Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2976/21.5T8SNT-A.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: EXECUÇÃO
PAGAMENTO
ENTREGA DE CHEQUE
AGENTE DE EXECUÇÃO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/03/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. No direito civil, pode definir-se cumprimento como a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação, sendo-lhe aplicável o regime substantivo dos actos voluntários.
 2. No processo civil,  cumprimento não é um acto meramente civil, mas um acto processual  dos executados.
3. Actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui.
4. No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.
5. No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa; os actos processuais são factos voluntários, mas trata-se em tudo de uma vontade genérica : «a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei».
6. Da  entrega de dinheiro feita pelos executados à Sra. Agente de Execução não se deduz, sem qualquer outra declaração, que esta entrega tenha ido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros.
7. Se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio, na execução, reparar o erro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Processo: 2976/21.5T8SNT-A

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Banco instaurou execução para pagamento de quantia certa contra H e A.
Os executados deduziram embargos de executado.
Foram penhorados na execução um imóvel e saldos bancários pertencentes aos executados.
Em 16.19.2021, a Sra. Agente de Execução juntou aos autos a seguinte declaração:
«FILIPA…, Agente de Execução, no processo supra identificado, declara que vai proceder-se à transferência/pagamento do valor supra indicado [€ 13.350,83], mais declarando que se encontram reunidos os pressupostos processuais e legais para que este pagamento seja realizado».
Em 30.09.2021, a Sra. Agente de Execução proferiu a seguinte decisão:
«Extingue-se a presente execução tendo em consideração que:
-No dia 31.08.2021º ilustre mandatário dos executados, procedeu à entrega do que cheque bancário no valor de € 14.907,95, para pagamento da quantia exequenda e legais acréscimos;
- face ao pagamento efectuado a signatária procedeu ao levantamento das penhoras efectuadas, imóvel e saldos bancários;
Assim decide-se extinguir os autos por pagamento voluntário, conforme dispõe a alínea b) do n.º 1 do art. 849.º e n.º 1 do art. 846.º do CPC».
No desenvolvimento dos embargos, o tribunal designou o dia 21 de Outubro de 2021 para audiência de julgamento.
O exequente, na sequência do despacho referido, requereu a notificação da Srª Agente de Execução a fim de dar conta da extinção dos autos de execução, tendo em vista a ulterior extinção dos autos de Embargos de Executado.
Alegou o seguinte:
«1 - Os executados efectuaram, voluntariamente, junto da Srª Agente de Execução, o pagamento da quantia exequenda e demais encargos resultante da lide executiva, os autos executivos aos quais os presentes estão apensos;
2 – Em face de tal pagamento, a Srª Agente de Execução entregou ao ora embargado a quantia total de € 13.350,80 (treze mil trezentos e cinquenta euros e oitenta cêntimos) conforme documento que junta sob o n.º 1;
3 – Aguarda agora o exequente que os autos principais sejam extintos pela Srª Agente de Execução, dado que a quantia exequenda está na presente data integralmente paga, nada mais sendo devido pelos executados».
Responderam os embargantes nestes termos:
«1. Contrariamente ao que constitui pressuposto do requerimento a que se responde e que é afirmado no art. 1º do mesmo, os executados não efectuaram voluntariamente junto da AE o pagamento da quantia exequenda e demais encargos, tendo, antes, em face da penhora de uma fracção autónoma que os mesmos já haviam prometido vender, e como forma de obviar a males maiores (nomeadamente um incumprimento contratual), aceite que, na venda, fosse entregue a AE o valor da quantia exequenda e demais encargos para viabilizar a concretização da escritura.
2 Sem que, com isso, tenham concedido a mais pequena razoabilidade aos autos executivos, mantem em absoluto a motivação subjacente à execução por si movida.
3 Se a Senhora AE procedeu à entrega da quantia exequenda foi por sua iniciativa, sem que tal possa, de alguma forma, significar que ocorreu um “pagamento voluntaria da quantia exequenda”.
4 Tanto mais que, julgada procedente a oposição por embargos em apreço, sempre têm os exequentes direito à restituição do por si entregue, nas condicionantes supra, à Srª AE.
Termos em que devem os presentes autos prosseguir os seus termos até final».
O exequente replicando asseverou:
«Banco..., Embargada nos autos à margem referenciados, vem, na sequência do douto requerimento dos Embargantes de fls., dizer que desconhece se o pagamento efetuado vem na sequência da penhora do imóvel, sendo certo que o processo executivo estava ainda longe da venda do mesmo, acrescendo ainda que aos Embargantes seria possível substituir a penhora do aludido imóvel mediante prestação de caução, realizando depósito de quantia que garantisse o efetivo e integral pagamento da quantia exequenda e demais encargos resultantes da lide.
Todavia, os Embargantes nada disso fizeram, limitando-se a pagar a quantia exequenda e demais encargos decorrentes da mesma lide, pelo que mantém a Embargada o que requereu anteriormente no que concerne à extinção dos autos executivos e subsequente extinção dos presentes».
O tribunal proferiu a seguinte decisão:
«1. No dia 31 de Agosto de 2021, os executados procederam à entrega ao Agente de Execução (AE) do cheque bancário no valor de € 14.907,95, valor da quantia exequenda e legais acréscimos;
Na sequência, o agente de execução extinguiu a instância executiva pelo pagamento voluntário das custas e da quantia exequenda.
2. A embargante, neste contexto, requereu a extinção da instância de embargos; os embargantes opuseram-se, com o fundamento que “em face da penhora de uma fracção autónoma que os mesmos já haviam prometido vender, e como forma de obviar a males maiores (nomeadamente um incumprimento contratual), aceite que, na venda, fosse entregue a AE o valor da quantia exequenda e demais encargos para viabilizar a concretização da escritura”.
3. Apreciando.
A motivação dos executados ao entregar o valor das custas e da quantia exequenda ao Agente de Execução foi, como confessam, evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros (males maiores), pelo que tal disposição patrimonial substancia, por precludida (não requerida no prazo da contestação) a prestação de caução como forma de obter a suspensão da instância durante a pendência dos embargos – art. 733.º, n.º 1, al. a), e n.º 6, do CPC (sendo que, inequivocamente, não foi essa a finalidade visada pelos embargantes visto que não deduziram o incidente apropriado previsto no art. 913.º, ex vi do art. 915.º, ambos do CPC, antes entregaram directamente o valor ao AE), e por precludida também a substituição da penhora de imóvel por penhora de dinheiro – art. 751.º, n.º 1, al. a), do CPC, pagamento voluntário das custas e da quantia exequenda, tanto que foi feita directamente ao agente de execução, conducente à extinção da execução – art. 846.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
4. Extinta que está, e legitimamente, a acção executiva, os presentes autos de embargos à execução não podem prosseguir, visto que estão condicionados à pendência daquela acção, por isso que visam a sua extinção (já ocorrida) – art. 732.º, n.º 4, do CPC.
5. Pelo exposto, declaro extinta, por impossibilidade superveniente, a instância de embargos à execução».
Inconformados, interpuseram os embargantes competente recurso, cuja minuta concluíram da seguinte forma:
«a) Para se considerar ocorrer um pagamento voluntário tem de ser declarado pelo devedor, de forma concludente, aceitar o valor reclamado e pretender extinguir a divida por via de pagamento, algo que não se pode identificar com o facto de, estando penhorada uma fracção autónoma, o executado pretender retirar do preço de venda da mesma parte do valor para permitir que a penhora seja extinta, ficando garantido o valor reclamado;
b) Ocorrendo, no caso, um efectivo interesse na manutenção dos embargos por via dos quais se decide do destino do valor entregue à Agente de Execução, sendo que a substituição da penhora por um valor caução é admitido em qualquer fase do processo e sem especial procedimento ou processamento;
c) De outra forma estar-se-ia a concretizar uma efectiva negação do direito de defesa e da tutela jurisdicional efectiva, na medida em que se coloca alguém na contingência de sofrer danos maiores (devolução em dobro de sinal de contrato promessa) para poder manter a sua posição de embargante;
d) Tanto mais que não é legitimo extinguir o processo executivo sem que, em sede de embargos, estando os mesmos pendentes, se determine da efectiva existência de uma situação de pagamento voluntário;
e) A decisão recorrida, salvo melhor opinião, violou os arts. 751º, nº 5, 779º, nºs 3 e 4, 780º, nº 13 e 849º, nº 1, al. c) todos do Cod. Proc. Civil, bem como afronta o princípio do acesso á justiça, da tutela jurisdicional efectiva e o direito à defesa.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, com as legais consequências, por ser de JUSTIÇA!».
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Constitui questão decidenda saber se os embargos devem prosseguir ou se pelo contrário tal não deve ocorrer em face da extinção da execução, com fundamento no pagamento voluntário da quantia exequenda e custas do processo.
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Constitui facticidade relevante a que foi descrita no relatório supra e para o qual se remete.
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Do direito
Resulta assente nos autos que os embargantes na pendência da execução e dos embargos deduzidos entregaram à Sra. Agente de Execução (AE) determinado valor suficiente para o pagamento da quantia exequenda e custas do processo. Perante esta entrega a Sra. AE extinguiu a execução.
Que valor emprestar a este acto?
No direito civil, discute-se qual a natureza jurídica do cumprimento, quanto à sua estrutura: contrato, negócio jurídico, acto extintivo, acto devido, facto jurídico stricto sensu? (Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, Lisboa, 1975-1976:415 ss).
Seguindo a posição de Pessoa Jorge podemos dizer que o cumprimento é a realização voluntária do comportamento objecto de uma obrigação sendo –lhe aplicável o regime substantivo dos actos voluntários (ibidem:420).
Acontece que neste caso não estamos perante um ACTO MERAMENTE CIVIL, MAS SIM PERANTE UM ACTO PROCESSUAL DOS EXECUTADOS.
Preceitua o artigo 846.º do Código de Processo Civil (são deste código os artigos ulteriormente citados), sob a epígrafe cessação da execução pelo pagamento voluntário: 1. Em qualquer estado do processo pode o executado ou qualquer outra pessoa fazer cessar a execução, pagando as custas e a dívida.
Depois de efectuados a liquidação da responsabilidade do executado e os pagamentos, a execução extingue-se (artigo 849.º, 1, al. b)).
Recorrendo a uma metáfora, diz-se que «o procedimento é composto por vários anéis concatenados entre si, salvo o primeiro, que, como tal, não tem nenhum anel pressuposto, e o último que não é o pressuposto de outro anel» (Nicola Picardi, Manuale del processo civile, Giuffrè Editore, Milano, 2016:208; igual metáfora em Francesco P. Luiso: «pode-se pensar numa corrente pendurada num suporte: cada anel segura os anéis sucessivos e é seguro pelos precedentes, salvo o primeiro e último», Diritto Processuale Civile, Vol. I, Giuffrè, Milano, 2021: 421-422).
Como se podem definir estes anéis?
Na definição de Enrico Redenti actos processuais civis são os actos que dão vida ao processo civil, com os quais este se desenvolve e encerra ou conclui (Enrico Redenti, Atti processuali, Enciclopedia del diritto, IV, Giuffré Editore:105.). Esta definição poderá parecer tautológica, mas dá o mote para abordar o ponto.  
O Capítulo I, do Título I do Livro II do Código de Processo Civil, compõe-se de 72 artigos (artigos 130.º-202.º), dedicados à disciplina dos actos processuais, em geral. As secções II, III e IV são intituladas, respectivamente, Actos das partes (artigos 144.º-149.º), Actos dos magistrados (artigos 150.º-156.º), e Actos da secretaria (artigos 157.º-162.º).
Sem que tal corresponda a qualquer visão privatística, a disciplina positiva toma em consideração, em primeiro lugar, os actos das partes, sem cujo impulso inicial não há processo e que condicionam a actividade do juiz (ne procedat iudex ex officio-artigo 3.º, 1), para depois tratar dos actos dos magistrados, designadamente da forma da sentença (152.º e 153.º), dos deveres de motivação (154.º) e de cumprimento dos prazos para as decisões (156.º), seguindo para os actos da secretaria (157.º-162.º), e, depois, para a publicidade e acesso ao processo (163.º-171.º), e para a comunicação dos actos (172.º185.º), culminando na disciplina das nulidades dos actos (186.º-202.º).
Basta percorrer estes artigos para se perceber que o legislador agrupou os actos processuais em atenção aos sujeitos que os praticam manifestando uma preocupação sistemática em adoptar um modelo adaptável (nem sempre bem) a todos os processos, isto é, quer ao processo declarativo, quer ao executivo, quer ainda aos processos especiais.
Porém, o Código de Processo Civil não tem uma definição do que deva entender-se por acto de processo, ou, melhor, o legislador limita-se a falar de atos processuais, expressão com que encima o Título I do Livro II.
Como refere Paula Costa e Silva, da disciplina positiva «apenas podemos dizer com alguma segurança que, para o legislador, no acto processual está sempre implícita uma ligação entre o acto e o processo» (Paula Costa e Silva, Acto e Proceso, op. cit:189).
Resulta que a construção do conceito de acto processual tem de ser feita praeter legem.
No nosso direito civil, é conhecida a distinção entre factos jurídicos stricto sensu, actos jurídicos e negócios jurídicos.
No processo jurisdicional, esta classificação não é operativa. Justamente porque o processo consiste numa série de actos concatenados e conjugados entre si, tendo em vista determinado fim, todos os actos devem obedecer a uma regulamentação formal «que absorve e anula em si qualquer factor ou elemento, seja ele subjectivo ou objectivo» (Girolamo Monteleone, Manuale di Diritto Processuale Civile, Vol. I, Settima edizione, Wolters Kluwer-Cedam, Vicenza, 2015:276.).
Não quer isto dizer que os actos processuais não sejam factos voluntários. Todavia, trata-se de uma vontade em tudo genérica :«a simples vontade e consciência de realizar o acto, não se exigindo de modo nenhum que seja dirigida a atingir um determinado efeito e não podendo tão pouco determiná-lo e adequá-lo a seu gosto, porque o efeito já está fixado e predeterminado pela lei» (Enrico Tullio Liebman, Manuale di Diritto Processuale Civile, Principi, sesta edizione, Giuffrè editore, Milano, 2002:206).
Salvatore Satta, para quem o acto se identifica com o processo, afirma, por sua vez, que se os actos processuais são todos actos voluntários «a consequência processual (constitutiva, modificativa, etc. do processo) é de todo independente da vontade nele manifestada, e pelo contrário esta vontade não tem em geral nenhum particular relevo» (Salvatore Satta/Carmine Punzi, Diritto Processuale Civile, 12.ª ed., Cedam, Padova, 1996: 237). É, aliás, comum a opinião que nega, ao acto processual, o relevo de eventuais vícios da vontade (Chiara Besso, Il processo civile e le sue alternative, nozioni generali, quarta edizione,  G. Giappichelli Editore, Torino, 2019:192).
Apesar de a lei processual não atribuir efeitos ao acto por referência à vontade dos seus autores não se quer dizer, pelo contrário, que os actos não possam ser interpretados. Ora nada no processo nos permite dizer que a entrega de dinheiro feita pelos embargantes à Sra. Agente de Execução tenha sido feita com o propósito de evitar a venda do imóvel penhorado prometido vender a terceiros (males maiores).
Se foi essa a intenção os embargantes deviam tê-la acautelado no momento da entrega, o que não foi feito, ou então seguir uma outra via processual, no momento próprio, para alcançar tal desiderato.
Por outro lado, se os executados se enganaram ou erraram na entrega, precisamente porque são irrelevantes os vícios de vontade dos actos processuais (constitutivos ou postulativos), não se pode pela via de recurso ou através de outro remédio nesta execução reparar o erro.
Ao se decidir deste modo não se está bem entendido a limitar o direito de defesa dos recorrentes, mas sim a aplicar o que deriva da lei e da melhor doutrina.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
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03.02.2022
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Rui Moura