Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5179/2007-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CONTRATO DE ESTIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I – Em virtude de um contrato de compra e venda internacional de bacalhau seco celebrado entre a Autora e a empresa norueguesa EXPORT AS, com a cláusula CIF (ou seja, em que os custos da entrega da mercadoria no porto de destino, o seguro da mercadoria e o respectivo frete correm por conta da vendedora, cabendo a descarga no porto de destino e subsequente transporte à compradora), esta última celebrou um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias, sujeito à condição free out, ou seja, de que o transportador cumpre o negócio em causa, deixando de ter qualquer responsabilidade pelas vicissitude e destino da carga, a partir do momento em que a mesma ultrapassa a amurada do navio, sendo o mesmo regulado pela Convenção de Bruxelas de 25/08/1924, na redacção dada pelo Protocolo de 1968, atento o local de embarque e da emissão do respectivo conhecimento (Noruega) e o facto desse país se encontra vinculado ao seu cumprimento desde 1/12/1983.
II - Logo, a Autora, na sequência do acordado, contratou a operadora portuária e aqui Ré EMPRESA DE ESTIVA para proceder à descarga do bacalhau de dentro do navio e ao seu carregamento nos camiões daquela ou por ela contratados.
III – AS Rés TRANSPORTADORA MARÍTIMA e EMPRESA DE ESTIVA permitiram que a última parte da mercadoria se molhasse muito para além do admissível, quando tinham a obrigação, em razão das suas específicas atribuições e responsabilidades contratuais e funcionais, de proteger devidamente a mesma – a primeira pelo encerramento das tampas dos porões, dado a carga aí existente ainda não ter ultrapassado a amurada do navio e a segunda pela colocação das caixas em local seco ou, pelo menos, pela cobertura das mesmas com oleados, por já terem transposto a dita amurada e ainda não estarem colocados nos camiões –, mas a Autora tinha uma palavra a dizer nesta última fase da operação de estiva, podendo e devendo os motoristas das viaturas determinar a melhor e mais adequada arrumação, não só por questões logísticos ou de segurança, como para garantir a sua devida separação e preservação.
IV - Não se pode imputar à Ré EMPRESA DE ESTIVA a disposição da carga nos camiões, quando os mesmos são já espaço da responsabilidade da Autora, ali representada pelos respectivos motoristas (cf., a este respeito, os artigos 800.º e 571.º do Código Civil), aí dispondo e determinando eles o que tivessem por mais adequado e conveniente, podendo os mesmos, face às condições climáticas adversas ter, pelo menos, isolado e protegido completamente as 510 caixas secas, quer da chuva exterior, quer da água interior.
V - Por outro lado e independentemente dessa ausência de medidas, o transporte terrestre também implicou, pela intensidade de chuva e pela extensão e duração da viagem, que a água molhasse ainda mais a carga ou, pelo menos, que o papelão fosse escorrendo e enxugado.
VI - Todo este cenário é mais do que suficiente para se considerar ilidida a presunção de culpa constante do artigo 799.º do Código Civil e imputar à Autora a responsabilidade pela adulteração das mencionadas 510 embalagens e do bacalhau que estava dentro delas, pois foram essas actuações voluntárias, activas ou omissivas, dos motoristas, que provocaram, objectiva, causal e adequadamente, aquela deterioração, tendo de improceder, nessa medida e nesta parte, o recurso de apelação da Autora (cf., a este respeito, os artigos 570.º e 571.º do Código Civil).
VII - Sendo impossível quantificar, pela própria natureza das coisas, essa contribuição individualizada de cada uma das empresas envolvidas naquelas operações para o conjunto de danos que ficaram assentes nos autos, a solução jurídica mais adequada para esse aparente impasse não é a isenção da aqui Apelante e a responsabilização total das outras duas mas antes a aplicação conjugada e extensiva do disposto nos artigos 570.º, 571.º e 566.º, número 3 do Código Civil, por forma a permitir ao tribunal o recurso à equidade.
VIII - De acordo com a nossa lei, a solidariedade de devedores ou de credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes (artigo 513.º do Código Civil), não se estando, relativamente às três Rés que foram condenadas nos autos, perante uma única obrigação comercial face à qual aquelas são co-obrigadas solidárias, nos termos e para os efeitos do artigo 100.º do Código Comercial, pois não só a fonte da sua responsabilidade é diversa – a da Ré TRANSPORTADORA é o contrato de transporte marítimo, a da Ré SEGURADORA é o contrato de seguro e o da Ré EMPRESA DE ESTIVA é o do contrato de estiva, sendo a Autora parte contratante ou beneficiária de qualquer um deles – como a medida da mesma não é igual (cf. também a referida Convenção de Bruxelas, que só vincula o transportador e não impõe qualquer regra de solidariedade para uma situação como a dos autos).
IX - Ao passo que o contrato de seguro pode abranger todos os prejuízos considerados no quadro destes autos, idêntico raciocínio já parece não poder ser desenvolvido quanto às outras duas demandadas, porque, relativamente às operações de descarga, as suas áreas de actuação no caso dos autos só parcialmente coincidem (retirada da mercadoria dos porões e transporte até à amurada do navio), sendo a empresa estivadora a única responsável após a mercadoria ultrapassar aquele limite da embarcação (cais), tendo ambas condutas, obrigações, incumprimentos e contribuições diferentes para com os danos causados na mercadoria.
X - Não existe fundamento legal para impor à Ré EMPRESA DE ESTIVA o pagamento, em termos solidários, da totalidade da indemnização, devendo a mesma ser responsabilizada somente pelo valor correspondente aos danos efectivamente provocados pelo seu comportamento ilícito e negligente, havendo que lançar mão das mesmas normas acima referenciadas e, com recurso à equidade, fixar a responsabilidade da aqui Apelante.
