Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2892/22.3T9LSB.L1-9
Relator: ANA PAULA GUEDES
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO À HONRA E CONSIDERAÇÃO PESSOAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
I. A rejeição da acusação, nos termos do artigo 311º, nº 3 al. d) do CPP, só deve ocorrer quando os factos descritos na mesma, manifestamente, não integram a prática de um crime, pois, se a questão é controvertida, deve a acusação ser recebida e o processo remetido para julgamento.
II. A expressão “do nojo de gente”, desacompanhada de uma qualquer imputação factual, não é suscetível de integrar a prática do crime de difamação, p,p. pelo artigo 180º do CP.
III. E mesmo que assim não se entendesse, sempre se encontraria abrangida pela liberdade de expressão, não beliscando o patamar mínimo do direito à honra, protegida pelo artigo 10, nº 1 da CEDH.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência os Juízes da 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
A-Relatório:
No âmbito do Processo 2892/22.3T9LSB.L1, do Juízo local criminal de Lisboa - juiz 4, por despacho datado de ........2025, foi proferida a seguinte decisão:
- “Rejeita-se em consequência a acusação particular nos termos do disposto no art.º 311º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada”.
*
Inconformado com a decisão veio o assistente interpor o presente recurso.
Apresenta as seguintes conclusões:
I. O presente recurso respeita à decisão que veio rejeitar a acusação particular, devidamente acompanhada pelo Ministério Público, por a considerar manifestamente infundada.
II. O arguido AA vinha acusado (acusação particular) pelo Assistente, e aqui Recorrente, da prática, em autoria, de um crime de difamação, p. e p. nos artigos 180º, n.º 1, 182º e 183º, n.º 2 todos do Código Penal.
III. Sumariamente o Arguido escreveu o seguinte Tweet, que o Recorrente considera ofensivo da sua honra e consideração, como infra se demonstrará: “Do nojo de gente como BB e dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são”.
IV. Ora, ao contrário do sufragado pelo Tribunal a quo, houve, sem margem para dúvidas, a prática do ilícito criminal.
V. Não há qualquer margem para dúvida que qualificar alguém, no caso o Assistente, e aqui Recorrente, como “nojento” - Do nojo de gente como BB,
VI. O Tribunal a quo considera que “Nesta matéria os tribunais portugueses têm decidido no sentido de não negarem o direito à crítica, mas considerando que tudo quanto resvale para o uso de palavreado ofensivo dirigido ao criticado é passível de censura penal.”
VII. No entanto quando o Tribunal a quo coloca, lado a lado, o direito à liberdade de expressão e o direito à honra e à consideração de cada cidadão,
VIII. Labora em erro ao considerar que in casu não estão reunidos os elementos que permitem qualificar a expressão “Do nojo de gente como BB”, como difamatória.
IX. Na verdade, mal andou o Tribunal a quo.
X. O Tribunal a quo não poderia deixar de considerar que a conduta indiciada do arguido assume gravidade suficiente para merecer tutela do direito penal
XI. Não se trata de mera indelicadeza, grosseirismo ou má edução do Arguido.
XII. Trata-se de uma expressão difamatória que releva na esfera da dignidade e bom nome do Assistente, aqui Recorrente.
XIII. A decisão recorrida viola as regras e princípios-base que informam o Direito Penal, o que conduziu à decisão injusta e ilegal de rejeição da Acusação Particular.
XIV. Os autos indiciam, suficientemente, que o Arguido praticou o crime de que vem acusado.
XV. Assim, está suficientemente indiciado que o Arguido teve a intenção difamar o Assistente e aqui Recorrente.
XVI. Estando suficientemente indiciados os factos subsumíveis ao tipo legal de crime de difamação.
XVII. Por conseguinte, verificam-se indícios suficientes de que o Arguido cometeu o crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º 1, 182º e 183º, n.º 2 todos do Código Penal
XVIII. É manifesto que foram recolhidos indícios suficientes, em sede de inquérito, dos quais resulta a possibilidade razoável do Arguido ser condenado em julgamento, aliás, este é também o entendimento do Ministério Público.
XIX. Pelo que não deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a acusação particular por a considerar manifestamente infundada.
XX. Nestes termos, e nos mais de Direito, deve a decidão proferida ser revogada, e, consequentemente, substituída por outra que profira o recebimento da Acusação Particular e determinando-se o prosseguimento dos autos”.
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O recurso foi admitido com efeitos devolutivos, a subir de imediato e nos próprios autos.
O MP respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência.
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Remetidos os autos a este Tribunal a Exma Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer acompanhando a posição do MP na primeira instância.
Foi cumprido o artigo 417, nº2 do CPP.
Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência.
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Da decisão recorrida (na parte que releva para efeitos de recurso):
“ No essencial vem o arguido acusado de ter escrito um tweet com o seguinte teor: “Do nojo de gente como BB e dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são”, acompanhando-o com a partilha de um texto de uma crónica escrita por II publicada no Jornal DD (texto cujo teor não pode ser sequer considerado uma vez que não consta da acusação, unica que fixa o objecto dos autos), pretendendo assim atingir o assistente que é empresário de reconhecido sucesso, gerente de sociedade detida em parte pelo ... e que é acionista da ...
(…)
Na verdade a liberdade de expressão é, a par do direito à honra e à consideração, um valor constitucionalmente protegido.
Nos presentes autos há que colocar esses dois direitos lado a lado e, sabendo que um não pode apagar o outro, há que determinar em que medida é que um deles terá de ser comprimido para que o outro não desapareça.
Nesta matéria os tribunais portugueses têm decidido no sentido de não negarem o direito à crítica, mas considerando que tudo quanto resvale para o uso de palavreado ofensivo dirigido ao criticado é passível de censura penal.
(…)
Apreciando, então, o caso dos autos temos que, nos termos da própria acusação particular, há uma crónica publicada em jornal de tiragem nacional que o arguido republicou (crónica que, no âmbito de uma mera republicação seria sempre irrelevante em termos de imputação criminal – temos também que a acusação cinge à frase que acompanha essa republicação a conduta criminal), cujo teor não foi transcrito em qualquer parte na acusação (mas que a favor do arguido temos que consta de fls. 38 e tem como título “Como BB acabou com esta crónica”) e a que adicionou “Do nojo de gente como BB e dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são”.
No fundo o que temos é que o arguido considerando um texto/crónica de II publicado em jornal nacional relativo ao assistente opina sobre o assistente dizendo-o “nojo de gente” e considera que há quem o siga, quem o respeite e cumpra as suas ordens cegamente do partido Chega.
Ora, na verdade esta segunda parte a ser injuriosa sê-lo-ia mais para quem fosse considerado lacaio, pois que em causa estaria o seu poder de decidir pela própria cabeça, mas não é sequer isso, e quem tem lacaios (nos dias que correm apenas alguém subserviente ou servil) não tem necessariamente que querer tê-los ou sequer ter tratado de os ter.
Acresce que, dizer que o assistente tem indivíduos conectados ao Chega que o seguem, sendo o mesmo um partido político com representação parlamentar, será certamente um elogio para alguns (pois que se não fosse assim não teria assento parlamentar), o que obviamente não é do agrado de quem não tem esses princípios subjacentes, mas, ainda assim, não deixa de ser uma mera opinião absolutamente legítima que não tem relevância criminal.
No que tange ao epíteto “nojo de gente” em que é incluído o assistente, de facto é uma linguagem descortês e contundente, mas não é usada no âmbito de uma cerimónia (oficial), de uma reunião familiar (família), de uma assembleia (profissional), entre pessoas que não sujeitas a um conhecimento público, o assistente é pessoa do meio público e é-o por opção própria, sujeitando-se, assim, a opiniões/críticas que um cidadão anónimo não teria de ouvir/ler.
Na verdade, apesar do assistente não contextualizar na sua acusação o teor desse tweet, além da remissão, a verdade é que (e idependentemente da nota de redacção que o assistente cuidou de transcrever ao invés) esse tweet está contextualizado e é com base no mesmo que o arguido tece opinião, não se limitou a escrever a expressão, não se limitou a reproduzir um texto de terceiro copiando-o (com identificação ou não do seu autor), republicou o texto/crónica publicado em jornal nacional e opinou com base no mesmo, deixando quem lê a saber ao que se refere, nomeadamente que tem por base uma crónica publicada num meio de comunicação social, permitindo ao leitor saber que se trata da sua opinião sobre o que leu, manifestada embora de forma virulenta e deselegante, de extrema falta de educação, no uso de uma linguagem feroz e grosseira.
Com efeito, temos aqui que a liberdade de pensamento e de expressão do arguido não foi além do permitido e que as palavras e expressões utilizadas não têm qualquer potencialidade ofensiva que vá além do permitido penalmente.
Termos em que entendemos que os factos imputados ao arguido na acusação particular não são susceptíveis de preencherem o tipo objectivo do(s) crime(s) por que vem acusado ou de qualquer outro.
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Assim entendendo, rejeita-se em consequência a acusação particular nos termos do disposto no art.º 311º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada”.
B-Fundamentação:
Impõe-se desde logo determinar quais são as questões a decidir em sede de recurso.
“É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
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Na situação concreta a única questão a apreciar é a da rejeição, ou não, da acusação particular.
Vejamos então:
De acordo com o artigo 311 do CPP:
“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime”.
Na situação concreta foi a acusação rejeitada pela circunstância de se ter entendido que os factos descritos na mesma não constituem crime.
A rejeição nos termos na citada al.d) só deve ocorrer quando, manifestamente, os factos descritos não constituem crime, pois, se a questão é controvertida, deve a acusação ser recebida e o processo remetido para julgamento.
Também não pode a acusação ser rejeitada por falta de indícios, o que ficou bem claro com a introdução da redação dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de agosto ao aditar o n.º3 ao art.311.º do C.P.P, que excluiu a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, e levou à caducidade da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17.
Com a rejeição da acusação pela circunstância dos factos não constituírem crime pretende-se evitar não só a prática pelo Tribunal de atos inúteis, como, ainda, a sujeição do agente a julgamento.
Perante isto, vejamos então, se os factos descritos na acusação particular têm relevância criminal.
O assistente imputa ao arguido, na acusação particular, a prática, pelo mesmo, de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal.
Consta da acusação particular que o arguido publicou um tweet, no dia ........2022, com o seguinte teor:
Do nojo de gente como BB e dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são”.
Esta é a expressão concreta que, segundo a acusação particular, integra o elemento objetivo do tipo legal.
Preceitua o arguido 180º do CP que:
“1.Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.
2. A conduta não é punível quando:
a)- A imputação for feita para realizar interesses legítimos, e
b)- O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.
No crime de difamação, o bem jurídico típico é a honra e consideração da vítima.
São pressupostos objetivos do crime de difamação:
- A imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita;
ou
- a formulação de um juízo de valor ou;
- a reprodução de uma imputação ou de um juízo;
- Que tal seja suscetível de ofender a honra de outrem;
- Que a imputação do facto ou a formulação do juízo de valor seja feita perante terceiro.
Trata-se de um crime doloso, só sendo afastadas do seu âmbito subjetivo as condutas negligentes.
A imputação do tipo pode ser feita em qualquer das modalidades de dolo definidas no artigo 14º do Código Penal.
Além disso, o dolo, entendido como elemento subjetivo geral, deve referir-se a todos os elementos objetivos do tipo de ilícito.
Pelo que, no crime de difamação, o dolo traduz-se na consciência do agente de que a imputação do facto ou o juízo formulado são ofensivos da honra ou da consideração do visado tal como a reprodução da imputação ou do juízo e na vontade de imputar o facto ou formular o juízo, ou de reproduzir a imputação ou juízo, sabendo que a sua conduta é proibida por lei.
Na situação concreta, desde logo, a expressão “dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são”, não se refere ao assistente mas àqueles que o arguido apelida de “...”.
Segundo o tweet os “lambe botas” e “lacaios” são os “...” não o assistente.
Logo, tais expressões não são suscetíveis de ofender a honra ou a consideração do assistente, na medida em que não respeitam ao próprio, mas a terceiros.
Assim sobeja a expressão: “ Do nojo de gente como BB”.
Não olvidamos que o arguido, com a expressa em causa, manifesta o seu “nojo” por pessoas como o assistente.
Sentir nojo por uma pessoa significada sentir repulsa, desprezo ou aversão por essa pessoa, exprimindo, assim, o arguido ter aversão e repulsa por pessoas como o assistente.
Trata-se de uma manifestação de sentimentos e não da imputação de concretos factos ao assistente, suscetíveis de ofenderem a honra e a consideração.
Não estamos perante a imputação de factos, mas sobre a opinião de alguém sobre outrem. Tal expressão não é acompanhada de uma qualquer imputação factual, pois, diferente seria a situação da acusação particular descrever factos concretos imputados ao assistente, suscetíveis de ofender a sua honra e consideração e que levassem o arguido a concluir pela expressão “nojo de gente”, o que não sucede.
E mesmo que se entenda que a expressão “do nojo de gente como BB”, configura não a imputação de um facto, mas um juízo, o mesmo não é suscetível, só por si de ofender a honra e consideração de outrem, na medida que se trata de uma mera opinião, verbalizando o arguido um sentimento em relação ao assistente.
Não ignoramos que o assistente se sentiu incomodado com as expressões utilizadas. Contudo, as mesmas, objetivamente, não configuram a prática do crime de difamação.
Acresce, ainda, que entendeu a decisão recorrida que tal expressão não configurava a prática do crime de difamação pelo facto da liberdade de pensamento e de expressão do arguido não ter ido além do permitido e que as palavras e expressões utilizadas não têm qualquer potencialidade ofensiva que vá além do permitido penalmente.
Ora, de acordo com o artº 25º da CRP a integridade moral das pessoas é inviolável.
Acrescentando o artº 26º:
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”
No entanto, segundo o artigo 37º do mesmo diploma:
“1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.
4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.
Destes últimos preceitos constitucionais concluímos que o direito à honra e à informação têm igual hierarquia constitucional, devendo os limites ao direito de informação e de crítica serem encontrados no direito penal, como estabelece a própria constituição.
Citando os Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Consiste o primeiro daqueles direitos no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender‑se dessa ofensa. Por seu turno, o direito à expressão consubstancia‑se na liberdade de exprimir e divulgar livremente o pensamento; direito de resposta e de rectificação” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, pág. 180).
Para além das citadas normas, dispõe, anda, a CEDH, no seu artigo 10º:
“1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Na situação concreta não questionamos o descontentamento do assistente com as expressões proferidas.
No entanto, e de acordo com a própria acusação particular, o tweet foi escrito num apoio expresso do arguido à líder do BE II, isto é, no âmbito de intervenção ou discussão político-ideológica.
Ora, o arguido escreveu o tweet no exercício do direito de liberdade de expressão e de opinião politica.
Assim, mesmo que se entendesse que as expressões em causa, em abstrato, poderiam configurar a prática de um crime de difamação, sempre se enquadrariam no direito à opinião, não excedendo os limites aceitáveis.
E aqui chegados não podemos deixar de citar o ac. da RP de 18.3.2015 (in base de dados do igfej): I- “Conforme imperativo constitucional do art 26º nº 1 da CRP de tutela de «bom nome e reputação», o art 70º CC consagra a tutela da pessoa contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade moral e os arts 180º sgs do Código Penal incriminam a conduta de «difamação» e a de «injúria» - que pode ser qualificável como «calúnia» - para protecção da honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade. II – Além do «bom nome e reputação», a CRP tutela igualmente – e em sede de «Direitos, Liberdades e Garantias pessoais» - genericamente – a «liberdade de expressão e informação» ex vi art 37º e – especificamente – a «liberdade de imprensa» ex vi art 38º – dos quais ressuma não se tratar de um «direito absoluto» mas de uma «liberdade com responsabilidade»- ex vi art 37º nº 3. III – Convoca-se assim a matéria particularmente sensível dos limites e das afectações à «liberdade de expressão» que são categorizáveis como «limites directos», «limites especiais», «restrições legais» e ainda as «situações de conflitos de direitos» a resolver pela metodologia da ponderação dos bens ou interesses em conflito que é aplicável quando não esteja a hipótese de conflito expressamente regulada na CRP e não seja suficiente o recurso a solução legal harmonizadora de um conflito. IV – Constituindo a CEDH «direito supra ordinário» ex vi art 8º nº 2 da CRP, à delimitação do objecto do crime doloso de difamação por meio de «abuso de liberdade de imprensa» importa a consideração da Jurisprudência do TEDH sobre «liberdade de expressão» como fundamental numa sociedade democrática ut conjugação do princípio geral do art 10º nº 1 com as excepções dos arts 10º nº 2 e 17º da CEDH. V – Não consubstancia crime doloso de difamação as expressões linguísticas - insertas em «artigo de opinião» expressivo de «luta-político-partidária-pessoal» - que - pecando pelo exagero que não eleva o nível redactorial – ainda se contém num exercício legítimo do «direito de informar» - com impressividade sem uma ofensividade censurável por desnecessidade ou gratuitidade - para asseverar uma «liberdade de informação» que se quer autêntica e não aparente”.
Na situação concreta, e de acordo com a própria acusação, as expressões proferidas encontram-se abrangidas pela liberdade de expressão, não beliscando o patamar mínimo do direito à honra, protegida pelo artigo 10, nº1 do CEDH.
Assim, bem andou o Tribunal recorrido ao rejeitar a acusação.
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C-Dispositivo:
Termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar total provimento ao recurso interposto, confirmando-se na integra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

Notifique.
Lisboa, 6 de novembro
Ana Paula Guedes
Joaquim Manuel da Silva (vencido nos termos do voto que junta)
Eduardo de Sousa Paiva

VOTO DE VENCIDO
Deixo expresso o presente voto de vencido, por não acompanhar a decisão maioritária que entendeu confirmar a decisão da 1.ª instância que rejeita a acusação particular do Assistente contra o arguido pelo crime de difamação.
A expressão usada, “ Do nojo de gente como BB e dos ... que lhe fazem respeitosa genuflexão e lhe lambem as botas como lacaios que são “lacaios”, o que está em causa não é a mera opinião ou crítica pública, mas a utilização de linguagem degradante, vexatória e desumanizadora, incompatível com a dignidade pessoal e o discurso racional protegido pela Constituição.
Analisando, o sentido a dar será este:
“Do nojo de gente como...”, é uma imputação direta de repugnância moral e física, traduzindo ódio pessoal;
“...que lhe fazem respeitosa genuflexão...”, é uma imputação de subserviência degradante, sugerindo comportamento indigno e servil;
“...lhe lambem as botas como lacaios que são.” — é por fim uma imputação que associa o comportamento do assistente como controlador dos visados, como se fossem animais ou criados servis, e foi usada para atingir o assistente e toda a sua organização, com uma postura que sujeita os seus subordinados com uma clara conotação de servilismo e indignidade, sugerindo a existência de relações de domínio e medo incompatíveis com a autonomia moral de cada pessoa imputado ao assiste na sua dimensão de gestor de pessoas, aqui quase escravos.
Trata-se assim de um vocábulo que, em contexto público, atingiu não apenas os terceiros (aliás nem estão identificados, pois são instrumentais face ao único objetivo pretendido pelo arguido, de atingir o assistente), mas insinua um quadro de manipulação, dependência e abuso de poder que atinge diretamente o assistente, sendo esse o fim direto da publicação, sendo assim um ataque direto à honra do assistente.
Não se trata, pois, de uma metáfora literária ou de crítica política admissível, mas de uma imputação degradante e pessoal, que excede manifestamente os limites do discurso protegido.
A decisão maioritária entendeu no essencial que a conduta do arguido se encontrava abrangida pela liberdade de expressão protegida pelo artigo 37.º da Constituição, considerando que a expressão usada se inseria no âmbito do debate político e da crítica pública, com mera, qualificou, republicação de um artigo publicado em jornal pela líder do BE, a deputada II.
Com o devido respeito, não posso acompanhar esse entendimento.
Nenhum destes direitos em conflito, honra e liberdade de expressão, pode ser sacrificado ao outro. O artigo 18.º, n.º 2, CRP impõe o princípio da concordância prática, exigindo que, em caso de colisão, se procure uma solução que preserve o núcleo essencial de cada direito. Assim, a liberdade não se exerce contra a honra, e a honra não se protege à custa da censura. Ambas coexistem como expressões complementares da mesma dignidade humana.
A liberdade de expressão é, sem dúvida, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, mas não é um direito absoluto. O seu exercício encontra limite imediato no direito à honra e ao bom nome, garantido no artigo 26.º da Constituição e no artigo 8.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem também afirmado, reiteradamente, que a liberdade de expressão não protege insultos, difamações nem imputações de factos falsos que atinjam injustificadamente a reputação de outrem.
Deste modo, não se pode invocar a liberdade de expressão para legitimar a difamação, o rumor ou a ofensa pessoal. E, com maior razão, não se pode usar um mero “artigo de jornal” — produzido sob lógica e agenda política, sem verificação factual.
Por outro lado, a honra, longe de ser um atributo meramente subjetivo, constitui um mecanismo de integração social. Ela traduz o reconhecimento que cada pessoa obtém do grupo — familiar, profissional ou comunitário — como membro digno de confiança e respeito.
Yuval Noah Harari, em Sapiens, no seu livro “Uma Breve História da Humanidade”, descreve que, nas sociedades tribais, a exclusão do grupo equivalia à morte: “A sobrevivência dependia da pertença à tribo; ser excluído era ser condenado ao silêncio e ao esquecimento.” Essa exclusão era operada pela palavra, isto é, pela circulação oral de rumores e estigmas. Hoje, o mesmo processo repete-se, mas em escala global e permanente: as redes sociais e os meios de comunicação difundem palavras digitalizadas, cuja propagação é irreversível e ubíqua.
A ofensa à honra, portanto, produz uma exclusão simbólica semelhante à da tribo antiga, mas agora amplificada pela tecnologia e pela indiferença coletiva. O indivíduo torna-se alvo de linchamento público permanente, marcado por motores de busca e arquivos digitais que não esquecem nem perdoam.
O progresso tecnológico criou uma assimetria devastadora entre o poder de difusão e o poder de defesa. Um rumor, uma citação ou uma notícia falsa percorrem o mundo em segundos; a reparação judicial chega tarde e é ineficaz. As plataformas digitais e os meios de comunicação interligados constituem hoje um tribunal invisível e contínuo, sem contraditório nem presunção de inocência, onde se julga e condena por simples perceção. A honra é, assim, a primeira vítima da velocidade e a última a ser reparada. Neste contexto, a reafirmação do valor constitucional da honra é não apenas legítima, mas necessária: é a defesa da própria humanidade do discurso público.
A liberdade de expressão e o direito à honra são direitos co originários e de igual dignidade, ambos expressão direta da pessoa humana como fim em si mesma. Nenhum pode ser anulado em nome do outro.
O uso de artigos ou notícias de jornais, ainda mais em artigos de opinião politica, com rumores mediáticos, com o objetivo de atacar a honra do assistente carece de fundamento constitucional e jurídico. Tal prática viola o dever de boa-fé, a ética da comunicação e o princípio da veracidade.
Defender a honra não é censurar; é garantir que a liberdade se mantenha humana. Defender a liberdade não é difamar; é assegurar que a palavra continue a ser instrumento de verdade, e não de poder.
A liberdade sem responsabilidade é violência; a palavra sem verdade é ruído; e a informação sem ética é tirania simbólica. Nenhum destes direitos, como supra já referido, pode ser sacrificado ao outro. O artigo 18.º, n.º 2, CRP impõe o princípio da concordância prática, exigindo que, em caso de colisão, se procure uma solução que preserve o núcleo essencial de cada direito. Assim, a liberdade não se exerce contra a honra, e a honra não se protege à custa da censura. Ambas coexistem como expressões complementares da mesma dignidade humana.
Historicamente, aliás, a difamação tem sido usada como instrumento de destruição moral, substituindo o argumento racional pelo ataque pessoal. Em todas as épocas, desde as lutas políticas até aos conflitos sociais, a difamação foi convertida em arma para silenciar, desacreditar e eliminar adversários quando faltam razões ou provas. Trata-se, pois, de um uso perverso da palavra, que corrompe o próprio sentido da liberdade de expressão, convertendo-a em meio de violência simbólica e manipulação coletiva.
A ideia defendida no acórdão que fez apenas uma republicação também não tem acolhimento legal na nossa modesta opinião, pois essa republicação configura um assumir como seu o que foi pulicado, como no caso dos autos, usa-lo contra o assistente para o destruir.
A publicação em causa representa exatamente esse fenómeno: difusão global de um conteúdo ofensivo, caráter permanente e não controlável, e repercussão imediata e irreversível na esfera pessoal e social da visada. Trata-se de uma forma moderna de banimento simbólico, incompatível com o Estado de Direito.
Dar como certo isso, sem o ser, e sem necessidade de uma postura de controle, estamos a desresponsabilizar o arguido pelos outros e pela honra deles e dos seus, que aliás aqui é nenhuma.
Por tudo o exposto, entendo que:
1. A publicação efetuada pelo arguido contém imputações objetiva e subjetivamente difamatórias;
2. O seu conteúdo não se encontra coberto pela liberdade de expressão constitucionalmente protegida;
3. A conduta preenche o tipo legal de difamação agravada (artigos 180.º e 183.º do Código Penal);
4. A absolvição traduz uma interpretação desproporcionada e perigosamente extensiva da liberdade de expressão, em detrimento da tutela da honra, que constitui bem jurídico essencial à dignidade da pessoa humana e à coesão social.
Assim, votaria pela revogação da decisão da 1.ª instância de rejeição da acusação particular, substituído por outro que a recebesse, seguindo autos a sua normal tramitação, reconhecendo que o direito à honra prevalece quando a palavra se desvia do seu fim legítimo — o esclarecimento — e se converte em arma de destruição moral.
Joaquim Manuel da Silva