Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2848/10.9TTLSB.L1-4
Relator: ISABEL TAPADINHAS
Descritores: FACTOS CONCLUSIVOS
ADMINISTRADOR
GRUPO DE SOCIEDADES
CONTRATO DE TRABALHO
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - A expressão “ao serviço da ré”, no contexto de uma acção em que à autora incumbe demonstrar a execução de um contrato de trabalho tem um conteúdo técnico-jurídico, uma conclusão, pelo que não deverá constar da decisão da matéria de facto.
II - O art. 398.º do Cód. Soc. Com. não admite o cúmulo, num mesmo sujeito, das qualidades de Administrador de uma sociedade anónima ou de sociedades que com esta estejam numa relação de domínio ou de grupo e de trabalhador, subordinado ou autónomo, dessa mesma sociedade, seja a constituição do vínculo laboral anterior, simultânea ou posterior à da relação de administração.
III - Além disso, aquele preceito revela uma particular hostilidade relativamente às situações de trabalho conexas com a relação de Administração, que se traduz numa regulação restritiva da possibilidade de o Administrador assegurar uma futura posição remunerada na sociedade administrada.
IV - O contrato que vise o exercício do cargo de Administrador eleito pela Assembleia Geral de accionistas de uma sociedade anónima com estatuto jurídico-laboral é nulo por violar directamente o regime de incompatibilidade entre funções administrativas e laborais previsto no nº 1, do art. 398.º do Cód. Soc. Com., norma de “ordem pública” que contém uma proibição imperativa visando, quer salvaguardar valores éticos nas condutas dos administradores das sociedades anónimas, quer evitar que estes aproveitem o cargo para garantir o futuro à custa da sociedade administrada.
V - O disposto no art. 15.º da LCT, que possibilita a produção de efeitos do contrato de trabalho declarado nulo ou anulado em relação ao tempo durante o qual esteve em execução, não tem aplicação nos casos em que o contrato de trabalho não chegou a ser executado, devendo em tais situações lançar-se mão das consequências gerais previstas no art. 289.º do Cód. Civil para a nulidade do negócio jurídico.
(Elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
AA instaurou acção declarativa com processo comum contra E...- ... SA pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento, condenando-se a ré a reintegrá-la e a pagar-lhe todas as retribuições intercalares desde os 30 dias anteriores à propositura da acção, incluindo prestações complementares de subsídio de alimentação e valores pecuniários correspondente à utilização de viatura, gasolina, cartão de crédito e subsídio para despesas escolares dos descendentes.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, o seguinte:
- a partir da década de 1990 começou a colaborar com a ré na área da investigação aplicada, estudos e desenvolvimentos, em conexão com a sua actividade de docente na área de energia eléctrica como professora do Instituto Superior Técnico;
- em Junho de 2001 foi designada vogal do Conselho de Administração da L... uma empresa do Grupo E... da qual a ora ré era detentora de capital, desempenhando esse cargo e funções até terminar o mandato em 25.06.2003;
- a partir desta data, cessou funções de vogal do CA da L... e foi desempenhar funções de assessora do presidente do Conselho de Administração Executivo da ora ré, sobretudo na área da formação avançada;
- iniciou então com a ré uma verdadeira relação laboral, desempenhando essa actividade nas instalações da ré, com carga horária superior de 7 horas diárias, com apoio administrativo da ré, incluindo funcionários da ré que a co-adjuvavam e na dependência das instruções do Presidente do CA da ré;
- apesar disso, foi nomeada em 25.06.03, vogal do CA de uma outra empresa do Grupo da ré, a M...-Mudança e Recursos Humanos, cuja capital social era detido pela ré, sociedade essa que apenas cobriu formalmente a relação contratual da autora, sendo que tal sociedade praticamente já não tinha qualquer actividade porque transferida para a Plataforma de Formação e Documentação de outra empresa do Grupo, a E...Valor, limitando-se a autora a assinar a documentação necessária e a receber o seu vencimento processado através da referida empresa (M...);
- em Junho de 2006, foi novamente nomeada vogal do CA da L..., empresa do Grupo, cargo que desempenhou até Julho de 2009, sem que isso significasse qualquer alteração ao vínculo laboral que já detinha com a ora ré;
- quando cessou funções no Conselho de Administração da L... pretendeu que a ré lhe atribuísse novas funções, sendo que esta recusou reconhecer a existência de vinculo laboral, negando-se a assumir a posição de empregadora desde Agosto de 2009 em diante, o que equivale a despedimento;
- além de ultimamente receber a quantia fixa de 7.916€ e subsídio de refeição, gozava ainda de outras regalias, como direito de uso de viatura incluindo para uso pessoal com gasolina paga, cartão de crédito para despesas de representação, complemento de despesas de descendentes, que igualmente fazem parte da retribuição e que devem ser incluídos nos intercalares.
Realizada a audiência de partes e não tendo havido conciliação foi ordenada a notificação da ré para contestar, o que ela fez, concluindo pela improcedência da acção com a sua absolvição.
Para tal alegou que:
- a autora nunca manteve relação laboral com a ré, mas sim uma relação de mandato com as empresa do Grupo E... e suas participadas, a saber como vogal do Conselho de Administração da “L... - Estudos, Desenvolvimento e Actividades laboratoriais SA” por deliberação de 28/06/2001, seguidamente de vogal do CA da “M... - Mudança e Recursos Humanos SA” por deliberação de 25.06.03, e finalmente vogal do CA da L... por deliberação de 28.03.06 até Julho de 2009, altura em que deixou de ter qualquer vínculo com as empresas do Grupo E....
Instruída e julgada a causa foi proferida sentença, cujos dispositivo se transcreve:
Julgo procedente a acção e em consequência:
A) Declaro ilícito o despedimento de que a autora foi alvo e condeno a ré a reintegrá-la em idêntica categoria àquela que detinha aquando da suspensão do contrato de trabalho em Junho/2006, nos termos referidos na presente sentença;
B) Condeno a ré a pagar à autora o correspondente ao valor das retribuições (base e complementares supra referidas) que deixou de auferir desde 30 dias antes da propositura da acção até ao trânsito em julgado da presente sentença, a liquidar em execução de sentença, e descontados os valores a que se refere o art. 390, 2, a) e c), do CT/09;
Custas a cargo da ré.
Registe e notifique.
Inconformada com a decisão da mesma interpôs a ré recurso de apelação, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões:
(...)
A autora contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.
Nesta Relação, o Exmo. Magistrado do M.P. teve vista nos autos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 87.º, nº 3 do Cód. Proc. Trab..
Colhidos os demais vistos legais cumpre apreciar e decidir.
Como se sabe, os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas pelas partes e decididas pelos tribunais inferiores, salvo se importar conhecê-las oficiosamente – tantum devolutum quantum appelatum (Alberto dos Reis “Código do Processo Civil Anotado” vol. V, pág. 310 e Ac. do STJ de 12.12.95, CJ/STJ Ano III, T. III, pág. 156).
No caso em apreço, não existem questões que importe conhecer oficiosamente.
A questão colocada no recurso delimitado pelas respectivas conclusões (com trânsito em julgado das questões nela não contidas) – arts. 684.º, nº 3 e 685.º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil – consiste em saber se a autora esteve vinculada perante a ré através de um contrato de trabalho ou manteve somente com as empresas do grupo da ré (e por esta participadas) uma relação de mandato enquanto vogal do conselho de administração.

Fundamentação de facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto não objecto de impugnação e que aqui se acolhe:
(...)

Fundamentação de direito
Como se viu, a autora foi alvo das seguintes nomeações para membro dos conselhos de administração de sociedades do Grupo E...:
a) vogal do Conselho de Administração da L... – Estudos, Desenvolvimento e Actividades Laboratoriais, SA para o triénio 2000-2002, cargo que exerceu entre 28.06.2001 e 25.06.03;
b) vogal do Conselho de Administração da M... – Mudança e Recursos Humanos, SA (adiante designada abreviadamente M...) para o triénio 2003-2005, conforme deliberação de 26.06.03;
c) vogal do Conselho de Administração da L... – Estudos, Desenvolvimento e Actividades Laboratoriais, SA para o triénio 2006-2008, cargo que exerceu entre Junho de 2006 e 30.07.09.
As partes estão de acordo que as relações referidas em a) e c) se desenrolaram no âmbito de um contrato de mandato decorrente da designação da autora como vogal do Conselho de Administração da L..., nenhum desacerto se vendo quanto a esta posição.
O mesmo não sucede, porém, com as referidas na alínea b) que decorreram entre 26.06.03 e 06.06.
Vejamos, então, como qualificar o vínculo existente neste período.
Discute-se a qualificação da relação jurídica estabelecida entre a autora e a ré, entre 26 de Junho de 2003 e Junho de 2006, portanto, constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, em vigor desde 1 de Dezembro de 2003 – art. 3.º, nº 1 - e que subsistiu após o início da vigência deste mesmo Código, cessando após a entrada em vigor da Lei nº 9/2006, de 20 de Março, diploma que alterou a redacção de diversos preceitos do mencionado Código.
As dúvidas sobre a norma aplicável em caso de alteração de um particular regime jurídico encontram solução no próprio ordenamento jurídico.
Como refere Baptista Machado (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, Coimbra, 1983, págs. 229 a 231), os problemas de sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN [lei nova] podem, pelo menos em parte, ser directamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas “disposições transitórias”.
Estas disposições transitórias podem ter carácter formal ou material. Dizem-se de direito transitório formal aquelas disposições que se limitam a determinar qual das leis, a LA [lei antiga] ou a LN, é aplicável a determinadas situações. São de direito transitório material aquelas que estabelecem uma regulamentação própria, não coincidente nem com a LA nem com a LN, para certas situações que se encontram na fronteira entre as duas leis.
A Lei n.º 99/2003 contém normas transitórias que delimitam a vigência do Código do Trabalho quanto às relações jurídicas subsistentes à data da respectiva entrada em vigor, pelo que, para fixar a eficácia temporal daquele Código, há que recorrer aos critérios sobre aplicação da lei no tempo enunciados naquelas normas.
No que agora releva, estipula o nº 1 do art. 8.º da Lei nº 99/2003 que, [s]em prejuízo do disposto nos artigos seguintes, ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.
A norma transcrita corresponde ao art. 9.º do Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de Novembro de 1969, que aprovou o regime jurídico do contrato individual de trabalho, abreviadamente designado por LCT, e acolhe o regime comum de aplicação das leis no tempo contido no n.º 2 do art. 12.º do Cód. Civil.
O nº 2 do artigo 12.º do Código Civil, segundo Baptista Machado (ob. cit. pág. 233), trata-se de norma que ainda exprime o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, nele se distinguindo dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1.ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2.ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js [situações jurídicas]) constituídas antes da LN mas subsistentes ou em curso à data do seu IV [início de vigência].
Sobre essa mesma norma, Oliveira Ascensão (“O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira”, 10.ª edição revista, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 489) pronuncia-se em termos que se afiguram impressivos, estabelecendo a seguinte distinção: 1) A lei pode regular efeitos como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem: nesse caso aplica-se só aos novos factos. Assim, a lei que delimita a obrigação de indemnizar exprime uma valoração sobre o facto gerador de responsabilidade civil; a lei que estabelece poderes e vinculações dos que casam com menos de 18 anos exprime uma valoração sobre o casamento nessas condições; 2) pelo contrário, pode a lei atender directamente à situação, seja qual for o facto que a tiver originado. Se a lei estabelece os poderes vinculações do proprietário, pouco lhe interessa que a propriedade tenha sido adquirida por contrato, ocupação ou usucapião: pretende abranger todas as propriedades que subsistam. Aplica-se, então, imediatamente a lei nova.
Nesta mesma linha, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (“Código Civil Anotado”, volume I, Coimbra Editora, 1967, anotação ao art. 12.º, págs. 18 e 19): [p]revinem-se no n.º 2, em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos, ou referentes aos seus efeitos. Assim, por exemplo, quanto a impedimentos matrimoniais, quanto à capacidade, quanto à legalidade do próprio negócio, quanto à forma, não pode aplicar-se a lei nova a situações anteriores, e o mesmo é de dizer quanto às obrigações do vendedor ou do comprador, quanto aos direitos ou obrigações do locatário ou do senhorio, quanto à obrigação do mutuário, etc.
Se, porém, tratando-se do conteúdo do direito, for indiferente o facto que lhe deu origem, a nova lei é já aplicável. Assim, para fixar o conteúdo do direito de propriedade, é aplicável a lei nova e não a lei da data da sua constituição. Não interessa, na verdade, saber qual foi o título constitutivo, nem qual foi, por consequência, a data da formação deste. É sempre o mesmo direito de propriedade. O mesmo acontece, geralmente, com os direitos de natureza perpétua […].
Acompanha-se tal entendimento, donde, não estando em causa qualquer das situações especificamente previstas nos arts. subsequentes ao art. 8.º da Lei nº 99/2003 e tendo em atenção que a relação jurídica em apreciação se iniciou em 23 de Março de 2003 e cessou em Junho de 2006, aplica-se, no caso, o regime instituído no Código do Trabalho, na sua versão original, ou seja, anterior à redacção conferida pela Lei nº 9/2006, salvo quanto às condições de validade do contrato ou efeitos de factos ou situações totalmente passados antes da entrada em vigor do Código do Trabalho.
Por isso, quando o Código do Trabalho regula os efeitos de certos factos, como expressão duma valoração dos factos que lhes deram origem, deve entender-se que só se aplica aos factos novos.
O art. 12.º do Cód. Trab. estabelece a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de cinco requisitos, o que traduz uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção; por conseguinte, para efeitos de qualificação contratual das relações estabelecidas entre as partes, deve considerar-se que o Código do Trabalho só se aplica aos factos novos, ou seja, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 1 de Dezembro de 2003 e, nessa linha de orientação, admite-se que uma relação contratual iniciada em determinado momento em que não valia essa presunção pode sofrer uma inflexão relevante, v.g. nos termos da execução da prestação em momento ulterior à entrada em vigor da presunção, o que justifica que seja equacionada a aplicação dessa presunção – essa alteração de execução pode valer, para os efeitos em causa, como um facto novo, equiparável à constituição de uma nova relação (Acs. de 2.05.2007, proc. nº 06S4368, de 22.04.2009, proc. nº 08S3045 e de 12.05.2010, proc. nº 1394/06.0TTPNF.P1.S1, disponíveis em www.dgsi.pt)
Ora, não se extraindo da matéria de facto dada como provada que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de Dezembro de 2003, os termos da relação jurídica entre elas estabelecida, à qualificação daquela relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei nº 49.408 de 24 de Novembro de 1969, adiante designado por LCT.
Adiante-se, desde já que, caso se venha a entender que a relação em apreço nos autos é de trabalho subordinado ela passou a estar sujeita ao Código do Trabalho, após a data em que este entrou em vigor.
Entrando, agora, na apreciação da questão da qualificação do contrato, importa referir que [c]ontrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta - arts. 1.º da LCT e 1152.º do Cód. Civil.
Assim, o contrato de trabalho caracteriza-se, essencialmente, pelo estado de dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face à entidade patronal, sendo que o laço de subordinação jurídica resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direcção do empregador que lhe dá ordens, e na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da actividade.
A subordinação jurídica que caracteriza o contrato de trabalho decorre precisamente daquele poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora - nº 1 do art. 39.º da LCT - a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador - alínea c) do nº 1 do art. 20.º da LCT.
Todavia, como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.
É o que acontece nos casos em que o trabalho é prestado com grande autonomia técnica e científica do trabalhador, nomeadamente quando se trate de actividades que tradicionalmente são prestadas em regime de profissão liberal.
Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa, exercício de funções em regime de exclusividade) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização).
Cada um daqueles indícios tem naturalmente um valor muito relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade (Monteiro Fernandes, “Direito do Trabalho”, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 145), a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.
Sublinhe-se que incumbe ao trabalhador, nos termos do disposto no nº 1 do art. 342.º do Cód. Civil, fazer a prova dos elementos constitutivos do contrato de trabalho, nomeadamente, que desenvolve uma actividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direcção do beneficiário da actividade, demonstrando que se integrou na estrutura empresarial do empregador.
A sentença recorrida, depois algumas considerações gerais sobre a figura do contrato de trabalho, nomeadamente sobre a sua noção, requisitos e critérios de avaliação, entendeu ser ao caso aplicável o Cód. Trab. de 2003 - entendimento este que não acompanhamos pelas razões antes referidas -, e concluiu que a factualidade provada permite afirmar a existência, no apontado período, de um contrato de trabalho entre a autora e a ré, escrevendo-se, a este respeito o seguinte:
Da matéria provada, e recorrendo aos indícios de subordinação supra referidos, verificamos que são inúmeros aqueles que apontam para a existência de subordinação jurídica, a saber: o despenhar da actividade em local organizado pela ré e por esta controlado; com instrumentos da ré (vg. telefones, veículo); com pagamento de uma retribuição certa (7.232,37€) pois quando iniciou funções na área da formação continuou a receber o mesmo e a ter idênticas regalias, pelo que será este o seu estatuto remuneratório; quanto ao horário de trabalho, a autora, embora não tivesse que o observar com rigor tal como acontecia com toda a alta direcção da ré, a verdade é que o facto de observar por regra um período diário que excedia as 7 horas diárias cumpridas nas instalações da ré, faz caracterizar este item como indicio de subordinação dado que a autora ali estava na disponibilidade do presidente do CA e a não fora a gerir livremente do seu tempo; o receber instruções e orientações do PCAE; e também a completa inserção na organização, inclusive com funcionários próprios atribuídos pela ré para a co-adjuvarem e que a ela reportavam.
Assim sendo, todos estes factos são suficientes e abundantes para se concluir pela existência de um contrato de trabalho, quer se recorra aos índices de subordinação jurídica, quer se recorra às referidas presunções, índices em quantidade e qualidade muito superiores ao único que vemos como própria de prestação autónoma, consistente na falta de exclusividade, que por isso fica anulado.
Pelo que concluímos pela existência de vínculo de natureza laboral neste segundo período de 26/06/03 e 6/2006.
Contra esta decisão se insurge a ré, que continua a sustentar que há indícios presentes nos factos provados que incutem a não-existência de subordinação jurídica, como são o não cumprimento pela A. de horário de trabalho, a autonomia e responsabilidade directa da A. pelas actividades, pelouros e projectos que lhe foram atribuídos no âmbito e ao nível da gestão corporativa da estrutura organizativa do Grupo E..., a inexistência de subordinação económica e de exclusividade, a não observância pela A. do regime fiscal e de segurança social próprios dos trabalhadores por conta de outrem e que a Recorrida também denotou não desconhecer o regime específico que lhe era aplicável do nº 1 do artigo 398º do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual é peremptória a incompatibilidade absoluta entre as funções de administrador de uma sociedade anónima e as funções temporárias ou permanentes ao abrigo de um contrato de trabalho celebrado com essa sociedade ou qualquer outra que com ela se encontre numa relação de grupo ou domínio.
Não acompanhamos a decisão sindicada isto porque conjugando entre si a matéria de facto provada, conclui-se que a autora não logrou provar indícios suficientes da existência de subordinação jurídica.
Na verdade o que se provou foi que:
- a autora, a partir de 1987, exerceu funções docentes em regime de dedicação exclusiva na área da energia eléctrica, como Professora do Instituto Superior Técnico de Lisboa, tendo sempre mantido uma relação laboral com o Instituto Superior Técnico na qualidade de Professora Associada;
- tanto a ré, como o Instituto Superior Técnico e a Universidade Técnica de Lisboa, de que a autora, à altura, era Pró-Reitora, manifestaram particular interesse em que a autora exercesse a sua actividade em acumulação de funções, por considerarem que isso constituiria um benefício para as respectivas instituições;
- em 25 de Junho de 2003, a autora cessou funções como administradora da L..., sociedade anónima que faz parte do Grupo E...;
- nessa mesma data a autora foi eleita vogal do Conselho de Administração da sociedade M... – Mudança e Recursos Humanos, S.A, sociedade anónima cujo capital era inteiramente detido pela ré e que tem por objecto social a consultoria e prestação de serviços no âmbito da formação profissional e outras áreas de gestão de recursos humanos, bem como o exercício de actividades relacionadas com aquelas;
- a partir de então a autora passou a desempenhar as funções de formação de chefias e cargos superiores das empresas do Grupo E... por convite do Presidente do Conselho de Administração Executivo da E... e subscrevia a documentação necessária à M...;
- a autora recebia em 2003 quando ainda era Administradora da L... a remuneração mensal fixa de € 7232,57, a que acresciam os benefícios do Acordo Colectivo de Trabalho (tais como assistência médica para o agregado familiar e subsídio de estudo a descendentes) e demais regalias atribuídas também à Alta Direcção do Grupo E...;
- a autora continuou a receber a mesma verba e a deter as mesmas regalias quando passou a exercer as funções supra referidas na área da formação;
- a referida verba era processada e paga pela M...;
- a autora observava o regime fiscal e de segurança social próprios dos administradores, efectuando as respectivas contribuições no regime dos órgãos estatutários.
É certo que a autora desempenhava a sua actividade nas instalações das ré, utilizava instrumentos àquela pertencentes e funcionários por ela disponibilizados; porém, a execução da actividade nas instalações da ré e com meios materiais e humanos por ela disponibilizados é compatível tanto com o contrato de trabalho como com as funções de administrador de uma sociedade – a M... - cujo capital era inteiramente detido pela ré e, que, como se provou, já em 25 de Junho de 2003, praticamente não tinha actividade, tendo no decurso desse ano de 2003, a ré tomado a decisão de desactivar a M..., transferindo as suas actividades para a criada Plataforma de Formação e Documentação da E... Valor, empresa também inteiramente detida pela ré muito embora ainda tenham sido designados órgãos sociais na M... para o triénio seguinte de 2006-2008 e a respectiva dissolução e liquidação só tenha sido registada em 14 de Maio de 2009.
Doutro passo, não se provou que a ré tenha fixado à autora qualquer horário de trabalho, nem efectuado o controlo da respectiva assiduidade, ou sequer a sujeição da autora ao poder disciplinar da ré, sendo a matéria de facto totalmente omissa no que toca ao direito a férias.
Neste contexto, a menção feita no facto provado 8º da petição inicial “passando, ao serviço da ré, a desempenhar as funções de formação de chefias e cargos superiores das empresas do Grupo E...” (sublinhado nosso), é utilizada numa formulação mais corrente e não com um sentido técnico-jurídico rigoroso, pelo que é probatoriamente inócua, não sendo decisiva para a qualificação do contrato em causa.
Aliás, se dessa expressão se pudesse extrair qualquer valoração jurídica da questão em causa, deveria ter-se como não escrita, nos termos do nº 4 do art. 646.º do Cód. Proc. Civil, já que, nessa perspectiva, configuraria matéria com inquestionável sentido jurídico e que se integra no thema decidendum.
Num outro plano de consideração, embora tenha ficado provado que a autora recebia directamente do Presidente do Conselho de Administração Executivo da E..., orientações sobre o trabalho que devia realizar na área de formação de altos quadros/chefias e os objectivos a atingir pela autora e que era também perante o Presidente do Conselho de Administração Executivo da E..., que a autora informava os resultados deste trabalho que efectuava e recebia orientações para a execução dos projectos que a ele apresentava estes factos não assumem relevo significativo, dada a especificidade própria da actividade de um qualquer membro do conselho de administração de uma sociedade anónima, que deve respeitar a competência normal dos outros administradores ou do conselho, nos termos da lei - arts. 405.º a 407.º do Cód. Soc. Com..
Assim, um administrador, pelo simples facto de o ser, não passa a ser dono e senhor absoluto da empresa, integra sim uma equipa, tem normalmente pelouros distribuídos e deverá integrar-se na organização existente e actuar em função dela e no respeito das regras estabelecidas, sendo absolutamente normal que deva obedecer às determinações do administrador competente nas outras áreas que não as que lhes estão distribuídas.
De resto, ficou provado que as sociedades do Grupo E..., incluindo a ré, têm uma gestão colegial que integra os membros dos conselhos de administração (ou de gerência) respectivos, aos quais é atribuída a responsabilidade pelas unidades de negócio que definem a estrutura da organização do Grupo E..., desenvolvidas pelas referidas sociedades e bem assim a responsabilidade por actividades/pelouros/projectos específicos, mormente transversais a todo o Grupo E..., necessários e ou com interesse para a sua afirmação como grande operador europeu do sector da energia, vg as actividades de investigação e desenvolvimento, abrangendo a formação profissional e que a gestão colegial no Grupo E... é liderada, actualmente pelo Presidente do Conselho de Administração Executivo (anteriormente, pelo Presidente da Comissão Executiva) da ré, o qual, entre o mais, dinamiza e articula a actividade dos seus pares.
Impressiona, o teor do facto provado constante do art. 19º da petição inicial [e]ra o PCE (Presidente do Conselho de Administração Executivo) da E... quem avaliava profissionalmente a autora.
Contudo, este indício, só por si não é concludente quanto à existência de subordinação jurídica, impondo-se uma valoração conjunta dos factos provados, maxime o facto de ser o Presidente do Conselho de Administração Executivo da E... quem liderava a gestão colegial do Grupo E....
O mesmo se diga da não assunção de risco empresarial por banda da autora.
Ora, a actividade prestada pela autora como vogal do Conselho de Administração da M... teve em vista a gestão da actividade daquela sociedade - consultoria e prestação de serviços no âmbito da formação profissional e outras áreas de gestão de recursos humanos – ainda que num processo de desactivação e transferência da actividade para a criada Plataforma de Formação e Documentação da E... Valor, empresa também inteiramente detida pela ré.
Nesta conformidade, atendendo ao conjunto dos factos provados, conclui-se que a autora não fez prova, como lhe competia – art. 342.º, nº 1, do Cód. Civil -, de que a relação contratual que vigorou entre as partes revestia a natureza de contrato de trabalho, pelo que improcedem os pedidos por si formulados na presente acção, que tinham justamente por fundamento a existência de uma relação laboral entre 26.06.03 e 06.2006.
A idêntica conclusão chegaríamos se perfilhássemos a tese da decisão sindicada entendendo que no apontado período vigorou um contrato de trabalho.
A questão a colocar seria então a de saber se, à face da nossa lei, é possível acumular a qualidade de administrador societário com a de trabalhador subordinado e em que medida é possível estabelecer relações laborais conexas com a relação de administração.
Conforme tem constituído doutrina e jurisprudência pacíficas, a lei é frontalmente desfavorável ao cúmulo, num mesmo sujeito, das qualidades de Administrador de uma sociedade anónima e de trabalhador, subordinado ou autónomo, dessa mesma sociedade, seja a constituição do vínculo laboral anterior, simultânea ou posterior à da relação de administração.
E revela, além disso, uma particular hostilidade relativamente às situações de trabalho conexas com a relação de Administração.
É o que resulta com clareza do disposto no art. 398.º do Cód. Soc. Com. (inscrito no título relativo às sociedades anónimas), que prescreve nos seguintes termos:
1 - Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.
2 - Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça qualquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano.
(...)
Assim, o nº 1 impede a coexistência do vínculo laboral e de Administrador de uma mesma sociedade ao proibir aos administradores de sociedades anónimas, durante o período para o qual foram designados, o exercício, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo de quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, bem como a celebração de quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviços quando cessarem as funções de administrador.
Por seu turno, o nº 2 resolve essa incompatibilidade entre os vínculos laboral e de administração pela suspensão do primeiro com a assunção do cargo de Administrador, se tiver sido celebrado há mais de um ano, e pela extinção do mesmo, se tiver sido celebrado há menos de um ano.
Daqui resulta que o exercício das funções de um Administrador societário não pode assentar, nunca, num contrato de trabalho.
Várias razões justificam esta opção legislativa.
Em primeiro lugar, a tutela da independência, autonomia e idoneidade do Administrador. Neste sentido, a norma insere-se num conjunto mais abrangente, que visa evitar conflitos de interesses e garantir que o Administrador social vá agir em conformidade com o art. 64.º do Cód. Soc. Com., isto é, prosseguir o interesse social tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores. Competindo ao conselho de administração de uma sociedade, nos termos do art. 405.º do indicado Código, gerir as actividades da sociedade – nestas se incluindo, inter alia, a abertura ou encerramento de estabelecimentos, extensões ou reduções assinaláveis da sua actividade, introdução de modificações importantes na sua organização e projectos de fusão, cisão ou transformação - alíneas g), h), i) e m) do art. 406.º –, torna-se patente a repercussão que aquela gestão possa, eventualmente, vir a ter no universo dos trabalhadores da sociedade, com a consequente possibilidade de surgimento de conflitos de interesses entre aqueles e esta.
Além disso, o risco acrescido de fraude na constituição de relações laborais. Como escreve Ilídio Rodrigues (“A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas - Organização e Estatuto dos Administradores”, Lisboa, 1990, pág. 307.), a proibição do cúmulo (…) visa evitar que as garantias de estabilidade concedidas pelo Direito do Trabalho restrinjam o funcionamento efectivo do princípio da livre destituição do administrador, evitando-se abusos e fraudes, nomeadamente através da celebração de um contrato de trabalho fictício, anterior à designação, para garantir ao futuro administrador as regalias laborais após a cessação das suas funções. Assim, perante a nomeação como administrador da sociedade de um seu trabalhador cujo contrato de trabalho tenha sido celebrado há menos de um ano, o nº 2 do art. 398.º do Cód. Soc. Com. estabelece a extinção do contrato por a escassa duração do vínculo fazer avolumar o receio de fraude. Embora a situação se não reconduza à contemplada no art. 398.º, n.º 1, in fine - em que o Administrador utiliza o cargo para obter um vínculo com a sociedade quando cessar funções - existe uma grande afinidade entre elas. É lícito, razoavelmente, temer que o Administrador tenha condicionado a aceitação da designação à obtenção de um vínculo que, apesar de anterior – ao menos formalmente – ao exercício do cargo, se projecta sobretudo no futuro, uma vez cessada a Administração. A questão com que se defronta em tais casos o ordenamento reside justamente em evitar celebrações de contratos temporalmente próximos da designação e presumivelmente fraudulentos, para conseguir a manutenção, após a cessação do cargo de Administrador, de um vínculo remunerado com a sociedade.
Finalmente, o perigo de subversão da hierarquia e da organização empresarial, que situações de confusão ou de ambiguidade de papéis potenciam.
Estas razões conferem à norma um cariz de “ordem pública” e afastam-na da disponibilidade das partes, aplicando-se mesmo contra a vontade destas.
Perante esta regulação normativa, a jurisprudência tem considerado que, para além de ser muito difícil detectar nestes casos em termos fácticos uma situação de subordinação jurídica, a eventual coexistência desta com a aludida qualidade social implica a nulidade do contrato de trabalho por violação da proibição constante do art. 398.º do Cód. Soc. Com..
Como se decidiu no Ac. do STJ de 9.04.2008 (doc. nº SJ20080409016954, disponível em www.dgsi.pt), que aqui seguimos de perto e em que se cita numerosa jurisprudência no mesmo sentido, designadamente o Acs. desse Tribunal de 30.09.2004 (AD, 552., pág. 1074) e de 17.10.2007 (AD 554.º, pág. 446), o preceito do art. 398.º, nº 1 é incontornável, por imperativo, implicando a nulidade do contrato de trabalho que o administrador celebre, ainda que confirmado em Assembleia Geral da sociedade anónima, sendo a deliberação desta também nula de acordo com o que dispõe o art. 56.º, nº 1, alínea d) do Cód. Soc. Com..
Haverá pois de concluir-se pela absoluta incompatibilidade dos vínculos laboral e de administração e, também, por uma hostilidade da lei relativamente às relações laborais conexas com a relação de administração, que se traduz numa regulação restritiva da possibilidade de o Administrador assegurar uma futura posição remunerada na sociedade, o que é comum à generalidade dos tipos societários previstos na nossa lei, e que, é mais visível e acentuado no domínio das sociedades anónimas.
Nas suas contra-alegações, a recorrida vem suscitar a inconstitucionalidade do nº2 do art. 398.º do Cód. Soc. Com., a fim de se subtrair à aplicação do respectivo regime.
Não se desconhece que o Tribunal Constitucional (Ac. de 9.10.96, DR, II Série, nº 288 de 13 de Dezembro de 1996), considerou que o nº 2 do art. 398.º do Cód. Soc. Com., na parte em que considera extintos os contratos de trabalho, subordinado ou autónomo, celebrados há menos de um ano contado desde a data da designação de uma pessoa como administrador e a sociedade que, com aquela, estejam em relação de domínio ou de grupo, padece de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto na alínea d) do art. 55.º e na alínea a) do nº 2 do art. 57.º um e outro da Constituição da República Portuguesa.
Note-se, porém que o Ac. do mesmo Tribunal Constitucional de 30.05.2001, DR, II Série, nº 254 de 2 de Novembro de 2001 aborda o art. 398.º, nº 2 do Cód. Soc. Com. na parte em que determina a suspensão dos contratos de trabalho subordinado celebrado há mais de um ano e considera que o mesmo não é formalmente inconstitucional na dimensão normativa questionada, por não implicar uma directa repercussão na situação jurídica dos trabalhadores, na medida em que não inova na regulamentação jurídica substantiva desses trabalhadores, ao invés do que insinua a recorrida.
No caso sub judice, contudo, esta questão de inconstitucionalidade não chega a colocar-se na medida em que se concluiu que o contrato de trabalho é nulo por violação do nº 1 do art. 398.º do Cód. Soc. Com..
Só se se houvese concluído que se estabeleceu validamente entre as partes um vínculo de acordo com o qual a autora exerceu a sua actividade em benefício da ré de modo juridicamente subordinado antes de ser eleita vogal da administração, é que se colocaria a questão de saber se, por força da aplicação do nº 2 do art. 398.º, se verificaria a cessação da relação laboral na data da eleição da autora para o referido cargo.
A questão da constitucionalidade do n.º 2 do art. 398.º do Cód. Soc. Com., na parte em que considera extintos os contratos de trabalho, subordinado ou autónomo, celebrados há menos de um ano contado desde a data da designação de uma pessoa como administrador carece, pois, de relevância prática para a solução a adoptar no caso em apreço.
Se o contrato de trabalho é nulo, não há que lançar mão do disposto no art. 398.º, nº 2 para fazer operar a estatuição no mesmo contida: a extinção do vínculo laboral como consequência da extinção do vínculo de administração por ter o primeiro sido firmado menos de um ano antes da designação.
E, consequentemente, não tem relevo para a solução do caso vertente aferir da constitucionalidade deste preceito no segmento em causa. No que diz respeito à incompatibilidade entre os vínculos laboral e de Administração consagrada no nº 1 do art. 398.º, a sua conformidade com o texto constitucional tem sido afirmada, sem que se conheçam discrepâncias, quer pela jurisprudência do STJ, quer pela jurisprudência do Tribunal Constitucional – vide o Ac. do STJ de 7 de Março de 2007 (Recurso n.º 4476/06, da 4.ª Secção) e o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 539/2007 de 30 de Outubro de 2007, que considerou improcedente a ali invocada inconstitucionalidade formal, orgânica e material do n.º 1 do art. 398.º, disponível em www.tribunalconstitucional.pt .)
Vem também a recorrida defender uma interpretação restritiva da norma do art. 398.º, nº 2 Cód. Soc. Com. apoiada na ratio da própria norma, admitindo-se que pode coexistir a qualidade de trabalhador subordinado na empresa dominante com a qualidade de administrador ou titular de outro órgão social na sociedade dominada ou dependente.
Na interpretação restritiva, o intérprete chega à conclusão de que o legislador adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer (Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pág. 186).
A interpretação restritiva tem lugar nos seguintes casos: se o texto entendido no modo tão geral como está redigido viria a contradizer outro texto de lei; se a lei contém em si mesma uma contradição íntima (o chamado argumento ad absurdum) ou se o princípio, aplicado sem restrições ultrapassa o fim para que foi ordenado.
Se necessidade de cuidarmos de saber se no caso é possível perfilhar a pretendida interpretação restritiva, o que temos por muito duvidoso, há que referir aqui que esta questão carece, também, de relevância prática para a solução a adoptar no caso em apreço.
Ora, os tribunais não têm que apreciar questões que signifiquem um mero exercício teórico, sem possibilidade de relevância efectiva, seja qual for a posição que sobre as mesmas venha a ser adoptada.
De facto, como já se disse, se o contrato de trabalho é nulo, não há que lançar mão do disposto no art. 398.º, nº 2 para fazer operar a estatuição no mesmo contida: a extinção do vínculo laboral como consequência da extinção do vínculo de administração por ter o primeiro sido firmado menos de um ano antes da designação.
E, consequentemente, não tem relevo para a solução do caso vertente aferir da pretendida interpretação restritiva do preceito.
No contexto da presente decisão, esta questão assume contornos de uma verdadeira questão académica, de um puro moot case de todo insusceptível de apresentar relevância substancial no processo, por não ter qualquer interferência na decisão de mérito.
Em resumo se dirá que, ainda que se concluísse pela existência de um vínculo de natureza laboral, outorgado entre a recorrida e a recorrente, que vigorou no período compreendido entre 26.06.03 e 06.2006 durante o qual a primeira esteve investida no cargo de vogal do conselho de administração da sociedade M..., sempre tal vínculo seria nulo por contrariar o regime imperativo estabelecido pelo nº 1 do art. 398.º do Cód. Soc. Com., de modo que a nova designação da recorrida, como vogal do Conselho de Administração da L..., não importou a suspensão do putativo contrato de trabalho outorgado com a recorrente.
De facto, a norma imperativa não pode simultaneamente produzir a nulidade do contrato de trabalho e a suspensão deste que contraria aquela, visto que são efeitos juridicamente incompatíveis: a nulidade tem efeitos retroactivos, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289.º do Cód. Civil), não sendo aqui aplicável o disposto no art. 15.º da LCT a que corresponde o art. 115.º do Cód. Trab. de 2003, visto que o contrato nulo não chegou a executar-se, ao passo que a suspensão consiste na manutenção do vínculo, apesar da paralisação dos seus principais efeitos, ou seja, dos direitos e deveres que pressupõe a efectiva prestação de trabalho.
Sendo o contrato de trabalho nulo ele é ininvocável, o que significa que a recusa da ré em receber a autora quando esta terminou, em 30.07.2009, o segundo mandato como vogal do Conselho de Administração da L... não equivale juridicamente a um despedimento, razão pela qual, também nesta perspectiva, improcedem os pedidos formulados pela autora na presente acção.

Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando a decisão recorrida e absolvendo a ré do pedido.
Custas pela recorrida.

Lisboa 6 de Fevereiro de 2013

Isabel Tapadinhas
Leopoldo Soares
José Eduardo Sapateiro
Decisão Texto Integral: