Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3629/2006-6
Relator: MANUEL GONÇALVES
Descritores: MÚTUO
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O contrato de crédito ao consumo (DL 359/91 de 21-9) consubstancia um contrato de mútuo, que está conexionado com outro contrato (compra e venda), celebrado entre o mutuário e o vendedor.
II -Pode lançar mão da providência cautelar de apreensão de veículo prevista no art. 15 DL 54/75, o mutuante que tem registada a seu favor reserva de propriedade e procedeu ao pagamento do preço ao vendedor, quando o comprador deixou de cumprir a obrigação resultante do contrato de mútuo e que consubstanciam o pagamento do preço do bem adquirido. (M.G.)
Decisão Texto Integral: 9

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

F , agindo através da sua representação permanente «Sucursal em Portugal, intentou contra E – E T T, procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel e respectivos documentos .
Para o efeito alegou em síntese o seguinte:
No exercício da sua actividade financiou a requerida na aquisição do veículo automóvel de matrícula XG.
Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída uma reserva de propriedade a favor do vendedor do veículo, que cedeu à requerente, com o consentimento da requerida a titularidade da referida reserva.
A reserva de propriedade encontra-se registada na C. R. Automóvel de Lisboa, a favor da requerente.
O preço da viatura foi de 29.500,00 euros, tendo havido o desembolso inicial de 6.000,00 euros, sendo o financiamento de 23.500,00 euros.
O contrato de financiamento estipulou na cláusula 8ª das condições particulares que o valor total a reembolsar era de 30.528,60 euros.
O pagamento seria efectuado em 60 prestações de 508,81 euros cada, vencendo-se a primeira em 20.06.2004.
A requerida não pagou a 13ª prestação, tendo a requerente declarado resolvido o contrato.

Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial.
Inconformada recorreu a requerente (fol. 30), recurso que foi admitido como agravo e subida imediata.
Nas alegações que apresentou, formula a agravante as seguintes conclusões:
a) Estão preenchidos os requisitos necessários à admissão e decretação do procedimento cautelar de apreensão de veículo, previsto no DL 54/75 de 12 de Fevereiro.
b) A agravada deixou de proceder ao pagamento integral das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 20.06.2005, correspondente à 13ª, relativa ao contrato de financiamento para aquisição a crédito, tendo sido interpelada para pôr termo à mora, o que não fez.
c) A agravante fez prova do registo da reserva de propriedade em vigor em relação ao veículo com a matrícula XG.
d) Estão reunidos os pressupostos de admissão e posterior decretação da providência de apreensão de veículo, previstos nos art. 15, 16 do DL 54/75 de 12 de Fevereiro.
e) Com semelhantes normas o legislador visou não só acautelar o pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço de aquisição do veículo automóvel, como também outras obrigações, designadamente as emergentes de um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, para aquisição daquele, em que o próprio vendedor também interveio ou de cujo conteúdo ressalta, para o mesmo, um interesse relevante (Ac TRL 13.02.03).
f) Consta do supra citado acórdão que «e admissível a constituição de reserva de propriedade com vista a garantir um crédito de terceiro, especialmente quando o mesmo emerge de um contrato de mútuo a prestações cujo respectivo produto é destinado ao pagamento do preço da compra e venda.
g) Pelo que, a referência efectuada a «contrato de alienação» que consta do art. 18 nº 1 do DL 54/75, tem de ser objecto de uma interpretação actualista, concatenada com o disposto no art. 409 nº 1 CC, devendo entender-se que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento das obrigações encontra-se garantido pela reserva de propriedade, in casu, o contrato de financiamento, sob pena de a reserva de propriedade, legalmente constituída, se dever haver por totalmente inútil e de resultar sem garantia o crédito da financiadora da aquisição do veículo.
h) Tal decorre igualmente dos citados acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, nomeadamente do acórdão de 13.02.03, donde resulta que a referência no art. 18 nº 1 do DL 54/75, ao contrato de alienação, pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
i) Pelo que o agravante F, enquanto entidade que financiou a aquisição à agravada, da viatura objecto da providência cautelar aqui em causa, nos termos do contrato de financiamento junto aos autos e acção declarativa principal como doc 1, tem legitimidade activa para requerer a presente providência.
j) O diploma em apreço pretende instituir um meio célere e expedito de acautelar a posição do proprietário do veículo alienado, pelo que, para ser decretada a providência basta ao requerente demonstrar que a reserva do veículo está inscrita a seu favor e que não foram cumpridas as obrigações que originaram aquela reserva, o que a ora agravante logrou provar.
k) O DL 359/91 de 21 de Setembro prevê na alínea f) do nº 3 do art. 6 a constituição de reserva de propriedade para o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações e não para o contrato de compra e venda em prestações como entende o Tribunal a quo.
l) Tal reserva de propriedade foi constituída a favor do vendedor do veículo e cedida por este nos termos do contrato à ora agravante.
m) Deste modo, deve ser determinada a apreensão do veículo automóvel, , com a matrícula XG e feita a sua entrega ao fiel depositário indicado nos autos.

Foi proferido despacho de sustentação.
Corridos os vistos legais, há que apreciar e decidir.

FUNDAMENTAÇÃO
Os factos com relevo para a decisão, são os que se fez constar do relatório que antecede.


O DIREITO.
O âmbito do recurso afere-se pelas conclusões do recorrente, art. 660 nº 2, 684 nº 3 e 690 CPC. Assim, só das questões postas nessas conclusões haverá que conhecer.
No caso presente a questão consiste em saber se o requerente que financiou a aquisição por parte do requerido, de um veículo automóvel, em que foi clausulada a reserva de propriedade, pode ou não lançar mão da providência cautelar de apreensão de veículo, nos termos do art. 15 nº 1 DL 54/75 de 12 de Fevereiro.
No despacho recorrido, entendeu-se que não. Fundamenta-se tal entendimento, da seguinte forma: «Não tendo a requerente celebrado qualquer contrato de compra e venda, é evidente que nunca poderá propor uma acção de resolução à luz do art. 18 nº 1 DL 54/75 e não se verificando tais requisitos é manifesta a inviabilidade da presente providência».
Em causa está pois um contrato de crédito ao consumo. Este contrato que consubstancia um contrato de mútuo, mostra-se conexionado com outro, (o contrato de compra e venda), celebrado entre o mutuário e o vendedor. O mutuário celebra um contrato de compra e venda com o alienante da coisa e ao mesmo tempo celebra com outra entidade um contrato de mútuo que tem por finalidade o pagamento do preço, obrigando-se perante este, no pagamento do montante mutuado, em prestações.
O contrato de crédito ao consumo, mostra-se previsto no DL 359/91 de 21 de Setembro, sendo aí definido como, «o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante».
Trata-se pois de contratos conexos, na medida em que, embora mantendo certa autonomia, visam a prossecução, de um único objectivo, que é o de possibilitar ao consumidor, adquirir um bem de consumo. Fala-se por isso na «democratização do consumo», ou seja possibilitar a certos estratos sociais o acesso a determinados bens de consumo.
A referida conexão (de contratos) ressalta nomeadamente do disposto nos art. 6º nº 3 f) e 12 DL 359/91. Dispõe-se no art. 6º nº 3 f) que o contrato de crédito deve indicar «o acordo de reserva de propriedade». No art. 12º dispõe-se que «se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito ...».
A publicação do DL 54/75, teve e ver com a massificação do consumo de certos bens, nomeadamente no que respeita a veículo automóveis. Visando facilitar o comércio deste tipo de bens, o legislador pretendeu, conferir aos vendedores um meio que com celeridade e simplicidade acautelasse os seus interesses.
Em termos gerais, com o contrato de compra e venda, opera-se a transmissão do direito de propriedade, art. 874 e 408 CC. Consente a lei, art. 409 CC, que nos contratos de alienação, o alienante possa «reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento».
Dispõe o nº 1 do art. 15 DL 54/75 de 12 de Fevereiro, que «vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos». Dispõe o art. 16 nº 1 (DL 54/75) que «provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo». Dispõe ainda o art. 18 nº 1 que «dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido..e dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação».
Face aos preceitos legais citados, diverge a jurisprudência, quanto ao entendimento de quem pode lançar mão da providência cautelar de apreensão de veículo, prevista no art. 15 nº 1 DL 54/75. Para uns (é essa a posição perfilhada no despacho recorrido), a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, só é susceptível de tutelar a existência de um direito de crédito vencido de natureza pecuniária garantido por hipoteca, e a falta de cumprimento da obrigação de prestação correspondente, ou de um contrato de compra e venda de veículo automóvel com convenção de reserva de propriedade e incumprimento das obrigações assumidas pelo comprador. Mesmo para os que perfilham este entendimento, admitem que possa ser o mutuante a intentar a acção, nos casos em que se tenha verificado «cessão de crédito» ou «sub-rogação» (art. 577, 582 e 591 CC) ( Ac STJ de 12.05.2005, CJ 2005, II, 94; Ac TRL de 16.12.2003 relator António Geraldes, Proc. nº 7023/2003, consultável na internet). No caso presente, fizeram as partes constar do contrato, a seguinte cláusula: «O presente contrato é celebrado com reserva de propriedade a favor do vendedor registado do mesmo, nos termos das cláusulas Gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cedeu ou cederá à F a titularidade de tal reserva de propriedade, e o comprador desde já presta o seu consentimento a tal cessão». Com o requerimento inicial, juntou ainda o requerente, documento (fol. 4), do qual consta que sobre o veículo se encontra registado a favor do requerente o encargo de «registo de propriedade». Parece, pois que mesmo para os que perfilham o entendimento mais restrito, não haveria no caso presente qualquer obstáculo a que se apresentasse o mutuante a lançar mão do presente meio processual (apreensão de veículo).
Nesta Secção (6ª), temos seguido o entendimento mais amplo (Ac TRL de 20.10.2005, relator Fátima Galante, (subscrito pelo presente relator como adjunto), proc. nº 8454/2005; Ac TRL de 27.06.2002, relator Salvador da Costa, proc. nº 0053286; Ac TRL de 05.05.2005, relator Carlos Valverde, proc. nº 3843/2005 – todos consultáveis na internet; Ac TRL de 13.03.2003, relator Pereira Rodrigues, CJ 2003, II, 74; Ac TRL de 13.02.2003, relator Olindo Geraldes, CJ 2003, I, 102).
Como refere Salvador da Costa (Ac TRL de 27.06.2002, já citado), «importa ter em conta a evolução social no que concerne às novas modalidades de contratação, porventura susceptíveis, pela sua peculiar estrutura, de alargar os tradicionais modelos processuais, em termos de englobarem as novas realidades contratuais, sobretudo quando se trata, como ocorre no caso vertente, de contratos intensamente conexionados. O art. 409 nº 1 CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexção entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo. E a lei também expressa que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro, pode sub-rogá-lo nos direitos do credor. Esta situação de sub-rogação não carece do consentimento do credor... Em tais circunstâncias juridico. Factuais e preenchido o requisito do registo da reserva de propriedade em favor do mutuante, não é de indeferir liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel pelo mesmo instaurada, uma vez que tal indeferimento pressupõe que a pretensão em causa seja manifestamente improcedente (art. 234-A CPC)»
Este entendimento, não encontra sequer, qualquer obstáculo de ordem hermenêutica. Como se refere no acórdão de 05.05.2005 desta Relação (em que é relator Carlos Valverde – acórdão também já citado) «à actividade interpretativa (art. 9 CC) não basta o elemento literal das normas e é essencial a vontade do legislador (...) A determinação da vontade do legislador não pode abstrair da letra da lei, isto é, do significado da sua expressão verbal. No nº 3 (art. 9º CC) dispõe-se, por apelo a critérios de objectividade, que o interprete, na determinação do sentido prevalente da lei, deve presumir o acerto das soluções consagradas e a expressão verbal adequada (...) Alguns autores até admitem dever operar a interpretação correctiva se o seu resultado se configurar contrário a interesses preponderantes da ordem jurídica, em termos tais que, se o legislador tivesse considerado a situação, não a teria consagrado (....) Tem vindo a crescer exponencialmente o crédito ao consumo, sendo hoje a regra para a aquisição de quaisquer bens com algum significado – com especial relevo para os veículos automóveis – o recurso ao financiamento pelas instituições vocacionadas para o efeito, sobrando por isso, não tanto a eventualidade do incumprimento pelo consumidor das obrigações emergentes do contrato de alienação, mas mais das do contrato de mútuo que aquele permite, podendo, em boa verdade dizer-se que o pagamento do preço do bem alienado se confunde com o cumprimento integral das obrigações do contrato que tem por objecto o financiamento da sua aquisição. Deste modo, a leitura do disposto no art. 18, 1 DL 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo como de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade a referência ao «contrato de alienação» (...) A interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir».
No caso presente, a aceitar-se a tese restritiva, tornaria de todo inútil, clausular-se a «reserva de propriedade», pois que tendo o vendedor recebido integralmente o valor do preço, (que lhe foi entregue pelo mutuante) não faria sentido pretender resolver o contrato de compra e venda, com fundamento no incumprimento desse contrato (Salvador da Costa no voto de vencido que emitiu no acórdão de 12.05.2005 CJ 2005, II, 94, sustenta que mesmo no caso de o vendedor ter recebido integralmente o preço do mutuante, poderá resolver o contrato de compra e venda, com fundamento no incumprimento por parte do comprador, das suas obrigações, nomeadamente as resultantes do contrato de mútuo). Esta interpretação restritiva, levaria a resultados injustos e iníquos, pois que em tal situação (em que o mutuante procedeu ao pagamento do preço ao vendedor), apesar de relapso, o comprador não poderia ser desapossado do veículo de que não é proprietário.
No caso presente, tem o mutuante registado a seu favor «a reserva de propriedade» e tendo procedido ao pagamento integral do preço ao vendedor, o comprador deixou de cumprir as obrigações resultantes do contrato de «mútuo», as quais consubstanciam no essencial, o pagamento do preço do bem adquirido. Não é pois de indeferir a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel, requerida pelo mutuante.
A requerente indicou testemunhas para prova da matéria fáctica, não comprovada documentalmente.
O recurso merece provimento.

DECISÃO.
Em face do exposto, decide-se:
1- Conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
2- Sem custas.
Lisboa, 22 de Junho de 2006.

Manuel Gonçalves

Aguiar Pereira

Gil Roque.