Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1001/10.6TVLSB.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
CONSUMIDOR
CLÁUSULA CONTRATUAL
ABUSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário: 1. É válida, do ponto de vista formal, uma cláusula que consubstancia um pacto atributivo de jurisdição inserida num contrato subscrito pelas partes, na medida que obedece aos requisitos impostos pelo art. 23º, n.º 1, do Regulamento (CE) nº 44/2001, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
2. Para efeitos de conhecimento da excepção da incompetência absoluta, importa todavia apurar se essa cláusula, do ponto de vista substancial, viola ou não os direitos do consumidor.
3. Não sendo aplicável o Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012, a questão da validade substantiva do pacto deve ser apreciada em face da directiva 93/13, em articulação com o estabelecido no D.L. n.º 446/85, de 25/10, diploma que estabelece o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
4. A efectividade da protecção pretendida pela directiva n.º 93/13 e pelas normas do DL 446/85 impõem, assim, que o tribunal aprecie o alegado carácter abusivo da cláusula contratual 5.4., que constitui fundamento da excepção da incompetência do tribunal, determinando se a mesma preenche os critérios exigidos para ser qualificada de «abusiva», na acepção do artigo 3.º, n.º 1, da directiva.
5. Como o TJEU decidiu no acórdão de 9 de Novembro de 2010, o tribunal deve, oficiosamente, tomar medidas instrutórias a fim de determinar se a cláusula atributiva de competência, constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, se enquadra no âmbito de aplicação da diretiva e, em caso afirmativo, apreciar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo dessa cláusula.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I.PM, Lda, instaurou contra B, SA e K, SA, a presente acção declarativa, com processo ordinário, peticionando:
a) A anulação do contrato de compra e venda de acções celebrado com a 2ª ré, com a restituição do prestado pelos compradores, designadamente cerca de €200.000,00;
b) A anulação do contrato de abertura de conta no valor de €200.000,00 celebrado com o 1º réu e bem assim a anulação do contrato de cessão da posição contratual celebrado entre a autora e o cedente e o 1º réu;
c) A anulação do penhor constituído ao abrigo do contrato de abertura de crédito celebrado com o 1º réu e do contrato de cessão da posição contratual;
d) O pagamento pelos réus dos juros vencidos e vincendos até integral pagamento sobre as quantias a devolver.
Alegou, em síntese, que o B apresentava-se ao público como intermediário financeiro, pondo à disposição dos clientes vários tipos de produtos financeiros, tais como acções, obrigações e unidades de participação; que o B, nos termos da lei, estava obrigado a prestar toda a informação necessária aos clientes investidores em vista a uma tonada de decisão esclarecida; que o B contactou o seu cliente J. propondo-lhe investir capital na aquisição e subscrição de acções no aumento de capital da B, SA., a qual era uma sociedade-veículo de direito [estrangeiro], criada pelo B para adquirir acções do Banco C, de que já era acionista, com cerca de 2,3% do capital, e informou que o objectivo do B era aumentar a participação da sociedade [estrangeira] no capital social do Banco C para cerca de 4%, estando o aumento de capital previsto para o final de Abril de 2008, sendo que, na qualidade de acionista, poderia adquirir cada acção ao preço de €1,20, face ao preço médio de mercado que era de €1,98; que o J. foi ainda informado pelo B que a sociedade [estrangeira] possuía um valor de situação líquida (net asset value, ou seja um nav) correspondente a 30% do valor nominal; que com base na referida informação, no dia .../2008, o J. entregou ao réu B cerca de €150.000,00 para investimento no produto financeiro apresentado, tendo este apresentado àquele, com vista a formalizar o investimento, um contrato de compra e venda de acções da sociedade-veículo PF, a assinar entre o cliente particular e a 2ª ré K, SA; que o J., na qualidade de sócio-gerente da Soc. P., Lda, acedeu ainda em aplicar no referido produto financeiro a quantia de €400.000,00; que como esta sociedade não detinha essa quantia, o B propôs que entrasse com a quantia de que tinha disponível (cerca de €200.000,00) e que lhe concederia um crédito do valor remanescente, através de um contrato de abertura de crédito, com constituição de penhor sobre os direitos emergentes do contrato de gestão n.º ...; que foi apresentado um contrato de compra e venda de 1.333.333 de acções da sociedade PF à sociedade P., Lda, pelo preço de €399.999,90, contrato esse que as partes assinaram em .../2008, assim como um contrato de abertura de crédito em conta corrente caucionada até ao valor de €200.000,00; que esta última sociedade cedeu a sua posição contratual à autora PM com o consentimento do B, mediante a aceitação de uma condição imposta por este: a celebração de um contrato de penhor financeiro; que em Abril de 2008 o sócio-gerente da autora veio a constatar que o nav da sociedade PF não era de €:0,30, mas sim de €:0,19, pelo que a informação anteriormente fornecida não era verdadeira, sendo em Maio desse ano era de €:0,14, em Junho de €:0,07, em Julho e Agosto de €:0,01, em Setembro de €:0,0025; que verificou ainda que a participação da PF no capital do Banco C continuou a ser na ordem de 2,3% e não dos 4% veiculados pelo B; e que em ... de 2009 a referida sociedade reduziu ainda a sua participação no Banco C para 0,31%.
