Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
190/06.9IDLSB.L1-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: CRIME DE FRAUDE FISCAL QUALIFICADA
VALIDADE DA PROVA NÃO EXIBIDA EM AUDIÊNCIA
O PRINCÍPIO DA NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO
NE BIS IN IDEM
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos á discussão e exercício do contraditório.

O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.

Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.

Estando em causa, em concreto, documentos utilizados como prova num processo penal, que haviam sido entregues no cumprimento de deveres de cooperação com a administração tributária quando esta se encontrava no exercício de atividades inspetivas e fiscalizadoras necessárias ao apuramento de uma determinada situação tributária, documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumprimento dos aludidos deveres de cooperação, as mesmas são utilizáveis, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção.

Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável, tendo sido já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional esta questão e tendo este Tribunal concluído que “ a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente».

A decisão recorrida, na fundamentação da análise crítica sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e excepção de "caso julgado", limita-se a referir que não se pode ter a certeza que as facturas indicadas neste processo são as mesmas que as constantes daquele outro processo, abstendo-se em verificar se efectivamente as facturas em questão nos presentes autos, já foram ou não, objecto de apreciação judicial noutro processo, sem proceder à apreciação da prova documental já antes junta aos autos

Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.Em processo comum, com intervenção do tribunal singular nº 190/06.9IDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 12, foram pronunciados os seguintes arguidos:
"L.  -, Lda.", , representante legal a arguida DDG ;
"A.  -, S.A.", , representante legal a arguida DDG ;
"CI, S.A", , representante legal o arguido RAG ;
"SCM, Lda.", , representante legal o arguido MPS;
"MCM, Lda.", , representante legal o arguido JMPS;
DDG ,;
JJG,;
RAG ;
MPS;
JMPS;
ACD;
MSM,

imputando-lhes a prática, em autoria material, de:

Aos arguidos DDG, JJG, RAG, MPS, MSM, JMPS e ACD, pessoalmente e em nome, interesse e benefício das sociedades que geriam e controlavam de facto, em co-autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelos artigos 23.° n.° 1 e n.° 2 do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15/01 (quanto aos factos praticados até ao dia 4 de Agosto de 2001) e artigos 103.° n.° 1 alínea c) e 104.° n.° 1 alíneas d) e e) e n.° 2 do RGIT (aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 05/06), actualmente pelos artigos 103.° n.° 1 alínea c) e 104.° n.° 1 alíneas d) e e), n.° 2 alíneas a) e b) e n.° 3, com referência aos artigos 6.°, 7.° e 8.° do mesmo diploma legal e aos artigos 11º e 12.° do Código Penal;

Às sociedades arguidas "L., Lda.", "A., S.A.", "CI, S.A.", "SCM, Lda." e "MCM, Lda.", pela mão dos respectivos gerentes de facto, também arguidos, os quais agiram em seu nome, interesse e benefício, em co-autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p., pelo artigo 23.° n.° 1 e n.° 2 do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15/01 (quanto aos factos praticados até 4 de Agosto de 2001) e artigos 103.° n.° 1 alínea c) e 104.° n.° 1 alíneas d) e e) e n.° 2 do RGIT (aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 05/06), actualmente pelos artigos 103.° n.° 1 alínea c) e 104.° n.° 1 alíneas d) e e), n.° 2 alíneas a) e b) e n.° 3, com referência aos artigos 6.°, 7.° e 8.° do mesmo diploma legal e artigos 11.° e 12.° do Código Penal;
pela prática dos factos constantes do despacho de pronúncia de fls. (por referência ao despacho de acusação de fls.) os quais, para todos os efeitos legais, aqui se têm por reproduzidos.

O Ministério Público, em representação do Estado – Autoridade Tributária e Aduaneira -, ao abrigo do disposto nos artigos 76.° n.° 3 do Código Processo Penal, 3.° n.° 1 alínea a) e 5.° n.° 1 alínea a) do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.° 60/98, de 27/08, deduziu pedido de indemnização civil – o qual foi admitido contra os arguidos pronunciados no despacho que designou dia para julgamento -, contra os seguintes arguidos: (…)

(…)

3.Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).

Assim, atentas as conclusões formuladas pela recorrente DDG, as questões a decidir dizem respeito:
 
1.Falta de fundamentação e análise crítica, sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e sobre a excepção de "caso julgado" na sua dupla vertente, porquanto não existiu qualquer cuidado em verificar se efectivamente as facturas em questão nos presentes autos, já foram ou não, objecto de apreciação judicial noutro processo.
2.Violação da exceção de litispendência, uma vez que se verifica uma unidade de resolução criminal no que concerne às condutas que preenchem a prática de um crime de fraude fiscal nos anos de 2004, 2005 e 2006, nos termos do disposto nos artigos 2.°, 20.°, 29.°, n.°5 e 302.° todos da Constituição da República Portuguesa, 577.°, n.°1, 578.°, 580.°, 581.° e 582.°, todos do Código de Processo Civil, 4.° do C.P.C. e 311.°, n.°1, do Código de Processo Penal;
3.Impossibilidade de valoração dos documentos e relatórios dos inspetores tributários, por não terem sido exibidos nem examinados em audiência, entendendo a recorrente que não podem ser objeto de valoração probatória, atento o disposto no art. 355° do CPP.
4.Violoção do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, nos termos do disposto no artigo 32.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa, alegando a recorrente que o tribunal "a quo" na sentença recorrida a titulo de, alegada fundamentação da decisão proferida relativamente à questão de facto e, designadamente, para fundamentar a sua decisão de declarar provados os factos que constam do elenco da matéria de facto Provada, sucessiva e até quase exclusivamente remete para os documentos contabilísticos juntos com esses mesmos relatórios da DSIFAE dos inúmeros apensos, tais como apensos A, B, C, F, G, D, X, apensos S, apenso XX, informações de Direcções Distritais de Finanças, volumes do apenso X, apensos 5, 5-A e 5-B, apensos 11, 12, 13, 14 e seus volumes, Relatórios aqueles que por seu lado remetiam e estribavam as alegações que fazem no conteúdo e conclusões de outros relatórios tributários das diversas Direcções Distritais de Finanças e no que ao caso interessa, Direcção Distrital de Finanças de Braga - como se vê a sentença acaba por absolver a sociedade L. , Lda. da prática de qualquer crime e por ai deixa também absolvida a arguida recorrente, DDG, da prática do crime de emissão de qualquer factura da arguida L. – verificando-se, pois, aqui, um caso de flagrante e igualmente chocante violação do principio “nemo tenetur se ipsum accusare" consagrado, entre outros, no art. 32° n° 1 da Constituição da República.
5.Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.°2, alínea a), do Código de Processo Penal e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.°2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, notoriamente, esta aponta para o não exercício em momento algum, por parte da arguida, das funções de administradora de facto ou de direito das sociedades arguidas, no período em apreço nos presentes autos, ou seja, de 2011 a 2004 - alias, a nomeação para gerente (de direito) da sociedade "L., Lda" data de 21/5/2003, conforme da certidão comercial que se encontra a fls. _ dos autos, tendo a arguida exercido, isso sim, funções de contabilista de algumas das sociedades pertencentes ao senhor seu Pai e, posteriormente, ao senhor seu irmão, FG....
6.Violação do principio in dubio pro reo, visto que, do conjunto de todos os depoimentos produzidos resulta, à saciedade, que não existe factualidade idónea, suficiente, segura e conclusiva para que o Mm° Juíz a quo pudesse formar convicção, indubitável e segura, para condenar a arguida e, se duvida restasse quanto a algum facto que pudesse apontar para o exercício da gerência de facto, então, deveria o Tribunal " a quo", confrontado com tal dúvida, em respeito ao princípio basilar do nosso direito penal - in dubio pro reo - ter absolvido a arguida/recorrente.
7.Condição fixada pelo Tribunal para a suspensão da pena de prisão. Alega a recorrente que a condição fixada pelo Tribunal para a suspensão da pena de prisão é ilegal tal como é também absolutamente desproporcional, porquanto o Tribunal "a quo" não aplicou correctamente o contante nos artigos 51.° n.°2, 71.° n.°2 do Código Penal, assim como, no artigo 18.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que não foram tidos em conta os princípios da proporcionalidade, exigibilidade e razoabilidade na imposição de deveres para a suspensão da execução da pena de prisão.Também não realizou o Tribunal "a quo" o juízo de prognose que se lhe impunha para fundamentar, adequadamente, a exequibilidade do dever imposto como condição de suspensão. A suspensão da execução da pena sujeita à condição de pagamento do montante de € 87.680,95, aplicada a uma pessoa que subsiste com um vencimento mensal equivalente ao salário mínimo nacional e que, tamanhas são as suas carências económicas, que é constrangida a litigar com recurso ao benefício do apoio judiciário, redundará num rotundo fracasso por constituir uma condição absolutamente irrealista.
8.Pedido de indemnização civil.
Quanto ao pedido de indemnização civil, alega que o demandante - Estado - não alegou, nem provou o dano real causado pelas alegadas condutas criminosas, porque os factos constitutivos dos crimes pelos quais os arguidos foram condenados não implicam, de per si, a causação de um dano indemnizável. Por conseguinte, caberia ao demandante alegar e provar o dano (o dano real) sofrido e a sua imputação concreta aos arguidos, nomeadamente à arguida DG..., não podendo bastar, em caso algum, a mera liquidação dos valores insertos nas facturas. Consequentemente, atendendo a que, no caso dos autos, a administração fiscal nunca lançou nem liquidou os impostos eventualmente devidos em virtude das alegadas transacções simuladas, o Estado não é titular, ao tempo dos factos dados como provados, de créditos de imposto que pudessem ser causados pela actuação dos arguidos. Consequentemente, inexistindo um "dano real", não há lugar ao cálculo do "dano patrimonial" indemnizável, precisamente porque, sem o lançamento e a liquidação dos impostos em causa, não é possível de forma juridicamente válida se a situação patrimonial do Estado ficou depreciada com a conduta dos arguidos, ou, ao menos, o valor dessa depreciação.
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Quanto ao recurso dos arguidos RAG e JJC, S.A.,

A):-A contradição insanável entre os factos dados como provados, e entre estes e a decisão proferida, com o consequente pedido de alteração da matéria de facto:
Os factos 20.° a 27.° do elenco dos factos provados devem ter-se por não escritos, umas vez que são conclusivos e encontram-se em contradição com os factos não provados;
Parte dos factos 28.° e 31.° do elenco dos factos provados contêm expressões meramente conclusivas, designadamente quando se faz constar “no âmbito do citado esquema de fraude ao fisco ” e “frequência pela qual se apurou ao imposto em dívida/vantagem patrimonial ilegítima”; A conclusão do ponto 3.1.3 encontra-se em contradição com os factos 11.° e 13.° do elenco dos factos provados e factos não provados mencionados no 6.° § e 7.°§;
O facto 33.° do elenco dos factos provados deve ser considerado não provado atendendo ao constante em certidão de matrícula a fls. 3395- 3402 e documento a fls. 97 e 98, uma vez que estes elementos não demostram que os arguidos R... e JC... sejam gerentes e muito menos sócios da “CI, S.A.”;
Os factos provados com os n.°s 135., 136., 142. e 145. também devem ser eliminados do elenco de factos provados, passando a factos não provados  pois estão em manifesta e insanável contradição com outros factos dados como provados e porque noutras passagens da sentença são considerados como não provados.
B):-A insuficiência da matéria de facto dada como provada para fundamentar a decisão proferida;
A douta decisão condenatória concluiu pela condenação de cada um dos arguidos recorrentes pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de fraude fiscal qualificada. A norma base punitiva incriminatória é a alínea c) do n.° 1 do artigo 103.° do RGIT. A redacção desta alínea na dita norma legal não sofreu qualquer alteração na redacção actual (resultante da Lei n.° 60-A/2005 de 30/12, face à redacção em vigor à data (2001 a 2004) da prática dos factos em análise que era a redacção resultante da Lei n.° 15/2001 de 5/06.  Estabelece tal norma que “A fraude fiscal pode ter lugar por: (...) c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas. Para que o Mmo. julgador a quo pudesse ter proferido condenação com base neste dispositivo penal, necessário seria que tivesse apurado a existência de um “negócio simulado. É, portanto, elemento imprescindível do tipo legal incriminatório constante da alínea c) do n.° 1 do artigo 103.° do RGIT que haja um acordo entre o declarante e o declaratário, sob pena de - não provado tal - não estar verificado o instituto do negócio simulado. Sucede que é a própria sentença recorrida que considera que, com base na prova obtida - inexistiu o acordo simulatório. Refere a douta sentença, na parte em que decide absolver a L... : “A prática do crime é-lhe [à L... ] imputado a título de co-autoria, mas não ficou demonstrado que, entre os arguidos, existisse um plano concertado para defraudar a Autoridade Tributária”. A exigência de acordo simulatório integra o tipo de ilícito do artigo 103.° do RGIT e estende-se, por sua vez, ao tipo qualificado do artigo 104.°, que não prevê um tipo autónomo, mas um conjunto de circunstâncias qualificadoras do ilícito base. Se não se verificarem os elementos típicos da incriminação invocada no âmbito do artigo 103.°, não existe preenchimento da modalidade agravada e qualificada prevista no artigo 104.°. Ora, nunca a sentença recorrida poderia condenar em crime de fraude fiscal agravada com base em apenas uma alínea do n.° 1 do artigo 104.° do RGIT, pois o corpo de tal norma exige a verificação de mais de uma das circunstâncias descritas nas alíneas. Por outro lado, é incompatível a conjugação da imputação de um negócio simulado, com a imputação da utilização de documentos falsificados ou viciados por terceiro. Ora, não há qualquer prova no sentido de que as facturas contabilizadas não correspondam rigorosamente à declaração emitida pela L...  (bem pelo contrário - a prova confirma que tais facturas foram emitidas de modo rigorosamente coincidente com a declaração desta empresa). Assim sendo, estamos perante uma clara insuficiência da matéria de facto provada para a decisão condenatória proferida, o que, na previsão da alínea a) do n.° 2 do artigo 410 do CPP, configura vício da sentença e fundamento do recurso que, só por si, determina a revogação da sentença recorrida.
Alegam ainda os recorrentes que não foi produzida qualquer prova em julgamento, seja testemunhal seja documental, de que a CI, SA tenha deduzido IVA no montante de € 627.816,88; o valor de € 500.000,00 não resulta de qualquer elemento probatório, saindo apenas de um palpite do ilustre julgador a quo, formulado em plena arbitrariedade, pois não é explicitado qualquer critério para que a ele tenha chegado. Na dúvida sobre o prejuízo patrimonial, e entendendo que havia transacções verdadeiras, reais e efectivas, mas não sabendo quais nem de que montante, deveria o tribunal ter dado como não provado o montante da vantagem patrimonial alegadamente obtida. Acresce que os factos provados com os n.°s 298 e 300 contradizem — directamente a consideração como não provado constante no Capítulo 3.1.2. dedicado à “Matéria de Facto não Provada” na parte intitulada “PREJUÍZO DO ESTADO”, onde o tribunal a quo dá como não provados os valores de imposto devidos pela arguida CI, SA, por ano de exercício, bem como o alegado prejuízo para o Estado e alegada redução de IRC a pagar.
C):-A falta de prova quanto a um dos elementos típicos do crime de fraude fiscal e do seu agravamento - o montante da “vantagem patrimonial ilegítima”; sustentam os recorrentes que, para que se verifique o tipo-base incriminatório constante do artigo 103.° do RGIT, é necessário que a vantagem patrimonial ilegítima seja igual ou superior a € 15.000 (vide n.° 2 do artigo 103.°, na redacção em vigor, aplicável por ser mais favorável do que o montante em vigor na redacção à data da prática dos factos. Se a vantagem patrimonial for inferior ao referido valor, os factos não são puníveis. Sucede que, no que aos arguidos recorrentes diz respeito, a sentença recorrida não conseguiu apurar o montante da vantagem patrimonial nem o prejuízo para o Estado, pois, o valor de € 500.000,00 não resulta de qualquer dado probatório. O facto provado n.° 300 - cuja eliminação se requereu - não configura uma determinação probatória válida para efeitos do preenchimento do tipo legal incriminatório. E tal assume maior gravidade, a douta sentença recorrida, no Capítulo 3.1.2. dedicado à “Matéria de Facto não Provada” na parte intitulada “PREJUÍZO DO ESTADO”, menciona expressamente como não provados os valores da alegada elisão fiscal imputada à arguida CI, SA, considerando como não provados os valores constantes dos quadros elaborados pela AT. Reafirmam os recorrentes que, o tribunal a quo dá como não provados os valores de imposto devidos pela arguida CI, SA por ano de exercício, bem como o alegado prejuízo para o Estado e alegada redução de IRC a pagar, porém, não poderia o tribunal considerar preenchido o tipo legal incriminatório por mera aproximação ou estimativa, sobretudo quando este é um facto indispensável à imputação criminal.
D):-A violação do princípio in dúbio pro reo;
Para os recorrentes, a douta sentença violou duplamente o princípio do in dúbio pro reo ao não ter sido apurado o montante da vantagem patrimonial, pelo que não poderia o Tribunal colmatar tal ausência factual considerando uma vantagem patrimonial por estimativa (com a agravante de nem sequer explicitar como chegou a tal estimativa) e, por outro lado, o julgado recorrido nem sequer consegue determinar quais serão as facturas falsas e fraudulentas, uma vez que é a própria sentença que admite que algumas transacções ocorreram na realidade. Se a administração tributaria não logrou distinguir as facturas falsas das facturas verdadeiras, e se essa distinção não foi alcançada no termo do julgamento, não podia o tribunal proclamar que todas as facturas são falsas e fazer uma estimativa completamente arbitrária de qual seria a vantagem patrimonial indevida. Fazendo-o, o tribunal demitiu-se dos seus deveres de apuramento da verdade material e embarcou num juízo probatório arbitrário e sem fundamento, sem cuidar de separar o trigo do joio. Neste sentido, defendem os recorrentes ser forçoso reconhecer que uma interpretação do artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de que o juízo de avaliação probatória da veracidade de um conjunto de facturas permite concluir pela falsidade de todas as facturas, admitindo simultaneamente que algumas delas - sem apurar quais - titulem operações reais, é inconstitucional por violação do princípio in dúbio pro reo inscrito no artigo 32.°, n° 2 da CRP.
E):-A ausência de fundamentação e explicitação do percurso cognitivo conducente à escolha da medida concreta de apenas aplicada a cada um dos recorrentes;
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida incorreu também no vício de falta de fundamentação quanto à determinação da medida concreta da pena, no que respeita aos arguidos recorrentes, não sendo respeitado o critério presente no artigo 71.° do Código Penal, nomeadamente o n.° 3 desse normativo, na medida em que aos três arguidos recorrentes foi aplicada, em concreto, a pena máxima que a norma incriminatória aplicável admitia e tal ocorreu sem qualquer explicação cabal, e mesmo em contradição com os pressupostos ponderados pelo tribunal para a determinação da pena.
F):-Manifesto exagero das penas aplicadas e da condição imposta para a suspensão da pena.
Alegam os recorrentes que a sentença recorrida refere um conjunto de circunstâncias atenuantes que não foram tomadas em consideração, tais como a ausência de antecedentes criminais; o período de tempo decorrido desde a data da prática dos factos; e a integração profissional e familiar dos arguidos JJC e RAG, não compreendendo porque razão o julgador a quo decidiu aplicar o máximo que o ordenamento jurídico permitia, tendo sido violado o princípio da culpa como elemento constitutivo e legitimador da determinação concreta da pena. Por outro lado, ao ser considerada como circunstância agravante o montante da ocultação patrimonial, foi violado o princípio da proibição da dupla valoração (inscrito no n.° 2 do artigo 71.° do CP), pois na dosimetria da pena foram invocados factores que fazem parte do tipo de crime - ou seja, o montante da vantagem patrimonial – pelo que as penas aplicadas são manifestamente excessivas. E o mesmo se dirá quanto ao estabelecimento do condicionamento da suspensão da pena ao pagamento ao Estado da quantia de € 500.000,00 imposto aos arguidos JC... e RAG ; o cumprimento da condição de suspensão da pena é impossível para os arguidos recorrentes, atenta a sua situação pessoal, profissional e os seus rendimentos certos, pelo que deve ser revogada a decisão e a suspensão da pena não deve ficar condicionada, ou, se assim não se entender, deve a mesma ser condicionada ao pagamento de uma quantia muito menor e simbólica.
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Assim sendo, tendo em vista as conclusões, constituem objecto de apreciação as seguintes questões:

- Falta de fundamentação e análise crítica, sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e sobre a excepção de "caso julgado" e consequente violação da exceção de litispendência - relativamente à recorrente DDG   
-Valoração dos documentos e relatórios dos inspetores tributários, por não terem sido exibidos nem examinados em audiência - relativamente à recorrente DDG .
- Violoção do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, nos termos do disposto no artigo 32.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa - relativamente à recorrente DDG .
- Vício de contradição insanável entre os factos dados como provados, e entre estes e a decisão proferida, com o consequente pedido de alteração da matéria de facto - relativamente aos recorrentes RAG, JJC, S.A..
- Vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.°2, alínea a), do Código de Processo Penal e erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.°, n.°2, alínea c), do Código de Processo Penal - relativamente a todos os recorrentes.
- Violação do princípio in dubio pro reo - relativamente a todos os recorrentes.
- Medida da pena aplicada e condição imposta para a suspensão da pena - relativamente a todos os recorrentes.
- Pedido de indemnização civil - relativamente à recorrente DDG .

Avancemos na apreciação das questões suscitadas pela ordem de precedência lógica indicada nos artigos 368º/369º do CPP, por remissão do art. 424º, n.º2 do mesmo diploma, na medida em que a procedência de alguma delas prejudica o conhecimento das restantes.
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4.A questão de natureza processual com que nos confrontamos, é a da invocada nulidade da sentença por valoração de prova não produzida em audiência.

Alega a recorrente DDG, que a decisão recorrida, na fundamentação relativamente à questão de facto e, designadamente, para fundamentar a sua decisão de declarar provados os factos que constam do elenco da matéria de facto Provada, sucessiva e até quase exclusivamente remete para os documentos contabilísticos juntos com esses mesmos relatórios da DSIFAE dos inúmeros apensos, tais como apensos A, B, C, F, G, D, X, apensos S, apenso XX, informações de Direcções Distritais de Finanças, volumes do apenso X, apensos 5, 5-A e 5-B, apensos 11, 12, 13, 14 e seus volumes. Porém, conforme as actas da audiência de julgamento demonstram, esses mesmos documentos contabilísticos, relatórios dos inspectores tributários, não foram exibidos nas sessões da audiência de julgamento que tiveram lugar nestes autos. Daí que, e atento o disposto no art. 355° do CPP, nenhum desses mesmos documentos contabilísticos e relatórios pode ser objecto de valoração probatória por não ter sido produzida e examinada na audiência.

Vejamos:

Estabelece o art. 355º, nº 1 do CPP: Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiveram sido produzidas ou examinadas em audiência.
Existem provas que têm que ser produzidas em audiência. Mas existem outras, chamadas pré-constituídas, de natureza material, documental, pericial, prova produzida por carta rogatória ou precatória que, uma vez obtidas, são incorporadas nos autos, em regra antes da acusação onde são arroladas como meio de prova da matéria da acusação. Estas não são produzidas em audiência pela evidência de que foram produzidas e incorporadas nos autos antes do início da audiência de discussão, apenas ali sendo examinadas e discutidas, de acordo com a sua natureza.
A este respeito observa com propriedade Maia Gonçalves (CPP Anotado, Ed. Almedina, 16ª, em anotação ao art. 355º): “há que esclarecer, pois tem reinado alguma confusão sobre este ponto, que os documentos constantes do processo se consideram produzidos em audiência independentemente de nesta ser feita a respectiva leitura, visualização ou audição”.
Nesta linha constitui jurisprudência sedimentada que as provas pré-constituídas não têm que ser lidas ou reproduzidas, enquanto tal, na audiência, naturalmente desde que submetidos á discussão e exercício do contraditório – neste sentido, cfr., entre muitos outros: Ac. STJ de 10.11.1993, CJ/STJ, tomo 3, 233; Ac. STJ de 25.02.1993, BMJ 424, p. 535; Ac. STJ de 23.05.1994, p. 46218/3ª; Ac. STJ de 10.07.1996, CJ/STJ, tomo 2, 229; Ac. STJ de 27.01.1999, SASTJ, nº 27, p 83. Este entendimento foi sujeito ao escrutínio do TC que reconheceu a sua conformidade à Lei Fundamental – cfr. designadamente AC.T.C. nº 87/99 de 10.02, DR IIS de 01.07.1999.
Ora, no caso, a circunstância de os documentos contabilísticos, relatórios dos inspectores tributários, não terem sido exibidos durante a audiência de julgamento não invalida que tenha constituído, como constituiu, o centro da discussão da prova, sendo certo que os elementos de prova mencionados pela recorrente, foram juntos antes da dedução da acusação, sendo pois elementos pré-constituídos, não sendo exigida o exame e exibição em audiência, pelo que improcede a invocada nulidade.
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5.Violoção do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, nos termos do disposto no artigo 32.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa.

Sustenta a recorrente DDG que na acusação e sobretudo na sentença proferida fez-se a valoração do manancial de documentos contabilísticos que as empresas “L., Lda." e, entre outras, A., S.A., entregaram aos senhores inspectores tributários nas respectivas inspecções tributárias, aos exercícios fiscais dos anos 2001, 2002, 2003 e 2004, conforme dos apensos e anexos juntos aos autos está claramente evidenciado, sendo certo que o inquérito crime foi assim todo construído e pejado de documentos que as empresas arguidas, sem saberem da existência de processos de inquérito crime, entregaram aos senhores inspectores tributários ou que estes obtiveram por consultas a outros processos, informação que permitiu à Polícia Judiciária concluir que a facturação sub iudice era falsa, que adveio do teor dos Relatórios das diversas inspecções tributárias relativas a anos anteriores e, aos elementos que posteriormente foram recolhidos pelos senhores inspectores tributários. O tribunal "a quo", por sua vez, na sentença recorrida a titulo de, alegada fundamentação da decisão proferida relativamente à questão de facto e, designadamente, para fundamentar a sua decisão de declarar provados os factos que constam do elenco da matéria de facto Provada, sucessiva e até quase exclusivamente remete para os documentos contabilísticos juntos com esses mesmos relatórios da DSIFAE dos inúmeros apensos, tais como apensos A, B, C, F, G, D, X, apensos S, apenso XX, informações de Direcções Distritais de Finanças, volumes do apenso X, apensos 5, 5-A e 5-B, apensos 11, 12, 13, 14 e seus volumes, o que, no entendimento da recorrente, constitui um caso de flagrante de violação do principio “nemo tenetur se ipsum accusare" consagrado, entre outros, no art. 32° n° 1 da Constituição da República.
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É, porém, inglória a pretensão da recorrente.
Com efeito, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.
Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.
Tal princípio intervém no processo penal sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação e repressivamente, obrigando à desconsideração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.
Mas tem sido também reconhecido que o direito à não autoincriminação não têm um caráter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade).
Se, em regra, o direito à não autoincriminação, no que respeita à utilização de prova documental em processo penal, não obstaculiza a que possam ser valorados documentos disponibilizados para outros efeitos pelo arguido em data anterior à do início do procedimento criminal, uma vez que nessas situações não está em causa a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo, há situações, como a que ocorre com o critério normativo sub iudicio, em que essa disponibilização é efetuada no cumprimento de deveres de cooperação com entidades administrativas que reúnem meros poderes de inspeção e fiscalização com poderes de investigação criminal, não deixando de existir uma interligação entre o processo inspetivo e o processo criminal.
Em concreto, estão em causa documentos, utilizados como prova num processo penal, que haviam sido entregues no cumprimento de deveres de cooperação com a administração tributária quando esta se encontrava no exercício de atividades inspetivas e fiscalizadoras necessárias ao apuramento de uma determinada situação tributária.
O artigo 63.º, n.º 1, da LGT, sob a epígrafe «Inspeção», confere aos órgãos da administração tributária competentes o poder de «desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes».
Estes amplos poderes de que goza a administração tributária, para além de subordinados à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, são exercidos «de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários» (cfr. artigo 55.º da LGT), sendo que as regras legalmente previstas a que obedecem os atos de inspeção tributária estão plasmadas no Regime Complementar de Procedimento de Inspeção Tributária, no qual se preveem, entre esse poderes de inspeção, as diversas prerrogativas de que gozam os funcionários em serviço de inspeção (artigos. 28.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1), bem como a aplicação de medidas cautelares de conservação de prova (artigo 30.º), também já acima mencionadas.
Durante o procedimento de inspeção, o contribuinte está vinculado ao cumprimento de deveres de cooperação, desde logo por força do artigo 9.º, n.º 1, do RCPIT, estando obrigado, em cumprimento de tal dever, a facultar aos funcionários em serviço de inspeção o acesso a todos os elementos relacionados com a sua atividade, suscetíveis de revelar a sua situação tributária, designadamente, documentos, livros, registos contabilísticos, sistemas informáticos e correspondência relacionada com a sua atividade.
Ora, esta documentação e informação cedida pelo contribuinte à administração tributária, no cumprimento dos aludidos deveres de cooperação, é utilizável, não apenas no processo de inspeção, que poderá dar lugar à correção da situação tributária, mas também num eventual processo de natureza sancionatória penal, que venha a ser instaurado na sequência ou no decurso da inspeção.
Uma vez que o incumprimento dos deveres de cooperação pode dar lugar a responsabilidade penal ou contraordenacional, o contribuinte pode ver-se na contingência de, caso se recuse a colaborar com a administração tributária, sujeitar-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima ou de, caso aceite colaborar, dar lugar a que a administração consiga obter, à sua custa, elementos de prova que venham a sustentar a acusação por crime fiscal.
É justamente devido à circunstância de o contribuinte poder ver-se colocado perante esta alternativa que, neste âmbito, podem surgir tensões com o direito à não autoincriminação, colocando-se a questão de saber se a conjugação do referido dever de colaboração com a possibilidade de utilização dos documentos facultados à administração tributária, no cumprimento do referido dever, como prova em procedimento criminal deduzido com fundamento nos resultados da referida inspeção, implica uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Tendo presente que, no campo tributário, a realidade sob fiscalização da administração estadual coincide, pelo menos parcialmente, com os elementos fácticos que integram os tipos incriminadores e que os poderes de fiscalização das situações tributárias dos contribuintes e os poderes de investigação no âmbito de processos de natureza penal, neste domínio, estão, no nosso ordenamento jurídico, atribuídos pela lei às mesmas entidades (cfr. artigos 40.º, n.º 2, 41.º, n.º 1, alíneas a) e b) 52.º e 59.º do RGIT), há o risco de que a atividade inspetiva funcione como uma antecâmara do processo penal, sendo no seu decurso que são recolhidos os elementos que motivam a instauração de um procedimento criminal.
Daí que tenha justificação que o princípio nemo tenetur se ipsum accusare ultrapasse as barreiras formais do processo penal e que, nestes casos, se estenda a esta interação entre o processo inspetivo e o processo penal, embora a proteção conferida por este princípio tenda a relativizar-se, cedendo mais facilmente no confronto com outros princípios, direitos ou interesses merecedores de tutela, que têm de ser harmonizados em concreto, por meio de uma compatibilização ou concordância prática, dado intervir em zona periférica da sua área de atuação.
Sendo certo que a imposição aos contribuintes de deveres de cooperação com a administração tributária, que poderá incluir a entrega, a solicitação desta, de documentos que, depois, num processo de natureza sancionatória penal, possam ser usados contra esses próprios contribuintes, constitui uma compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, que se traduz numa restrição não desprezível daquele princípio, importa apreciar se tal restrição é ou não constitucionalmente aceitável.
A resposta a essa questão, até pela circunstância de que estes autos tiveram ponto de partida em inspeções efetuadas pela Administração fiscal, é dada no claro e proficiente acórdão do Tribunal Constitucional, de 17 de junho de 2013, Proc. nº 817/12, 2.ª Secção, Relator: Conselheiro João Cura Mariano, que decidiu não julgar inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1, d), e 125.º, do Código de Processo Penal, com o sentido de que os documentos obtidos por uma inspeção tributária, ao abrigo do dever de cooperação imposto nos artigos 9.º, n.º 1, 28.º, n.º 1 e 2, 29.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 413/98, de 31 de dezembro, e nos artigos 31.º, n.º 2, e 59.º, n.º 4, da LGT, podem posteriormente vir a ser usados como prova em processo criminal pela prática do crime de fraude fiscal movido contra o contribuinte.
«(…)  O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que extrai os direitos ao silêncio e à não autoincriminação no direito ao processo equitativo, consagrado no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, já tem ponderado a aplicação desses direitos em situações semelhantes à do presente recurso (analisando esta jurisprudência, Ana Paula Dourado/ Augusto Silva Dias, em “Information duties, aggressive tax planning and the nemo tenetur se ipsum accusare in light of Article 6 (1) of the ECHR”, Kofler, G., Maduro, M., Pistone, P. (eds.), em Taxation and Human Rights in Europe and the World, pág 131 e seg, ed de 2011, da IBFD Publications, e Joana Costa, em “O princípio nemo tenetur na Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, na Revista do Ministério Público, Ano 32 n.º 128, pág. 117 e seg.).
Nos casos Funke v. França (Acórdão de 25 de Fevereiro de 1993), J.B. v. Suíça (Acórdão de 3 de Maio de 2001) e Shannon v. Reino Unido (Acórdão de 4 de Outubro de 2005), o TEDH sustentou que a aplicação de sanções à falta de colaboração de contribuintes na entrega de documentos ou na prestação de informações, sobre os quais já recaía a suspeita da prática de ilícitos criminais violava o artigo 6.º da Convenção. E no caso Saunders v. Reino Unido (Acórdão de 17 de Dezembro de 1996), na mesma linha, se decidiu que violava o mesmo artigo 6.º da Convenção, a utilização em processo penal de prova recolhida em investigação não judicial, mediante a colaboração do arguido, obtida sob coerção da aplicação de sanções, quando sobre ele já recaíam suspeitas da prática do crime pelo qual viria a ser acusado.
Já este Tribunal, no Acórdão n.º 461/11 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), relativamente à utilização em processo contraordenacional de elementos recolhidos pela Autoridade da Concorrência nas suas atividades de fiscalização e supervisão, entendeu estarmos perante uma restrição admissível do princípio da não auto-incriminação, tendo contudo, na sua argumentação valorado especialmente a circunstância de estarmos perante a possibilidade de aplicação de meras sanções contraordenacionais.
O mesmo concluíram Figueiredo Dias, Costa Andrade e Costa Pinto, relativamente a documentos recolhidos pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, posteriormente utilizados como prova em processo contraordenacional, movido pela mesma entidade (em pareceres publicados em “Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova”, Almedina, 2009).
Apesar de neste caso estarmos perante a utilização como prova de documentos em processo penal, o resultado da admissibilidade da compressão do princípio nemo tenetur se ipsum accusare não deve ser diferente.
Assim, e começando pelo primeiro dos aludidos pressupostos de admissibilidade dessas compressões, dúvidas não restam no sentido de que as restrições em análise resultam de previsão legal prévia e expressa, com caráter geral e abstrato, como acima se revelou, mostrando-se por isso respeitadas as exigências decorrente do princípio da legalidade.
Por outro lado, e no que respeita ao segundo dos pressupostos, as restrições em causa são funcionalmente destinadas à salvaguarda de outros valores constitucionais. Com efeito, como é sabido, nas sociedades modernas, o direito tributário reveste-se de enorme complexidade, sendo que o sistema fiscal e as normas relativas ao procedimento tributário têm em vista a realização de tarefas fundamentais do Estado e a salvaguarda de outros valores constitucionais. É aliás, o que resulta do artigo 103.º, n.º 1, ao estabelecer que o sistema fiscal tem como finalidade a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza. E é justamente essa importância do sistema fiscal que leva a que, no âmbito da fiscalização do cumprimento das obrigações fiscais, se estabeleçam os referidos deveres de cooperação dos contribuintes, dos quais poderão resultar a compressão de alguns direitos destes, compressão essa que é entendida como necessária no sentido de evitar que aquela superior e pública finalidade do sistema fiscal se mostre comprometida. Ou seja, tais restrições estão previstas no quadro das funções exercidas pela administração tributária destinadas ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, sendo que não se poderá deixar de reconhecer a importância e necessidade dessa fiscalização, sendo imprescindível quer a imposição de deveres de cooperação aos contribuintes, quer a possibilidade da posterior utilização dos elementos recolhidos em processo penal desencadeado pela verificação de indícios de infração criminal.
Na verdade, no domínio tributário, a necessidade da imposição de deveres de cooperação é não só perfeitamente justificada, como dificilmente prescindível. Espraiando-se o fenómeno tributário nas sociedades contemporâneas pelos mais diversos tipos de imposto, aplicáveis a uma multiplicidade de atividades e situações, a sua realização seria impensável sem o recurso a instrumentos como o dever acessório de cooperação dos contribuintes, deslocando para a esfera destes uma série de atividades que auxiliam e substituem a administração tributária na sua função de liquidação e cobrança de impostos.
Por outro lado, como a aplicação duma sanção penal exige a prova da prática do ilícito imputado ao arguido, a inutilização dos elementos recolhidos durante a inspeção à situação tributária conduziria a uma quase certa imunidade penal, como resultado da colaboração verificada na fase inspetiva. Parafraseando Costa Pinto (na ob. cit. pág. 107): o cumprimento da lei na fase de inspeção acabaria por impedir o cumprimento da lei na fase sancionatória, não sendo possível que um sistema jurídico racional subsistisse com uma antinomia desta natureza.
E a restrição em causa respeita o critério da proporcionalidade, sendo adequada, isto é, constituindo um meio idóneo para a prossecução e proteção dos referidos interesses merecedores de proteção constitucional, e necessária, em virtude da mesma corresponder quer a um meio exigível no sentido de obter o fim da eficiência do sistema fiscal, objetivo esse que não se mostra que seria alcançável através de mecanismos alternativos que se revestiriam de excessiva onerosidade para a administração tributária, quer pelo dispêndio de recursos e de tempo, quer pelo risco de ineficácia, face à complexidade, dimensão e multiplicidade de atividades e situações a que têm de responder os modernos sistemas fiscais, no quadro de uma “Administração de massas”.
Acresce ainda que as referidas restrições respeitam a proporcionalidade em sentido estrito, uma vez que se podem considerar equilibradas, visto que contém mecanismos flanqueadores que salvaguardam uma adequada ponderação dos concretos bens jurídicos constitucionais em confronto, ou seja, entre o direito que é objeto de restrição e dos valores ou interesses que justificam a restrição.
Com efeito, apesar da absoluta necessidade de cooperação dos contribuintes nas tarefas da administração tributária, não está completamente vedada a estes a possibilidade de recusar tal colaboração. De acordo com o artigo 63.º, n.º 4, na redação originária da LGT (a que, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro, corresponde atualmente, com pequenas alterações, o n.º 5) é legítimo ao contribuinte não cooperar na realização das diligências previstas no n.º 1, quanto as mesmas impliquem:
a)- O acesso à habitação do contribuinte;
b)-A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional, bancário ou qualquer outro dever de sigilo legalmente regulado, salvo os casos de consentimento do titular ou de derrogação do dever de sigilo bancário pela administração tributária legalmente admitidos;
c)- O acesso a factos da vida íntima dos cidadãos;
d)- A violação dos direitos de personalidade e outros direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nos termos e limites previstos na Constituição e na lei.
E na previsão desta última alínea não deixam de estarem incluídas as garantias de defesa em processo penal, designadamente o direito à não autoincriminação, o qual, como já vimos, é extensível à fase inspetiva tributária, havendo ainda quem sustente ser igualmente aplicável o disposto na alínea c), do n.º 2, do artigo 89.º, do Código de Procedimento Administrativo, ex vi do artigo 2.º, da LGT, na qual se reconhece legitimidade à recusa em colaborar sempre que isso implique a revelação de factos “puníveis, praticados pelo próprio interessado, pelo seu cônjuge ou por seu ascendente ou descendente, irmão ou afim dos mesmos graus” (Cfr. Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, na ob. cit., pág. 56).
E, em caso de oposição do contribuinte com fundamento nestas circunstâncias, «a diligência só poderá ser realizada mediante autorização concedida pelo tribunal da comarca competente com base em pedido fundamentado da administração tributária» (n.º 5, do artigo 63.º, da LGT, na redação originária, correspondente ao atual n.º 6, por força de renumeração operada pela Lei n.º 37/2010, de 2 de setembro).
Significa isto que, nas situações previstas no artigo 63.º, n.º 4, da redação originária da LGT (atual n.º 5), o contribuinte não está colocado, pura e simplesmente, perante a alternativa de cumprir o dever de cooperação, dando lugar a que a administração tributária venha a obter, à sua custa, a prova que sustenta a acusação por crime fiscal, ou de recusar a colaboração, sujeitando-se a ser sancionado com a aplicação da correspondente pena ou coima por essa falta de colaboração, podendo legitimamente recusá-la, nos casos e termos acima referidos, o que constitui uma primeira válvula de escape que atenua as exigências decorrentes do dever de colaboração.
Além disso, assistirá também ao contribuinte sujeito a fiscalização, o direito a requerer a sua constituição como arguido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências destinadas a comprovar a suspeita da prática de um crime, nos termos do artigo 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o que permitirá que este passe a dispor dos direitos inerentes ao respetivo estatuto, designadamente o direito à não autoincriminação.
Finalmente, a utilização como prova em processo penal de documentos obtidos na atividade de fiscalização tributária, não deixará de ser proibida, nos termos do artigo 126.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal, quando se revele que a entidade fiscalizadora tenha desencadeado ou prolongado deliberadamente a fase inspetiva, com a finalidade de recolher meios de prova para o processo penal a instaurar, abusando do dever de colaboração do contribuinte.
Assim, numa ponderação entre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e a restrição que ao mesmo é imposta no caso concreto e os valores constitucionais que se pretendem salvaguardar com essa restrição, é de entender que a mesma não se revela desproporcionada.
Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa em questão não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o direito à não autoincriminação, incluído nas garantias de defesa do arguido em processo penal, asseguradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer dos restantes direitos constitucionais invocados pelo Recorrente».

Face à decisão do Tribunal Constitucional, com a qual concordamos inteiramente, improcede, também nesta parte, a tese da recorrente.
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6.Quanto à invocada nulidade da sentença, por falta de fundamentação e análise crítica, sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e sobre a excepção de "caso julgado" e consequente violação da exceção de litispendência.

Alega a recorrente DDG, que as facturas emitidas pela sociedade L., Lda., registadas na contabilidade da A., S.A., identificadas e enumeradas pela acusação proferida nestes autos contra a arguida e contra a sociedade A., S.A., reportadas aos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004, são as mesmas facturas, emitidas pela sociedade L., Lda., registadas na contabilidade da sociedade A., S.A., e que foram identificadas e também enumeradas na acusação e nos relatórios tributários e anexos apensos ao processo que correu termos no Tribunal Criminal de Braga, processo n° 333/05.0IDBRG, sendo certo que nesse processo foi proferida douta Sentença Judicial em 19/12/2017, a qual transitou em julgado em 31/01/2018, que absolveu a arguida daquele crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada que, tal como nestes autos e reportado ao mesmo período dos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004, ela e os seus dois irmãos, tal como a sua ex-cunhada, também ali, como aqui, vinham acusados - ver as páginas n°s 11, 12, 13, 14, 15 e 16, onde estão elencados os n°s 4, 13, 14, 15, 16 e 17 do elenco da matéria de facto declarada provada nessa mesma douta Sentença proferida no citado Tribunal Criminal de Braga na certidão judicial junta aos autos em 26/12/2019. Por isso todas as facturas emitidas pela sociedade L., Lda. e registadas na contabilidade da sociedade A., S.A. no dito período dos exercícios fiscais de 2001, 2002, 2003 e 2004, objecto da acusação nos presentes autos, já foram objecto de apreciação e julgamento no processo criminal que correu termos no tribunal de Braga - proc. n.° 333/05.1IDBRG. Com efeito, confrontando as tabelas insertas na acusação e despacho de pronuncia do processo n.° 333/05.OIDBRG, relativas aos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004 que tiveram origem nos relatórios de Inspecção Tributária - DF Braga - Div Inspeção Tributária - com as tabelas insertas na acusação dos presentes autos, verifica-se que todas e cada uma das facturas ali identificadas são as mesmas que estão em causa nestes autos. Confrontados tais documentos, verifica-se uma substancial e absoluta identidade da materialidade fáctica vertida em ambos os processos, estando-se aqui perante uma segunda acusação, por um facto que já foi, anteriormente, julgado. Efectivamente, o comportamento imputado à arguida/recorrente - bem como, a alguns dos restantes co-arguidos... - foi já apreciado no referido primeiro processo, pelo que terá que se considerar exaurido por ter sido já objecto de julgamento - proc. n.° 333/05.1IDBRG -, com decisão transitada em julgado, pelo que, não pode esta factualidade ser novamente conhecida e a arguida repetidamente julgada neste novo e repetido processo que acaba por lhe imputar os mesmos factos.
Nota a recorrente que, quer os presentes autos quer os autos do processo 333/05.1IDBRG, tal como todos os demais que foram disseminados por quase todo o País, tiveram origem em relatórios da Administração tributária, levados a cabo nas Direcções Distritais de Finanças de Lisboa, Santarém, Leiria, Aveiro, Porto e Braga. Em ambos os processos as pessoas físicas e jurídicas - no que à arguida DG... e às empresas "L.  e A. " diz respeito - envolvidas foram as mesmas. Quer o emitente das facturas, quer quem se servia das mesmas eram as mesmas pessoas físicas e jurídicas, existindo - alegadamente - uma única resolução criminosa, repetida ao longo dos meses dos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004, fruto de uma única resolução criminosa e, portanto, de um dolo único, sendo alheio a esta a razão de ter existido separação de processos, para serem disseminados ás dezenas pelo País. Os factos aqui imputados à arguida traduzem-se em, nos exercícios de 2001 a 2004, a arguida L., LDA ter contabilizado vendas à A. , entre outras, tendo emitido facturas, que esta contabilizou, com a numeração, data e valores que estão identificados nas fls. _ dos autos, que alegadamente não correspondiam a qualquer venda de sucata ou de outros produtos e que por isso eram falsas. Tal como se traduzem que no âmbito da mesma e alegada resolução para a prática do crime de fraude fiscal continuada, a arguida e a própria sociedade A., Lda. tivesse, ao longo do ano daquele período obtido facturas, alegadamente falsas para serem integradas na contabilidade desta última, sendo certo e evidente que a arguida/recorrente já foi julgada e integralmente absolvida no que às concretas relações comerciais, compras e vendas, com emissão das pertinentes facturas e realização dos pagamentos ocorridas nos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004 entre a sociedade L., Lda. e A.  S.A. - "vide gratiae" o constante da douta Sentença proferida no dito proc. n° 333/05.0IDBRG que correu termos pelo Juiz 1 do tribunal Local Criminal de Braga (doc.1) e a factualidade constante de n°s 115 a 143 do despacho de Pronúncia.
Para a recorrente, os presentes autos para além de configuram, uma situação de violação da excepção de caso julgado, proveniente da citada e douta Sentença proferida no Tribunal criminal de Braga, a qual transitou em julgado em 31/01/2018, configuram também e evidenciam uma situação de violação flagrante da excepção de Autoridade de caso julgado, quanto à factualidade respeitante à pretensa emissão e, ou, utilização de facturas falsas, quer pela sociedade L., Lda., quer pela sociedade A.,S.A., quer no que ao caso mais interessa, pela arguida/Recorrente DG....
Conclui, porém a recorrente que, lendo o teor da decisão recorrida, logo se percebe que apesar da extensão da mesma, não há uma verdadeira, fundamentada e análise crítica, sobre a violação do princípio constitucional "ne bis in idem" nem sobre a excepção de "caso julgado" na sua dupla vertente, assim como não existiu qualquer cuidado em verificar se efectivamente as facturas em questão nos presentes autos, já foram ou não, objecto de apreciação judicial noutro processo.

Vejamos:

De acordo com o art. 374°, n° 2 a fundamentação da decisão consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Como é sabido a actual redacção do n° 2 do art. 374° CPP (Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto), foi introduzida pela reforma operada pela Lei n° 59/98, de 25 de Agosto, sendo aditada em relação à redacção anterior a exigência de exame crítico das provas nos mesmos que são exigidos no processo civil – art. 653°, n° 2 CPC na redacção introduzida pelo Dec. Lei n° 39/95, de 2 de Fevereiro – tendo em vista as exigências de fundamentação da sentença e a necessidade de se avaliar a validade da prova (cfr. José Luís Lopes da Mota, "A Revisão do Código de Processo Penal", RPCC, ano 8°-2°, p. 196).
Face a ela não bastará ao tribunal fazer a indicação dos concretos meios de prova tidos em conta para formar a sua convicção. É necessário ainda que se expresse o modo como se alcançou essa convicção, descrevendo – sempre de modo conciso, evidentemente – o processo racional seguido e objectivando a análise e ponderação criticamente comparativa das diversas provas produzidas, para que se siga e conheça a motivação que fundamentou a opção por um certo meio de prova em detrimento de outro, ou sobre qual o peso que determinados meios tiveram no processo decisório. Ou dito de outro modo, porventura mais simples mas não menos expressivo a fundamentação "deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador" (cfr. Lopes do Rego, "Comentário ao Código de Processo Civil", p. 434).
Neste processo a arguida/recorrente vem acusada da prática de 1 crime de fraude fiscal qualificada, pessoalmente e na, alegada qualidade de gerente de facto ou representante das sociedades “L., Lda." e "A., S.A.", em co-autoria material e na forma consumada, por, alegadamente, ter determinado que aquela L., Lda. emitisse um rol de facturas relacionadas a fls. _ dos autos, a favor de várias outras sociedades e empresários em nome individual, sem que correspondessem a serviços efectivamente prestados e/ou materiais a ela fornecidos.
Por sua vez, e como se vê, no processo comum (tribunal Singular) que sob o n.° 333/05.0IDBRG correu termos pelo Juízo Criminal de Braga - Juiz 1 -, a arguida/recorrente, também ali constituída arguida, foi igualmente acusada pela alegada prática de um crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada p. e p. pelos arts 103°, 104° n°1 e 2 do RGIT.
Também na acusação deduzida nesse processo - o qual igualmente envolvia outros arguidos - era imputado à arguida a emissão de facturas falsas, alegadamente emitidas pela sociedade L., Lda. e pela Recupercentro, Lda., ali a favor e para serem registadas e integradas na sociedade A., S.A. da qual a arguida era administradora desde 2001 e até 2004 inclusive.
Essa acusação, em suma, ali deduzida contra a arguida/recorrente, baseou-se no pressuposto de que as facturas emitidas, pela sociedade L., Lda., nos anos de 2001, 2002, 2003 e ainda em 2004, não correspondiam a transacções comerciais ou fornecimentos verdadeiros.
No cotejo entre as duas acusações, constata-se a identidade dos arguidos e o modus operandi descrito na acusação foi, alegadamente, sempre o mesmo, como o mesmo foi a "fornecedora" das ditas facturas, afigurando-se que os factos em apreço em ambos os processos, poderão ser susceptíveis de configurar um só crime de fraude fiscal qualificada, cometido, alegadamente, mediante uma única resolução criminosa.
Tendo em conta o caso concreto, ou seja, os factos investigados nestes autos e os constantes do proc. n.° 333/05.0IDBRG, poderá concluir-se que têm em vista a apreciação dos mesmos comportamentos espácio temporalmente determinados, embora com uma diferente qualificação jurídica, ou seja, numa situação a conduta da(s) arguida(s) foi qualificada como constituindo uma única resolução criminosa e noutra situação, como configurando um crime continuado, pelo que esta situação poderá configurar a infracção à proibição do ne bis in idem ou configurar excepção de caso julgado.
A decisão recorrida, porém, na fundamentação da análise crítica sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e excepção de "caso julgado", limita-se a referir que:
 (…)
É certo que a arguida DDG foi sujeita a acusação crime e a julgamento no âmbito do processo comum singular que sob o n.° 333/05.0IDBRG correu os seus termos pelo Juízo Criminal da Comarca de Braga - Juiz 1.
Nesse processo os factos imputados à arguida DDG diziam respeito à prática de crimes de fraude fiscal decorrentes da imputação à mesma participação nos negócios das sociedades, entre outras, "L.  - Comercial Recuperados, Lda." e "A. - Empresa Produtora de Alumínio, S.A.", ocorridos nos mesmos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004.
Por um lado, como a decisão final do processo em causa foi uma decisão absolutória não se poderá afirmar que estavam em causa a prática de crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada - embora, a arguida tivesse sido acusada da prática de crime de fraude fiscal qualificada.
Por outro lado, não se pode ter a certeza que as facturas indicadas neste processo são as mesmas que as constantes daquele outro - tanto mais que os valores em causa são distintos.(...) Assim sendo, não obstante a existência de coincidência de sujeitos processuais, não parece que haja coincidência de objecto.
Razão pela qual, não se afigura possível a conclusão de que existe violação do princípio constitucional de "in dubio pro reo".(...) - "vide gratiae" Sentença proferida a fls. dos autos - ref. n.° 395153630. 
A fundamentação cumpre, no âmbito judicial, e em especial no ordenamento processual penal, uma dupla função: a primeira, de carácter objectivo, de pacificação social, legitimidade e autocontrole das decisões; e uma segunda, já de carácter subjectivo, de garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários. Uma decisão fundamentada ajuda, desde logo, à compreensão e, depois, à aceitação e à convicção por parte dos destinatários, sejam estes os imediatos – as partes, os sujeitos processuais -, seja, mediatamente, a comunidade social.
Na verdade, a motivação tem essencialmente um objectivo de funcionalidade técnica e tem como destinatários principais as partes e os tribunais superiores, mas também uma função extraprocessual que se evidencia quando a obrigação de motivar é constitucionalmente garantida.
A motivação não pretende apenas convencer as partes e esclarecer o tribunal superior; ela passa a ser o instrumento para o controlo extraprocessual e geral sobre a justiça, controlo exercido pelo povo, já que é em seu nome que a justiça é administrada (artigo 202º, nº 1 da Constituição portuguesa). Em suma, a motivação é um instrumento indispensável para o controlo democrático da administração da justiça e, por isso, deverá ser, não só, expressa, clara e coerente, como suficiente.
Mas, infelizmente, a decisão recorrida, na fundamentação da análise crítica sobre a violação do principio constitucional "ne bis in idem" e excepção de "caso julgado", limita-se a referir que não se pode ter a certeza que as facturas indicadas neste processo são as mesmas que as constantes daquele outro processo, abstendo-se em verificar se efectivamente as facturas em questão nos presentes autos, já foram ou não, objecto de apreciação judicial noutro processo, sem proceder à apreciação da prova documental já antes junta aos autos - cópias e relação das facturas emitidas pela L., Lda. nos anos de 2001, 2002, 2003 e 2004 e nesses mesmos anos integradas e registadas na contabilidade da A., S.A. constantes dos anexos e apensos juntos a estes autos na sequencia dos ofícios que vieram da Direcção Distrital de Finanças de Braga, dos inspectores tributários e até dos ofícios que para estes autos vieram do Tribunal Criminal de Braga, tal como da certidão judicial passada pelo mesmo Tribunal Criminal de Braga, que igualmente se mostra junta a estes autos.
Acaba, assim, por assistir razão à recorrente, tornando-se necessário e premente que seja apreciada a questão respeitante à excepção decorrente do caso julgado e da autoridade de caso julgado, e a sua influência nestes autos, em resultado da decisão antes proferida e já transitada em julgado no âmbito do processo que sob o n° 333/05.0IBRG correu termos no Juízo Criminal de Braga, sentença judicial que transitou em julgado em 31.01.2018 e no âmbito do qual, a arguida/recorrente e os restantes arguidos - quer os individuais, quer as sociedades - foram absolvidos.
Por isso a decisão é nula, de acordo com o disposto no art. 379°, n° 1, al. a) CPP, nulidade essa que evidentemente o tribunal de recurso não pode suprir porque não pode substituir-se ao tribunal recorrido nesse exame crítico que fundamentou a decisão no que concerne à apreciação do principio constitucional "ne bis in idem" e excepção de caso julgado.

A procedência da suscitada nulidade da sentença recorrida prejudica a apreciação subsequente das demais questões suscitadas no presente recurso, razão pela qual se torna
despiciendo prosseguir no seu conhecimento                                                                        
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7.–Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso declarando nulo o acórdão recorrido e determinando que o tribunal recorrido, em novo e corrigido acórdão, dê plena satisfação aos ditames constitucionais e legais em matéria de motivação da decisão quanto à apreciação do principio constitucional "ne bis in idem" e excepção de caso julgado. 

Sem tributação.

                                                
Lisboa, 13 de Julho de 2021



Cid Geraldo
Ana Sebastião


Decisão Texto Integral: