Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
776/17.6YRLSB-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.– O conceito de ordem pública é aberto, a densificar e, em consequência, de muito difícil subsunção.

II.– O artigo 238.º do Código Civil não contém a afirmação de um princípio integrador da ordem pública internacional do Estado Português, já que não se trata de norma que tutele qualquer direito fundamental, não sendo intolerável a sua violação.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1.–“N- Promotora Imobliária com sede em Valença, outorgou dois “contratos de subarrendamento” com “BE Unipessoal, Lda com sede no lugar de S, da freguesia de L respectivamente, em 20 de Abril de 2005 e 24 de Maio de 2007.

Clausuraram que “qualquer controvérsia entre as partes, relativa à interpretação e execução do presente contrato, será resolvida sem possibilidade de recurso, por Tribunal Arbitral, composto por três árbitros: o primeiro será nomeado pela Parte que requerer o procedimento de arbitragem, no próprio requerimento de arbitragem; o segundo será nomeado pela outra Parte nos quinze dias seguintes a partir da notificação da designação do primeiro árbitro; o terceiro, que terá a função de Juiz Presidente do Tribunal Arbitral, será nomeado pelos dois árbitros nomeados pelas Partes no prazo de quinze dias a contar da nomeação do segundo árbitro” (…) “Em tudo o que não estiver previsto na presente cláusula dever-se-á aplicar a Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto de 2003.”.

Instalado o conflito, todos os árbitros foram nomeados.

O Tribunal foi constituído em 24 de Novembro de 2015.

Em 17 de Fevereiro de 2017 proferiu o Acórdão (fls. 876 e seguintes, 4.º volume), com o voto de vencido do árbitro nomeado pelo demandado “B”, com o seguinte segmento decisório:

“I.Quanto aos pedidos da Demandante [N, Lda]:
a)- Condenar a Demandada [“B Emission Systems Portugal] a pagar a Demandante, a título de indemnização pela cessação antecipada dos contratos de arrendamento dos lotes 5 e 7, nos termos da sua cláusula 11.4, o montante de € 5.538.750,00 acrescido de juros de mora a taxa legal de juros comerciais, desde 1 de junho de 2015 até integral pagamento.

b)- Condenar a Demandada a pagar à Demandante:
i.- €45.000, valor de substituição de três compressores de que os imoveis carecem;
ii.- € 109.000, correspondentes aos custos de reparações de que os imoveis devolvidos carecem e que a Demandante aceitou fazer;
iii.- € 1.800,00, correspondentes ao custo da análise química ao pavimento dos imóveis, de que estes carecem;

c)- Condenar a Demandada a pagar à Demandante o montante de € 116.431,46, correspondente à renda dos meses de março, abril e maio de 2015, acrescido de juros de mora a taxa legal de juros comerciais, desde 31 de maio de 2015 até integral pagamento.
d)- Declarar improcedentes e absolver a Demandada dos restantes pedidos deduzidos pela Demandante.

II.Declarar improcedente e absolver a Demandante do pedido reconvencional.
III.Repartir os encargos da arbitragem pelas duas Partes, na proporc'do de 60% pela Demandada e 40% pela Demandante.
Todos os restantes pedidos da Demandante e da Demandada são expressamente rejeitados.”.

Manifestando o seu inconformismo a “B, Lda” intentou a presente acção de anulação da deliberação arbitral, com três fundamentos:
“i)- Falta de fundamentação da Sentença Arbitral na parte relativa às Cláusulas 11.4 (cláusulas penais) do contrato de subarrendamento Lote 5 e do contrato de subarrendamento Lote 7, nos termos da subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º e do n.º 3 do artigo 42.º da LAV;
ii)- Falta de fundamentação da Sentença Arbitral na parte relativa ao não conhecimento da cláusula 11.4 (cláusula penal) do Contrato de Subarrendamento Lote 5, nos termos da subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º e do n.º 3 do artigo 42.º da LAV;
iii)- A Sentença Arbitral ofender os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (subalínea ii) da alínea b) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV.
Juntou oito documentos, incluindo cópia da deliberação arbitral.

A aqui demandada “N, Lda” respondeu.

Sem precedência de vistos, cumpre conhecer.

2.– A Lei da Arbitragem Voluntária de 2011 (Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, Anexa, entrou em vigor três meses após a data da sua publicação (artigo 6.º). Sucedeu, e revogou, o diploma anterior (Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março).
O artigo 4.º da citada Lei n.º 63/2011, contém uma disposição de trânsito, a regular a aplicação no tempo do novo diploma.
Assim, sujeitam-se ao novo regime os processos arbitrais que, nos termos do n.º 1 do artigo 33.º (e salvo tratando-se de litígios emergentes a contratos de trabalho) se iniciem após a sua entrada em vigor (n.º 1 do artigo 4.º).
Claro que, como na arbitragem está sempre subjacente uma convenção/acordo das partes, estas podem convencionar a aplicação da nova lei aos pleitos pretéritos (n.º 2).
E se celebraram convenções de arbitragem antes da entrada em vigor do novo regime “mantêm o direito aos recursos que caberiam da sentença arbitral, nos termos da lei anterior”, “caso o processo tivesse decorrido ao abrigo deste diploma” (n.º 3).

Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 33.º da Lei vigente, o processo arbitral tem início na data em que o pedido de submissão à arbitragem é recebido pelo demandado.

Aqui, o pedido de submissão à arbitragem foi formulado em 7 de Outubro de 2015 pela, então, demandante que notificou a então demandada e logo indicou o seu perito.

A demandada respondeu e, em 22 de Outubro de 2015, indicou o seu perito.

Daí que, e nos termos expostos, o processo arbitral tivesse tido início, pelo menos em 22 de Outubro de 2015, portanto sempre na vigência da nova lei.

Certo que as convenções de arbitragem foram outorgadas, como antes se disse, em 20 de Abril de 2005 e 24 de Maio de 2007.

Mas não é de aplicar o n.º 3 do artigo 4.º da Lei n.º 63/2011 por duas razões: o processo arbitral só se iniciou em 2015, portanto após a entrada em vigor do novo regime; de outra banda as convenções de arbitragem excluem expressamente os recursos, tal como ficou transcrito.

Assim, indubitável fica ser aplicável ao caso a Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro.

Na Lei n.º 31/86 a sentença arbitral era, em regra, recorrível para os Tribunais, salvo renúncia explícita aos recursos pelas partes, ou renúncia implícita pela via da opção por julgamento de equidade.
No regime vigente, e perante uma sentença arbitral definitiva, o único meio de impugnação previsto é a acção da sua anulação perante os Tribunais, com base num elenco taxativo de fundamentos.

É o “favor arbitrandum”, sendo que, em sede de execução os fundamentos da anulação podem, em regra, fundamentar a oposição à execução, nos termos do artigo 48.º da citada Lei n.º 63/2011.

2.1.– O elenco dos fundamentos do pedido de anulação da “sentença arbitral” consta do n.º 3 do artigo 46.º daquele diploma.

Trata-se de pedido de reapreciação meramente formal, que nunca de mérito, pois este só pode ser sindicado pela via do recurso (cfr. Acórdão do STJ, de 16 de Março de 2017 – proc. nº 1052/14. 1TBBCL.P1.S1).

Os primeiros fundamentos invocados pela impetrante são a falta de fundamentação relativa a cláusulas penais dos contratos de subarrendamento, Lote 5 e 7, e o não conhecimento da cláusula penal 11.4 do contrato de subarrendamento, Lote 5.

São vícios de limite, subsumíveis ao artigo 42.º, n.º 3, da LAV.

Mas enquanto o primeiro vício assacado tem a sua matriz dogmática na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, já o segundo encontra a sua matriz na omissão de pronúncia da alínea d) do n.º do mesmo preceito.

Desde já se adianta que não ocorrem esses motivos de anulação.

A fundamentação de uma decisão traduz-se no carrear argumentos de facto e de direito constitutivos da premissa menor do silogismo judiciário.

Mas para que ocorra a nulidade em apreço não basta que tenha havido uma justificação deficiente, ou menos convincente, antes se exigindo uma ausência total de motivação que impossibilite o conhecimento das razões que levaram à opção final.

E para que ocorra a omissão de pronúncia é necessário que se silencie uma questão que o Tribunal deva conhecer, sem que esse dever implique o abordar, de forma detalhada e exaustiva, todos os argumentos, juízos de valor e considerações trazidas pelas partes (cfr. Prof. Alberto das Reis, in “Código de Processo Civil – Anotado”, V, 140; Prof. A. Varela “Manual de Processo Civil”, 669).

Se a decisão contém, como é o caso, os elementos de facto e de direito, suficientes para inferir o motivo da opção final, não ocorre falta de motivação (cf., ainda, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, 111, 246).

Da leitura atenta do aresto posto em crise resulta que se procurou, com a argumentação doutrinária e jurisprudencial possível, convencer da bondade da solução encontrada, tomando-se em consideração os argumentos aduzidos pelas partes, aceitando-os ou infirmando-os motivadamente.

Como se disse, movemo-nos no âmbito dos vícios formais que não podem confundir-se com o erro de julgamento ou resultado da decisão.

Como atrás se acenou não ocorrem os dois primeiros fundamentos (i) e (ii), já que, como ficou dito, a decisão abordou, em termos inteligíveis e consistentes “o objecto do processo, enunciando as pretensões das partes e respectivos fundamentos e especificando a matéria de facto tida por assente”(…) “significa isto que a decisão condenatória proferida – e cujo mérito não cabe sindicar nos presentes autos – se encontra suficientemente fundamentada, nos planos factual e jurídico, sendo perfeitamente perceptível o “iter” lógico-jurídico que nela se seguiu”(cfr. ainda o já citado Acórdão do STJ, de 16 de Março de 2017).

Finalmente, não se mostra tocada a obrigação constitucional de fundamentar as decisões.

3.– Resta, finalmente, a questão da violação da ordem pública internacional do Estado Português.
O diploma de 1986 (Lei n.º 31/86) não elencava no seu artigo 27.º esta causa de anulação da decisão arbitral.
Cremos que essa opção tinha a ver com o facto de se entender que tal seria matéria de recurso que, então, era muito mais latamente admissível do que fundamento de anulação.

Durante os trabalhos preparatórios do diploma vigente houve grande oposição à inclusão desse fundamento.
Ab initio”, Robin de Andrade referiu que “a eventual impugnação de sentenças com base na violação da ordem pública nada tem a ver com os limites à aplicação do direito estrangeiro, mas sim com a desconfiança do Estado relativamente ao conteúdo das sentenças dos tribunais arbitrais. Porque entendemos que essa desconfiança não deve existir, e que compromete mesmo a definitividade da decisão arbitral e por essa via o sentido da própria convenção de arbitragem, a APA propôs que a alegada violação da ordem pública continue a não poder ser invocada como fundamento de anulação”. (“Decisão arbitral e ordem pública”, intervenção no Colóquio “A arbitragem em movimento”, Porto, 27/9/2010; cfr. Prof. Menezes Cordeiro, “A ordem publica nas arbitragens: as últimas tendências”, VII, Congresso do CACCIP, Julho 2014, Coimbra; e António Pedro Pinto Monteiro, “Da ordem pública no processo arbitral”, in “Estudos de Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, II, 2013, p. 589-673).

A questão coloca-se com mais acuidade quando se trata de arbitragens internacionais, em paralelo com o disposto na alínea f) do artigo 980.º do Código de Processo Civil, quanto à confirmação das sentenças estrangeiras.

Mas L. Lima Pinheiro (“Apontamento sobre a impugnação da decisão arbitral”, 2007) esclarece que a “anulação só deve ser admitida, com fundamento em contrariedade à ordem pública naqueles casos excepcionais em que a decisão conduza a um resultado manifestamente incompatível com normas e princípios fundamentais da ordem jurídica local.”

Nesta linha, o Acórdão do STJ de 26.09.2017 – proc. nº 1008/14. 4YRLSB.L1.S1 – julgou no sentido de se exigir que a decisão “conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir um patente, certo e efectivo atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante de interesses de primeira grandeza ou princípios estruturantes da nossa ordem jurídica”.

Todavia, como a LAV veio consagrar esse fundamento de anulação (alínea b), ii, n.º 3, artigo 46.º) há que ter muitas cautelas em considerá-lo presente, sob pena de, para o julgar, se ter de invadir o mérito da decisão, o que aquela lei não autoriza.

Para esse risco alertam Pinto Monteiro (ob. cit., p. 663 ss), Assunção Cristas e Mariana França Gouveia (in “A violação da ordem pública como fundamento de anulação de sentenças arbitrais” e Acórdão do STJ, de 10 de Julho de 2008 – proc.nº 1698/08 – apud “Cadernos de Direito Privado”, n.º 28, Janeiro/Março 2010, 41/56).

O conceito de ordem pública é aberto, a densificar e, em consequência, de muito difícil subsunção. (cf. Baptista Machado – Lições de Direito Internacional Privado”, 259 ss; Pereira Barrocas – “A ordem pública na arbitragem”, 129 ss e “Manual de Arbitragem”, 2.ª ed. LAV, 2011, 682 e 687; e Sampaio Caramelo, “Anulação de sentença arbitral contrária à ordem pública”, RMP, 126, 32.º, Abril-Junho 2011, 155-198).

A Autora fundamenta a violação de ordem pública internacional do Estado Português por o tribunal ter procedido a “uma errada interpretação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 238.º do Código Civil”.

O preceito limita a interpretação dos negócios formais a “um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 1); “Esse sentido pode, todavia, valer se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.”

Trata-se de uma norma que regula a interpretação da lei que, contudo não impede o recurso a elementos exteriores ao contexto do documento.

Na óptica de Pedro Pais de Vasconcelos (“Teoria Geral do Direito Civil”, 7.ª ed., 477) como “a solenidade do negócio está ligada à tutela de terceiros” esta seria frustrada se inexistisse um mínimo de correspondência entre o texto do respectivo documento e o seu sentido, alcançado.”

Só que, o que está em causa são, apenas, os princípios da confiança e da aparência que, embora importantes, e quiçá, de algum modo, estruturantes, não integram o núcleo dos fundamentais, em termos de o seu desrespeito tornar manifestamente intolerável a convivência entre a justiça e o direito material, tal como o Estado o configura.

O artigo 238.º do Código Civil não contém, por isso, a afirmação de um princípio integrador da ordem pública internacional do Estado Português, já que não se trata de norma que tutele qualquer direito fundamental, não sendo intolerável a sua violação.

Improcede, em consequência, também esta invocada nulidade do Acórdão arbitral.

Decisão.
4.– Termos em que acordam os juízes que compõem este Tribunal em julgar a acção improcedente, dando por inverificada qualquer das nulidades arguidas.
Custas a cargo da demandante B, Lda



Lisboa, 25 de Janeiro de 2018.




(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Fátima Galante)
(Teresa Soares)