A ré K..., SA contestou, tendo arguido, além do mais, a excepção da incompetência absoluta, sustentando estar prevista nos contratos de compra e venda de acções representativas de capital da sociedade de direito [estrangeiro] PF, SA, nos pontos 5.3. e 5.4, regerem-se as relações emergentes dos contratos pela lei [estrangeira] e ser exclusivamente competente para conhecimento dos litígios o tribunal [estrangeiro], na ...; que o litígio diz respeito a direitos disponíveis e não recai sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; e que a lei [estrangeira] aceita a competência dos seus tribunais para dirimir os litígios emergentes de contratos de compra e venda de acções representativas de compra e venda de acções representativas de capital de sociedades [estrangeiras], ainda que os contraentes sejam estrangeiros e residam fora da ....
O réu B contestou e deduziu pedido reconvencional.
Na réplica a autora alegou, além do mais, que todos os contratos foram celebrados em Portugal, sendo as sociedades vendedora e compradora portuguesas com sede em Portugal; que a R. não identificou a norma da lei [estrangeira] da qual resulte que a aceitação da competência designada pelo pacto de eleição do foro para julgar litígios de pessoas de nacionalidade portuguesa, relativamente a contratos celebrados fora da ..., ainda que sobre valores mobiliários de uma sociedade [estrangeira], nem invoca qualquer interesse sério de ambas as partes ou de alguma delas que a questão da anulação do contrato se processe pelos tribunais [estrangeiros]; que a inclusão dessa cláusula no contrato foi feita pela R., que apresentou o texto já redigido, para dificultar o acesso a juízo da parte mais fraca, com menos acessibilidade ao foro [estrangeiro], como acontece com o declarante comprador; que não tem conhecimento da lei [estrangeira], nem da língua oficial praticada na ..., não tendo qualquer actividade nesse país, sendo-lhe, por isso, bastante difícil recorrer aos tribunais [estrangeiros]; que o clausulado foi pré-elaborado pela R., tendo-se limitado a aderir ao mesmo, não tendo as cláusulas sido negociadas, comunicadas, informadas ou explicadas; e que tais cláusulas devem ter-se por excluídas, para além de serem contrárias à boa fé, uma vez que provocam o desequilíbrio de posições das partes, sendo, nessa medida nulas, nos termos dos arts. 5º, 12º, 15º e 19º al. g) do DL n.º 446/85, de 25/10.
A fls. 784 e segs. a P., Lda veio requerer a sua intervenção principal espontânea, apresentando o respectivo articulado, intervenção que veio a ser admitida.
A autora e a interveniente apresentaram réplica relativamente à matéria da excepção de incompetência absoluta, tendo propugnando pela competência dos tribunais portugueses.
Posteriormente a autora, a interveniente P., Lda e a 1ª ré B juntaram aos autos transacção, a qual foi homologada pela sentença de fls. 1103, tendo os autos prosseguido os seus termos relativamente à 2ª ré.
Entretanto operou a incorporação por fusão da 2ª ré na sociedade K, SA, passando esta a intervir nos autos.
Realizada a audiência preliminar, foi proferida decisão na qual se julgou procedente a excepção da incompetência absoluta do tribunal português para o julgamento da presente acção, tendo a ré sido absolvida da instância.
Inconformadas com essa decisão, vieram a autora e a interveniente P., Lda interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
1. A Douta Decisão ad quo devia ter analisado em primeiro lugar se as cláusulas 5.3 (escolha da lei aplicável) e 5.4 (pacto de jurisdição), que estão inseridas no contrato de compra de acções, eram ou não aplicáveis e aceites, ou se se tinham, antes, por excluídas e/ou nulas por serem proibidas à luz do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro (diploma que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva Europeia nº 93/13/CEE de 5 de Abril de 1993).
2. Primeiro há que apreciar se aquelas cláusulas se têm por aceites e inseridas no texto do contrato, ou se, ao contrário, se consideram excluídas e/ou nulas, consoante se tratem de: i) cláusulas negociadas (ou não) entre as partes; ii) cláusulas comunicadas e informadas (ou não) pela parte que as pré-elaborou; iii) cláusulas proibidas por estabelecerem um foro jurisdicional que gere grave inconveniente para uma das partes;
3. Se à luz do Decreto-lei nº 446/85 de 25 de Outubro se concluir que tais cláusulas se têm por excluídas ou nulas, as mesmas têm-se por não escritas e não inseridas no texto contratual, pelo que não se poderá vir depois a “ressuscita-las” para passar a apreciar a sua validade à luz do art. 23º do Regulamento Europeu nº 44/2001.
4. Tais cláusulas são cláusulas contratuais gerais porquanto foram unilateralmente pré-elaboradas e inseridas no texto do contrato pelo declarante que apresentou o contrato como forma de formalizar o investimento proposto à compradora, contrato esse que vinha pré-elaborado e pré-determinado, tendo a Apelante compradora apenas se limitado a aderir a tal contrato, apondo a respetiva assinatura, sem que tais cláusulas que impunham o recurso aos tribunais belgas e à aplicação da lei belga, em caso de litígio, lhe tivessem sido negociadas, comunicadas, informadas ou explicadas.
5. Cabia, nos termos do nº 3 do art. 1º do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro, à parte que se quer prevalecer dessas cláusulas, o ónus da prova de que resultaram de negociação prévia.
6. Consideram-se igualmente tais cláusulas excluídas do conteúdo do contrato de venda de ações porquanto nos termos do arts. 5º, 6º, e 8º al. nº 1 a) e b) do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro, não foram tais cláusulas informadas nem comunicadas à compradora Apelante.
7. A douta sentença-saneador não conheceu destas questões, tendo pecado, assim, por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil.
8. De igual modo, de acordo com o previsto no art. 19º al. g) do Decreto-lei nº 446/85 de 25 de Outubro (que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva Europeia nº 93/13/CEE de 5 de Abril de 1993) o pacto de aforamento previsto na cláusula 5.4 do contrato de compra de acções (e bem, assim a cláusula 5.3) são nulas pois é evidente a existência de um grave inconveniente para a compradora Apelante e para a interveniente de recorrer aos tribunais [estrangeiros], uma vez que tratando-se de pequenas sociedades por quotas (micro empresas), de cariz marcadamente familiar, não têm os respetivos gerentes quaisquer conhecimentos da língua oficial [estrangeira], ou da lei [estrangeira], não tendo qualquer atividade na ... e teriam que recorrer a meios causídicos estrangeiros, profissionais do foro [estrangeiro], traduções para língua estrangeira, recurso a meios judiciais estranhos e cujo conteúdo desconhecem, a viagens ao estrangeiro, ao pagamento de honorários, taxas e custas calculadas com base no nível de vida da ....
9. O que já não acontece com a Ré, sendo uma conhecida holding financeira, detentora de variadas sociedades financeiras em relação de grupo, tão pouco justificando os interesses desta Ré – de nacionalidade, sede, corpos sociais e funcionários exclusivamente em Portugal – de recorrer aos tribunais [estrangeiros], a não ser para tentar evitar que a contraparte recorra aos mesmos, atentos os elevados custos e os grandes inconvenientes e dificuldades que teria.
10. Provocam assim estas cláusulas 5.3 e 5.4 um grave desequilíbrio de posições entre as partes, obrigando que a Apelante compradora e a interveniente, que não têm nenhuma relação comercial, profissional ou outra com a ..., se vejam forçadas a recorrer a tal jurisdição, que desconhecem, com grave e difícil esforço financeiro, para poder fazer valer judicialmente, em país longínquo, o seu direito no âmbito do presente contrato.
11. Termos em que são proibidas tais cláusulas, sendo nulas, nos termos do art. 19º al. g) e art. 15º do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro – diploma este que é o normativo aplicável ao caso sub judice dado que o seu art. 23º nº 1 postula que independentemente da lei escolhida entre as partes para regular o contrato, as normas desta secção aplicam-se sempre que o mesmo apresente uma conexão estreita com o território português.
12.A Douta Decisão ad quo de igual forma não se pronunciou desde logo sobre a questão da admissibilidade ou da exclusão e nulidade destas cláusulas enquanto cláusulas contratuais gerais, antes tendo pressuposto a sua admissibilidade e passado a debruçar-se de imediato sobre a sua validade à luz do regulamento comunitário sobre competência internacional – sendo por isso tal sentença nula por omissão de pronúncia nos termos da alínea d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil.
13.Nem tao pouco se pode considerar que a compradora Apelante conhecesse ou devesse conhecer que à compra dos valores mobiliários em causa (feita a uma sociedade vendedora portuguesa, pertencente ao mesmo grupo societário do banco português de que era cliente e que lhe propôs o investimento) fosse de aplicar a lei e a jurisdição de tribunais estrangeiros!
14.Em virtude da não admissibilidade e da exclusão das cláusulas contratuais gerais 5.3 (escolha da lei aplicável) e 5.4 (pacto de jurisdição) por não terem sido comunicadas, informadas e por imporem um grave inconveniente para uma das partes sem que o interesse da outra o justifique – o normativo legal a aplicar será a lei processual civil interna e assim o art. 65º do Código de Processo Civil, que não contende com o Regulamento Comunitário e na ausência de pacto de aforamento (excluído e nulo) postula que serão os tribunais portugueses os competentes para dirimir a questão – mais concretamente, o Tribunal de L... por ser o tribunal territorialmente competente enquanto tribunal do domicílio da Ré – nos termos do art. 65º nº 1 al. b) e art. 85º nº 1 do Código de Processo Civil e ainda porque nos termos da alínea d) do mesmo art. 65º do Código de Processo Civil, sempre haveria para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, existindo entre a ordem jurídica portuguesa e o objecto do litígio um elemento ponderoso de conexão pessoal, porquanto o investimento foi proposto em Portugal, celebrado em Portugal se sendo as partes pessoas coletivas de direito português e sediadas em Portugal.
