Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1938/2007-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: TRIBUNAL COMPETENTE
TRABALHO TEMPORÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. O tribunal competente para conhecer de acção em que uma Empresa de Trabalho Temporário demanda uma Empresa Utilizadora, por no exercício do seu comércio ter celebrado com esta diversos contratos de utilização de trabalho temporário e, em execução de tais contratos, ter-lhe prestado serviços em determinado valor, que a R alegadamente não pagou, é o tribunal comum.
II. O contrato que está em causa em tal acção é um contrato de utilização de trabalho temporário, que a lei designa, e bem, como de prestação de serviços, isto é, aquele em que uma das partes se obriga a prestar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
III. A questão colocada em acção de tal natureza não diz, pois, respeito a uma relação de trabalho subordinado, mas a uma relação de trabalho autónomo ou de prestação de serviços, pelo que o tribunal competente para dela conhecer não pode ser o tribunal de trabalho, mas sim o tribunal comum, possuidor para o efeito de competência residual.
(P.R.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I. OBJECTO DO RECURSO.
No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, A (Empresa de Trabalho Temporário), intentou a presente acção declarativa de condenação, na forma de processo sumário, contra B alegando, em síntese, que:
A A. dedica-se à actividade de cedência temporária de trabalhadores para utilização de terceiros utilizadores;
No exercício do seu comércio a A celebrou com a Ré diversos contratos de utilização de trabalho temporário.
Em execução de tais contratos, a A prestou à Ré os serviços discriminados nas facturas juntas, no valor total de € 9.114,75.
Não obstante o pagamento de tais facturas ser devido 30 dias após a data da respectiva emissão e apesar de ter sido por diversas vezes interpelada pela A para pagar as facturas em causa, a Ré não o fez, nem nas datas dos respectivos vencimentos, nem até à presente data.
Não cumprindo as suas obrigações, a Ré incorre também no dever de pagar os correspondentes juros de mora vencidos sobre o capital em dívida, desde as datas do vencimento das facturas, até integral e efectivo pagamento e que ascendem ao valor total de € 516,74.
Assim, o total da dívida da Ré ascende, em 04/02/2005, à quantia de € 9.631,49.
Pediu a condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 9.114,75, acrescida de juros de mora vencidos, calculados até 04/02/2005, no valor de € 516,74 e dos juros vincendos, à taxa legal em vigor e desde 05/02/2005, até integral e efectivo pagamento, calculados sobre o capital em dívida.
Regularmente citada para contestar, com a advertência de que a falta de contestação importava a confissão dos factos articulados pela A., a R. não contestou.
Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido douto despacho a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, na parte em que interessa, do seguinte teor:
“…Compete assim aos tribunais de trabalho, nos termos do art.º 85º, n.º 1, b) da Lei n.º 3/99, conhecer em matéria cível das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.
Como é sabido, a competência em razão da matéria, como pressuposto processual, é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, atendendo-se ao direito de que o autor se arroga e que pretende ver judicialmente protegido, isto é, fixa-se em face da natureza da relação material em debate, segundo a versão apresentada em juízo, aferindo-se sempre pela pretensão ou pedido formulado velo autor.
In casu, e do que se depreende da alegação da A., pretende esta ser ressarcida do preço dos contratos de utilização de trabalho temporário que celebrou com a R., definição do art. 2º, e) do Decreto-Lei n.º 358/89, de 17 de Outubro. Com base nesta alegação, conclui-se que o que está em causa é apreciação de uma relação jurídica que serviu de base à celebração de contratos de trabalho temporário entre a A. e os trabalhadores temporários, nos termos do referido Decreto-Lei n.º 358/89 e, como tal, da competência dos tribunais de trabalho.
Assim, este tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção, sendo antes competentes os tribunais do trabalho.
A incompetência absoluta, em razão da matéria, constitui excepção dilatória insanável, de conhecimento oficioso até ao trânsito em julgado da decisão final e determina a absolvição da R. da instância ou o indeferimento liminar do requerimento inicial quando o processo o comporte, cfr. art.s 101º a 105º, 234º, n.º 4, b) e 234º-A, n.º 1, 267º, n.º 2, 288º, n.º 1, a), 493º n.º 2, 494º n.º 1, a) e 495º do Código de Processo Civil.
Decisão:
Pelo exposto, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, absolvo a R. da instância”.
Inconformada com a decisão, veio a A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
1 - No trabalho temporário coexistem 2 tipos de contratos: o que vincula o trabalhador à empresa de trabalho temporário e o que rege as relações entre esta e a empresa utilizadora.
2 - No primeiro caso, a relação é a de um verdadeiro contrato de trabalho - cfr alínea d) do art. 2° do Decreto-Lei n° 358/89 (LTT), sujeito a um regime especial, determinado em grande parte por uma remissão para os contratos a termo.
3 - Já a relação que existe entre a empresa de trabalho temporário e o utilizador é a de um contrato de prestação de serviços - cfr alínea e) do art.2° da LTT.
4 - Ao qual, com excepção das particularidades estabelecidas nos arts. 9.° e ss. da LTT, se aplica o regime obrigacional comum, regendo-se pelas normas constantes do Código Civil.
5 - Tal é, aliás, o entendimento pacífico e uniforme da nossa jurisprudência e doutrina, remetendo-se, por isso e a título meramente exemplificativo, para o que sobre o assunto ensina o Sr. Prof. Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, ed. Almedina, 2.ª ed., 2005, págs 653 e segs.
Não houve contra-alegação.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do mesmo, cumpre decidir.
A questão a resolver é a de saber se o tribunal recorrido é competente, ou não, para conhecer da acção.
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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.
Os factos a tomar em consideração para conhecimento do agravo são os que decorrem do relatório acima inscrito.
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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
Nos termos do n.º 1 do art. 18º da LOTJ(1) e do art. 66º do CPC “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Os citados preceitos, cuja formulação vem já do CPC de 1939, enunciam uma regra genérica, ou um critério geral, de orientação para solucionar o problema da determinação do tribunal competente em razão da matéria e que consiste em colocar no âmbito da competência dos tribunais comuns todas as causas que por lei não estejam, concretamente, afectas à apreciação dos tribunais especiais. É a indagação da competência por exclusão.
Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “todas as causas que por lei não são da competência dalgum tribunal especial pertencem ao foro comum. De modo que a competência dos tribunais especiais determina-se por investigação directa: vai-se ver qual é, segundo a lei orgânica do tribunal, a espécie ou espécies de acções que podem ser submetidas ao seu conhecimento.
Pelo contrário, a competência do foro comum determina-se por exclusão: apurado que a causa de que se trata não entra na compe­tência de nenhum tribunal especial, conclui-se que para ela é competente o tribunal ou juízo comum.
Portanto, a competência do foro comum só pode afirmar-se com segu­rança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais espe­ciais e de se ter verificado que nenhuma disposição da lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial»(2).
Porém, saber se um determinado tribunal de competência especializada é competente, ou não, para conhecer de determinada acção nem sempre é de evidência apodíctica, tornando-se necessário, não raras vezes, proceder a laboriosas indagações, para, através de vários elementos indiciadores, se ensaiar uma resposta judiciosa.
Para o Prof. Manuel de Andrade «são vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam das várias normas que provêem a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito, para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor. E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes»(3).
Também a jurisprudência tem propendido, sem oscilação, para o entendimento de que a competência em razão da matéria tem de ser averiguada em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor, quanto ao pedido e seus fundamentos(4).
Ora, no caso dos autos a A. pede a condenação da R. no pagamento da quantia de € 9.114,75, acrescida de juros de mora, por se dedicar à actividade de cedência temporária de trabalhadores para utilização de terceiros utilizadores e no exercício do seu comércio ter celebrado com a Ré diversos contratos de utilização de trabalho temporário e, em execução de tais contratos, ter prestado à Ré serviços no valor total de € 9.114,75, valor que a R alegadamente não pagou.
Nos termos do art. 85º, n.º 1, b) da Lei n.º 3/99 (LOTJ), compete aos tribunais de trabalho, entre o mais, conhecer em matéria cível das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.
Como se sabe, o trabalho temporário está regulado no Decreto-Lei nº 358/89, de 17 de Outubro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 146/99, de 1 de Setembro.
Nos termos do citado diploma, a relação de trabalho temporário é estabelecida através de um contrato triangular em que participam a empresa de trabalho temporário, o trabalhador temporário e o utilizador.
Para uma melhor compreensão da relação de trabalho temporário importa ter presente as seguintes definições contidas no art. 2º do diploma.
A empresa de trabalho temporário é a pessoa individual ou colectiva cuja actividade consiste na cedência temporária a terceiros utilizadores de utilização de trabalhadores que para esse efeito admite e remunera.
O trabalhador temporário é a pessoa que celebra com a empresa de trabalho temporário um contrato de trabalho temporário pelo qual se obriga a prestar a sua actividade profissional a utilizadores, a cuja autoridade e direcção fica sujeito, mantendo, todavia, o vínculo jurídico-laboral à empresa de trabalho temporário.
O utilizador é a pessoa individual ou colectiva, com ou sem fins lucrativos, que ocupa, sob a sua autoridade e direcção, trabalhadores cedidos por empresa de trabalho temporário.
O contrato de trabalho temporário é o contrato de trabalho celebrado entre uma empresa de trabalho temporário e um trabalhador pelo qual este obriga mediante retribuição a prestar temporariamente a sua actividade a utilizadores.
Por último, o contrato de utilização de trabalho temporário é o contrato de prestação de serviços celebrado entre um utilizador e uma empresa de trabalho temporário pelo qual esta se obriga, mediante retribuição, a colocar à disposição daquela um ou mais trabalhadores temporários.
Ora, o contrato que está em causa na presente acção é um contrato de utilização de trabalho temporário, que a lei designa, e bem, como de prestação de serviços, isto é, aquele em que uma das partes se obriga a prestar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (art. 1154º do CC).
Não está em causa qualquer relação de trabalho subordinado (art. 1152º do CC), pois que, como bem salienta a agravante, nesta relação de trabalho temporário em que se associam a empresa de trabalho temporário, o trabalhador temporário e o utilizador, só é possível falar-se em relação laboral no que concerne à caracterização da relação entre a empresa de trabalho temporário e o trabalhador.
Como se sabe, a diferença entre os dois tipos de contrato, de trabalho por um lado e de prestação de serviços por outro, é profunda e traduz-se, no essencial, no modo de efectuar a prestação, na medida em que a do trabalhador subordinado consiste numa actividade a determinar pelo empregador e efectuada sob as suas ordens, direcção e fiscalização, enquanto que a do trabalhador autónomo se realiza numa prestação de forma livre, pela maneira que entender mais conveniente, sem sujeição a ordens, direcção e fiscalização de outrem, pois que ao dador de trabalho apenas interessa o resultado da actividade daquele.
Em síntese, no primeiro caso existe subordinação jurídica, que no segundo está ausente, que é o que acontece no contrato de utilização de trabalho temporário, que, em face da clareza da lei, pacificamente é caracterizado pela doutrina e jurisprudência como um contrato de prestação de serviços(5).
Deste modo, porque a questão colocada na acção não diz respeito a uma relação de trabalho subordinado, mas a uma relação de trabalho autónomo ou de prestação de serviços, o tribunal competente para dela conhecer não pode ser o tribunal de trabalho, mas sim o tribunal comum, possuidor para o efeito de competência residual, ou seja, o tribunal onde a autora intentou a acção, que aí deve prosseguir seus termos.
Procedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.
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IV. DECISÃO:
Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao agravo e revoga-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, que, na aceitação da competência, dê prosseguimento aos termos da acção.

Sem Custas.

Lisboa, 15 de Março de 2007.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES
FERNANDA ISABEL PEREIRA
MARIA MANUELA GOMES
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1 aprovada pela Lei 3/99, de 13/1.
2 in CPC anot., I, 201.
3Noções Elementares de Processo Civil, I. pg. 88.
4 d., por todos, Acs do STJ de 9.2.94 (in BMJ 434/564) e de 12.1.94 (in CJ/STJ, 1994, I, 38).
5 A título de exemplo vd.: Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, ed. Almedina, 2.ª ed., 2005, pgs 653 e segs e Ac. da Relação do Porto de 01-10-2002, Acessível em http://www.dgsi.pt/jrp.