(JES)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

SOCIEDADE U, com sede em Linda-a-Velha, intentou, em 17/09/2002, no Tribunal Marítimo de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra
- SOCIEDADE M, com sede em Lisboa;
- SOCIEDADE G, com sede em Lisboa;
- SOCIEDADE J, com endereço postal no Apartado, Porto e
- SOCIEDADE V, AS, com endereço postal em Noruega, domiciliada em Portugal no Apartado (morada da sua representante nacional, a mencionada SOCIEDADE J)
Pedindo, em síntese, a condenação solidária das Ré no pagamento da quantia de 13.666.251$00 (€ 68.166,97), acrescida de juros moratórios vincendos desde a citação até integral pagamento.
*
Aduziu a Autora, para tanto e em síntese, que, no desenvolvimento da sua actividade como cooperativa grossista de fornecimento de bens alimentares aos seus associados, comprou à empresa Norueguesa EXPORT, AS, uma partida de bacalhau seco (2720 cartões de papelão, com o peso bruto total de 70.720 quilogramas, a que correspondem três “Bill of Landing”- BL) que veio a ser transportada por via marítima, desde Aalesund, na Noruega, até ao porto de Lisboa, no navio “H” (de proprietário e/ou armador não identificado, sendo tal embarcação legalmente representada em Portugal pela agente de navegação e Ré G), até ao porto de Lisboa e que foi aqui ulteriormente descarregada pela Ré M.
            Mais alega a Autora que a empresa transportadora, por um lado, e empresa de estiva, por outro, não acautelaram a integridade da referida mercadoria durante a execução da operação de descarga (iniciada em 13/4/1998) e enquanto choveu, o que aconteceu no dia 14/4/1998 e afectou 1330 cartões, num total de 34.580 quilogramas, no conjunto da carga que ainda faltava, destinada a dois camiões de transporte, que se encontravam no cais, à ordem do operador portuário – a Ré M).
A mercadoria em causa, debaixo da chuva abundante que caiu por volta das 10,00 horas desse dia 14/4/1998, molhou-se, pois aquela que já se encontrava no cais não foi coberta com protectores próprios (“encerados”), não tendo, por outro lado, o porão do navio sido fechado, de maneira a obstar a que a água que por ele entrava atingisse as caixas de cartão ainda por descarregar.
O bacalhau seco, empacotado em caixas de papelão, está obviamente impreparado para sofrer o efeito da chuva em grande quantidade.
Os funcionários da Autora que se encontravam no local desenvolveram diligências junto de responsáveis das Rés G, LDA e M no sentido da protecção imediata da carga em causa, que se revelaram infrutíferas devido à indiferença e passividade daqueles, tendo tal situação de degradação da mercadoria sido comunicada à sociedade de peritagens e superintendência C, SA. 
Mais acrescenta a Autora que essa mercadoria, segurada pela Ré V, ficou parcialmente avariada em virtude da referida exposição à chuva, o que implicou a sua rejeição pelo destinatário (Braga) e associado e a posterior colocação numa empresa (T, Lda.), para efeitos de proceder à sua recuperação urgente (beneficiamento, ressecagem, reclassificação e reembalagem), o que veio a acontecer relativamente a 1660 caixas/41.500 quilogramas das 1840 caixas/46.000 quilogramas ali colocadas.
A Autora sofreu os seguintes danos patrimoniais emergentes e lucros cessantes por causa dessa avaria:
a) Esc. 6.938.500$00 – perda no valor comercial da mercadoria (quebra e desvio na sua qualidade e quantidade),
b) Esc. 2.427.751$00 – custo da operação de beneficiamento, ressecagem, reclassificação e reembalagem;
c) Esc. 800.000$00 – despesas efectuadas com o transporte, ida e volta, entre Braga e Aveiro (T, Lda.);
d) Esc. 3.500.000$00 – falta do produto no local de venda durante 3 semanas e agravamento do respectivo preço de mercado.   
Todas as Rés são solidariamente responsáveis por esses danos, consoante os casos, na qualidade de transportadora, de empresa de estiva e de seguradora.
Qualquer uma das Rés declinou a sua responsabilidade relativamente à avaria parcial da dita mercadoria e ao ressarcimento dos prejuízos reclamados pela Autora.    
                                                                       *
A Ré G, LDA foi regularmente citada, vindo a contestar a presente acção nos moldes constantes de fls. 86 e seguintes:
(…)
2) O transporte da mercadoria foi contratado sob a condição designada no ramo do transporte marítimo por " free out – F.I.O.S. " (Free in and out Stowed), que significa que a carga e descarga são por conta e da responsabilidade da mercadoria, isto é, do carregador ou do destinatário que, no caso dos autos, era, além da Autora, a “Constantino";
3) Foram esses importadores quem incumbiu um operador portuário – a Ré M – de realizar a operação de carga e descarga da mercadoria, que foi efectuada por conta e no interesse dos mesmos, contra o recebimento da correspondente retribuição;
4) Todas as pessoas e meios envolvidos na operação de descarga foram reunidos pela Ré M, que dirigiu a sua utilização, sem qualquer intervenção da Ré contestante, ou do comando e tripulação do navio "H";
5) Na verdade, a participação do navio na operação de descarga limitou-se à abertura e fecho dos porões, nos momentos em que tal foi determinado pelos responsáveis da Ré M presentes no acto; (…)
                                                                       *
A Ré M, SA, tendo sido citada a fls. 51 e 67, através de carta registada com Aviso de Recepção, contestou nos termos de fls. 67 e seguintes, impugnando a versão dos factos alegada pela Autora e contrapondo o seguinte: (…)
14) As alegadas avarias, a terem existido, ficaram, assim, a dever-se, em primeiro lugar, ao facto de, mesmo durante os períodos de chuva, terem continuado abertas as tampas dos porões do navio (escotilhas), tendo entrado significativa quantidade de água da chuva que molhou alguma mercadoria;
15) Só o comandante do navio tinha autoridade para ordenar o fecho das tampas dos porões, o que não fez, apesar da chuva ter obrigado a interromper as operações de descarga (…)
16) Em segundo lugar, as alegadas avarias, a terem existido, ficaram a dever-se também ao facto de a mercadoria ter sido estivada a bordo do navio misturada, o que obrigou a que tivesse que ser descarregada para o cais, a fim de poder ser separada por recebedores e carregada sobre os respectivos camiões;
17) Também sobre o cais foi inevitável ter apanhado alguma chuva;
18) Em terceiro lugar, as alegadas avarias, a terem existido, ficaram a dever-se ao facto da mercadoria ter sido transportada de Lisboa para Braga em camiões abertos e ainda ao facto de os encerados usados pelos camiões deixarem descobertas as partes laterais destes e da mercadoria, que, desta forma, continuou a apanhar chuva até chegar aos armazéns da Autora, seu destino final;
19) A Ré M não dispunha de encerados para protecção da mercadoria no cais, nem tal lhe competia;
20) A verdadeira causa de pedir é o alegado incumprimento do contrato de transporte marítimo ao abrigo dos conhecimentos de carga, de que faz parte integrante a operação de descarga, não tendo sido a Ré contestante a transportadora marítima da mercadoria e não podendo, por tal motivo, ser responsabilizada pelos danos causados pela chuva no interior do navio nem no cais, para efeitos de separação da mercadoria misturada e seu subsequente carregamento, nem finalmente durante o seu transporte terrestre, devendo ser absolvida de todos os pedidos formulados pela Autora.
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A Ré M requereu, finalmente, a intervenção principal provocada da IDAR  com vista à respectiva responsabilização enquanto armadora do navio dos autos.                                                                    *
A Ré J, LDA, tendo sido citada a fls. 94 e 96, através de carta registada com Aviso de Recepção, contestou nos termos de fls. 98 e seguintes:
2) A Ré contestante é apenas correspondente em Portugal da Ré V, e nessa qualidade e por solicitação desta, encarregou a C, S.A., empresa especializada como comissários de avarias, a averiguar os factos que provocaram os danos reclamados e proceder à vistoria da mercadoria, como efectivamente veio a acontecer;
Termos em que deve:
a) Proceder a excepção dilatória de ilegitimidade e, em consequência, a contestante absolvida da instância, ou, se assim se não entender,
b) A acção ser julgada improcedente, por não provada quanto à contestante, sempre com as legais consequências.
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Por seu turno, a Ré SOCIEDADE V, AS  , tendo sido citada a fls. 95 e 97, através de carta registada com Aviso de Recepção, contestou nos termos de fls. 98 e seguintes, tendo invocado diversas excepções dilatórias e, em consequência, pedido  a sua absolvição da instância, ou, se assim se não entender, a acção ser julgada improcedente, por não provada contra a Ré V, com a consequente absolvição do pedido, sempre com as legais consequências.
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O Chamado IDAR , na sequência da admissão da respectiva intervenção principal provocada (despacho de fls. 138), foi citado (fls. 139 e 156) e não apresentou qualquer contestação dentro do prazo legal.
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A Autora veio, a fls. 196 e 197, deduzir incidente de intervenção principal provocada da empresa JON, AS, com morada em NORUEGA, na sua qualidade de transportadora marítima.
*
Nesse mesmo requerimento, a Autora veio desistir da instância relativamente às Rés J, LDA e G, LDA, que veio a ser homologada por despacho judicial de fls. 229, proferido em 3/12/2004 e transitado em julgado.   
(…)
Foi a intervenção principal provocada de JON, AS admitida a fls. 229 e 230, tendo tal empresa sido citada, através de carta rogatória (Fls. 271 e seguintes), conforme foi considerado pelo despacho judicial de fls. 301, apesar da recusa no seu recebimento pela citanda, não tendo esta vindo contestar a acção dentro do prazo legal.
(…)
Foi proferida a sentença de fls. 438 e seguintes e datada de 21/12/2006, onde foi, julgada a acção parcialmente procedente e, consequentemente, decidido o seguinte:
“1) Condeno solidariamente as RR. JON AS, M, S.A. e V, AS a pagar à A. a quantia global de € 34.819,87, acrescida da obrigação de pagar juros de mora vencidos à taxa legal supletiva desde as respectivas citações até integral pagamento;
2) E absolvo todas as demandadas de tudo o mais peticionado.
Custas a cargo da A. (27,72%) e das Rés ora condenadas (72,28%), sendo solidária a responsabilidade destas últimas e relevando, para este efeito, apenas a citação verificada em último lugar.”
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A Autora SOCIEDADE U, inconformada com tal sentença, veio, a fls. 465, interpor recurso de apelação da mesma, que foi admitido a fls. 481 dos autos, tendo-lhe sido fixado o efeito meramente devolutivo.
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A Apelante Autora apresentou, a fls. 500 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
“1.ª - A presente apelação limita-se à parte da sentença que condenou as Rés Jon, AS, M e V ao pagamento de uma indemnização, tendo apenas por referência 1.330 cartões – e não os 1.840 sujeitos a recuperação, com a dedução de 5% correspondente à culpa da Autora;
2.ª - O valor do recurso restringe-se a 15.889,18€, correspondente à diferença entre 50.709,05€ (vide págs. 11, 12 e 13 da sentença) e ao valor da efectiva condenação de 34.819.87€; (…)
Termos em que, revogando-se a sentença recorrida na parte ora apelada, devem as Rés ser condenadas a pagar à Apelante a indemnização integral de 50.709,05€”.
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   A Ré M, SA, inconformada com tal sentença, veio, a fls. 470, interpor recurso de apelação da mesma, que foi admitido a fls. 481 dos autos, tendo-lhe sido fixado o efeito meramente devolutivo.
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A Apelante Ré MULTITERMINAL – SOCIEDADE DE ESTIVA E TRÁFEGO, SA, apresentou, a fls. 487 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
“1. O recurso versa apenas sobre matéria de direito, nos termos do n.º 2 do art.° 690.0 do CPC;
2. A douta sentença recorrida viola as normas de direito material internacional constantes da alínea e) do art.° 1°, o art.° 2° e o §2° do art.° 3°, todos da Convenção de Bruxelas de 1924, aplicáveis ao caso, que regulam a responsabilidade do transportador marítimo pelos danos e perdas das mercadorias durante o transporte, e ainda, caso se considere aplicável a lei portuguesa à luz das normas de conflitos, a norma do art.° 70 do Decreto-Lei n.º 352/86, de 21/10;
3. Na verdade, tendo ficado provado que parte dos 1.330 cartões de mercadoria permaneceram no porão do navio das 10h às 16h sob o efeito da chuva em virtude das tampas do porão do navio se encontrarem abertas, não podiam os danos provocados por tal factualidade ser imputados na sua totalidade à Ré Apelante;
4. Em primeiro lugar, porque os danos que essa parte da mercadoria sofreu ocorreram ainda dentro do navio, ou seja, durante a execução do transporte, e pelos quais é responsável o transportador marítimo;
5. A douta sentença violou, por isso, a norma do art.° 798° e n.º 1 do art.° 799.° do Código Civil, no que concerne à responsabilidade da Ré Apelante;
6. Em segundo lugar, os danos que parte da mercadoria sofreu dentro do navio não derivaram de acto culposo da Ré Apelante (art.º 5.° do Decreto-Lei n.° 384/99, de 23/9), motivo pelo qual não lhe podem ser imputados;
7. A Ré Apelante logrou provar que apenas parte da mercadoria foi por si descarregada para o cais e apenas por esta parte seria responsável;
8. Assim, ao ter sido condenada a indemnizar a Autora Apelada pela totalidade da mercadoria avariada verifica-se que os fundamentos de facto da decisão estão em oposição com a própria decisão, estando a douta sentença eivada de nulidade (ai. c) do n.° 1 do art.° 668° do CPC);
9. Exactamente por a medida da responsabilidade das RR. ser diferente, a solidariedade, mesmo a atípica, surge aqui afastada pelo facto de o credor (a A. Apelada) não poder exigir a qualquer um dos alegados devedores (à empresa de estiva ou ao transportador) toda a prestação, ou seja, a prestação integral;
10. Violando a douta sentença, as normas do n.° 1 do art.° 512°, 513° e 519° do CC, relativamente à solidariedade passiva;
11. A percentagem de 5% de responsabilidade pelos danos ocorridos à carga imputados à A. Apelada é manifestamente inferior à sua contribuição para esse resultado, segundo se pode retirar da matéria de facto provada e das regras da experiência, devendo, por isso, a responsabilidade da A. Apelada quanto aos danos sofridos pela mercadoria avariada ser aumentada;
12. Ao assim não ter sido decidido, violou a douta sentença recorrida o art.° 798° e o n. ° 2 do art.° 487° ex vi n.° 2 do art.° 799°, todos do CC.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequência, revogada a douta sentença recorrida, com o que Vossas Ex.ªs, Senhores Desembargadores, farão a costumada JUSTIÇA!”
*
A Autora, notificada das alegações da Ré, veio apresentar, a fls. 516 e seguintes, as suas contra-alegações onde, para além de pretender a ampliação do âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do art.° 684.°-A e do art.° 690.°-A do CPC formulou as seguintes conclusões:
“1. O recurso interposto pela Autora Apelante versa apenas sobre matéria de direito, nos termos do n.° 2 do art.° 690° do CPC;
2. A ora Apelada não poderia ter sido condenada pelos danos sofridos pelos 1.840 cartões de mercadoria atendendo à matéria julgada provada (v. pontos 35) e 36) dos factos provados), matéria que a A. Apelante não impugnou no seu recurso, da qual resulta não se ter apurado quando e onde ocorreu esse acondicionamento conjunto da mercadoria molhada com a mercadoria seca nem que esse acondicionamento tivesse sido realizado pela Apelada;
3. Apenas ficou provado que a Apelada descarregou 1.330 cartões de mercadoria para o cais (pontos 16), 20), 26) e 27) dos Factos Provados);
4. Deste modo, deve improceder, neste ponto, o recurso interposto pela Apelante, por não terem sido violados pela douta decisão recorrida os art.°s 798° e 799° do Código Civil, uma vez que a presunção de culpa foi ilidida (n.º 2 do art.º 350.º do Código Civil);
5. A entrega a que se reporta o ponto 33) dos Factos Provados é a entrega da mercadoria nos armazéns da Apelante (por referência ao ponto 30) dos mesmos Factos Provados);
6. E ficou provado que durante todo o tempo, desde a descarga dos 1.330 cartões de mercadoria do navio (às 10h) até à entrega nos armazéns da Apelante, o que inclui o trajecto rodoviário do porto de Lisboa para Braga, (pontos 28), 29) e 30) dos Factos Provados), a mercadoria esteve sempre sujeita aos efeitos da água da chuva;
7. Sendo o transporte rodoviário da responsabilidade da Apelante, não pode deixar de considerar-se esta co-responsável pelos danos causados; 8. Também neste ponto, o recurso interposto pela Apelante terá de improceder, por não terem sido violados pela douta decisão recorrida os art.°s 570° e 799°/1 do Cód. Civil;
9. Em sede de ampliação do âmbito do presente recurso, nos termos do n.° 2 do art.° 684°-A e do art.° 690°-A do CPC, a Apelada impugna a decisão proferida sobre o artigo 16° da B.I. (ponto 33) da douta sentença recorrida), pois atentos os meios de prova especificados nestas contra-alegações, a mesma matéria devia ter sido julgada não provada pelo Tribunal a quo.
Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso de apelação, com o que Vossas Ex.ªs, Senhores Desembargadores, farão a costumada JUSTIÇA!”
(…)
O relator do presente recurso, admitiu a ampliação do recurso requerida pela Autora nas suas contra-alegações, por o considerar processualmente admissível.

II – OS FACTOS

Da discussão da causa em sede de 1.ª instância resultaram provados os seguintes factos:
1) A Autora U, C.R.L. comprou à empresa norueguesa EXPORT AS uma partida de bacalhau seco salgado, acondicionada em 2.720 cartões, com o peso bruto de 70.720 kg (alínea A);
2) Essa mercadoria foi embarcada e transportada pela Ré JON AS no navio H entre Noruega e Lisboa (alínea B);
3) Em 3 de Abril de 1998, a propósito desse transporte, a R. JON, AS emitiu os três conhecimentos de embarque cujas cópias constam a fls. 206, 207 e 208 dos autos e que se consideram aqui integralmente reproduzidos (Alínea C);
4) A R. V, AS celebrou contrato de seguro com a EXPORT AS com o clausulado que consta a fls. 378 dos autos – que se considera aqui integralmente reproduzido[i] – e no âmbito do qual emitiu os certificados de seguro cujas cópias constam a fls. 218, 219 e 220 dos autos – que se consideram aqui integralmente reproduzidos[1] (Alínea E);
5) O navio H pertence à Chamada IDAR  (Alínea F);
6) O navio H transportava bacalhau seco destinado a diversos recebedores (Alínea G);
7) A G, LDA era o agente de navegação que representava o navio em Portugal (Resposta ao artigo 10.º);
8) O transporte marítimo dos autos foi acordado na condição free out (Resposta ao artigo 41.º);
9) A Ré M, S.A. foi a empresa de estiva que levou a cabo a operação de descarga da mercadoria do navio e a sua colocação sobre camiões da Autora (Alínea H);
10) A Ré M foi contratada pela Autora para levar a cabo a operação de descarga da mercadoria do navio e a sua colocação sobre camiões da Autora (Resposta ao artigo 27.º);
11) A descarga da mercadoria foi efectuada sob a direcção, orientação e responsabilidade da Ré M (Resposta ao artigo 42.º);
12) A descarga iniciou-se, no porto de Lisboa, em 13 de Abril de 1998 (Alínea D));
13) No dia 14 de Abril de 1998, pelas 10 horas, faltavam ainda descarregar 1.330 cartões com 34.580 kg (Resposta ao artigo 1.º);
14) Começou então a chover abundantemente (Resposta ao artigo 2.º);
15) O porão do navio estava completamente aberto (Resposta ao artigo 3.º);
16) A descarga prosseguiu apenas para o cais nas referidas condições (Resposta ao artigo 4.º);
17) Alguns cartões saíram já molhados do navio (Resposta ao artigo 32.º);
18) A Ré M não dispunha de encerados para protecção da mercadoria descarregada para o cais (Alínea I);
19) Os trabalhadores da Ré M largaram a operação de descarga cerca das 11.30 horas (Resposta ao artigo 5.º);
 20) Tendo ficado então a mercadoria descarregada para o cais desde as 10 horas à chuva sem qualquer protecção (Resposta ao artigo 6.º);
21) E a restante mercadoria que ainda se encontrava no porão do navio ficou igualmente exposta à chuva sem qualquer protecção (Resposta ao artigo 7.º);
22) Estiveram desde as 10 horas, no cais em questão, dois camiões, às ordens da Ré M, para carregar e transportar a mercadoria referida em 13) (Resposta ao artigo 8.º);
23) Depois das 11.30 horas, os funcionários da Autora contactaram o chefe de tráfego da G (Resposta ao artigo 9.º);
24) O chefe de tráfego da G declinou qualquer responsabilidade pela operação de descarga e imputou-a totalmente à Ré M (Q12).
25) A descarga do navio só veio a ser retomada pelos trabalhadores da R. M pelas 14 horas e prolongou-se até às 16 horas com a conclusão dos carregamentos nos camiões (Q13).
26) Choveu abundantemente entre as 10 horas e as 16 horas no local de descarga do navio e durante esse período tempo a mercadoria continuou exposta à chuva nas condições referidas em 20) e 21) (Resposta aos artigos 14.º e 15.º);
27) Parte dos cartões de bacalhau seco transportado ficou à mercê da chuva e sem qualquer protecção até às 16 horas (Resposta ao artigo 44.º);
28) Os camiões da Autora eram abertos (Resposta ao artigo 37.º);
29) Só depois de carregados os camiões, é que os cartões foram cobertos com encerados dos próprios camiões, os quais deixavam a descoberto as partes laterais dos camiões e exposta à chuva parte dos cartões carregados (Resposta aos artigos 38.º e 39.º);
30) Tendo essa mercadoria sido assim transportada à chuva de Lisboa para Braga até chegar aos armazéns da Autora (Resposta ao artigo 40.º);
31) Depois de carregados em camiões abertos, os cartões de bacalhau seco continuaram a apanhar chuva durante o transporte até Braga (Q45).
32) A Ré M sabia que a carga era constituída por bacalhau salgado seco e que os cartões onde vinha embalado esse bacalhau não constituíam protecção bastante contra a acção da chuva (Resposta ao artigo 46.º);
33) Em consequência da água da chuva, a mercadoria referida em 13) foi entregue à Autora completamente molhada e com algumas paletes a desfazerem-se (Resposta ao artigo 16.º);
34) Esses cartões molhados foram acondicionados juntamente com os cartões secos anteriormente descarregados, tendo ficado molhados 1840 cartões de bacalhau seco salgado na totalidade (Resposta ao artigo 17.º);
35) Não se apurou quando e onde ocorreu esse acondicionamento conjunto dos cartões secos e molhados (Resposta ao artigo 17.º);
36) Todo esse bacalhau ficou impróprio para consumo (Resposta ao artigo 18.º);
37) O bacalhau assim molhado foi posteriormente submetido a uma operação de recuperação (ressecagem e requalificação) (Resposta ao artigo 19.º);
38) Mas revelou-se impossível recuperar 4.500 kg desse bacalhau molhado (9,78%) (Resposta ao artigo 20.º);
39) A Autora deixou de auferir a importância de 6.938.500$00 com a perda desse bacalhau (Resposta ao artigo 21.º);
40) A recuperação do bacalhau custou 2.427.751$00 e foi suportada pela Autora (Resposta ao artigo 22.º);
41) O transporte do bacalhau para efeito dessa recuperação custou Esc. 800.000$00 e foi suportado pela Autora (Resposta ao artigo 23.º).
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III – OS FACTOS E O DIREITO
(…)
B – RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO

Começar-se-á por realçar que a Ré SOCIEDADE M  veio requerer a ampliação do seu recurso, que foi aliás admitida, nos seguintes moldes:
9. Em sede de ampliação do âmbito do presente recurso, nos termos do n.º 2 do art.º 684.º-A e do art.º 690.º-A do CPC, a Apelada impugna a decisão proferida sobre o artigo 16.º da B.I. (ponto 33) da douta sentença recorrida), pois atentos os meios de prova especificados nestas contra-alegações, a mesma matéria devia ter sido julgada não provada pelo Tribunal a quo.
Os meios de prova especialmente indicados pela Apelante são os mesmos em que o tribunal recorrido fundou a resposta afirmativa dada ao artigo 16.º da Base Instrutória em questão e que mais adiante irão ser mencionados. (…)
Logo, pelas razões expostas, afigura-se-nos que o recurso da apelação da Apelante Ré M merece, nesta parte e no que toca à decisão sobre a matéria de facto, provimento, decidindo alterar-se a resposta dada pelo tribunal recorrido ao artigo 16.º da Base Instrutória nos seguintes termos:
Provado apenas que, em consequência da água da chuva, a mercadoria referida em 1) foi, em grande parte, entregue à Autora completamente ou muito molhada e com algumas paletes a desfazerem-se.                  
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C – APRECIAÇÃO DO RECURSO DA AUTORA SOCIEDADE U 

A Autora Apelante pretende que este Tribunal da Relação de Lisboa altere a sentença proferida pelo tribunal da 1.ª instância no sentido de condenar as Rés JON, M e V no pagamento da indemnização por referência à totalidade das caixas de bacalhau transportadas (1880) e não somente quanto às 1330 que foram descarregadas do navio e carregadas nos camiões após as 10,00 horas e o início da chuva.
A recorrente entende que a deterioração desses outros 510 cartões, que haviam sido carregados sem tempo seco, naquelas viaturas, se deve à contaminação efectuada pelos outros 1330, tendo estes ficado molhados em virtude das actuações negligentes dos funcionários das Rés JON (transportadora marítima) e M (operadora portuária – operações de estiva).
Impõe-se dizer, desde logo, que, de facto, se mostra provado um prejuízo sofrido pela U, derivado da molha indevida de bacalhau seco, em virtude da forte chuva que caiu a partir das 10 horas do dia 14 de Abril de 1998, indicando a matéria de facto dada como assente – mesmo com a alteração introduzida na alínea 33) – artigo 16.º da Base Instrutória – que a mesma se molhou, quer dentro do navio, por os porões terem ficado abertos, quer no cais, por a mercadoria não ter sido protegida durante o período em que não foi efectuada qualquer estiva e/ou carregamento nos camiões, quer finalmente, nas próprias viaturas, por os oleados não cobrirem totalmente a carga, deixando uma parte dela à mercê da intempérie.
Pretende a recorrente que não ficou demonstrada a sua culpa na forma como foi colocada a carga nos camiões, mas afigura-se-nos que a conduta pouco ponderada e cuidada da Autora no que toca a essas operações ressalta suficientemente das alíneas 28), 29), 30), 31), 33) e 34) da matéria de facto assente, pois não se compreende que, existindo 510 cartões de bacalhau que estão intocados pela água, se ponha estes últimos em contacto directo com os outros, em muito maior número, muito molhados ou molhados, sabendo que o papelão, por mero contacto, absorve facilmente a água, transmitindo-a, facilmente, ao bacalhau seco embalado, para além da água que, das caixas colocadas mais no topo das paletes, necessariamente escorrerá e cairá sobre as demais, que se encontram por debaixo e ao lado, restando depois a chuva que ao longo de cerca de 350 quilómetros, foram apanhando durante a viagem.
É certo que a transportadora marítima e a empresa de estiva permitiram que a última parte da mercadoria se molhasse muito para além do admissível, quando tinham a obrigação, em razão das suas específicas atribuições e responsabilidades contratuais e funcionais, de proteger devidamente a mesma – a primeira pelo encerramento das tampas dos porões, dado a carga aí existente ainda não ter ultrapassado a amurada do navio e a segunda pela colocação das caixas em local seco ou, pelo menos, pela cobertura das mesmas com oleados, por já terem transposto a dita amurada e ainda não estarem colocados nos camiões –, mas a Autora tinha uma palavra a dizer nesta última fase da operação de estiva, podendo e devendo os motoristas das viaturas determinar a melhor e mais adequada arrumação, não só por questões logísticos ou de segurança, como para garantir a sua devida separação e preservação.
Não se pode imputar à Ré M a disposição da carga nos camiões, quando os mesmos são já espaço da responsabilidade da Autora, ali representada pelos respectivos motoristas (cf., a este respeito, os artigos 800.º e 571.º do Código Civil), aí dispondo e determinando eles o que tivessem por mais adequado e conveniente, podendo os mesmos, face às condições climáticas adversas ter, pelo menos, isolado e protegido completamente as 510 caixas secas, quer da chuva exterior, quer da água interior.
Por outro lado e independentemente dessa ausência de medidas, o transporte terrestre também implicou, pela intensidade de chuva e pela extensão e duração da viagem, que a água molhasse ainda mais a carga ou, pelo menos, que o papelão fosse escorrendo e enxugado.
Todo este cenário é mais do que suficiente para se considerar ilidida a presunção de culpa constante do artigo 799.º do Código Civil e imputar à Autora a responsabilidade pela adulteração das mencionadas 510 embalagens e do bacalhau que estava dentro delas, pois foram essas actuações voluntárias, activas ou omissivas, dos motoristas, que provocaram, objectiva, causal e adequadamente, aquela deterioração, tendo de improceder, nessa medida e nesta parte, o recurso de apelação da Autora (cf., a este respeito, os artigos 570.º e 571.º do Código Civil).
Debruçando-nos agora sobre a segunda vertente do mesmo recurso, impõe-se, desde logo, recordar que o facto subordinado à alínea 33) – artigo 16.º da Base Instrutória – foi modificado por este Tribunal da Relação de Lisboa, o que coloca fortemente em crise a fundamentação avançada, dado que, ao contrário do afirmado pela Autora, a mercadoria, quando entregue, não se encontrava na sua totalidade irremediavelmente avariada, podendo, nessa medida, o seu estado ser agravado pelo respectivo acondicionamento e transporte, em moldes menos adequados ao estado da mercadoria e às condições climáticas existentes (em rigor, mesmo que assim não fosse, pensamos que a exposição continuada de parte do bacalhau à chuva intensa e prolongada poderia, ainda assim, acentuar de alguma forma ou, pelo menos, manter o seu estado e tornar mais difícil a sua posterior recuperação).
Não será despiciendo fazer notar que, em virtude de um contrato de compra e venda internacional de bacalhau seco celebrado entre a Autora e a empresa norueguesa EXPORT AS, com a cláusula CIF (ou seja, em que os custos da entrega da mercadoria no porto de destino, o seguro da mercadoria e o respectivo frete correm por conta da vendedora, cabendo a descarga no porto de destino e subsequente transporte à compradora), esta última celebrou um contrato de transporte marítimo internacional de mercadorias, sujeito à condição free out, ou seja, de que o transportador cumpre o negócio em causa, deixando de ter qualquer responsabilidade pelas vicissitude e destino da carga, a partir do momento em que a mesma ultrapassa a amurada do navio, sendo o mesmo regulado, como se refere na sentença recorrida, pela Convenção de Bruxelas de 25/08/1924, na redacção dada pelo Protocolo de 1968, atento o local de embarque e da emissão do respectivo conhecimento (Noruega) e o facto desse país se encontra vinculado ao seu cumprimento desde 1/12/1983.
Logo, a Autora, na sequência do acordado, contratou a operadora portuária e aqui Ré M para proceder à descarga do bacalhau de dentro do navio e ao seu carregamento nos camiões daquela ou por ela contratados.       
Chegados aqui e no que toca à prova da culpa do lesado, a mesma encontra-se suficientemente demonstrada, pretendendo a recorrente, todavia, por não se ter demonstrado em que medida as circunstâncias do transporte para Braga contribuíram ou agravaram os danos sofridos pela mercadoria não se poderia ter julgado pela atribuição de um grau de 5% de culpa à Apelante, devendo julgar-se pela revogação da culpa de 5% atribuída à Apelante pelos danos verificados, condenando-se as Rés pela totalidade dos danos produzidos, que globalmente correspondem a 50.709,05€.
Salvo melhor opinião, uma coisa é a prova da culpa do lesado (que se mostra efectuada, pelas razões que já deixámos acima expostas) e outra é a contribuição da mesma para a produção ou agravamento dos danos, em concorrência com as demais culpas das Rés JON e M e para efeitos de cálculo do montante indemnizatório a atribuir à Autora, não sendo, naturalmente, possível, no caso concreto e ainda que com recurso a prova pericial, determinar, com rigor e exactidão, a quantidade de água que caiu sobre as caixas e as consequências que daí derivaram para o bacalhau, quer ao nível do porão do navio, quer no plano das operações de estiva, quer, finalmente, quanto à forma como foi arrumada a mercadoria nos camiões, à chuva apanhada pela parte inferior da carga durante a viagem e à “contaminação” de água que terá ocorrido.
Ora, sendo impossível quantificar, pela própria natureza das coisas, essa contribuição individualizada de cada uma das empresas envolvidas naquelas operações para o conjunto de danos que ficaram assentes nos autos, afigura-se-nos que a solução jurídica mais adequada para esse aparente impasse não é a isenção da aqui Apelante e a responsabilização total das outras duas mas antes a aplicação conjugada e extensiva do disposto nos artigos 570.º, 571.º e 566.º, número 3 do Código Civil, por forma a permitir ao tribunal o recurso à equidade, como aconteceu na situação dos presentes autos, tendo a sentença impugnada entendido, nesse quadro, que a responsabilidade da Autora para a ocorrência dos prejuízos por ela própria reclamados deveria fixar-se em 5%. (cf., a este respeito, embora em termos pouco aprofundados, Fernando Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil”, Almedina, Coimbra, 1995, páginas 359 e seguintes). 
Logo, sendo perfeitamente legal e justificada a actuação do tribunal de 1.ª instância nesta matéria, também nesta parte tem de ser julgado improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora SOCIEDADE U  .             
                                 

D – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO DA RÉ M   

Debruçando-nos agora sobre o objecto do recurso da Apelante SOCIEDADE M  e entrando, desde logo, na segunda questão suscitada no mesmo, face à alteração do facto constante da alínea 33) e à análise que deixámos acima efectuada relativamente à actuação causal e negligente da Autora, afigura-se-nos que a percentagem de 5% se revela adequada e proporcional a tal responsabilidade, dado que grande parte das 1330 caixas de bacalhau foi já carregada nos camiões completamente encharcada ou muito molhada, sendo natural que as restantes já estivessem molhadas ou, pelo menos, húmidas, tendo o processo restante de deterioração do bacalhau em causa se limitado a agravar o estado já relativamente comprometido dessa pequena parte das caixas e pescado.
Nesta parte, portanto, não merece a Apelação provimento, restando-nos agora analisar a primeira questão levantada e que se prende com a condenação da Ré, em termos solidários e conjuntamente com as Rés V e JON, no pagamento da totalidade da indemnização devida à U, por a sentença ter considerado existir uma situação de solidariedade atípica, nos termos dos artigos 512.º, números 1 e 2 e 519.º do Código Civil. (“A obrigação de pagamento da indemnização funda-se em contratos diferentes, falhando assim a típica identidade da prestação tão cara ao regime jurídico das obrigações solidárias, mas a verdade é que, bem vistas as coisas, não deixa de haver uma solidariedade passiva atípica na medida em que a Autora pode exigir, com limitações decorrentes da data de citação, a integralidade desta indemnização de cada uma das referidas demandadas (artigos 512.º/1/2 e 519.º do Código Civil”).
Importa frisar que, de acordo com a nossa lei, a solidariedade de devedores ou de credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes (artigo 513.º do Código Civil), não nos parecendo que estejamos, relativamente às três Rés que foram condenadas nos autos, perante uma única obrigação comercial face à qual aquelas são co-obrigadas solidárias, nos termos e para os efeitos do artigo 100.º do Código Comercial, pois não só a fonte da sua responsabilidade é diversa – a da Ré JON é o contrato de transporte marítimo, a da Ré V é o contrato de seguro e o da Ré M é o do contrato de estiva, sendo a Autora parte contratante ou beneficiária de qualquer um deles –, como a medida da mesma, como já deixámos acima enunciado, não é igual, ao contrário do que é afirmado na fundamentação da decisão judicial em análise (cf. também a referida Convenção de Bruxelas, que só vincula o transportador e não impõe qualquer regra de solidariedade para uma situação como a dos autos).
Ao passo que o contrato de seguro pode abranger todos os prejuízos considerados no quadro destes autos [(cf. alínea 4) e nota de rodapé (2)], idêntico raciocínio já parece não poder ser desenvolvido quanto às outras duas demandadas, porque, relativamente às operações de descarga,  as suas áreas de actuação no caso dos autos só parcialmente coincidem (retirada da mercadoria dos porões e transporte até à amurada do navio), sendo a empresa estivadora a única responsável após a mercadoria ultrapassar aquele limite da embarcação (cais), tendo ambas condutas, obrigações, incumprimentos e contribuições diferentes para com os danos causados na mercadoria.
Não existe fundamento legal para impor à Ré M o pagamento, em termos solidários, da totalidade da indemnização, devendo a mesma ser responsabilizada somente pelo valor correspondente aos danos efectivamente provocados pelo seu comportamento ilícito e negligente.
Chegados aqui, deparamo-nos com a mesma situação de impasse com que o tribunal recorrido se confrontou, restando-nos lançar mão das mesmas normas acima referenciadas e, com recurso à equidade, fixar a responsabilidade da aqui Apelante em 40% (não somos de maneira nenhuma indiferentes à actuação do capitão do navio, quando deixa as tampas do porão abertas durante toda a operação de descarga), ou seja, na liquidação à Autora da quantia de Euros 13.927,948 (Euros 34.819,87 x 4/10).
Logo, nesta parte, merece provimento o recurso de apelação da Apelante M, SA.

NOTA: A sentença recorrida mantém-se intocada quanto às Rés SOCIEDADE V, AS e JON, AS dado estas não terem recorrido da mesma (a primeira demandada deixou que o seu recurso de apelação oportunamente interposto fosse julgado deserto, por não apresentação atempada de alegações) e, por tal motivo, ter-se formado caso julgado material quanto á condenação de que foram alvo no quadro da mesma.    
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IV – DECISÃO

Por todo o exposto e tendo em conta o artigo 712.º e 713.º do Código do Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa no seguinte:
a) Em alterar o facto constante da alínea 33) da matéria de facto da sentença recorrida;
b) Em julgar improcedente o recurso de apelação interpostos por SOCIEDADE U;
c) Em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação de SOCIEDADE M  e, nessa medida, alterar a sentença recorrida no sentido dessa mesma Ré ser condenada unicamente no pagamento à Autora da indemnização no montante de Euros 13.927,948, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal supletiva desde a respectiva citação até integral pagamento.      

Custas do primeiro recurso por conta da Autora e da acção e do segundo recurso, por conta da Apelante M e da Apelada U, na proporção do respectivo decaimento.

Notifique e Registe.

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2008


(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Carlos Valverde)