15. Nem se diga que o pacto de jurisdição, para ser considerado válido, bastará constar apenas de um escrito ou acordo verbal com confirmação escrita. O facto de apenas se exigir nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 23º do regulamento44/2001 que exista um acordo verbal com uma mera confirmação escrita do pacto de jurisdição, não faz afastar a exigência contida no regime das cláusulas contratuais gerais que vigora na comunidade europeia, e que vigora em Portugal em virtude da transposição da diretiva comunitária nº 93/13/CEE acima mencionada (arts. 1º, 5º e 6º do Decreto-lei nº 446/85). Isto é, a exigência de que tenha que existir um prévio conhecimento e acordo, uma comunicação e uma informação sobre o disposto nessa cláusula – e não uma mera adesão sem negociação e aceitação dessa cláusula especifica, por ter a cláusula sido inserida unilateralmente por uma das partes – não esquecendo que essa mesma cláusula já ao abrigo do art. 19º al. g) do Decreto-lei nº 446/85 era nula e logo, proibida.
16. Por outro lado, a discussão do presente contrato de compra em causa nos autos não pode se dissociado da apreciação da formação dos restantes contratos de financiamento e cessão de posição contratual que lhe estão intrinsecamente ligados (requerendo-se também a anulação deste último) e que expressamente convencionam a lei portuguesa e o foro de Lisboa para dirimir os conflitos.
17. Por último o art. 20º da Constituição da República Portuguesa, fonte de direito suprema na ordem jurídica nacional, postula que: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…”. Ora, exigir que uma contra-parte mais débil tenha que recorrer a tribunais estrangeiros, com todas as dificuldades e custos daí advenientes para fazer valer o seu direito e procurar a obter justiça, é o equivalente a retirar-lhe o acesso ao direito e aos tribunais, já que a extrema dificuldade e o elevado custo que isso implicaria, levaria essa mesma parte a recear os elevados custos e dificuldades de recorrer a um tribunal de um país desconhecido e, assim, a desistir de defender os seus direitos em tribunal.
Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida.
A apelada apresentou contra-alegações nas quais formulou as seguintes conclusões:
I. Concluiu e bem o douto Tribunal a quo pela inaplicabilidade, ao caso sub judice, do disposto nos arts. 65.º, 65.º-A e 99.º do CPC, e pela aplicabilidade da cláusula 5.4, vertida nos contratos celebrados entre as partes, consentânea com o preceituado no art.º 23.º do Regulamento n.º 44/2001, julgando, em consequência, integralmente procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal português para o julgamento da presente acção e absolvendo a ora Recorrida da instância;
II. O cerne da questão em apreço – procedência ou não da excepção de incompetência absoluta do Tribunal português para o julgamento da presente acção – está em aferir em primeiro lugar da aplicabilidade do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 e em segundo lugar da validade do pacto atributivo de jurisdição celebrado entre as partes à luz dos requisitos específicos do Regulamento;
III. É unânime a aceitação da prevalência da fonte de direito comunitário em apreço (Regulamento (CE) n.º 44/2001) sobre as normas internas reguladoras da competência internacional previstas nos arts. 65.º, 65.º A, 99.º, 1094.º e 1102.º, todos do CPC, sendo o referido Regulamento directamente aplicável a todos os Estados Membros em conformidade com o Tratado que institui a Comunidade Europeia, conforme resulta do disposto no art.º 76.º do próprio Regulamento e do art.º 8.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa – constatação do primado do direito comunitário e da sua prevalência sobre o direito português;
IV. As partes estão domiciliadas em território de Estado Membro da União Europeia e a presente acção tem por objecto o reconhecimento e declaração de invalidade de contrato de compra e venda de acções representativas do capital social de sociedade de nacionalidade [estrangeira] – a PF -, pelo que existe um motivo sério para as partes terem elegido a lei belga e os tribunais de ... como competentes para regularem as relações jurídicas e litígios entre as partes;
V. O litígio respeita a direitos disponíveis e não recai sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses, aceitando a lei [estrangeira] a competência dos seus tribunais para dirimir os litígios emergentes de contratos de compra e venda de acções representativas do capital de sociedades [estrangeiras], ainda que os contraentes sejam estrangeiros e residam fora da ...;
VI. Determinada a aplicação directa do Regulamento na ordem interna, indispensável se torna aferir da validade do pacto atributivo de jurisdição constante da cláusula 5.4 dos contratos sub judice ao abrigo dos requisitos expressamente previstos no art.º 23.º do referido diploma;
VII. Com a aposição pelas partes da sua assinatura nos contratos contendo a cláusula de pacto atributivo de jurisdição, verificou-se a sua aceitação expressa do mesmo;
VIII. Pretenderam as partes definir – sem margem para dúvidas – a jurisdição exclusiva do tribunal [estrangeiro] para apreciar quaisquer acções propostas sobre litígios decorrentes ou relacionados com os contratos celebrados;
IX. O pacto de jurisdição exclusiva celebrado – integralmente válido ao abrigo do disposto no art.º 23.º do Regulamento – vincula os respectivos celebrantes à cláusula de competência que livremente entenderam fixar, afasta a aplicação das regras de competência especiais previstas no art.º 5.º do Regulamento e determina a competência dos tribunais belgas para a apreciação da questão sub judice;
X. Não colhe ainda o invocado argumento de nulidade da já supra citada cláusula 5.4. ao abrigo do regime das Cláusulas Contratuais Gerais previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, mais concretamente do disposto no art.º 19.º, alínea g) do referido diploma pois os contratos de compra de acções em apreço não configuram contratos de adesão;
XI. Resulta da descrição contida na petição inicial da Recorrente PM sob a epígrafe “I – Da contratação e manifestação de vontade” a formação da vontade das Recorrentes em contratar foi, conforme configurado pela Recorrente PM no referido articulado, precedida de um longo processo de negociações e pedido de informações (cfr. artºs. 1.º a 46.º);
XII. A aposição de assinatura nos contratos consumou a aceitação das condições negociadas;
XIII. A cláusula 5.4. não configura cláusula nula nos termos pretendidos pelas Recorrentes, não devendo por isso considerar-se excluída dos contratos celebrados entre as partes;
XIV. E ainda que assim fosse, o que se aventa por mera hipótese de raciocínio, sem minimamente conceder, sempre não se verificariam os pressupostos contidos no art.º 19.º, alínea g), para que tal cláusula fosse considerada proibida e, em consequência excluída dos contratos em questão; pois
XV. Encontra-se demonstrado que: (i) a designação dos Tribunais [estrangeiros] corresponde a um interesse sério da Recorrida e que; (ii) as Recorrentes tiveram conhecimento prévio do pacto de jurisdição em apreço, e do seu significado;
XVI. A instauração da presente acção nos tribunais portugueses constitui violação do pacto atributivo de jurisdição acima referido;
XVII. Pelo que decidiu bem o douto Tribunal recorrido ao julgar procedente a invocada excepção de incompetência relativa por infracção das regras de competência internacional resultantes daquele pacto e a consequente absolvição da ré da instância.
XVIII. A douta sentença não violou as normas invocadas pelas Recorrentes, nem quaisquer outras, devendo manter-se integralmente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II. Nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3, e 685º-A, n.º 1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões das recorrentes, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 660º do mesmo Código.
Assim, as questões a decidir consistem, fundamentalmente, em saber:
- se a sentença é nula;
- se, para efeitos de conhecimento da excepção da incompetência internacional, importa apreciar da validade substancial do pacto atributivo de jurisdição em face da directiva 93/13/CEE de 5 de Abril de 1993 e do D.L. n.º 446/85, de 25/10;
- se, em caso de resposta afirmativa, os autos contêm os elementos conducentes a tal;
- se é caso de revogar a decisão recorrida.
*
III. Da questão de mérito:
Da alegada nulidade da decisão recorrida:
As apelantes arguiram a nulidade da decisão recorrida, nos termos da alínea d) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil, por na mesma não se ter analisado se as cláusulas 5.3 (escolha da lei aplicável) e 5.4 (pacto de jurisdição), que estão inseridas no contrato de compra de ações, eram ou não aplicáveis e aceites, ou se se tinham, antes, por excluídas e/ou nulas por serem proibidas à luz do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro.
A nulidade da decisão por omissão de pronúncia a que alude a citada alínea d) do art. 668º do CPC, constitui a cominação para o incumprimento do disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 660º do CPC, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Deve assim o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, não constituindo, porém, nulidade a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes das da sentença, que as partes hajam invocado, nem considerar todos os argumentos que estas tenham deduzido – Lebre de Freitas, C.P.C. Anotado, volume 2º, pags. 646 e 670.
Ora, na decisão recorrida exarou-se que:
“A Autora alega, porém, em abono da tese da competência do tribunal português, a nulidade da cláusula 5.4 invocando que estando em causa a celebração de contrato de compra e venda de acções, não foi a assinatura do documento precedida de negociação entre as partes, conclui estar-se em presença de contrato de adesão, daí que as cláusulas nele insertas constituem cláusulas contratuais gerais, disciplinadas pelo DL 446/85, de 25.10, sendo proibida a cláusula em questão, na medida em que com tal estipulação negocial só a parte mais forte é beneficiada, o que legitima o recurso ao estipulado na als. g) do artº 19º do DL referido.
Mas, pelas razões já expostas, também não colhe este argumento para ver afastada a aplicação do pacto de jurisdição vertido no contrato em questão conforme se explana em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1.2.2011, proferido no processo n.º 757/10.0TBOER.L1-7, acessível in www.dgsi.pt.
Conforme se assinala em Acórdão do Acórdão do STJ de 4.3.2010, proferido no processo n.º 2425/07.1TBVCD.P1.S1, acessível in www.dgsi.pt. não têm os Estados Contratantes liberdade para prescreverem outras exigências de forma do que as previstas no Regulamento”.
Em face desta transcrição, verifica-se que na sentença o Sr. Juiz conheceu da questão suscitada pelas ora apelantes, pronunciando-se no sentido da inaplicabilidade do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
Se o fez bem ou mal, não interessa para este efeito.
A mera discordância das apelantes relativamente à interpretação das normas legais efectuada em 1ª instância, ainda que fundada, nunca poderá configurar uma nulidade de sentença, mas apenas um erro de julgamento.
A sentença não enferma assim da apontada nulidade.
Da questão de fundo:
Os factos a ter em conta, com interesse para a decisão, são os que constam do relatório do presente acórdão, precisando-se que são do seguinte teor as cláusulas 5.3 e 5.4 apostas nos contratos de compra e venda de acções outorgados entre Kinetics, SGPS, SA, na qualidade de vendedora de acções da PF SA, e J. (fls. 77 a 83) e P. , Lda (fls. 85 a 91), estes na qualidade de compradores:
“5.3. Lei Aplicável
O presente contrato reger-se-á e será interpretado em conformidade com as leis da ....
5.4. Jurisdição
Todos os litígios decorrentes ou relacionados com o presente Contrato, que as partes não consigam resolver de forma amigável, devem ser submetidos à jurisdição exclusiva dos tribunais de ... (...).»
Em face do clausulado em 5.4., e encontrando-se o contrato assinado por ambas as partes, entendeu-se na decisão recorrida ser o tribunal português internacionalmente incompetente para conhecer da presente acção.
Essa decisão funda-se na seguinte linha argumentativa:
“Importa antes de mais esclarecer que para aferir da procedência ou improcedência da excepção de incompetência arguida pela R., ser aplicável o Regulamento CE n.º 44/2011 do Conselho de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e execução de decisões em matéria cível e comercial, e que veio a suceder vinculando os Estados-Membros da União Europeia, exceptuada a Dinamarca, a Convenção de Bruxelas de 1968.
Na verdade, não sofre contestação que as normas constantes de convenções internacionais vigoram na nossa ordem interna, assim vinculando internacionalmente também o Estado Português G art.º8º da CRP.
Tendo este Regulamento primazia sobre as leis nacionais, porquanto conforme resulta do disposto nos arts.ºs 65º e 65º-A do CPC as regras neles estabelecidas quanto à determinação da competência internacional dos tribunais portugueses não derrogam as contidas em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais que tem, assim, primazia.
Ora dispõe o Regulamento (CE) 44/2001, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, cuja entrada em vigor ocorreu em 1.3.2002 (artº 76º) no seu artº artigo 23. que:
«1. Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado: a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou b) Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou c) No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.
2. Qualquer comunicação por via electrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».
3. Sempre que tal pacto atributivo de jurisdição for celebrado por partes das quais nenhuma tenha domicílio num Estado-Membro, os tribunais dos outros Estados- Membros não podem conhecer do litígio, a menos que o tribunal ou os tribunais escolhidos se tenham declarado incompetentes.
4. O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro, a que o acto constitutivo de um «trust» atribuir competência, têm competência exclusiva para conhecer da acção contra um fundador, um «trustee» ou um beneficiário de um «trust», se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do «trust».
5. Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de actos constitutivos de «trust» não produzirão efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 13º, 17º e 21º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 22º.
No caso vertente, a acção tem como objecto o reconhecimento e declaração da invalidade do contrato celebrado entre Autora e Ré sediadas em dois Estados-Membros, pelo que terá que acolher-se o princípio da prevalência do direito comunitário sobre as normas internas de cada Estado.
Conforme se transcreve no Acórdão do STJ de 27.5.2008, acessível in www.dgsi.pt, o Regulamento em causa é um instrumento relativo a competência judiciária cujas disposições visam unificar as regras de conflito de jurisdição em matéria cível e comercial, sendo consabida a prevalência das normas insertas em regulamentos comunitários sobre o direito interno.
Daí que indispensável à aferição sobre a validade do pacto atributivo de jurisdição é tão só que este satisfaça os requisitos específicos que o Regulamento n.º 44/2011 impõe.
(…)
Ora, de acordo com o alegado na petição inicial, a P. e a R. K., celebraram os contratos aí referidos, mostrando-se este vertido nos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 9 e 10, assinado por ambas as partes, pelo que cumprido está o requisito formal estabelecido pela nº1, al. a) do artº 23º do Regulamento 44/2001.
Donde se conclui que a convenção das partes definiu a jurisdição exclusiva do tribunal [estrangeiro] para apreciar as acções propostas sobre os litígios decorrentes ou relacionados com os contratos celebrados.
A Autora alega, porém, em abono da tese da competência do tribunal português, a nulidade da cláusula 5.4 invocando que estando em causa a celebração de contrato de compra e venda de acções, não foi a assinatura do documento precedida de negociação entre as partes, conclui estar-se em presença de contrato de adesão, daí que as cláusulas nele insertas constituem cláusulas contratuais gerais, disciplinadas pelo DL 446/85, de 25.10, sendo proibida a cláusula em questão, na medida em que com tal estipulação negocial só a parte mais forte é beneficiada, o que legitima o recurso ao estipulado na als. g) do artº 19º do DL referido.
Mas, pelas razões já expostas, também não colhe este argumento para ver afastada a aplicação do pacto de jurisdição vertido no contrato em questão conforme se explana em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1.2.2011, proferido no processo n.º 757/10.0TBOER.L1-7, acessível in www.dgsi.pt.
(…)
Em face do exposto, é de concluir pela inaplicabilidade do disposto nos artºs 65º, 65º-A e 99º ambos do CPC, e pela aplicabilidade ao caso em apreço da cláusula 5.4 consentânea com o preceituado no artº 23 do Regulamento 44/2001, vertida nos contratos entre as partes celebrado, e, por conseguinte, julga-se procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal português para o julgamento da presente acção, absolvendo-se a Ré da instância (artºs 101º, 102º, 103º , 494º e 495º todos do CPC).
Custas pela Autora.
Notifique.»
Vejamos.
Como é sabido, a competência deve ser determinada face à relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, em articulação com o pedido formulado.
No caso dos autos encontramo-nos perante um litígio privado internacional entre duas sociedades comerciais, sedeadas em Portugal, visando a acção, primacialmente, a anulação do contrato de compra e venda e transmissão de acções da soc. PF SA, esta com sede na ....
Ora, em decorrência do primado do direito comunitário e da sua prevalência sobre o direito nacional (art. 8.º, nº 3 da CRP), é indubitável que as regras comunitárias, do Regulamento (CE) nº 44/2001, Relativo à Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, que entrou em vigor em 1 de Março de 2002, prevalecem sobre as normas nacionais, expressas nos arts. 65° e 65°-A do CPC, que regulam a competência internacional.
E estabelece o art. 2.º do Regulamento (CE) nº 44/2001 que “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.
Contudo, estipula o art. 23.º, n.º 1:
“1. Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Este pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita; ou
b) Em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) No comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado”.
É essa a situação que ocorre nos autos, pois que ambas as partes subscreveram um contrato que contém uma cláusula que consubstancia um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais belgas.
Esse pacto atributivo de jurisdição incluído no documento obedece indiscutivelmente aos requisitos formais impostos pelo citado artº 23º, nº 1.
A questão está, porém, em saber se aquela cláusula, do ponto de vista substancial, viola ou não os direitos do consumidor (no caso a soc. P., Lda).
É que, como sustenta Luís de Lima Pinheiro (in Direito Internacional Pivado, volume III, ano de 2012, pags. 308/309), nas relações com consumidores justifica-se um limite à validade ou eficácia dos pactos de jurisdição, podendo o tribunal nacional apreciar oficiosamente a questão do carácter abusivo da cláusula atributiva de competência, em face da Directiva 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1999 relativa às cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores. No mesmo sentido parece pronunciar-se Ana Prata, in Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2010, pags. 449, 454 e 455.
Neste âmbito, coloca-se, desde logo, a questão de saber em face de que lei substantiva deverá ser aferida esta questão: se face à lei do Estado Português, perante cujos tribunais a acção foi proposta, se face à lei do Estado-Membro (Bélgica) designado no pacto.
O Regulamento (CE) n.º 44/2001 nada estipula nesta matéria.
Diversamente, o art. 25º, n.º 1, do novo Regulamento (EU) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2012 – o qual, contudo, só se aplica a partir de 19/01/2015 – estatui que:
“Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo (…)”.
Assim, no novo regulamento estabelece-se que a questão da validade substantiva do pacto deve ser decidida segunda a lei do Estado-Membro do tribunal ou tribunais designados no pacto.
Considerando, porém que o regulamento 1215/2012 não é aplicável ao caso e que está também posta em crise nos autos a validade substantiva da cláusula que estabelece a aplicabilidade da lei belga (5.3), conclui-se no sentido de que a questão em apreciação não pode ser decidida em face desta lei.
Nesta matéria, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no Acórdão de 9 de Novembro de 2010 (VB Pénzügyi Lízing, C-137/08), já assinalou que no âmbito das funções que lhe incumbem por força das disposições da directiva n.º 93/13, o órgão jurisdicional nacional deve verificar se uma cláusula do contrato objecto do litígio que lhe cabe conhecer se enquadra no âmbito de aplicação desta directiva. E, em caso de resposta afirmativa, o referido órgão jurisdicional tem a obrigação de apreciar essa cláusula, se necessário oficiosamente, à luz das exigências de protecção do consumidor previstas na dita directiva (n.º 49).
Ora, estabece a directiva n.º 93/13, no seus artigos 3º, 4º e 6º, que:
Artigo 3º
1. Uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.
2. Considera-se que uma cláusula não foi objecto de negociação individual sempre que a mesma tenha sido redigida previamente e, consequentemente, o consumidor não tenha podido influir no seu conteúdo, em especial no âmbito de um contrato de adesão.
O facto de alguns elementos de uma cláusula ou uma cláusula isolada terem sido objecto de negociação individual não exclui a aplicação do presente artigo ao resto de um contrato se a apreciação global revelar que, apesar disso, se trata de um contrato de adesão.
Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objecto de negociação individual, caber-lhe-á o ónus da prova.
3. O anexo contém uma lista indicativa e não exaustiva de cláusulas que podem ser consideradas abusivas.
Artigo 4º
1. Sem prejuízo do artigo 7º, o carácter abusivo de uma cláusula poderá ser avaliado em função da natureza dos bens ou serviços que sejam objecto do contrato e mediante consideração de todas as circunstâncias que, no momento em que aquele foi celebrado, rodearam a sua celebração, bem como de todas as outras cláusulas do contrato, ou de outro contrato de que este dependa.
2. A avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objecto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível.
Artigo 6º
1. Os Estados-membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respectivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas constantes de um contrato celebrado com um consumidor por um profissional não vinculem o consumidor e que o contrato continue a vincular as partes nos mesmos termos, se puder subsistir sem as cláusulas abusivas.
2. Os Estados-membros tomarão as medidas necessárias para que o consumidor não seja privado da protecção concedida pela presente directiva pelo facto de ter sido escolhido o direito de um país terceiro como direito aplicável ao contrato, desde que o contrato apresente uma relação estreita com o território dos Estados-membros.
E entre as cláusulas que podem ser consideradas abusivas referidas na lista anexa ao art. 3º, n.º 3, da directiva n.º 93/13/CEE, do Conselho, de 5 de Abril de 1993, contam-se as que tenham como objectivo ou como efeito suprimir ou entrava a possibilidade de intentar acções judiciais ou utilizar outro meio de tutela jurídica (1/q).
Esta directiva foi transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo D. L. n.º D.L. n.º 249799, de 7/7, que alterou o D.L. n.º 446/85, de 25/10, diploma que estabelece o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
E estatuem os arts. 1º, 5º, 6º, 8º e 19º, al. g) do DL 446/85 que:
Artigo 1º
1- As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma.
2- O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
3- O ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo.
Artigo 5º
1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
Artigo 6º
1 - O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.
2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.
Artigo 8º
Consideram-se excluídas dos contratos singulares:
a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;
b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;

c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real;
d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.
Artigo 19º, al. g)
São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que:
g) Estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem.
Como o TJEU exarou no Acórdão de 9 de Novembro de 2010 citado, a fim de garantir a eficácia da protecção dos consumidores pretendida pelo legislador da União, o órgão jurisdicional nacional deve, por isso, em todos os casos e quaisquer que sejam as normas de direito interno, determinar se a cláusula controvertida foi ou não objecto de negociação individual entre um profissional e um consumidor (n.º 51).
A efectividade da protecção pretendida pela directiva n.º 93/13 e pelas normas do DL 446/85 impõem, assim, que o tribunal aprecie o alegado carácter abusivo da cláusula contratual 5.4., que constitui fundamento da excepção da incompetência do tribunal, determinando se a mesma preenche os critérios exigidos para ser qualificada de «abusiva», na acepção do artigo 3.º, n.º 1, da directiva.
Acontece, porém, que os autos ainda não permitem conhecer dessa questão.
Senão vejamos.
Na contestação a ré K. arguiu a excepção da incompetência absoluta, invocando para tanto o pacto atributivo de competência contido na cláusula 5.4 do contrato de compra e venda e transmissão de acções.
Na réplica, a autora e a interveniente invocaram a invalidade desse pacto, alegando, em suma, que:
- a inclusão das cláusulas 5.3 e 5.4 no contrato foi feita pela R., que apresentou o texto já redigido, para dificultar o acesso a juízo da parte mais fraca, com menos acessibilidade ao foro [estrangeiro], como acontece com o declarante comprador;
- a compradora P, Lda não tem conhecimento da lei belga, nem da língua oficial praticada na ..., não tendo qualquer actividade nesse país, sendo-lhe, por isso, bastante difícil recorrer aos tribunais [estrangeiros];
- o clausulado foi pré-elaborado pela R., tendo aquela sociedade se limitado a aderir ao mesmo, não tendo as cláusulas sido negociadas, comunicadas, informadas ou explicadas.
Em face da alegação de factos atinentes a essa invalidade, impõe-se possibilitar à ré PF, SA a possibilidade de contraditar aquela factualidade, ao abrigo do art. 3º, n.º 4, do CPC.
Caso a factualidade alegada na réplica seja impugnada, haverá que produzir prova sobre a mesma e só após decidir a excepção em apreço.
É certo que nos arts. 101º a 107º do CPC não se prevê, de forma expressa, a produção de prova para efeitos de conhecimento daquela excepção.
Todavia, como o TJEU decidiu no acórdão de 9 de Novembro de 2010, o tribunal deve, oficiosamente, tomar medidas instrutórias a fim de determinar se a cláusula atributiva de competência (no caso apreciado pelo acórdão tratava-se de competência territorial exclusiva), constante de um contrato celebrado entre um profissional e um consumidor, se enquadra no âmbito de aplicação da diretiva e, em caso afirmativo, apreciar oficiosamente o caráter eventualmente abusivo dessa cláusula.
Deverá, por isso, o tribunal adequar a tramitação processual às especificidades da causa – art. 265º-A do CPC (art. 547º do Novo CPC).
Deste modo, o conhecimento da excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses depende da averiguação de factos alegados na réplica, sobre a questão de saber se a cláusula 5.4. foi inserida pela ré no contrato de compra e venda sem prévia negociação individual e sem que a soc. P., Lda pudesse influenciar o seu conteúdo, bem como sobre o seu (alegado) carácter abusivo.
Procede, assim, em parte, a apelação.
***
V. Decisão:
Pelo acima exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se que em 1ª instância se notifique a ré Privado Holding, SGPS, SA para, querendo, em prazo a fixar, ao abrigo do disposto no art. 3º, n.º 4, do CPC, contraditar a matéria alegada na réplica pela autora e pela interveniente (arts 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 25º, 26º, 29º, 30º e 31º), devendo, caso aquela factualidade seja impugnada, ser produzida prova sobre a mesma, adequando-se o processado a essa especificidade, e após decidida a excepção da incompetência absoluta.
Custas pelo vencido a final (relativamente a esta questão incidental).
Notifique.
Lisboa, 19 de Novembro de 2013
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(Manuel Ribeiro Marques - Relator)
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(Pedro Brighton - 1º Adjunto)
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(Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta)