FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

É do seguinte teor a decisão recorrida:
“A-Questão prévia Notificada para contraditório, o ilustre mandatário da autora veio pronunciar-se através de requerimento com a referência 2296099, o que não está deduzido por artigos, em violação do disposto no artigo 147.º, n.º2 do CPC. Tratando-se, contudo, de uma situação processual que não afeta grandemente a apreensão dos factos pelo tribunal, o tribunal determina que aquele documento se mantenha nos autos. * B) Despacho liminar AM... intentou a presente ação especial de declaração de morte presumida contra FC..., nos termos dos artigos 886.º, 881.º e ss. do CPC e 114 e ss. do Código Civil. O artigo 590.º, n.º1, do CPC, estabelece que, nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º do CPC. Analisada a petição inicial, colocam-se questões processuais e substanciais que colocam em causa a viabilidade da ação. No despacho com a referência 112793514, o tribunal colocou a parte duas questões essenciais, sendo, a primeira, relativamente à ilegitimidade da autora para intentar a presenteação e, a segunda, da não invocação de factos essenciais para a procedência da declaração de morte presumida. Por fim, aborda-se a questão da eventual falta de interesse em agir, por as finalidades da autora poderem ser alcançadas no âmbito do processo de inventário. Tendo sido notificada para contraditório, a autora apenas se pronunciou sobre a primeira questão da legitimidade, argumentando, em suma, que tem a legitimidade para intentar a ação resulta do facto de ser herdeira, não sendo necessário atender à classe dos sucessíveis, e do facto de entender que tem um direito que depende da condição da morte do requerido, discordando assim a posição do tribunal. Analisados os argumentos deduzidos, o tribunal entende que a interpretação literal, sistemática e teleológica da norma de legitimidade permite concluir que a requerente não tem legitimidade para esta ação, além das questões que se já colocaram à parte em momento anterior.

I Da legitimidade processual O artigo 100.º, ex vi artigo 114.º, ambos do Código Civil, estabelece que os interessados podem requerer a declaração de morte presumida, considerando-se como tais o cônjuge não separado de pessoas e bens, os herdeiros do ausente e todos os que tiverem sobre os bens do ausente direito dependente da condição da sua morte. Existe uma legitimidade plural para requerer a declaração de morte presumida, uma legitimidade concorrente mas fechada, só tem lugar nele as pessoas indicadas pela lei. Não há dúvida que a requerente não goza de legitimidade ao abrigo da relação conjugal. Também a autora não alega ter sobre os bens do ausente direito depende da condição da sua morte. Aliás, a autora não alega que existam bens do ausente em Portugal. Alega que apenas que ela e o requerido concorrem à herança dos pais e avós, respetivamente. Além de os bens da herança não serem do requerido, até à partilha da herança, não há qualquer direito dos herdeiros a bens específicos da mesma, mas a um quinhão hereditário sobre uma universalidade de direito. Segundo Abílio Neto (in Código Civil Anotado, 14.º edição, 2004, Editora Ediforum, p. 78) estão abrangidos nesta categoria o legatário, o doador com cláusula de reversão e o proprietário de raiz sendo o usufrutuário o ausente. Não tendo sido alegada essa qualidade, conclui-se que a autora não tem legitimidade ao abrigo deste segmento da norma. A dúvida é a de saber se a requerente tem legitimidade na qualidade de herdeira do ausente. A requerente identifica-se como tia do requerido. Não há dúvidas que, por descenderem de um parente comum, requerente e requerido são parentes (artigo 1578.º do Código Civil) e que são, um em relação ao outro, parentes sucessíveis, como colateral até quarto grau (artigo 2133.º d) e 2147.º do Código Civil), integrando-se na classe de sucessíveis dos colaterais até quarto grau, sendo chamada depois do cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes, dos irmãos e sobrinhos do requerido. Neste sentido, a requerente só é herdeira, só é chamada à sucessão, se não existir cônjuge, descendeste, ascendentes, irmãos e sobrinhos do requerido. Por isso, temos o entendimento que a requerente só é herdeira se alegar (e demonstrar na medida do razoável) que o requerido não é casado, não tem filhos, é órfão e não tem irmãos e sobrinhos. Se existirem cônjuge e estes parentes, a requerente não é chamada à sucessão e, por não ser interessada direta na partilha (artigo 1327.º do CPC, na versão anterior à Lei 41/2013), não tem legitimidade para intentar inventário. Analisando a petição inicial da requerente, verifica-se que a mesma alega que o requerido é órfão de pai e que a sua mãe levou-o para o estrangeiro. Não alega que a mãe tenha falecido (o que pode ser comprovado nos registos de nascimento) nem alega que o requerido não esteja casado (o que também pode ser comprovado no registo civil) ou que não tenha filhos, irmãos ou sobrinhos. Ainda que estes parentes não existam, a requerente alega que o requerido tem mãe, sendo esta a única herdeira. O legislador usa terminologia diferente em várias situações, distinguindo o parente sucessível do herdeiro. A qualidade de parente sucessível parece integral uma conceção alargada que integra as classes de sucessíveis previstas nas alíneas a) a d) do n.º1 do artigo 2133.º do Código Civil. A utilização do termo herdeiro parece implicar a necessidade da apreciação concreta das regras de sucessão. O legislador distinguiu intencionalmente as duas figuras, uma vez que atribui legitimidade para ações de interdição aos parentes sucessíveis (artigo 141.º do Código Civil) e para as ações de declaração de morte presumida ao herdeiro. O legislador quis restringir a legitimidade para a ação de declaração de morte presumida às pessoas que, pelas regras de sucessão, têm um interesse patrimonial direto nesta declaração de morte presumida e na abertura do processo de sucessão, excluindo aqueles que não tenham. A requerente não é interessada direta na partilha. Pelo contrário, a ação de interdição visa proteger uma pessoa que, estando viva e sendo incapaz, necessita da proteção do estado e a instituição da tutela. Interessa ao legislador alargar o leque das pessoas que podem suscitar a intervenção protetora, atendendo aos laços de afeto que decorrem, muitas vezes, da mera circunstância de existir uma ligação de sangue. Por isso, dá-se legitimidade aos parentes sucessíveis, ainda que não sejam, em concreto, herdeiros, de modo a alargar os interessados na perspetiva de proteção do incapaz. Voltando ao caso concreto, a requerente não alega ser a herdeira do requerido, por falta de herdeiros das classes anteriores. Pelo contrário, a requerente alega que o requerido, sendo órfão de pai, saiu de Portugal com a mãe, quando tinha 4 anos. Os ascendentes de 1.º grau são, na falta de descendentes, herdeiros do requerido, o que afasta os interesses patrimoniais da requerente. Pelos fundamentos de facto e de direito invocados, consideramos que a requerente não tem legitimidade, tendo em conta o artigo 100.º do Código Civil, para instaurar esta ação.
* * *

Ainda que assim, não fosse, o pedido seria manifestamente improcedente, por falta dos pressupostos para o seu deferimento.

II Da improcedência da ação.
A segunda questão que coloca em causa a viabilidade da ação tem a ver com a falta de alegação de factos essenciais que permitam presumir a morte do requerido. A lei refere-se à ausência, nos artigos 89.º a 121.º do Código Civil num sentido técnico de desaparecimento sem notícias, sem que dele se saiba parte (artigo 89.º). Prevê-se a ausência com vista a providenciar pelos bens da pessoa ausente, carecidos de administração, em virtude de não ter deixado representante legal ou voluntário. Segundo Carlos Alberto de Mota Pinto (in Teoria Geral de Direito Civil, 4.º edição, Coimbra Editora, 2005, p. 265), estas medidas, traduzidos no requerimento e instauração da curadoria provisória ou da declaração de morte presumida, têm subjacentes uma presunção, de acordo com as regras da vida, de maior ou menor probabilidade de regresso do ausente ou, ao invés, da sua morte. Como o próprio nome indica, a declaração de morte presumida tem como fundamento numa alta probabilidade prática da morte física do ausente. A lei assenta a declaração de morte presumida numa ausência prolongada, decorridos mais de 10 anos sobre a data das últimas notícias ou passados 5 anos se o ausente tiver completado 80 anos de idade. A ausência prolongada sem notícias tem que ser vista no contexto em que essa ausência ocorreu, de modo a que se possa presumir, com grande probabilidade, que ocorreu a morte física da pessoa. Analisando os factos alegados pela requerente, concluímos que a requerente, na qualidade de tia, desconhece a vida do sobrinho, uma vez que não recebe notícias do mesmo desde o ano de 1989, quando o requerido saiu de Portugal, com a mãe, quando aquele tinha 4 anos de idade. Contudo, esta falta de notícias não parece ter que ver com a probabilidade de que o requerido ter morrido mas com o corte de relações entre a mãe do requerido e a família do pai do requerido (no qual se inclui a requerente), após o óbito do pai o requerido. Na verdade, a requerente alega que, após a morte do pai, o requerente, com 4 anos de idade, acompanhou a mãe para França, o que terá ocorrido de uma forma voluntária (emigração). E, depois, a requerente alega que teve conhecimento que o requerido esteve em Portugal, no ano de 2004 (com 19 anos de idade), que aqui solicitou a emissão de bilhete de identidade, indicando uma morada nos Estados Unidos, o que dá entender que o requerido fixou residência naquele país. As circunstâncias em que o requerido se ausentou não fazem indicar a ocorrência de qualquer sinistro que lhe tenha tirado a vida, mas apenas uma separação do requerido em relação à família paterna, tendo como fundamento provável o estabelecimento da vida familiar num país estrangeiro. E o requerido, já maior, esteve em Portugal, fez o bilhete de identidade, mas não contatou a família paterna (ou a requerente), o que se presume ter sido uma decisão voluntária. Tem neste momento 33 anos de idade, muito abaixo da esperança média de vida em Portugal. Nada disto é indiciador da morte do requerido. Também não é indiciador da morte a circunstância de o requerido não estar contatável na morada que cedeu para efeitos de cartão de cidadão, nos Estados Unidos da América, podendo querer dizer que a morada está desatualizada, sendo conhecido que, no país do Novo Mundo, existem fatores propiciadores de uma forte mobilidade geográfica. Não parece existir uma verdadeira “ausência” pressuposto da decisão, mas uma situação de não relacionamento do requerido com familiares, em Portugal, no qual se inclui a requerente, ignorando uns e outros os respetivos destinos. Por outro lado, não se alega que existam bens, pertencentes ao requerido, abandonados em Portugal, e que necessitem de administração. Se não existem bens por administrar e se não se alegam circunstâncias que indiquem que a ausência tem como causa provável o decesso, não é possível a declaração de morte presumida. Por fim, acrescente-se que as finalidades declaradamente pretendidas pela requerente com este processo (a partilha da herança de um ascendente comum) podem ser alcançadas no próprio processo de inventário, que tem mecanismos que visam alcançar a citação dos interessados ou de garantir a sua representação quando estejam em paradeiro desconhecido ou não tenha sido possível o contato.
* * *

Não se enquadrando a situação no que está disposto no artigo 278.º, n.º3 do CPC, dependendo o conhecimento do mérito da ação da verificação dos respetivos pressupostos processuais, importa proferir decisão de conhecimento da exceção dilatória de ilegitimidade ativa. A ilegitimidade de algumas das partes é uma exceção dilatória (artigo 577.º, alínea e) do CPC), cuja consequência é a absolvição do réu da instância (artigo 576.º, n.º2 e 278.º, n.º1, alínea d), ambos do CPC). Por tudo o exposto, o tribunal absolve o réu da instância, por a autora não ter legitimidade para intentar esta ação. Custas a cargo da autora. Registe e notifique…”

III FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

III.3.1.- Conforme resulta do disposto nos art.ºs 608, n.º 2, 5, 635, n.º 4, 649, n.º 3, do CPC[1] são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso. É esse também o entendimento uniforme do nosso mais alto Tribunal (cfr. por todos o Acórdão do S.T.J. de 07/01/1993 in BMJ n.º 423, pág. 539.
III.2.- Não havendo questões de conhecimento oficioso são as conclusões de recurso que delimitam o seu objecto tal como enunciadas em I.
III.3.- Saber se ocorre na decisão recorrida erro de interpretação e de aplicação das disposições legais dos art.ºs 100, 103, 2133 e 2134 do CCiv.

III.3.1. Muito embora a decisão recorrida tenha aflorado a questão da improcedência da acção por não virem alegados factos essenciais que permitam aferir da morte do mencionado FC... por as circunstância em que se ausentou não fazerem indicar a ocorrência de qualquer sinistro que lhe tenha tirado a vida, não parecendo existir uma verdadeira ausência pressuposto da decisão, mais uma situação de não relacionamento do requerido com familiares em Portugal no qual se inclui a requerente, não se alegando sequer se existem bens do requerido abandonados em Portugal que necessitem de administração, porque o estado dos autos não permitem o conhecimento do respectivo mérito (art.ºs 278/3), não se conheceu da eventual manifesta improcedência da acção apenas a ilegitimidade do Réu. Nesse aspecto também estamos de acordo, o estado dos autos não permite aferir do fundo ou mérito no sentido da improcedência, pelo que este Tribunal se limitará a reapreciar a questão da legitimidade activa.

III.3.2. O Tribunal recorrido conclui pela ilegitimidade da Autora em suma no seguinte:
- Nos termos do art.º 110, aplicável por força do art.º 114 do CCiv existe uma legitimidade plural para requerer a declaração de morte presumida, uma legitimidade concorrente, mas fechada, a requerente não goza de legitimidade ao abrigo da relação conjugal, também não alega ter sobre os bens do ausente direito dependente da condição da sua morte, não alega sequer que existam bens do ausente em Portugal, apenas alega que ela e o requerido concorrem à herança dos pais e avós, respectivamente, os bens da herança dos avós do requerido não são do mesmo até à partilha da herança, não há qualquer direito a bens específicos mas a um quinhão hereditário, na previsão dos interessados que sobre os bens do ausente tenham direito dependente da condição da sua morte estão o legatário, o doador com cláusula de reversão e o proprietário de raiz sendo o usufrutuário o ausente.
- A requerente identifica-se como tia do requerido e por isso integra-se na classe dos sucessíveis até ao 4.º grau dos art.ºs 2133/d e 2147 do CCiv, e nesse sentido só é herdeira, só é chamada à sucessão se não existir cônjuge, descendente, ascendentes, irmãos e sobrinhos do requerido e por isso só é herdeira (para os efeitos do art.º 100 do CCiv) se alegar e demonstra na medida do razoável que o requerido não é casado, não tem filhos, é órfão e não tem irmãos e sobrinhos, porque se existirem cônjuge e estes parentes a requerente não é chamada à sucessão e por não ser interessada directa na partilha, não tem legitimidade para intentar inventário; se a requerente alega que o requerido órfão de pai e que a sua mãe o levou para o estrangeiro, não alegando que a mãe tenha falecidos (basta o registo de nascimento da mesma) nem alega que o requerido não esteja casado (basta o registo civil ou que não tenha filhos irmão ou sobrinhos, alegando a requerente que o requerido tem mãe é esta a única herdeira; o legislador distinguiu intencionalmente a legitimidade para as acções de interdição, atribuindo-a aos parentes sucessíveis (art.º 141 do CCiv) e a legitimidade para a declaração da morte presumida atribuindo-a aos herdeiro, tendo querido assim restringir a legitimidade para a acção de declaração e morte presumida às pessoas que pelas regras de sucessão têm interesse patrimonial directo nessa declaração de morte presumida.

III.3.3. Discordando diz a apelante em suma:
- O art.º 100, do CCiv, literalmente, como da epígrafe resulta, estabelece os requisitos para a declaração de morte presumida nenhuma ordem ou prioridade legitimativa para o pedido decorre limitando-se a ele a dar a conhecer a qualidade de todos quantos podem pedir a declaração de morte presumida, o que importa é o interesse que possa ser revelado e o que da norma decorre é que qualquer dos interessados que tenha sobre os bens do ausente direitos que dependam da condição da sua morte pode pedir a declaração da morte presumida, o art.º 100 é um norma de legitimação, não uma norma atributiva de direitos dos bens pode reconhecer-se legitimidade ao requerente sem que com isso se esteja a reconhecer-lhe algum direito concreto.
- Por isso o art.º 2133, do CCiv, não serve para definir a legitimidade para o uso da acção tendente à declaração da morte presumida porque o seu escopo é o de definir as classes de sucessíveis ou seja os que têm capacidade sucessória ou aptidão para serem herdeiros do falecido, relativamente aos quais se há-de posteriormente estabelecer uma ordem de preferência nos termos do art.º 2134 do CCiv.

III.3.4. Para sustentar o seu interesse em agir a apelante Autora diz que é sua intenção propor acção de inventário para partilhar os bens deixados pela herança aberta por morte de seus pais, que também são avós do requerido FC..., o que só ainda não aconteceu por se desconhecer o paradeiro do mesmos por este nunca ter dados notícias, a declaração da morte presumida do requerido permitirá que sejam distribuídos os bens do ausente, que lhe couberem, por sucessão mortis causa, neste caso pela autora e restantes familiares de acordo com o art.ºs 103/2, do CCiv; no fundo o que a Autora diz é que na partilha que se fizer dos bens deixados pela herança aberta dos seus pais que também são avós do requerido, vai requerer a cumulação com a herança aberta subsequente à declaração da morte presumida a do requerido (art.º 115 do CCiv); independentemente de saber se é ou não possível a cumulação de inventários em causa face aos termos da lei de inventário e do desfecho da acção declarativa da morte presumida ser ou não favorável à Autora ou seja independentemente de vir ou não a ser declarada essa morte presumida do requerido, está justificado o seu interesse em agir em concreto.

III.3.5. O tribunal “a quo” foi levado a pensar que, da mesma maneira que os sucessores de uma das classes preferem aos das classes seguintes, assim também a legitimidade activa para a presente acção se deveria atribuir prioritariamente aos herdeiros das classes anteriores. E como, nessa ordem, a mãe do requerido (cônjuge ou filhos) estariam em lugar anterior ao da requerente que é tia do requerido (por isso integrando a alínea d) do n.º 1 do art.º 2133 do CCiv enquanto que o cônjuge e descentes integram a alínea a), o cônjuge e os ascendentes integram a alínea b), entendeu que a autor não podia vir formular esta pretensão enquanto se não provasse que inexistia mais nenhum herdeiro antes de si.

III.3.6. Parece-nos, contudo, com o devido respeito, que este raciocínio não atende a um aspecto crucial escondido entre os condicionalismos previstos no art. 100º acima transcrito. Efectivamente, este normativo, segundo se avista da sua própria epígrafe, se, literalmente, estabelece os “requisitos” para a declaração de morte presumida, já por outro lado o que realmente nº1 desde logo fixa é o próprio pressuposto da legitimidade activa para o requerimento.
III.3.7. Ora, da letra do preceito, em primeiro lugar, nenhuma ordem ou prioridade legitimativa para o pedido decorre, limitando-se ele a estender sobre a mesa a qualidade de todos quantos podem pedir a declaração de morte presumida. O que importa ao legislador é o interesse que possa ser revelado; o que da norma simplesmente decorre é que qualquer dos interessados que tenha sobre os bens do ausente direitos que dependam da condição da sua morte pode pedir a declaração de morte presumida. Portanto, neste sentido, não cremos que esta disposição deva andar a par daquela que estabelece a classe de sucessíveis.
III.3.8. O nº1 do art. 100º é, portanto, uma norma de legitimação, não uma norma atributiva de direitos aos bens. Pode reconhecer-se legitimidade ao requerente, sem que com isso se esteja a reconhecer-lhe algum direito concreto aos bens da herança ou, pelo menos, o direito na medida da sua invocação concreta.
III.3.9. É por isso que o art. 103º, do Código Civil, prescreve que “A entrega dos bens aos herdeiros do ausente à data das últimas notícias, ou aos herdeiros dos que tiverem falecido, só tem lugar depois da partilha”. Quer dizer, uma coisa é o direito à declaração da morte presumida que emana do art. 100º; outra, é o direito concreto aos bens do ausente, os quais só entrarão na esfera do requerente de acordo com as regras da sucessão legítima (arts. 2131º e sgs.), as quais não deixarão de ser cumpridas em momento posterior.

III.3.10. Deste modo, o art.º 2133, do CC, não serve para definir a legitimidade para o uso da acção tendente à declaração de morte presumida, porque o seu escopo é o de simplesmente definir as classes de herdeiros sucessíveis, relativamente às quais se há-de posteriormente estabelecer uma ordem de preferência, nos termos do art.º 2134, por ocasião da partilha.

III.3.11. De acordo com o art.º 9, do CCiv, a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstitui a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstancias em que a lei foi elaborada e as condições específicas da sua aplicação, e tratando-se de um código deve presumir-se não só aquela bondade do legislador como ainda uma lógica na harmonização dos textos e dos conceitos. Se a mens legistoris fosse aquela que a sentença recorrida lhe conferiu não faria sentido incluir os cônjuges na letra do preceito (art. 100º, nº1: “..pode ser requerida pelo cônjuge,…”) se as camadas de sucessíveis já o compreendem nas suas primeiras classes (alíneas a) e b) do art. 2133º). Isto, desde logo, denuncia que o art. 100º não depende da sua articulação automática com o art. 2133, nem, por conseguinte, com a ordem de chamamento estabelecida no art. 2134.

III.3.12. Da certidão do assento do nascimento do requerido FC... e constante de fls. 10 v.º 11 certidão que é de 15/2/2018, o que resulta, além do mais é que nasceu em 3/1/1985, filho de M.C.
e de A.T.M., nenhum averbamento constando em relação ao seu casamento, pelo que se deve concluir que o mesmo é solteiro, o que não obsta a que o mesmo possa ter tido filhos, questão que não releva como se disse para a aferição da legitimidade da requerente sua tia. Assim, da mesma maneira que os filhos do requerido (se os houver) ou a sua mãe (se viva for) são respectivamente primeiros e segunda sucessíveis, a requerente não deixa de ser um sucessível posterior, alguém “interessado” nos termos e para os efeitos do art.º78 da Lei 23/2013 de 5/3, no caso de repúdio da herança por parte daqueles (art.ºs 117, 109 e 2062 do CC). Isso, porém, é questão que já foge ao âmago do objectivo dos autos.

III.3.13. Por conseguinte, a autora demonstrou ser interessada na morte presumida do sobrinho e a sentença que a declare não o investe necessária e imediatamente na posse dos bens, pois isso só se verificará depois da partilha (cfr. art. 103º do CC) no quadro de um processo de inventário que corre os seus temos ao abrigo dos art.ºs 77 e ss da Lei de Inventario e 117, 109 e 20162 do CCiv. Porque só com o trânsito da decisão que declare a morte presumida é que se abre a herança, será nesse processo de inventário que se aquilatará se ele é o único herdeiro da irmã ou se, em vez disso, a si preferirão os filhos do requerido ou a sua mãe (prioritários sucessíveis), no caso de esta existirem e estarem vivos.

Por isso, somos a entender ter sido feita errada interpretação do disposto nos art.ºs 100º do CC.

IVDECISÃO
Tudo visto acordam os juízes na 2.ª secção desta Relação em julgar procedente a apelação consequentemente revogam a decisão recorrida que se substitui por estoutra que determina o prosseguimento dos autos se nenhuma outra razão obstar a tal.
Regime da responsabilidade por custas: As custas são da responsabilidade do vencido ou vencidos a final (art.º 527 1 e 2)



Lxa., 20-09-2018



João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves



[1]Na redacção que foi dada ao Código do Processo Civil pela Lei 41/2013 de 26/7, atento o disposto nos art.º 5/1, 8, e 7/1 (a contrario sensu) e 8 da mesma Lei que estatuem que o novel Código de Processo Civil entrou em vigor no passado dia 1/09/2013 e que se aplica imediatamente às acções declarativas pendentes, não estando a situação ressalvada no art.º 7, atendendo a que a acção foi autuada e distribuída inicialmente ao Juiz 2 do Jízo Local Cível da Amadora do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste em 2/2/2018 e a data da decisão recorrida que é de 17/05/2018; ao Código referido, na redacção dada pela Lei 41/2013, pertencerão as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação de origem.