Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10602/2005-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: DIVÓRCIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/18/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Ao verificar se a sentença estrangeira revidenda é incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português o tribunal deve ter especialmente em conta o resultado da decisão e não propriamente a norma em abstracto em que a decisão se apoia.
II – Face à evolução que a concepção do casamento e da sua dissolução têm sofrido tanto no mundo ocidental como em Portugal, uma sentença estrangeira que decrete um divórcio com base na vontade de um só dos cônjuges, sem invocação de nenhum motivo fundamentador, não conduz a um resultado manifestamente violador dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.
III – A norma do direito marroquino que estabelece como prerrogativa exclusivamente masculina o repúdio, forma de dissolução do matrimónio que não carece da necessidade de invocação de qualquer motivo, viola o princípio da igualdade entre os cônjuges, princípio esse que integra a ordem pública internacional do Estado Português.
IV – Porém, a violação do princípio da igualdade só se manifesta quando se recusa à mulher a possibilidade de pôr fim ao casamento por sua exclusiva vontade, nos mesmos termos em que tal é concedido ao homem.
V – Não contraria manifestamente a ordem pública internacional do Estado Português a sentença de um tribunal marroquino que homologa o divórcio, por repúdio, de um português, casado com uma cidadã marroquina.
VI – A norma do direito marroquino que permite a revogabilidade do divórcio/repúdio, ou seja, o retomar dos laços matrimoniais após o repúdio, por simples vontade do marido, atenta contra o princípio da igualdade entre os cônjuges e contra a dignidade do ser humano, base fundamental da República Portuguesa.
VII – Porém, a revisão da sentença do tribunal marroquino que homologou o divórcio/repúdio revogável, não deve ser rejeitada se o cônjuge marido tiver deixado expirar o prazo para exercer o aludido direito de revogação e, consequentemente, na ordem jurídica marroquina a dissolução do matrimónio tornou-se definitiva.
(JL)
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 24 de Outubro de 2005 Rui M F S G, de nacionalidade portuguesa, residente em Estremadouro, Souto da Carpalhosa, Leiria, propôs a presente acção declarativa com processo especial de revisão de sentença estrangeira contra Fátima E, com última residência conhecida em Marrocos e em Portugal no Porto .
Alega, em síntese, que por acto de repúdio, a que corresponde o divórcio, homologado em de 2004 pelo Tribunal de Rabat, Reino de Marrocos, foi dissolvido o matrimónio entre o ora Requerente e a Requerida.
Conclui pedindo que a referida sentença seja revista e confirmada em Portugal, por forma a produzir os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa.
Citada editalmente, nos termos legais, a requerida não deduziu oposição ao presente processo.
Em alegações, e após ter este tribunal alertado as partes para eventual contraditoriedade entre a sentença revidenda e a ordem pública internacional do Estado Português, tanto o Requerente como o Ministério Público (que igualmente representa a Requerida ausente) concluíram pela procedência da pretensão do Requerente.
Foram colhidos os vistos legais.
O tribunal é o competente e não se verificam excepções dilatórias, nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento da causa.
Está provada a seguinte
MATÉRIA DE FACTO
1. O ora Requerente e a ora Requerida casaram um com o outro em 2000, no Tribunal de Rabat, Secção Notarial, Marrocos.
2. Em 2004, na sequência de procedimento de repúdio desencadeado pelo ora Requerente, contra a ora Requerida, o Tribunal de Rabat, Secção Notarial, do Reino de Marrocos, homologou o divórcio, por acto de repúdio, revogável durante o período de retiro legal, entre o ora Requerente e a Requerida.
3. A sentença de homologação foi proferida após a ora Requerida ter sido citada para os termos do referido processo e para comparecer a tentativa de conciliação, a que faltou.
4. A referida sentença não foi alvo de qualquer impugnação, tendo transitado em julgado.
5. À data do divórcio o Requerente residia em Portugal e a Requerida em Marrocos.
O DIREITO
Nos termos do disposto no art.º 1096º do Código de Processo Civil, para que a sentença estrangeira seja confirmada é necessário que:
a) Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) A sentença tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) A sentença provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) O Réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) A sentença revidenda não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
O art.º 1101º do Código de Processo Civil estipula que o tribunal deve verificar oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) supra citadas; quanto às restantes condições, o tribunal deve negar a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum ou alguns desses requisitos.
No caso vertente mostram-se preenchidos os requisitos indicados sob as alíneas a), b) e e) e não se vislumbra fundamento para pôr em questão a verificação dos restantes requisitos, com ressalva da análise do enunciado em último lugar, análise que se efectuará de seguida.
Conforme expende Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado I, Almedina, 2000, pág. 406), cada Estado tem os seus valores jurídicos fundamentais, de que entende não dever abdicar, e interesses de toda a ordem, que reputa essenciais e que em qualquer caso lhe incumbe proteger. Tal implica que a aplicação da lei estrangeira será recusada “na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, tido por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local”.
A actual redacção da alínea f) do artigo 1096º do Código de Processo Civil foi introduzida pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12.12. A redacção anterior exigia que a sentença revidenda não contivesse “decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa”, ao passo que no texto actual exige-se que a sentença “não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.
Reatando a citação de Ferrer Correia (obra supra identificada, pág. 483), “não é, portanto, a decisão propriamente que conta, mas o resultado a que conduziria o seu reconhecimento. A decisão pode apoiar-se numa norma que, considerada em abstracto, se diria contrária à ordem pública internacional do Estado português, mas cuja aplicação concreta o não seja.”
Acresce que a introdução do advérbio “manifestamente” pretende frisar o carácter excepcional da intervenção da ordem pública.
No dizer do Supremo Tribunal de Justiça, “a excepção de ordem pública internacional ou reserva de ordem pública prevista na al.f) do art. 1096º só tem cabimento quando da aplicação do direito estrangeiro cogente resulte contradição flagrante com e atropelo grosseiro ou ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica nacional e, assim, a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado a entende. Só há que negar a confirmação das sentenças estrangeiras quando contiverem em si mesmas, e não nos seus fundamentos, decisões contrárias à ordem pública internacional do Estado Português - núcleo mais limitado que o correspondente à chamada ordem pública interna, por aquele historicamente definido em função das valorações económicas, sociais e políticas de que a sociedade não pode prescindir, mas operando em cada caso concreto para afastar os resultados chocantes eventualmente advenientes da aplicação da lei estrangeira. O cabimento daquela reserva só, por conseguinte, se verifica quando o resultado da aplicação do direito estrangeiro contrarie ou abale os princípios fundamentais da ordem jurídica interna, pondo em causa interesses da maior dignidade e transcendência, sendo, por isso, "de molde a chocar a consciência e a provocar uma exclamação" (acórdão de 21.02.2006, internet, dgsi-itij, processo 05B4168).
Sobre a aplicação da cláusula da ordem pública, Ferrer Correia refere, a ela aderindo, a teoria do efeito atenuado dessa cláusula. Segundo essa teoria, surgida em França, a ordem pública pode operar de modo diverso conforme se trate de adquirir um direito no estado do foro, ou de permitir que um direito adquirido sem fraude no estrangeiro produza no estado do foro os seus efeitos. Por exemplo, suponha-se um divórcio estrangeiro, na sequência do qual os ex-cônjuges contraíram segundas núpcias. O não reconhecimento do divórcio teria mais inconvenientes do que o próprio reconhecimento, e o efeito social perturbador daquela primeira solução seria mínimo, atentas as circunstâncias do caso (Ferrer Correia, obra citada, páginas 414 e 415).
Sobre o caso do repúdio, Ferrer Correia manifesta as suas dúvidas:
O repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano ofende o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges. Mas se a mulher deu o seu assentimento ao repúdio – ou no próprio acto ou mesmo posteriormente – não se descortinam razões para fazer apelo à ordem pública; isto no caso de o repúdio ter sido realizado no estrangeiro, ao abrigo da lei do domicílio comum das partes, competente nos termos do art.º 31º, nº 2 do Código Civil. O mesmo se diga se é a mulher quem pede em Portugal o reconhecimento dos efeitos do repúdio, v.g., porque pretende contrair segundo casamento” (obra citada, páginas 415 e 416; aderindo a esta visão do repúdio, embora a propósito da revisão de uma decisão de regulação do poder paternal, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 03.10.2006, internet, dgsi-itij, processo 454-2006-7).
O repúdio, segundo a tradição muçulmana e conforme está regulado no Código da Família marroquino, constitui uma prerrogativa exclusivamente masculina, uma forma de dissolução do matrimónio que depende apenas da vontade do marido, sem necessidade de invocação de qualquer motivo nem possibilidade de oposição por parte da mulher (cfr. artigos 79º a 93º do Código da Família marroquino, aprovado pelo Dahir nº 1-04-22, de 03.02.2004, publicado em língua árabe no Bulletin Officiel nº 5184, em 05.02.2004 – 14 hija 1424, no calendário muçulmano -, e cuja versão em língua francesa está publicada no “Bulletin Officiel” nº 5358 de 06.10.2005, pág. 667 e seguintes, consultável na internet, no sítio do Ministério da Justiça de Marrocos, http://www.justice.gov.ma/MOUDAWANA/Code famille.; cfr, sobre o repúdio segundo a lei muçulmana, Ferrer Correia, obra citada, páginas 458 e 459, e Fidélia Proença de Carvalho, “A filosofia da ruptura conjugal”, Edição Pedro Ferreira, Lisboa, 2002, páginas 162 a 165).
Na ordem jurídica portuguesa o casamento pode dissolver-se sem invocação de qualquer fundamento, se houver mútuo consentimento dos cônjuges (artigo 1775º do Código Civil). Por outro lado, o divórcio pode ser decretado por iniciativa de um dos cônjuges, contra a vontade do outro, mesmo sem culpa deste, para tal bastando a invocação e prova de separação de facto por três anos consecutivos (artigo 1781º alínea a) do Código Civil).
O legislador constitucional deixa ao legislador ordinário o encargo de regular os requisitos da dissolução do casamento pelo divórcio (art.º 36º nº 2 da Constituição da República Portuguesa).
A possibilidade de qualquer dos cônjuges obter a dissolução do casamento por sua única vontade, sem invocação de qualquer motivo, não está consagrada na lei portuguesa. Porém, não é vedada pela Constituição e tem sido defendida por alguns sectores da sociedade portuguesa, ganhando aqui relevo o projecto de Lei nº 232/X, apresentado pelo Bloco de Esquerda (Regime Jurídico do divórcio a pedido de um dos cônjuges), publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, nº 98/X/1, de 30.3.2006, páginas 17 a 25, que na reunião plenária da Assembleia da República de 16.5.2007 foi rejeitado com votos contra do PS, PSD, CDS-PP, votos a favor do BE e Os Verdes e a abstenção do PCP (debate publicado no DAR, I série, nº 83/X/2, de 17.5.2007, páginas 29 a 43; votação realizada na reunião plenária de 17.5.2007, publicada no DAR, I série, nº 84/X/2, de 18.5.2007, pág. 34).
Na exposição de motivos daquele projecto dá-se conta de ordenamentos jurídicos europeus em que se admite esta modalidade de divórcio (Suécia – Lei de 14 de Maio de 1987 e, recentemente, Espanha – Ley 15/2005, de 8 de Julho).
Independentemente dos juízos de valor que sobre estas realidades possam ser elaborados, o casamento, para muitos cidadãos, já não é vivido como um sacramento. Nesta medida, a conotação de dever que esse sentido transcendente também implicava tende a perder significado. Caminha-se hoje no sentido de uma visão mais laica, mais privada do casamento, e a ele se vai associando maior liberdade individual. Ao laço sagrado sobrepôs-se o laço profano, o dever de continuidade da instituição cede lugar à regra do bem-estar pessoal e ao desejo da persistência do amor. Sem ele, ou perante a sua erosão, há motivo suficiente para quebrar o laço. O sentimento amoroso é, nos nossos dias, a única aventura transcendente na relação conjugal e constitui, aparentemente, o seu fundamento universal e eticamente aceitável” (Anália Cardoso Torre, Divórcio em Portugal, Ditos e Interditos – Uma análise sociológica, Celta Editora, 1996, pág. 6, citada na referida exposição de motivos).
Fidélia Proença de Carvalho escreve (obra citada, páginas 86 e 87):
Ao renovar-se o conceito de divórcio, adaptando-o às contingências actuais de mutabilidade e rotatividade dos relacionamentos afectivos, o legislador prestará, sem dúvida, grande e nobre serviço à manutenção do ideário matrimonial, libertando-o de peias e preconceitos que em nada contribuem para a sua divulgação ou defesa.
O divórcio continua, inexplicavelmente, preso a atávicos conceitos moralizadores e castradores, de que a culpa, o seu estabelecimento e graduação em termos de responsabilização pela falência do vínculo conjugal, será o mais evidente.
E, não obstante, a dolorosa constatação por parte de um dos cônjuges de que já não ama ou já não é amado como pretenderia ou intimamente cuidaria merecer ser – o desamor – não é fundamento de divórcio, a menos que estejamos em face de um divórcio por mútuo consentimento, onde a causa da falência matrimonial não tem que ser revelada ou objecto de prova.
(…)
Consagrando-se a possibilidade de um dos cônjuges, unilateralmente, e mesmo com a oposição do outro, poder resolver o contrato matrimonial, libertar-se-á o casamento de um dos seus estigmas máximos – a própria noção de perpetuidade.
Afigura-se-nos que face à evolução que a concepção de casamento e da sua dissolução tem sofrido tanto no mundo ocidental como em Portugal, uma sentença estrangeira que decrete um divórcio com base na vontade de um só dos cônjuges, sem invocação de nenhum motivo fundamentador, não pode sem hesitações ser rejeitada como manifestamente violadora dos princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa, maxime se se constatar que foram minimamente acautelados os direitos do cônjuge requerido, em particular no que concerne às consequências do divórcio nas suas condições de subsistência (Vital Moreira e Gomes Canotilho consideram apenas “constitucionalmente questionável” o divórcio por mera vontade unilateral de um dos cônjuges, por alegadamente afectar o núcleo essencial do direito de ambos os cônjuges ao divórcio, bem como da liberdade pessoal e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade – Constituição da República Portuguesa anotada, volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007; também Jorge Miranda e Rui Medeiros consideram tal solução “constitucionalmente duvidosa”, por o casamento, objecto de uma garantia constitucional, não constituir uma situação precária e a família fundada no casamento dever ser protegida por lei, nos termos do artigo 67º da Constituição da República Portuguesa – cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, tomo I, pág. 412).
No direito marroquino, uma vez manifestada pelo marido a intenção de se divorciar, o tribunal convoca os cônjuges para uma tentativa de conciliação (art.º 81 do Código da Família). Nessa diligência ouvem-se as partes, testemunhas e qualquer pessoa que o tribunal considere útil. Se existirem filhos, realizam-se duas tentativas de conciliação, intervaladas de 30 dias, no mínimo (art.º 82º). Se a conciliação se revelar impossível, o tribunal fixa um montante que o marido deve depositar no prazo de 30 dias (artigo 84º), que corresponde ao valor da pensão devida pelo período de “retiro” que se segue (“viduité”, “Idda”) e a compensação (“Mout´â) que é avaliada em função da duração do casamento, da situação financeira do marido, dos motivos do divórcio e do grau de abuso verificado no recurso ao divórcio pelo marido, assim como o direito a pensão alimentar dos filhos. Se o marido não depositar a aludida quantia, considera-se que renunciou ao divórcio (art.º 86º). Reunidos os referidos pressupostos, o tribunal autoriza que o acto de divórcio seja formalizado por dois “adoul” domiciliados na circunscrição territorial desse tribunal, documento esse que depois é homologado por sentença, a qual é susceptível de recurso (artigo 88º).
A mulher também pode divorciar-se através do procedimento acima descrito: só que, para isso, carece do consentimento prévio do marido (artigo 89º).
O direito marroquino também admite o divórcio por razões de discórdia entre os cônjuges, que pode ser intentado por qualquer deles (artigos 94º a 97º) e o divórcio por outras causas, que pode ser intentado pela mulher (artigos 98º a 113º). Também é admitido o divórcio por mútuo consentimento (artigos 114º a 120º).
Como se viu, o repúdio é uma modalidade de dissolução do casamento por vontade unilateral de um dos cônjuges, que no direito marroquino apenas pode ser exercido pelo marido. Efectivamente, o repúdio por iniciativa da mulher depende do consentimento prévio do marido, pelo que é sempre a vontade do homem que prevalece.
O referido regime jurídico viola o princípio da igualdade, nomeadamente entre os cônjuges, consagrado nos artigos 13º e 36º da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, expressamente quanto à dissolução do casamento, no art.º 5º do protocolo nº 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ratificado por Portugal (Decreto do Presidente da República nº 51/90, de 27 de Setembro; o protocolo está publicado no D.R., I série, de 27.9.1990).
Segundo o artigo 5º do Protocolo, “os cônjuges gozam de igualdade de direitos e de responsabilidades de carácter civil, entre si e nas relações com os seus filhos, em relação ao casamento, na constância do matrimónio e aquando da sua dissolução. O presente artigo não impede os Estados de tomarem as medidas necessárias no interesse dos filhos”.
No processo nº 3/02, caso D.D. contra a França, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi chamado a pronunciar-se sobre uma decisão dos tribunais franceses que havia concedido o exequatur a uma sentença proferida por um tribunal argelino que havia decretado a dissolução de um matrimónio com base na vontade unilateral do cônjuge marido. A requerente mulher defendia, perante o TEDH, que a execução de tal sentença era contrária à igualdade entre os cônjuges garantida pelo artigo 5º do supra referido Protocolo, isto mesmo que tivessem sido respeitadas as garantias processuais estabelecidas no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (direito a um processo equitativo). O TEDH acabou por não se pronunciar sobre o fundo da questão, na medida em que entretanto a requerente desistiu da acção. No entanto, no acórdão em que dá por findo o processo (acórdão de 08.11.2005, consultável no sítio do TEDH in www.echr.coe.int) o TEDH não deixa de enunciar a evolução da jurisprudência do mais alto tribunal francês sobre esta matéria, ou seja, da Cour de Cassation:
a) Numa primeira fase, para controlar as condições de reconhecimento de uma sentença estrangeira, a Cour de Cassation fundava-se essencialmente no respeito pelo tribunal estrangeiro das garantias procedimentais estabelecidas pelo artigo 6 da Convenção. Sem citar necessariamente aquela disposição, a Cour de Cassation exigia um processo em que cada parte devia poder fazer valer as suas pretensões e a sua defesa (v.g., decisões da 1ª Chambre civile, de 18.12.1979 e 03.11.1983);
b) Posteriormente, em casos respeitantes a sentenças estrangeiras que decretavam o repúdio unilateral da mulher pelo seu marido, a Cour de Cassation visava expressamente o artigo 5º do Protocolo nº 7 da Convenção, motivando porém a sua recusa em conceder o exequatur no desrespeito de garantias processuais (v.g., decisões da 1ª Chambre Civile, de 01.6.1994 e de 31.01.1995);
c) Em cinco acórdãos proferidos em 17.02.2004, a 1ª Câmara Cível da Cour de Cassation recusou a produção de efeitos em França de repúdios argelinos e marroquinos. Realçou em particular que esses repúdios desprezam o princípio da igualdade entre os cônjuges proclamado pelo Protocolo nº 7 da Convenção, isto mesmo que as decisões litigiosas tivessem sido proferidas no âmbito de um processo leal e contraditório. A Cour de Cassation afirmou que o tribunal a quo deveria rejeitar o pedido de exequatur de uma sentença estrangeira que decretasse o repúdio unilateral de uma esposa pelo marido, nestes termos (tradução nossa, do francês):
“(…) atendendo a que o acórdão [apelação] refere que o divórcio dos esposos X, foi decretado pelos juízes argelinos, apesar da oposição da mulher, pela única razão, admitida pela lei argelina, de que o poder conjugal está nas mãos do marido e que o divórcio deve ser pronunciado apenas por vontade deste último; que o tribunal de apelação daí deduziu correctamente que, mesmo que se a sentença resultasse de um processo leal e contraditório, esta decisão constatando um repúdio unilateral pelo marido sem conceder efeito jurídico à eventual oposição da mulher e privando a autoridade competente de qualquer outro poder que o de fixar as consequências financeiras desta ruptura do laço matrimonial, era contrária ao princípio da igualdade dos cônjuges aquando da dissolução do matrimónio reconhecido pelo artigo 5 do Protocolo de 22 de Novembro 1984, nº 7, adicional à Convenção europeia dos direitos do homem, que a França se obrigou a garantir a qualquer pessoa sujeita à sua jurisdição, e por conseguinte à ordem pública internacional reservada pelo artigo 1º da Convenção franco-argelina de 27 de Agosto 1964, desde logo quando, como no caso, os dois cônjuges estavam domiciliados em território francês” (o texto integral deste acórdão da Cour de Cassation – processo 01-11549 -, bem como dos restantes, aliás todos muito sucintos, pode ser consultado no sítio da Cour de Cassation, www.courdecassation.fr).
Diga-se que em todos estes casos a cônjuge mulher se havia oposto, perante os tribunais franceses, ao reconhecimento em França dos efeitos do divórcio decretado no país de origem e o Tribunal deu relevância ao facto de na altura da instauração do divórcio no outro país os cônjuges residirem em França.
Na nossa vizinha Espanha os tribunais têm concedido o exequatur a decisões de tribunais de países islâmicos que decretaram ou homologaram actos de divórcio/repúdio, bastando-se com o facto de a lei espanhola admitir o divórcio independentemente do tempo e da forma da celebração do matrimónio (cfr., v.g, acórdãos da Secção Cível do Tribunal Superior, de 21.3.2000, recurso 583/1993; de 03.4.2001, recurso nº 3059/1990; de 27.7.2004, recurso 264/2003 – todos consultáveis no sítio na internet do Tribunal Superior, www.poderjudicial.es/jurisprudencia, e respeitantes tanto a requerimentos de exequatur apresentados pelo marido repudiante como pela mulher repudiada). Porém, o exequatur é negado quando se conclui que o repúdio em causa é revogável, por tal atentar contra a ordem pública, pois no direito espanhol o divórcio é necessariamente definitivo e irrevogável, sem prejuízo da possibilidade de novo matrimónio entre os cônjuges, não podendo a subsistência do vínculo ficar dependente da livre disposição dos cônjuges, de forma que, por sua livre vontade, possa voltar-se ao anterior estado marital, o que repugna à estabilidade e certeza que há de se dar às situações que conformam o estado civil das pessoas e à igualdade de direitos e deveres do marido e da mulher (cfr. acórdão do Tribunal Superior, de 15.7.1997, recurso 1894/1997; sobre esta matéria, cfr. Carlos Esplugues Mota, “El divorcio internacional, Jurisdicción, ley aplicable, reconocimiento y ejecución de sentencias extranjeras”, Valência, 2003, Tirant Lo Blanch, páginas 346 a 354).
Revertendo ao caso dos autos, haverá que relembrar que, no nosso direito, a revisão deverá ser negada se a sentença revidenda contiver decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
A sentença objecto destes autos decretou, por homologação, a dissolução do matrimónio que vigorava entre o Requerente e a Requerida, na sequência de um procedimento intentado pelo cônjuge marido. Tal efeito jurídico é admitido na ordem jurídica portuguesa. Quanto ao fundamento da decisão, admitindo que é sindicável tendo em vista a ponderação da conformidade do “resultado” da sentença com a ordem pública internacional portuguesa, entendemos que esse fundamento, que foi a vontade exclusiva de um dos cônjuges, não afronta, pelo menos manifestamente, a ordem pública portuguesa. No que concerne ao facto de a decisão revidenda ter sido proferida no âmbito de um ordenamento jurídico que apenas confere ao cônjuge marido a prerrogativa de dissolver o casamento por força tão só da sua vontade, dir-se-á que a violação do princípio da igualdade está precisamente na circunstância de ser negada à mulher tal possibilidade (pois, como se viu, no direito marroquino a mulher pode repudiar o marido, mas apenas mediante o prévio consentimento deste): assim, a violação do princípio da igualdade manifesta-se quando se recusa à mulher a possibilidade de pôr fim ao casamento por sua exclusiva vontade, nos mesmos termos em que tal é concedido ao homem.
Nestes autos, não está em causa a apreciação de uma sentença que recuse à mulher um direito que é reconhecido ao homem, com a consequente violação do princípio da igualdade. De realçar que tanto no processo em Marrocos, como nestes autos (embora aqui a Requerida seja revel, sendo representada pelo Ministério Público), o cônjuge mulher não manifestou oposição à dissolução do casamento. Por outro lado, existe nexo manifesto entre o ordenamento jurídico aplicado e a situação regulada, atendendo à nacionalidade da mulher e à residência da Requerida à data do decurso do processo em Marrocos.
Consta da certidão junta aos autos que o repúdio era revogável, podendo assim o requerente, na versão da tradução do francês para português que consta no processo, “voltar a contrair casamento com ela [a requerida] enquanto o período de retiro legal não tiver expirado”. A versão em língua francesa do acto de repúdio, também documentada no processo, refere que se trata de “une répudiation unique, premiére et révocable, pouvant ainsi la reprende en mariage tant que sa période de retraite légale n´ait expiré”.
Efectivamente, nos termos do artigo 123 do Código da Família marroquino, e em harmonia aliás com a tradição muçulmana, o divórcio emergente de repúdio por iniciativa do marido é revogável, salvo se tiver sido antecedido de dois divórcios (repúdios) sucessivos. Ao contrário do que dá a entender a aludida tradução para português, não se trata de voltar a contrair casamento, acto que supõe a celebração de um novo contrato matrimonial, mas simplesmente de retomar os anteriores laços matrimoniais, por força da vontade do marido. Tal situação de reversibilidade do divórcio não só é desconhecida no nosso direito como, por depender da exclusiva vontade do cônjuge marido, atenta contra o princípio da igualdade entre os cônjuges e contra a dignidade do ser humano, base fundamental da República Portuguesa (art.º 1º da Constituição da República). Porém, a faculdade de revogar o repúdio deve ser exercida durante o período de retiro (viduité) – artigo 124), o qual inicia-se a partir da data do divórcio e prolonga-se durante três períodos intermenstruais completos (artigos 129 e 136, nº 1). Expirado esse prazo, o divórcio torna-se definitivo (artigo 125).
Ora, resulta dos autos que o Requerente deixou expirar o prazo para exercer a faculdade de revogar o repúdio, pelo que, na ordem jurídica marroquina, a dissolução do matrimónio é definitiva. A sentença revidenda não tem, pois, a virtualidade de conduzir a um estado incompatível com a nossa ordem jurídica, ou seja, o resultado da decisão a rever não colide com a barreira da ordem pública internacional do Estado Português, cujos limites foram delimitados pelo legislador nacional em termos assinaladamente restritos.
Assim, não há obstáculos à pretendida revisão da sentença.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão de revisão da mencionada sentença de 2004, proferida pelo Tribunal de Primeira Instância de Rabat, Secção Notarial, do Reino de Marrocos, que homologou o divórcio, por repúdio, entre o Requerente e a Requerida, pelo que se confirma a mesma, para valer com todos os seus efeitos em Portugal.
Custas pelo Requerente.
Lisboa, 18.10.2007
Jorge Leal
Nelson Carneiro
Américo Marcelino