Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8034/2004-6
Relator: URBANO DIAS
Descritores: ABUSO DE DIREITO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/04/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: Declarada a nulidade do contrato por falta de forma fica prejudicado o conhecimento da questão relacionada com o prazo previsto no mesmo contrato.
A invocação de um determinado prazo como tendo sido o estipulado para o cumprimento de um determinado contrato não pode constituir abuso de direito, já que a parte apenas reclama o que entende ser o cumprimento de uma obrigação correspondente ao seu direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1 – Em 10 de Julho de 2002, Maria da Conceição … intentou, no tribunal judicial de Angra do Heroísmo, acção ordinária, contra Paulo Jorge … e mulher Elisabete …, pedindo a condenação destes no pagamento de € 27.433,89 e juros, alegando, em suma, ter concedido ao R. marido empréstimo do montante referido, o qual reverteu em proveito comum do casal, e que o mesmo não lhe tinha sido restituído.

Contestaram os RR., pedindo a improcedência da acção, tendo defendido que o aludido empréstimo foi concedido por um prazo mínimo de cinco anos e que, por isso, a conduta da A. integra a figura do abuso de direito.

Replicou a A., pugnado pela procedência da acção e pela condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Em sede de saneador, o tribunal foi julgado competente, as partes legítimas e o processo isento de nulidades.
Então, o Mº juiz a quo, face à posição das partes vertidas nos articulados, entendeu que era, desde logo, possível decidir de meritis.
E, decidindo, julgou a acção procedente e condenou os RR. a pagarem à A. a importância peticionada acrescida dos respectivos juros de mora desde a citação.
Para tanto, considerou que o referido contrato de mútuo era nulo por falta de forma, razão pela qual os RR. eram obrigados a restituírem, de imediato, à A. tudo o que perceberam com juros desde a citação.
E, precisamente, porque o contrato de mútuo foi julgado nulo, desnecessário se tornou qualquer referência à invocada duração do contrato.
Acresce, ainda, que não foi referenciado algo em relação ao abuso de direito.

Com esta decisão não se conformaram os AA. que apelaram para esta instância, pedindo anulação da mesma com vista à ampliação da base instrutória de molde a serem instruídos os factos controvertidos e relacionados com o abuso de direito, tendo rematado as alegações com as seguintes conclusões:
- a decisão recorrida foi proferida, tendo com base que havia sido mutuada tal quantia, por contrato nulo, não se curando de todo em todo das circunstâncias em que tal contrato de mútuo fora celebrado;
- tais circunstâncias são relevantes e foram enunciadas na contestação não podendo deixar de ser tidas em conta pelo abuso de direito que constitui o facto de a A., ignorando-os, vir, contra todas as expectativas, invocar a nulidade do contrato de mútuo;
- a sentença deixou de conhecer do abuso de direito por parte da A. ao invocar como o faz a nulidade do contrato de mútuo;
- sendo certo que, embora os RR. não tenham alegado expressamente o abuso de direito por parte da A., todavia chamaram a especial atenção do tribunal para tal fornecendo a alegação sucinta mas expressiva na contestação dos factos que, provados integram um verdadeiro abuso de direito por parte da A.;
- O abuso do direito previsto no artigo 334º do Código Civil é de conhecimento oficioso, já que ofensivo do principio de interesse e ordem pública, e não se restringe ao âmbito dos direitos substantivos, relevando também no direito de acção, sempre que conforme o disposto naquele artigo o respectivo titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito o que sucede in casu por parte da A.;
- Por isso, e porque o tribunal não se pronunciou sobre a questão do abuso de direito por parte do A. é nula a sentença por força no disposto no art. 668º, nº1, al. d) do C.P.C.;
- Todavia, como resulta dos articulados, parte dos factos alegados pelos RR. quanto às circunstâncias em que foi celebrado o contrato de mútuo foram impugnados pela A, sendo, portanto matéria controvertida;
- Impondo-se ao Mº Juiz a quo que admitindo, de acordo com a matéria alegada, como possíveis, mais do que uma solução jurídica para o litígio, profira, em substituição da sentença nula, despacho saneador, por obediência ao art. 510º e 511º, ambos do C.P.C., levando à matéria de facto assente os factos já provados por acordo, e levando à base instrutória a lista dos factos alegados pelos RR. quanto às circunstâncias em que foi celebrado o contrato de mútuo que foram impugnados pela A, para sobre eles ser proferida prova e decisão, a final, de acordo com a matéria dada com provada.
- ao proferir a sentença recorrida, o Mº Juiz a quo violou os arts. 510º, 511º e 668º, nº 1, al. d) todos do C.P.C. e ainda o art. 334 do C. Civil.

A apelada, por sua vez, defendeu a manutenção do julgado e renovaram o pedido de condenação dos RR. como litigantes de má fé.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Os factos considerados como provados são os seguintes:
- No final do ano 2001, o R. marido e Manuel … constituíram uma sociedade denominada Aguiar e Silva, Lª - Talho de São Mateus, destinada à exploração de talho, numa loja tomada de arrendamento à A.;
- No início do ano 2003, o R. marido e Manuel Aguiar acordaram que este cederia as quotas àquele;
- O R. marido precisava de € 29.927,87 para comprar a referida quota, para melhorar o estabelecimento e assegurar um fundo de tesouraria para rentabilizar;
- Por força do facto supra mencionado, o R. marido iniciou contactos com bancos no sentido de obter um financiamento na ordem dos € 29.927,87, a pagar num prazo mínimo de 7 anos, com juros à taxa de 7%;
- A A. emprestou ao R. marido a quantia de € 37.391,85;
- Assim, no dia 3 1 de Janeiro de 2002, a A. entregou ao R. a quantia de € 9.975,96, através do cheque nº 9108455379, sacado sobre a Caixa Económica da Misericórdia;
- O R. marido apôs a sua assinatura sob uma fotocópia do cheque supra mencionado e sob a palavra empréstimo;
- Em 26 de Fevereiro de 2002 a A. entregou ao R. a quantia de € 27.433,89 através de cheque;
- Os RR. vivem em comum:
- No dia 22 de Março de 2002, a A. interpelou o R. marido, solicitando-lhe a restituição das quantias mencionadas;
- O empréstimo mencionado foi aplicado no financiamento da actividade de talhante do R. marido.

3 – Duas questões são colocadas pelos apelantes nas suas conclusões: a 1ª é de saber se o tribunal a quo cometeu nulidade derivada de omissão de pronúncia relativamente ao invocado abuso de direito, e a 2ª diz respeito à eventual necessidade de anulação da decisão proferida na 1ª instância com vista à formulação de quesitos relativos à matéria alegada na contestação e relacionada com a invocada excepção de abuso de direito.

Analisemos, pois, estas duas questões.
Importa saber se, na verdade, o Mº juiz a quo deveria ter-se pronunciado sobre o alegado abuso de direito e, na hipótese afirmativa, se os autos contêm já todos os elementos que nos permitam decidir pela verificação ou não da excepção.

Nos termos do nº 2 do art. 660º do C.P.C., o juiz deve conhecer todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excepto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Em consonância, o art. 668º, nº 1, al. d) do mesmo diploma, considera nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse pronunciar-se.
Mas não se pode falar em omissão de pronúncia da decisão quando não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes por as considerar desnecessárias para a decisão do pleito. Cfr. Alberto dos Reis, in Código Processo Civil anotado, volume V, pág. 143.
Ora, é um facto que, na contestação (cfr. arts. 2º e 17º ), os RR. levantaram a questão do abuso de direito por parte da A. ao sustentar na sua petição que o empréstimo em causa foi por “períodos curtos”.
O Mº juiz a quo, na decisão que proferiu não teceu a mínima consideração sobre o instituto do abuso do direito, razão pela qual forçoso é concluir pela sua omissão de pronúncia e consequente nulidade.
Importa, pois, apreciar tal questão, sanando a nulidade cometida.

Tal é imposto pelo art. 715º do C.P.C..

É altura, portanto, de nos interrogarmos sobre se estamos, in casu, perante um abuso de direito por parte da A. traduzido no facto de aquela ter eventualmente concedido o empréstimo por cinco anos e não por prazo curto (de um mês), como defendeu na sua petição.

O problema, a nosso ver, está implicitamente resolvido na decisão impugnada, na justa medida em que o Mº juiz a quo decidiu – e bem – julgar o contrato de mútuo nulo por falta de forma, sendo a nulidade de conhecimento oficioso nos termos do art. 286º do C. Civil.
Declarada a nulidade do contrato por falta de forma está, como bem é referido na sentença, prejudicado o conhecimento da questão relacionada com o prazo do contrato.
Nos termos do art. 334º do C. Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser um exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.Vide Coutinho de Abreu, in Do Abuso de Direito, pág. 43.
Pelo que ficou dito, teremos de concluir que a invocação de “prazo curto”, concretamente a 30 dias (cfr. art. 3º da petição) relativo à duração do contrato de mútuo celebrado pelas partes é, de todo em todo irrelevante para a decisão do presente pleito.
Não vemos que tal invocação por parte da A. tenha excedido o exercício do seu direito: os RR.-apelantes não impugnam o direito da A. a perceber o montante mutuado, mas tão só o prazo estipulado para a restituição do capital.
De acordo com a tese da A., o contrato de mútuo foi celebrado pelo prazo de um mês, mas esta posição não estará correcta na perspectiva dos RR. que defendem que a duração do contrato foi fixada em cinco anos.
Cada uma das partes avançou com posições diversas relativamente ao prazo do contrato: saber concretamente o verdadeiro prazo fixado seria questão a resolver em sede de prova Nunca se poderia dizer que uma das partes estava a abusar do direito pelo simples facto de, no seu ponto de vista, o prazo do contrato ser diferente do apontado pela parte contrária. , mas tal, como ficou já dito, tornou-se irrelevante face à declaração prévia de nulidade do referido contrato.
A invocação de um determinado prazo como tendo sido o estipulado para o cumprimento de um contrato não pode, pois, constituir abuso de direito já que a parte apenas reclama o que entende ser o cumprimento de uma obrigação correspondente ao seu direito.
Ao fazer valer este seu direito a parte está apenas a reclamar o que entende ser justo, não exorbitando com tal pedido o seu direito, o que significa que, neste caso, não se pode falar em abuso de direito

Outro problema que aqui se poderá colocar é o de saber se a mera invocação da nulidade com fundamento em vício de forma constitui um abuso de direito.
Certa jurisprudência recusa a ideia de abuso de direito nestes casos com o argumento de que se é ilegítimo o exercício de tal direito, não é menos ilegítimo impor-se a validade do contrato quando a lei é expressa e terminante no sentido de que tal contrato é absolutamente nulo. Vide informação, neste sentido, in Abuso de Direito, de Cunha e Sá, pág. 258.
Porém, esta corrente tem sido ultrapassada, admitindo-se já a ideia, defendida, aliás, por Vaz Serra In R.L.J., Ano 115, pág. 187., de que se a nulidade é de interesse e ordem pública, também o é a ilegalidade do exercício do direito por abuso deste Vide Ac. da Relação do Porto, de 11 de Maio de 1989, in C.J., Ano XIV, Tomo 3, pág. 192 e ss...
Mota Pinto, seguindo a lição de Manuel Andrade, inclina-se para improcedência da arguição de nulidade quando esta arguição revista as características de abuso de direito. In Teoria Geral do Direito Civil, pág. 347 e ss..
Heinrich Horster, sublinha que, como exemplo de abuso de direito, surge-nos o venire contra factum proprium ou comportamento contraditório, citando, para tanto, as situações criadas na sequência de negócios nulos e - como tais – sem efeitos pretendidos em que as partes, ou uma delas, procedem como se fosse válido, criando com essa conduta, ulterior ao negócio, a confiança de que a nulidade nunca seria invocada. In A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil -, pág. 284 e ss..
Pedro Pais de Vasconcelos também defende que deve se reconduzido a um comportamento contraditório aquele que dá lugar ou permite que se mantenha um vício conducente à invalidade formal de um acto ou negócio jurídico age contraditoriamente quando vem depois invocar a invalidade decorrente da deficiência formal que provocou ou permitiu. In Teoria Geral do Direito Civil – 2ª edição -, pág. 659.
Baptista Machado ensina-nos os casos em que se justificaria submeter a invocação da nulidade à proibição do venire contra factum proprium:
a) ter uma das partes confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica;
b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar disposições que agora são irreversíveis, pelo que a declaração de nulidade provocaria danos vultosos de vária ordem que agora se revelam irremovíveis através de outros meios jurídicos, designadamente através do recurso ao artigo 227º do Código Civil;
c) poder a situação criada ser imputada à contraparte por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido dificuldades. In Obra Dispersa, pág. 394.

Após a exposição destas ideias doutrinárias, é altura de nos debruçarmos sobre o caso presente e averiguar se, na realidade houve ou não, por parte da A.-apelada, abuso de direito A qual, como se sabe, é de conhecimento oficioso – cfr. Vaz Serra, in R.L.J., Ano 112, pág. 131..
A A. apelada alegou na sua petição que os RR. estavam em dívida por força da celebração de um contrato de mútuo, defendendo a condenação dos RR. ao pagamento da quantia mutuada quer o mesmo se considere válido ou nulo ( cfr. art. 10º ).
Estes, por seu lado, em parte alguma da contestação, invocaram que foi aquela que contribuiu decisivamente para a celebração do dito contrato em infracção à forma exigida.
Ou seja, a celebração do contrato de mútuo em infracção à forma legal exigida não teve por base uma atitude da própria A.; pelo menos, isso não resulta dos autos.
Acresce nem os RR. vieram aos autos dizer que foi a própria A. a contribuir de forma decisiva para a ultimação do contrato sem observância da forma legalmente exigida.
Nem tão-pouco alegaram que a A., com a sua conduta, lhes criou a convicção de que tal vício nunca seria invocado.
Não há, assim, razão para se falar aqui de abuso de direito por parte da A.-apelada só pelo facto de ela ter invocado a nulidade do contrato de mútuo celebrado por o mesmo não ter respeitado a forma legalmente exigida.

Improcede em toda a linha a tese dos apelantes.
Embora o Mº juiz a quo não tenha emitido juízo sobre a arguida excepção de abuso de direito, o certo é que, vistas bem as cousas, a mesma não se verifica: a conduta da A. não é susceptível de integrar instituto, razão pela qual não foi violado o art. 334º do C. Civil.
Ficou, desta forma sanada a nulidade da sentença.
Por outro lado, não havendo necessidade de formular quesitos, teremos de concluir que não foram violados os arts. 510º e 511º do C.P.C..

A A. na réplica pediu a condenação dos RR. como litigantes de má fé.
Na sentença, o Mº juiz não considerou tal pedido por entender que não foram alegados nem provados factos susceptíveis de determinar tal condenação.
Nas contra-alegações de recurso, repetiu a A.-apelada o pedido de condenação dos RR. como litigantes de má fé, argumentando que estes tenham vindo a protelar o pagamento do capital devido.
Salvo o sempre devido respeito, não vemos que a conduta dos RR. seja de molde a poder ser qualificada como sendo de má fé.
Com efeito, eles limitaram-se a discordar da decisão proferida em 1ª instância e apresentaram as suas razões, sendo que, relativamente à invocada omissão de pronúncia, a razão até lhes assistia.
É claro que a interposição de recursos conduz a que os processos tenham mais tempo de duração do que se o transito se verificasse logo na 1ª instância, mas nada há nos autos que nos permita concluir que os RR. apelantes, com a interposição do recurso, pretenderam única e exclusivamente protelar o transito em julgado da decisão ( cfr. al. d) do nº 2 do art. 456º do C.P.C. ).
Não há, pois, razão para a pretendida condenação dos RR. como litigantes de má fé.

4 – Em conformidade com o exposto e sem necessidade de qualquer outra consideração, decide-se, na improcedência da apelação, confirmar a douta decisão do Mº juiz do tribunal de Angra do Heroísmo.
Custas pelos apelantes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido (cfr. fls. 66).

Lisboa, aos 4 de Novembro de 2004
Urbano Dias
Gil Roque
Sousa Grandão