Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19657/13.6YYLSB-A.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
PARTES COMUNS
DESPESAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.– O disposto no n.º 1 do art. 1424 do Código Civil – relativo às despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum – apenas pode ser afastado por disposição em contrário.

II.– Tratando-se, porém, de despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum, o n.º 2 do art. 1424 permite o afastamento da regra da proporcionalidade por disposição do regulamento de condomínio aprovada pela maioria explicitada na norma e com um dos dois conteúdos nela estabelecidos.

III.– As normas dos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do Código Civil – que dispõem sobre a repartição das despesas relativas a partes comuns que servem exclusivamente alguns condóminos ou a ascensores que apenas servem determinadas frações – constituem disposições especiais que afastam a regra geral da proporcionalidade estabelecida pelo n.º 1 e não podem ser afastadas por deliberação da assembleia de condóminos.

IV.– As deliberações das assembleias de condóminos que imponham uma repartição diferente da determinada pelos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 para as despesas neles previstas são deliberações com conteúdo negocial contrário à lei e, como tal, nulas, por via do disposto no art. 280 do CC.

V.– A sanção da anulabilidade prevista no art. 1433 do CC aplica-se a deliberações que violem normas legais imperativas que não digam respeito ao conteúdo negocial ou normas do regulamento de condomínio.

(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 7, do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I.Relatório:


...–SOCIEDADE DE CONSULTADORIA EM GESTÃO E ..., LDA., embargante nos autos de embargos de executado indicados à margem, em que é exequente e embargado o CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO NA RUA LADISLAU ..., LOTE 2, EM ..., notificada do saneador-sentença de 27 de fevereiro de 2017 e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso.
                                              
A embargante é condómina do embargado, que lhe tinha interposto execução para pagamento de prestações devidas ao condomínio. A embargante deduziu embargos alegando, em síntese, que não esteve presente nas assembleias de condóminos a que respeitam as atas dadas à execução, desconhecendo se as mesmas foram regularmente convocadas, e que a de 29.02.2012 foi realizada sem quórum; admitiu que não paga as quotas relativas à fração de que é locatária financeira desde 2009, mas alegou que deixou de pagar por o apuramento do valor das quotas ter ficado condicionado ao esclarecimento jurídico do que efetivamente é devido pela sua fração, uma vez que não tem acesso à parte habitacional do prédio, não tendo por isso obrigação de comparticipar nas despesas relativas aos lanços de escadas, aos ascensores, à limpeza das escadas, à eletricidade da parte habitacional, aos telefones ou à recolha do lixo, não sendo também devidos juros.
Recebida a oposição, contestou o exequente pugnando pela respetiva improcedência.

A recorrente conclui as suas alegações de recurso do seguinte modo:
«A)– A norma especial - v. g. o artigo 1433.º do Código Civil - consagra um regime que, não se encontrando em oposição ao regime geral da nulidade e da anulabilidade (artigos 286.º e 287.º do Código Civil), tem, em relação a este, certas particularidades, no caso vertente adequado ao regime jurídico da propriedade horizontal.
B)– No âmbito deste artigo 1433.º do Código Civil, não estão compreendidas, nem as deliberações que violam preceitos de natureza imperativa, nem as que tenham por objecto assuntos que exorbitam da esfera de competência da assembleia de condóminos.
C)– A regra do número 1. Artigo 1424º Encargos de conservação e fruição contém a expressão “salvo disposição em contrário” e desde logo especifica regras que têm de ser observadas em que o princípio de pagamento na proporção do valor da sua quota não é observado;

D)– O disposto nos n.ºs 3 e 4 do Art.º 1424.º dispõem de normas sobre encargos e fruição, que devem ser consideradas com carácter imperativo:
3.- As despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que dela se servem.
4.- Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas.

E)– Existem condicionantes específicos da deliberação da Assembleia do Condomínio, quando delibera nos termos do art.º 6.º n.º 1 Decreto-Lei n.º 268/94, de 25/10, designadamente, “Para constituir título executivo, a ata da assembleia de condóminos tem de permitir, de forma clara e por simples aritmética, a determinação do valor exato da dívida de cada condómino… Cfr acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.2014 (cfrhttp://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/6ec9d73621e54a7).
F)– Portanto, impõe-se à ata permitir de forma clara e por simples aritmética a determinação do valor exato da dívida, não basta dizer-se o valor da dívida, tem de ficar explícita a forma de apuramento.
G)– Donde, não pode um erro no apuramento da dívida ficar validado por a deliberação da Assembleia não ter sido impugnada nos termos do art.º 1433 do Código Civil.
H)– Decorre do Acórdão da Relação de ... nº 54/09.4TJSB.L1-6, de 06.12.2012: “Estando em causa partes comuns do edifício de que só alguns condóminos possam usufruir, a regra geral da comparticipação nas despesas necessárias á conservação e fruição das partes comuns de acordo com o valor de cada uma das frações, é alterada através da consagração legal de isenção de participação nesses encargos ou despesas daqueles condóminos que não as possam utilizar no âmbito da normal utilização da sua fração”.
I)– Na Ata da Assembleia de Condomínio que é apresentada como Título Executivo, atenta a forma global como são apresentadas as despesas, necessariamente foi violado o critério que as despesas com partes comuns do edifício de que só alguns condóminos possam usufruir, são pagas exclusivamente por esses condóminos.
J)– A Ata da Assembleia de Condomínio ao não permitir descriminar as despesas com partes comuns do edifício que só alguns dos condóminos possam usufruir das demais que são responsabilidade de todos os condóminos, deixa de servir de título executivo, pois viola um critério imposto pela lei: aquele que isenta da participação nesses encargos ou despesas os condóminos que não os possam utilizar no âmbito da normal utilização da sua fração.
K)– As despesas com elevadores estão excluídas para os condóminos que não são servidos pelos elevadores.
L)–  Deste modo, tem de decidir-se pela inexequibilidade das atas apresentadas como título executivo atendendo a que não cumprem os requisitos previstos, no art.º 6º do DL 268/94, de 25 de Outubro.
M)–  A decisão recorrida viola o disposto nos art.º 1424.º, 1433.º e no art.º 6º do DL 268/94, de 25 de Outubro;
N)–  Deste modo, devem os embargos ser julgados inteiramente procedentes e provados e as atas do condomínio apresentadas não serem consideradas como título executivo».

Não houve contra-alegações.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, coloca-se a questão de saber se as deliberações constantes das atas das assembleias de condóminos dadas como títulos executivos são suscetíveis de (validamente) afastar o regime das normas contidas nos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do Código Civil; e, na negativa, qual o regime da invalidade.

II.Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os factos 1 a 9, que a recorrente não discute. Sobre os factos 10 a 12 há consenso entre as partes, constando o primeiro das atas juntas pela exequente como títulos executivos, pelo que se consignam ao abrigo do disposto no art. 662, n.º 1, do CPC.

Estão assim provados os seguintes factos:
1- A fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente à loja ou armazém loja 5, para comércio, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua Ladislau ..., Lote 2, em ..., mostra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2394/20041222-C, da freguesia do Lumiar;
2- O direito de propriedade sobre a referida fração foi inscrito a favor do Banco Comercial Português, S.A. em 24.03.2006, por compra;
3- O Banco Comercial Português, S.A. deu a referida fração em locação financeira à executada ... – Sociedade Consultoria em Gestão e ..., Lda., pelo prazo de 15 anos, com início em 10.02.2006, tendo este encargo sido inscrito no registo em 24.03.2006;
4- Na assembleia geral extraordinária de condóminos do prédio, realizada em 26.02.2008 (ata n.º 4), foi deliberado, por maioria, com a abstenção da Loja 5, o orçamento para 2008, ficando a constar dessa ata a seguinte declaração de voto: “é entendimento do proprietário da Loja 5 que não deve comparticipar em todas as despesas correntes do condomínio por não ter acesso à zona habitacional do edifício”, mais ficando ainda a constar da mesma ata que “a distribuição do orçamento aprovado pelas frações ficou condicionada ao esclarecimento jurídico deste ponto”;
5- Na assembleia geral de condóminos, reunida em 12.03.2009 (ata n.º 5), foi deliberado, por unanimidade dos presentes, aprovar o valor do orçamento anual para o ano de 2009, sendo o valor a pagar pela Loja 5, de acordo com a sua permilagem, de € 112,28 mensais;
6- Na assembleia geral de condóminos, realizada em 14.04.2010 (ata n.º 6), foi deliberado, por unanimidade dos presentes, aprovar o valor do orçamento anual para o ano de 2010, sendo o valor a pagar pela Loja 5, de acordo com a sua permilagem, de € 118,47 mensais;
7- Na assembleia geral de condóminos, reunida em 23.02.2011 (ata n.º 7), foi deliberado, por unanimidade dos presentes, aprovar o valor do orçamento anual para o ano de 2011, sendo o valor a pagar pela Loja 5, de acordo com a sua permilagem, de € 116,53 mensais;
8- Na assembleia geral de condóminos, realizada em 29.02.2012 (ata n.º 8), foi deliberado, por unanimidade dos presentes, aprovar o valor do orçamento anual para o ano de 2012, sendo o valor a pagar pela Loja 5, de acordo com a sua permilagem, de € 121,85 mensais;
9- Na assembleia geral de condóminos, reunida em 27.02.2013 (ata n.º 10), foi deliberado, por unanimidade dos presentes, aprovar o valor do orçamento anual para o ano de 2013, sendo o valor a pagar pela Loja 5, de acordo com a sua permilagem, de € 119,87 mensais.
10- Foram juntas aos autos como títulos executivos as atas n.ºs 5 a 8 e 10, nas quais foram aprovados os orçamentos para os anos 2009 a 2013, por unanimidade dos presentes nas assembleias respetivas, com quóruns de 36,1% (ata 5), 50,7% (ata 6), 28,1% (ata 7), 22,8% (ata 8) e 35,7% (ata 10) do capital investido no prédio.
11- A recorrente é locatária financeira de uma loja com entrada independente, não usando escadas e elevadores da parte habitacional do prédio.
12- Os valores encontrados nas atas acima mencionadas como sendo devidos pela Loja 5 tiveram em consideração apenas a permilagem da loja, mas não o facto 11.

III.–  Apreciação do mérito do recurso
A.– Enquadramento jurídico do litígio e do recurso - generalidades
A ora recorrente é executada enquanto devedora das prestações de condomínio que, na qualidade de locatária financeira de dada fração autónoma, lhe cabem (cfr. art. 10.º, n.º 1, al. b), do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, aprovado pelo DL 149/95, de 24 de junho, na redação que lhe foi conferida pelo DL 265/97, de 2 de outubro, com a retificação n.º 17-B/97, de 31 de outubro – constitui obrigação do locatário pagar, em caso de locação de fração autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum).
A execução foi interposta ao abrigo do disposto no art. 6.º do DL 268/94, de 25 de outubro, nos termos do qual, a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
Foram juntas aos autos como títulos executivos as atas n.ºs 5 a 8 e 10 (factos 5 a 9), nas quais foram aprovados os orçamentos para os anos 2009 a 2013, por unanimidade dos presentes nas assembleias respetivas, com quóruns de 36,1% (ata 5), 50,7% (ata 6), 28,1% (ata 7), 22,8% (ata 8) e 35,7% (ata 10) do capital investido no prédio.
A recorrente é locatária financeira de uma loja com entrada independente, não usando por isso escadas e elevadores da parte habitacional do prédio, nem dando azo às despesas com os serviços necessários à manutenção daquela parte do imóvel. Nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do art. 1424, do CC, as despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente alguns dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem e nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas. Estão a ser cobrados à recorrente valores que englobam despesas com escadas, ascensores e manutenção de partes comuns à área habitacional de que não usufrui. A recorrente entende que as citadas normas nos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do CC não podem ser afastadas pelas deliberações dadas à execução e que as contrariam. Por isso, apesar de os valores terem sido aprovados por unanimidade dos presentes (mas com presença apenas de representantes de 22,8% a 50,7% do valor do prédio) e de não ter posto em causa anteriormente as deliberações das atas 5 a 8 e 10, defende que não tem de os pagar.
O tribunal a quo julgou os embargos improcedentes nesta parte, por entender que a recorrente teria de ter impugnado as deliberações que aprovaram as despesas exequendas nos termos e prazos previstos no art. 1433 do CC.
Quid juris?

B.–  Da natureza das normas do art. 1424, n.ºs 3 e 4, do CC
O art. 1424 do CC tem, presentemente e desde a Lei 32/2012, de 14 de agosto, o seguinte teor:
«Encargos de conservação e fruição
1- Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações.
2- Porém, as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento de condomínio, aprovada sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respectiva fruição, desde que devidamente especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação.
3- As despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem.
4- Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas.
5- Nas despesas relativas às rampas de acesso e às plataformas elevatórias, quando colocadas nos termos do n.º 3 do artigo seguinte, só participam os condóminos que tiverem procedido à referida colocação.»

A primitiva redação apresentava-se como segue:
«Encargos de conservação e fruição
1.- Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações.
2.- Porém, as despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que delas se servem.
3.- Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas.»

Em 1994, o artigo foi alterado pelo DL 267/94, de 25 de outubro, passando a ter o seguinte conteúdo:
«Encargos de conservação e fruição
1.- Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações.
2.- Porém, as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum podem, mediante disposição do regulamento de condomínio, aprovada sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respetiva fruição, desde que devidamente especificadas e justificados os critérios que determinam a sua imputação.
3.- As despesas relativas aos diversos lanços de escadas ou às partes comuns do prédio que sirvam exclusivamente algum dos condóminos ficam a cargo dos que dela se servem.
4.- Nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas.»

A grande alteração de 1994 foi o acrescento da norma que recebeu o n.º 2, passando os anteriores n.ºs 2 e 3 a n.ºs 3 e 4. As regras dos atuais n.ºs 3 e 4 vêm, portanto, da redação primitiva, correspondendo aos n.ºs 2 e 3 dela, tendo-se apenas, na regra relativa aos lanços de escadas, suprimido a conjunção «porém».
A alteração de 2012 limitou-se a acrescentar o n.º 5, relativo a despesas com rampas de acesso e plataformas elevatórias, colocadas por condómino que tenha no seu agregado familiar pessoa com mobilidade condicionada.

O n.º 1 do art. 1424 confere-nos a regra geral em matéria de despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns: proporcionalidade, com referência ao valor das frações. As escadas são, entre outras, partes comuns, e os ascensores também assim se presumem (art. 1421, n.º 1, al. c), e n.º 2, al. b), do CC). No entanto, no que respeita ao pagamento das despesas inerentes, os n.ºs 3 e 4 do art. 1424 excecionam a regra do n.º 1. Se as escadas servirem apenas um grupo de condóminos, continuam a ser partes comuns a todos os condóminos, mas as despesas relativas a lanços que sirvam exclusivamente alguns condóminos ficam a cargo dos que deles se servem (1424, n.º 3) - «não se trata de um serviço efetivo, de um gozo subjetivo da parte dos condóminos, mas sim de uma possibilidade objetiva de utilização» (Sandra Passinhas, A assembleia de condóminos e o administrador na propriedade horizontal, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, p. 38 e nota 59, no mesmo sentido M. Henrique Mesquita, «A propriedade horizontal no Código Civil português», Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIII, 1976, p. 130, nota 117). Os ascensores presumem-se comuns, embora nas despesas só participem os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas (1424, n.º 4) – Sandra Passinhas, cit., p. 40.

Na vigência da primitiva versão do art. 1424 (anterior ao DL 267/94), houve quem se pronunciasse no sentido de as normas do art. 1424 do CC terem natureza supletiva, devendo permitir-se que o título constitutivo da propriedade horizontal ou deliberação de todos os interessados mediante escritura pública afastassem as regras ditadas pelo artigo.
Assim, Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., de 1987, em anotação ao artigo em causa, p. 431, escreveram: «O princípio geral aplicável à repartição das despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento dos serviços de interesse comum é o do recurso à estipulação das partes. Valerá para o efeito o critério que tiver sido estabelecido pelos interessados, no título constitutivo ou em estipulação adequada.
Na falta de disposição negocial, vigora como primeira regra supletiva o critério da proporcionalidade (…).
A segunda regra supletiva, aplicável às partes comuns do prédio que apenas sirvam um ou alguns dos condóminos, é a que restringe a repartição dos respetivos encargos aos utentes dessas partes. Este segundo critério (da redução dos condóminos obrigados) é completado pelo primeiro, quanto à forma como se dividem os encargos entre condóminos onerados» - as ênfases em título constitutivo e estipulação adequada são nossas.
Henrique Mesquita previa a possibilidade de uma repartição de despesas diferente da prevista no art. 1424 resultar do título constitutivo (não de uma qualquer deliberação em assembleia): «Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações. A obrigação de contribuir para estas despesas é uma típica obrigação propter rem – uma obrigação decorrente não de uma relação creditória autónoma, mas antes do próprio estatuto do condomínio. (…) «Mesmo quando as obrigações que impendem sobre os condóminos resultem do título constitutivo (e não diretamente da lei), a sua força vinculativa decorre da eficácia real do estatuto do condomínio e não de um ato de aceitação por parte daqueles» (M. Henrique Mesquita, «A propriedade horizontal no Código Civil português», Revista de Direito e de Estudos Sociais, XXIII, 1976, pp. 129-130 e nota 119).
Na jurisprudência encontrava-se idêntico sentido, como se alcança, exemplificativamente, do sumário do Ac. do STJ de 02/04/1975, BMJ 246, p. 157: «I – No silêncio do título, é nula a deliberação dos condóminos que estabeleça a possibilidade de alteração da comparticipação das despesas por decisão da assembleia geral; a modificação do regime fixado no art. 1424.º do Cód. Civil só é possível por acordo de todos os interessados e mediante escritura pública» - ênfases nossas.
Ao encontro do entendimento espelhado na doutrina e na decisão acabadas de referir, o DL 267/94 introduziu no art. 1424 norma permitindo que as despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum possam, mediante disposição do regulamento de condomínio, aprovada sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, ficar a cargo dos condóminos em partes iguais ou em proporção à respetiva fruição, desde que devidamente especificadase justificados os critériosque determinam a sua imputação. Esta norma do n.º 2 introduzida em 1994 veio permitir de forma expressa que os condóminos conformem de modo diferente do estabelecido no n.º 1 a sua participação no pagamento de despesas relativas a serviços de interesse comum. Este n.º 2 passou a possibilitar o afastamento da regra do n.º 1 no que respeita ao pagamento daquelas despesas, desde que tal afastamento seja feito por disposição do regulamento de condomínio, aprovada sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio. Ainda assim, a disciplina do regulamento apenas poderá ter uma de duas soluções: ou as despesas ficam a cargo dos condóminos em partes iguais ou ficam a cargo dos condóminos na proporção da respetiva fruição. Acresce ainda um requisito: que as despesas fiquem devidamente especificadas e que sejam justificados os critérios que determinam a sua imputação.

Com a alteração de 1994, a lei passou a admitir que a regra da proporcionalidade fosse afastada – ainda que apenas em relação ao pagamento de serviços de interesse comum (não quanto às despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns que o n.º 1 também prevê) –, não apenas por disposição (legal) em contrário, mas também mediante disposição do regulamento nos termos apertados previstos no novo n.º 2 do mesmo art. 1424.

«Disposição», como tantos outros termos, é uma palavra polissémica, mesmo considerando o estrito léxico jurídico. No Código Civil, encontramo-la essencialmente com dois significados que simplisticamente se podem reconduzir a «alienação» e «preceito», como passamos a justificar.
Por um lado, encontramos a palavra associada aos poderes de usar e de prescindir da coisa por parte de quem tem o domínio sobre ela, nomeadamente com o significado de alienação ou oneração de bens ou direitos, como no âmbito dos artigos 28, n.º 2, 39, n.º 4, 109, 127, 153, n.º 1, 197, n.º 1, 226, n.º 2, 274, n.º 1, 622, n.º 1, 764, n.º 1, 819. Trata-se nestes casos de exercer sobre bens e direitos atos que vão além da mera administração, designadamente dando-lhes destino que implica a mudança de titularidade. Não é este o significado que procuramos.
Por outro lado, encontramos «disposição» como preceito e, neste sentido, quase sempre como preceito ou norma legal. É de disposição legal que se trata, e de forma expressa – com a menção «legal» imediatamente a seguir a «disposição» – nos artigos 4.º, al. a), 14, n.º 1, 67, 171, n.º 2, 262/2, 294, 331, n.º 2, 375, n.º 3, 393, n.º 1, 483, n.º 1, 606, etc. É também de disposição legal que se trata em casos como os dos artigos 285 («as disposições dos artigos subsequentes»), 509, n.º 3 («nos termos desta disposição»), 773, n.º 2 («disposição do número anterior»). Por vezes refere-se «disposição especial», claramente com o sentido de norma especial, por confronto com a regra geral (artigos 239, 296, 433).
Ainda com o sentido de preceito, regra, por definição, disciplina abstratamente estatuída para situações futuras que se preveem de forma genérica, encontramos a palavra disposição por referência à estatutária ou regulamentar de pessoas coletivas (em geral, associações, fundações – nos artigos 163, n.º 1, 171, n.º 2, 180, 188, n.º 5), e afins (no caso do regulamento do condomínio – nos arts. 1424, n.º 2, 1432, n.º 3, e 1435, n.º 4). O condomínio, enquanto entidade a que o direito reconhece uma parcela de personalidade, sem lhe atribuir personalidade jurídica, pertence ao conjunto das quase-pessoas coletivas, que a doutrina trata com designações várias – «pessoas rudimentares» (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III, Coimbra, Almedina, 2004, p. 521), «figura afim da pessoa coletiva» (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, I, ..., Universidade Católica Editora, 2001, p. 536), «ente não personalizado» (Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, I, ..., ULFD, 1984/85, p. 274).
A expressão «salvo disposição em contrário» surge, claramente com o significado de «salvo norma legal em contrário», nos seguintes artigos do Código Civil: no art. 123, «salvo disposição em contrário, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos»; no art. 298, n.º 3, «os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos caos especialmente previstos na lei, sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade»; no art. 570, n.º 2, «se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar»; no art. 750, «salvo disposição em contrário, no caso de conflito entre o privilégio mobiliário especial e um direito de terceiro, prevalece o que mais cedo se houver adquirido»; no art. 1287, «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação»; no art. 1588, «o casamento católico rege‐se, quando aos efeitos civis, pelas normas comuns deste código, salvo disposição em contrário».
Os significados de «disposição» que encontramos no Código são alguns daqueles que encontramos nos dicionários gerais. Não encontramos nestes nem no Código «disposição» como parte do conteúdo de um acordo contratual. Quando o Código se refere a tal, fala em «cláusula» ou em «estipulação». Em abono da nossa conclusão, repare-se: i) quando o Código Civil ressalva acordo das partes, a expressão utilizada é «salvo estipulação em contrário», como, entre outros, sucede nos artigos 274, n.º 1, 420, 448, n.º 1, 550, 852, n.º 1, 862, 882, n.º 2, 921, n.º 3, 1046, 1073, n.º 2, 1074, n.º 1 e 5, 1096, 1138, n.º 2, 1183; ii) o Código distingue claramente «disposição» e «estipulação» no sentido que expusemos, como sucede nos artigos 393, n.º 1 («por disposição da lei ou estipulação das partes»), 772, n.º 1 («Na falta de estipulação ou disposição especial da lei») ou 777, n.º 1 («Na falta de estipulação ou disposição especial da lei»). Exercício análogo ao que acabámos de fazer nas últimas páginas encontra-se em Rui Pinto Duarte, anotação ao art. 1424, in Código Civil Anotado, II, Artigos 1251.º a 2334.º, Ana Prata (coord.), Almedina, 2017, pp. 258-9, com conclusão no sentido de a «disposição» referida no n.º 1 do art. 1424 ser disposição legal ou disposição do título constitutivo, incluindo do regulamento constante do título constitutivo: «A conjugação do n.º 1 do art. 1424 com o n.º 2 do mesmo artigo e com o art. 1418, n.ºs 1 e 2, leva-nos a pensar que, no caso em apreço, a expressão “salvo disposição em contrário” abrange tanto disposições legais como disposições do título constitutivo, incluindo do regulamento do condomínio que aquele título contenha. Não julgamos que se deva entender que a expressão abrange também disposições de regulamentos de condomínio não constantes do título constitutivo (resultantes de deliberação dos condóminos ou de ato do administrador) ou de (outras) deliberações dos condóminos».

As normas dos n.ºs 1, 3, 4 e 5 do art. 1424 do CC são normas jurídicas precetivas, que contêm preceitos, regras de proceder, formas de agir nas circunstâncias que elas próprias preveem (sobre as classificações das regras, v. sobretudo José de Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e teoria geral, 3.ª ed., ..., Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 433-55). As normas precetivas têm, por defeito, caráter imperativo. E assim sucede com estas, pois o n.º 1 apenas permite o seu afastamento por disposição em contrário, sendo os n.ºs 3, 4 e 5 as tais disposições que excecionam a regra do n.º 1. O n.º 2, que se inicia com a adversativa «porém», dando assim indicação de que também vai excecionar a regra do n.º 1, autoriza que, dentro de certos limites de quórum e requisitos de conteúdo, parte das despesas a que o n.º 1 se reporta, tenham diferente disciplina.
O elemento literal das normas do art. 1424 dá-nos a indicação clara, por tudo quanto fomos dizendo, que as regras dos n.ºs 3 e 4 (que são as relevantes no nosso caso) não podem ser afastadas por decisão de condóminos. Também avançámos com razões históricas que nos permitem perceber o n.º 2; a simples existência deste enfatiza que qualquer afastamento das demais regras do art. 1424, que não por via de disposição legal, apenas pode acontecer nos estritos parâmetros definidos pelo n.º 2.
Há razões fortes para que assim seja, entrando agora noutros elementos da interpretação das normas, nomeadamente no lógico e no teleológico. Na propriedade horizontal estão em permanente tensão interesses individuais de cada condómino e interesses comuns a todos ou a grupos de condóminos. Idealmente, cada condómino está interessado na melhor (já de si discutível) preservação das partes comuns, mas tanto não significa que todos partilhem a mesma ideia sobre a melhor forma se atingir essa preservação e, nomeadamente, que todos concordem com a medida em que cada um deve contribuir para as despesas referentes a partes comuns. É sobretudo a respeito destas que se defrontam interesses financeiros individuais e interesses coletivos de pagamento das despesas necessárias ao bom estado das partes comuns. Não podia o legislador deixar (como não deixou) nas mãos da maioria dos condóminos a atribuição das despesas a cada um, sob pena de os condóminos minoritários serem esmagados por interesses estritamente económicos da maioria. O que teria nefastas consequências sociais, quer ao nível de cada núcleo habitacional (conflitos entre condóminos, com inerentes perdas na qualidade de vida dos mesmos), quer ao nível social mais alargado, com necessários reflexos na litigiosidade, na conservação do património construído, e na atração e valorização dos imóveis em propriedade horizontal.
No campo estritamente contratual, graças ao princípio de ampla liberdade, positivado no art. 405 do CC, as regras que disciplinam os tipos são, em geral, supletivas, ou seja, aplicam-se quando as partes nada estipulem em contrário e haja necessidade de regular aspetos que não previram (para a distinção entre normas imperativas e supletivas, v., além de Oliveira Ascensão, cit., pp. 441-6, Jorge Morais Carvalho, Os limites à liberdade contratual, Almedina, 2016, pp. 174-9). As deliberações das assembleias de condóminos estão num nível regulatório diferente dos contratos na medida em que podem ser tomadas sem intervenção de todos os interessados e, especialmente quando digam respeito ao regulamento do condomínio, mesmo que tomadas por todos os condóminos, podem afetar terceiros, futuros condóminos, que sobre elas não puderam pronunciar-se. Como tal, a lei não pode deixar ao acaso, nas mãos de parte dos condóminos existentes em dado momento, uma regulação que afetará outros, inclusivamente pessoas que só em momento futuro farão parte do condomínio.

Aqui chegados, concluímos que a norma do n.º 1 do art. 1424 (proporcionalidade do valor das frações no pagamento das despesas) apenas pode ser afastada nos termos do n.º 2 e é excecionada pelas regras dos n.ºs 3 e 4. Uma repartição de despesas diferente da prevista no art. 1424, n.º 1, só é possível mediante disposição do regulamento do condomínio, aprovado sem oposição por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio. Não basta uma mera deliberação da assembleia (assim também, Sandra Passinhas, cit., p. 284).
As regras dos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 excecionam a regra da proporcionalidade para certas despesas, acautelando interesses de condóminos que, quando minoritários, poderiam doutro modo ver-se na contingência de ter de suportar despesas para as quais nada contribuem e das quais não podem sequer tirar proveito. São, pois, normas imperativas cujo afastamento não é possível, nem sequer dentro apertados requisitos estabelecidos pelo n.º 2 (que, no caso sub judice, de todo o modo não se verificam).
A norma do n.º 2 do art. 1424 possibilita o afastamento da regra da proporcionalidade, por disposição do regulamento do condomínio aprovada nos moldes já referidos, no que respeita a algumas despesas englobadas no n.º 1, mais concretamente às «despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum». Pela sua inserção sistemática e pelo seu conteúdo, a norma do n.º 2 não possibilita o afastamento da disciplina dos n.ºs 3 e 4, que não respeitam ao pagamento de serviços de interesse comum, mas de serviços de interesse exclusivo de parte dos condóminos.

Ainda que tivéssemos outro entendimento – ou seja, ainda que entendêssemos que as regras dos n.ºs 3 e 4 podiam ser afastadas nos termos do n.º 2 –, no caso dos autos o resultado seria o mesmo, uma vez que as deliberações plasmadas nas atas dadas à execução não respeitam os requisitos do n.º 2, nomeadamente: não foram tomadas por maioria representativa de dois terços do valor total do prédio, não resultaram em disposição do regulamento do condomínio, não determinam a contribuição paritária nem na proporção da fruição.

Nem se compreenderia, repetimos, que as normas sobre repartição de despesas relativas a partes comuns dos prédios em propriedade horizontal pudessem estar na disponibilidade dos condóminos (além do estritamente regulado no n.º 2 do art. 1424), pois o condomínio corresponde a um conjunto de interesses individuais potencialmente conflituantes, alguns minoritários, que ficariam constantemente prejudicados pela imposição de repartições de despesas favoráveis às maiorias, conduzindo a situações de necessário conflito, com repercussões importantes no bem-estar social, além de prováveis consequências ao nível da própria conservação do património construído que a todos interessa.

Aqui chegados importa averiguar qual é a sanção prevista para a violação das regras dos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do CC.

C.–  Do regime da invalidade
Com alguma frequência encontramos informação no sentido de a violação de uma norma imperativa gerar necessariamente nulidade do negócio. É o que parece ser sugerido, por exemplo, pelo trecho de Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 447, quando, em anotação ao art. 1433 do CC (que determina que as deliberações da assembleia contrárias à lei são anuláveis), escrevem: «no âmbito desta disposição não estão compreendidas, nem as deliberações que violam preceitos de natureza imperativa, nem as que tenham por objeto assuntos que exorbitam da esfera de competência da assembleia de condóminos». Se assim fosse, as deliberações contrárias à lei a que o art. 1433 se reporta e que comina com a anulabilidade não seriam imperativas, seriam dispositivas e, nomeadamente, supletivas. Mas não pode ser assim (também reparando na incongruência, Jorge Morais Carvalho, Os limites…, cit., p. 151, nota 442). Normas supletivas são aquelas cujo conteúdo pode ser validamente afastado pelas partes, pelo que o negócio que as afasta é válido, logo, não anulável.
As normas imperativas não geram necessariamente nulidade do ato praticado em violação delas. A prática negocial em desrespeito de uma norma imperativa pode ter diversos tipos de consequências, parte das quais não passam sequer pela invalidade do negócio (sanções penais ou contraordenacionais, resolução do contrato, inexistência, mera ineficácia) – a propósito, Jorge Morais Carvalho, Os limites…, cit., pp. 167-216. A sanção da nulidade está definitivamente excluída nos casos em que está prevista outra sanção do campo da eficácia do negócio (anulabilidade, mera ineficácia, invalidade atípica); havendo estatuição de uma sanção estranha ao domínio da eficácia do negócio – como, por ex., quando a infração da norma imperativa constitui contraordenação –, teremos de ponderar a adequação da nulidade ao negócio (já assim o defendemos em Regime jurídico da atividade de mediação imobiliária anotado, Almedina, 2015, pp. 70-3 e em Contrato de mediação, Almedina, 2014, pp. 389-93).

Por facilidade de exposição, passamos a reproduzir o artigo 1433 do Código Civil, justamente epigrafado «impugnação das deliberações»:
«1.- As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado.
2.- No prazo de 10 dias contado da deliberação, para os condóminos presentes, ou contado da sua comunicação, para os condóminos ausentes, pode ser exigida ao administrador a convocação de uma assembleia extraordinária, a ter lugar no prazo de 20 dias, para revogação das deliberações inválidas ou ineficazes.
3.- No prazo de 30 dias contado nos termos do número anterior, pode qualquer condómino sujeitar a deliberação a um centro de arbitragem.
4.- O direito de propor a acção de anulação caduca no prazo de 20 dias contados sobre a deliberação da assembleia extraordinária ou, caso esta não tenha sido solicitada, no prazo de 60 dias sobre a data da deliberação.
5.- Pode também ser requerida a suspensão das deliberações nos termos da lei de processo.
6.- A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designar para esse efeito.»

Por via do transcrito artigo, a lei afasta a consequência da nulidade para deliberações da assembleia de condóminos que lhe sejam contrárias, consagrando a da anulabilidade. Mas será assim para todos os casos de deliberações contrárias à lei?
Usando palavras alheias que a propósito vêm, «antes de mais, há a notar que é opinião comum que, pese a letra da lei, certos tipos de ilegalidade geram a nulidade das deliberações – e não mera a anulabilidade. (…) O CC seguiu, em matéria de deliberações da assembleia de condóminos, como no tocante às deliberações das assembleias gerais das associações (art. 177), a orientação de diplomas anteriores (designadamente do Código Comercial, no seu art. 146) de só prever a anulação de deliberações, mas ao longo do tempo gerou-se consenso sobre que certas violações de normas imperativas (mormente a desconformidade do conteúdo das deliberações com tais normas) acarretam a nulidade das deliberações em causa» – Rui Pinto Duarte, anotação ao art. 1433, in Código Civil Anotado, cit., p. 285. O Autor exemplifica com M. Henrique Mesquita, Direitos Reais, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra (policopiado), 1967, pp. 292 e ss., e «A Propriedade Horizontal no Código Civil Português», Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXIII, janeiro/dezembro 1976, pp. 140 a 142; e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pp. 447 e 448, e, ainda, com o Ac. do STJ de 8.2.2001 (CJ-STJ ano IX, tomo I, 2001, pp. 105 e ss., em especial p. 107). Podemos acrescentar ainda, também exemplificativamente, Sandra Passinhas, cit., pp. 251-3.
Concordamos: há deliberações da assembleia de condóminos contrárias à lei que são anuláveis, às quais se aplica o regime do art. 1433, e há deliberações contrárias à lei que são nulas, às quais se aplica o regime geral da nulidade.

Como aferir, então, se estamos perante norma cuja infração gera nulidade, se perante norma cuja infração gera mera anulabilidade nos termos do art. 1433?
Na resposta seguiremos de perto o raciocínio já expendido nas citadas páginas dos nossos O contrato de mediação e Regime jurídico… A apreciação da questão envolve a interpretação dos artigos 280 e 294 do CC. Nos termos do primeiro, o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (n.º 1), bem como o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes (n.º 2) são nulos. Nos termos do segundo, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei. Como harmonizar os dois preceitos?
Segundo a doutrina comum, o art. 280 contempla o objeto negocial com os seus dois significados: objeto imediato – conteúdo, efeitos jurídicos do negócio, considerando as declarações das partes e o direito aplicável –, e objeto mediato – objeto stricto sensu, quid sobre que incidem os efeitos do negócio (assim Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, II, Conteúdo, contratos de troca, Almedina, 2007, p. 14, Jorge Morais Carvalho, Os contratos de consumo: reflexão sobre a autonomia privada no direito do consumo, Almedina, 2012, pp. 44 e 60, Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, I, Parte geral, t. I, Introdução, doutrina geral, negócio jurídico, 3.ª ed., Almedina, 2005, p. 674, Carvalho Fernandes, Teoria geral do direito civil, II, Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, 5.ª ed. ..., Universidade Católica Editora, 2010, p. 159, Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2005, pp. 553-9, Pais de Vasconcelos, Teoria geral do direito civil, 6.ª ed. Almedina, 2010, pp. 581-2, Heinrich Hörster, A parte geral do Código Civil português, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 522-3.).
Embora a propósito da possibilidade física e da determinabilidade do objeto normalmente se expresse que é o objeto mediato que está em causa, no que respeita à possibilidade legal e à não contrariedade à lei já não é feita essa restrição (Mota Pinto, Teoria geral…, cit., pp. 554-7; Heinrich Hörster, A parte geral…, cit., pp. 522-3) – repare-se que estamos ainda no âmbito do n.º 1, que alude expressamente ao objeto, alusão que não é feita no n.º 2. No art. 280 estão, pois, previstas causas de invalidade do objeto do negócio, em qualquer dos seus sentidos.
O art. 294 tem um âmbito mais abrangente, cominando com a nulidade a violação de normas imperativas, mesmo quando estas normas não contêm essa direta cominação, desde que, nestes casos, não resulte da lei outra solução.
A norma do art. 280 é (a par das normas dos artigos 281, 220, e de outras espalhadas pela legislação do país) uma concretização da norma do art. 294 (neste sentido também Heinrich Hörster, A parte geral…, cit., p. 522). Jorge Morais Carvalho reserva o art. 280 para o objeto ou elementos internos do negócio e o 294 para os elementos exteriores (Os contratos de consumo, cit., pp. 50-6, 60-1, e Os limites…, cit., pp. 141-67). Na prática, assim sucede, porque o art. 280 rege especialmente sobre os negócios celebrados contra disposição imperativa respeitante a elementos internos do negócio. Em consequência, o art. 294 – apesar de não distinguir, nem pelo elemento literal nem pela sua inserção sistemática, o objeto das disposições legais a que se reporta –, fica com o seu âmbito comprimido pela norma do art. 280, e outras (220, 281), que regem sobre situações particulares que, de outro modo, estariam nele previstas.
Assim, a resposta à nossa última questão é: se a norma violada pela deliberação da assembleia for uma daquelas cuja infração a lei comina com a nulidade, como sucede se a infração se reconduzir ao disposto no art. 280, a consequência é a nulidade; se, pelo contrário, se trata de uma norma para a qual a lei não prevê expressamente a nulidade, caímos no âmbito do art. 294, havendo então que atender a outras consequências que a lei preveja. Se a violação cair no âmbito residual do art. 294, só gerará nulidade na falta de diferente solução da lei.
As normas dos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do CC respeitam ao conteúdo negocial, ao seu objeto imediato, aos direitos e deveres dos condóminos no que respeita à sua participação nas despesas relativas a partes comuns.
Cremos, ainda assim, que nada impedia que a norma do art. 1433, ou outra, cominasse com a anulabilidade deliberação da assembleia de condóminos que violasse, pelo seu conteúdo, disposição legal; mas teria de o dizer expressamente. Não o dizendo de forma expressa, cremos que uma deliberação que pelo seu objeto imediato ou conteúdo viola norma expressa é nula por via do disposto no art. 280 do CC.
A sanção da anulabilidade prevista no art. 1433 do CC aplica-se a deliberações contrárias a normas legais que não respeitem ao conteúdo negocial, nomeadamente normas relativas a elementos externos, ou a deliberações contrárias a normas do regulamento de condomínio.

Não se desconhecem decisões no sentido de as normas do art. 1424 serem supletivas, pretendendo-se retirar essa supletividade da locução «salvo disposição em contrário» e/ou de trechos doutrinários anteriores à versão de 1994 (que introduziu a norma do atual n.º 2 que veio dar alguma abertura à intervenção dos condóminos na repartição de certas despesas, mas apenas quando resultante de regulamento deliberado em condições muito especiais e com específicos conteúdos que o mesmo n.º 2 prevê). Também não se desconhecem decisões que aplicam às deliberações que impõem repartição de despesas contrária às normas do art. 1424 o regime de anulabilidade previsto no art. 1433. Porquanto expusemos em III.C., entendemos que tal contrariedade gera nulidade. Diga-se a latere que, se as normas do art. 1424 fossem supletivas, as deliberações da assembleia de conteúdo diverso dos nelas previstos, seriam válidas e não anuláveis; se as deliberações que contrariam a repartição de despesas estabelecida nessas normas fossem anuláveis nos termos do art. 1433, então as normas seriam imperativas (como são, ainda que por outra via) e não supletivas.
Em suma e por tudo o exposto, concluímos serem nulas (não meramente anuláveis) as deliberações em causa nos autos, tomadas em assembleias gerais que decorreram com a presença de condóminos representativos de 23% a 51% do valor total do prédio, pelas quais foi deliberado que a recorrente, locatária financeira de fração autónoma com entrada independente e que não tem ao seu serviço as áreas (nomeadamente escadas e ascensores) da parte habitacional do prédio participaria em todas as despesas (incluindo as da área habitacional) de acordo com a sua permilagem, por tais deliberações violarem as normas dos n.ºs 3 e 4 do art. 1424 do CC.

IV.Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente procedente, e, em consequência, os embargos de executado também totalmente procedentes, determinando a extinção da execução.

Custas pela recorrente.



Lisboa, 14/11/2017



Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira