Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20249/18.9T8LSB-A.L1-7
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CÔNJUGE DO EXECUTADO
PENHORA DO VENCIMENTO
BENS COMUNS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A comunhão de vida matrimonial-  de pessoas e de bens – e a tutela dos valores sociais e culturais implícitos ao casamento propiciam a observância de um regime especial em relação ao direito comum das obrigações, no que diz respeito à responsabilidade por dívidas dos cônjuges.
II. Sem embargo do princípio dominante da intangibilidade dos bens comuns para a satisfação de débitos assumidos em exclusivo por um dos cônjuges e da subsidiariedade da sua nomeação à penhora em sede de cobrança coerciva, o legislador excluiu dessa restrição os bens comuns enunciados no artigo 1696º, nº 2 do Código Civil, entre os quais, na alínea b), se incluem os proventos do trabalho de cada um dos consortes.
III. No caso de a penhora incidir sobre os bens comuns contemplados no artigo 1696, nº2 do Código Civil, maxime sobre o produto do trabalho, porque eles respondem ao mesmo tempo que os bens próprios, em execução movida contra um dos cônjuges, e por dívida da sua exclusiva responsabilidade, não se justifica o exercício do direito do outro cônjuge para requerer a partilha e escolher os bens da meação, e, por consequência, é dispensável a sua citação nos termos do artigo 740,º nº1 do Código do Processo Civil.   
IV. Por idêntica razão ditada pelo regime substantivo, estando em causa a penhora até 1/3 do salário do executado, não são de admitir os embargos de terceiro deduzidos pelo seu cônjuge- artigo 343º do CPC- não traduzindo o acto afectação indevida e ofensiva ao seu direito.
V. O casamento corresponde à forma de contratualizar a união familiar entre dois cidadãos. De maior amplitude é o conceito jurídico constitucional de família, que realiza e tutela diversas tipologias de constituição, além do casamento.
VI. De jure constituto, o legislador ordinário ao estabelecer o limite até 1/3 na penhora do salário/produto do trabalho, pontificou pela protecção do executado, e, dessa forma, do casal, não beliscando preceito constitucional e em respeito ao princípio da dignidade humana, ínsito ao Estado de Direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:  Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.RELATÓRIO
1. Itinerário da instância
 Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que Banco Primus, S.A. intentou contra J (….), veio O (…), deduzir embargos de terceiro.
Alegou em síntese, que é casada com o executado em regime de comunhão de adquiridos, vindo agora ao seu conhecimento a penhora do vencimento do marido ordenada nos autos, sem que para o efeito tenha sido citada, como se impõe, atenta a natureza de bem comum; termina, pugnando pelo levantamento da penhora por ser ofensiva do seu direito.
    Em apreciação do petitório, o Tribunal concluiu que a penhora do salário do executado não constitui acto ofensivo de direito da embargante, não carecendo da citação do cônjuge, e assim indeferindo liminarmente os embargos, em atenção ao disposto nos artigos 345 e 590 do CPC.                 
2. Inconformada a Embargante apelou da decisão, formulando as seguintes conclusões:
“A questão de que se recorre prende-se com o indeferimento dos embargos, porquanto a meritíssima juíza a quo julgou desnecessária a aplicação do art.740º n.1 CPC., não sendo em consequência a embargante citada na penhora do vencimento do marido.
 Ora, salvo o devido respeito, tal interpretação é manifestamente inconstitucional por violação do art.67º n.1 CRP, porquanto, desprotege a família, o núcleo familiar composto pelo casal, concretamente desprotege o cônjuge do executado contra a penhora no ordenado deste, que além de constituir um bem comum é de facto, um valor essencial para a economia familiar.
Assim sendo, o direito à protecção da sociedade e do Estado decretado naquele dispositivo constitucional e consagrado em numerosa legislação ordinária, como por exemplo o art.740ºCPC, cai por terra com a interpretação jurisprudencial que a meritíssima juiz a quo perfilha.
Tal orientação jurisprudencial tem como consequência lógica a negação do direito de o cônjuge reagir ao ataque ao bem/património comum, o que traduz um claro ataque ao ínsito no art.67ºn.1 CRP. Esta interpretação processual em nada afecta a norma substantiva plasmada no art.1696ºn.2 C.C. A penhora do “produto de trabalho deste” (do cônjuge) não é incompatível com a citação do cônjuge do executado nos termos doa art.740ºn.1 CPC. Ao desaplicar o ínsito no art.740ºn.1 CPC e indeferir os embargos de terceiro deduzidos pela recorrente, a meritíssima juiz a quo violou o ínsito no art.67ºn.1 CRP, na medida em que, no plano patrimonial, desprotege a família da acção do Estado, permitindo a acção jurisdicional deste sem possibilidade de reação por parte do cônjuge do executado.”
O Embargado/Exequente não ofereceu contra-alegações.
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Colheram-se os vistos e nada obsta ao conhecimento de mérito.

3. Questões a decidir – Thema decidendum
Delimitado o objecto do recurso pelo teor das conclusões, sem prejuízo da intervenção oficiosa legalmente definida - artº635 e 608 do CPC -  o empreendimento decisório incidirá sobre as seguintes questões:   
§ Dívida da responsabilidade exclusiva do cônjuge executado; a penhorabilidade subsidiária dos bens comuns; finalidade da citação do cônjuge não executado;   
§ O regime substantivo de excepção na penhora do salário do cônjuge devedor-  artigo 1698, nº2 al) b do Código Civil; a prevalência na aplicação do disposto no artigo 825 do CPC sobre o preceituado no artigo 740 do CPC;
§ A construção da lei ordinária e a tutela constitucional da família.  
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. Dos Factos
O circunstancialismo processual e os factos a considerar na decisão a proferir são os enunciados em I - A) supra.
B. Enquadramento Jurídico
 Em aplicação do disposto do artigo 345, nº1 do CPC, o Tribunal a quo rejeitou liminarmente os embargos de terceiro impetrados pela Apelante, em conclusão da sua manifesta improcedência, uma vez que a penhora do salário do executado não se mostra incompatível com a qualidade de cônjuge, dispensando a lei a sua citação nos autos.   Do que resulta que, a questão a dirimir consiste em saber, se a ordenada a penhora de 1/3 do salário do executado e marido da embargante, enquanto parte integrante do património comum do casal, impõe ex lege a sua convocação através da citação do cônjuge a que alude o artigo 740, nº 1 do CPC.       
À indagação do acerto ou agravo da decisão recorrida, importa então convocar o quadro normativo referente à afectação dos bens comuns do casal para satisfação de dívida da responsabilidade exclusiva de um dos cônjuges, de par com o denominado estatuto processual do cônjuge do executado na situação de cobrança coerciva.      
Na interpretação concertada deste regime legal lograremos a razão fundamental que, sob o nosso entendimento, abona a favor da conclusão que, a penhora realizada no caso sob juízo não atingiu indevidamente o direito da apelante sobre o salário do cônjuge e executado.
1. Os embargos de terceiro[1] constituem o meio processual específico para reagir contra a penhora por parte do cônjuge do executado - artigo 345 - do  Código de Processo Civil .
 A apreciação a efectuar em sede do despacho liminar de admissão ou rejeição dos embargos de terceiro – artº 343 do CPC-  é uma apreciação sumária, destinada a apurar da probabilidade séria da existência do direito invocado.
Está assente que a embargante é casada com o executado, sob o regime matrimonial de comunhão geral de bens adquiridos, na ausência de notícia de convenção antenupcial.
Assente está também que a embargante não foi até ao momento citada nos autos de execução, posicionando-se como terceira na lide.
 Para a satisfação do seu crédito o exequente nomeou à penhora o salário que o executado marido aufere enquanto trabalhador por conta de outrem.
 Na pendência do casamento, o produto do trabalho auferido por cada um dos cônjuges constitui bem comum do casal, conforme o disposto no artigo 1724, al) a do Código Civil.        
 1.2 Mostra-se incontroverso que a dívida exequenda teve origem em facto praticado unilateralmente pelo consorte executado, sendo que cada um dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro, conforme o disposto no artigo 1690, n.º 1 do Código Civil.
 Trata-se então de dívida da responsabilidade exclusiva do executado, em aplicação do regime geral das obrigações, conforme o estatuído no artigo 1692, al) a) do Código Civil, posto que, não foi invocada a comunicabilidade da dívida, ou alegado facto que substancie dívida comum, nas circunstâncias de expressa ressalva legal.   
 É sabido que a comunhão de vida matrimonial-  de pessoas e de bens – e, a tutela dos valores sociais e culturais implícitos ao casamento, propiciam a observância de um regime especial em relação ao direito comum das obrigações, [2]  no que diz respeito à responsabilidade por dívidas dos cônjuges.
O certo é que, o património comum do casal, além constituir a face económica do empenho de ambos os cônjuges, filia-se como garantia de resposta às dívidas ditas comuns ou comunicáveis. Vector que se mantém aquando da cessação da relação matrimonial, para a satisfação do passivo relativamente a terceiros.[3]
Assim sendo.
No que se refere às dívidas próprias, e às dívidas incomunicáveis, estabelece o artigo 1696, nº1 do Código Civil que respondem, em primeiro lugar, os bens próprios do cônjuge devedor; E, em paridade, sem qualquer limitação, respondem ainda certos bens comuns, conforme o estabelecido no nº2 do mesmo artigo, a saber: al) a)  Os bens levados pelo cônjuge devedor para o casal ou adquiridos por ele a título gratuito e respectivos rendimentos; al) b) O produto do trabalho e os direitos de autor do cônjuge devedor; al) c) E, os bens sub-rogados no lugar desses bens ou rendimentos. 
O que significa que, sem embargo do princípio dominante da intangibilidade dos bens comuns para a satisfação de débitos assumidos em exclusivo por um dos cônjuges, e da subsidiariedade da sua nomeação à penhora em sede de cobrança coerciva, o legislador excluiu dessa restrição os bens comuns enunciados sob o artigo 1696, nº2 do Código Civil.   
Na senda da doutrina consistente que se debruça sobre os efeitos  e limitações patrimoniais do casamento, [4] a descrita solução  legal assenta,  por um lado, na  opção clara pela prevalência da satisfação das expectativas  do credor ,  e por outro,  sugere que quanto aos bens comuns em causa, [5] dada a sua natureza , não se  justifica o direito do outro cônjuge em reclamar a separação da meação.
Citando a propósito Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira [6] :
 “A expressão usada pela lei e as razões do preceito levam a concluir que o credor pode penhorar, indistintamente, bens próprios do devedor e estes bens mencionados no n.º 2 do art.1696.º Não parece haver motivo para respeitar, neste âmbito, a subsidiariedade que a lei prevê no n.º 1. Por outro lado, o texto não parece limitar a responsabilidade ao valor de metade dos bens comuns penhorados.”
Donde, não ocorre limitação legal à penhora do produto do trabalho auferido pelo executado marido, à luz do que dispõe o artigo 1696, nº 2, b) do Código Civil.
2. A outra face da questão relevante  no caso em recurso  prende-se, doravante,  em apurar se respondendo o salário do executado - em iguais moldes/ao mesmo tempo  - que os bens próprios na satisfação de dívida exclusiva,  implica dispensar ou proceder à citação do  cônjuge –embargante a que se alude no artigo 740, nº1 do Código de Processo Civil, a fim de “...requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. “  
 Alusão também presente  no artigo 786, nº1 , in fine do Código Processo Civil,[7] a par das citações de credores quanto a imóveis penhorados.
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 Reconhece-se que não é isenta de dúvidas a articulação imediata entre o regime substantivo da responsabilidade dos cônjuges por dívidas, contemplado no artigo 1696, nº2 do Código Civil, e, o preceito adjectivo do artigo 740, nº1 do Código do Processo Civil.   
A abordagem da matéria na doutrina e na jurisprudência apresenta algum grau de divergência.
Assim.
Sintetizando a argumentação da posição que sustenta a indispensabilidade da citação do cônjuge do executado, é destacado que subsiste a necessidade de o cônjuge não demandado defender a sua meação sempre que penhorados bens comuns do casal, seja no anterior  CPC ,[8] como no actual NCPC.[9]  
Na senda do entendimento que perfilha a dispensa da citação do cônjuge do executado, no caso de a penhora incidir sobre os bens comuns taxados no  artigo 1696, nº2 do Código Civil, realça-se que a sua natureza não justifica o direito a requerer a partilha, e ademais não competir ao regime processual substituir-se na definição substantiva da responsabilidade patrimonial dos cônjuges.[10]
Cremos, salvo o devido respeito que esta se apresenta como a solução mais coerente com o sistema, pois, determinando o artigo 1696º, nº 2, do Código Civil, que os bens comuns ali indicados respondem ao mesmo tempo que os seus bens próprios, em execução movida apenas contra si e por dívida da sua exclusiva responsabilidade, v.g. al) b) -  produto do trabalho do cônjuge devedor- é dispensada a citação do respectivo cônjuge.
Encimando a doutrina que sufragamos, destaca-se a ausência de interesse do cônjuge do executado em fazer incluir esses bens na sua própria meação, referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira:
 “ A partilha só tem sentido quando se torna necessário determinar os bens que vão compor a meação do devedor, para que a execução prossiga sobre eles; o cônjuge do devedor, por seu turno, pode ter interesse em fazer incluir certos bens comuns na sua própria meação”:[11]
De igual modo,   Lebre de Freitas neste tocante, refere:[12]
“Tratando –se de bens comuns, em dois casos não pode o cônjuge do executado embargar: a) quando tenha sido citado nos termos do artº 740, nº1 e o executado não tenha bens próprios; b) quando a penhora incida sobre bens (…) ou ainda sobre o produto do trabalho (…), dado que estes bens, ainda que comuns, respondem ao mesmo tempo que os bens próprios (art1696, nº2 CC).”   [13]   
Em reforço desta conclusão, observa-se adicionalmente.
No regime dos embargos de terceiro por parte do cônjuge no CPC anterior à reforma operada pelo DL 329-A/95, de 12/12 e pelo DL nº 180/96, de 25/09, estava excluída expressamente (artigo 1038º) a sua dedução no caso de penhora do produto do trabalho do executado (nº 2, al. b), “in fine”). [14]
Na reforma subsequente da acção executiva[15], e também no NCPC (artigo 356 ), não constando “expressis verbis” essa excepção, não pode, todavia, deixar de consagrá-la, dado que apenas se admitem os embargos relativamente a bens indevidamente atingidos pela diligência, que o não são, face ao determinado no artigo 1696, nº2 do Código Civil, respondendo a par dos bens próprios pela dívidas de exclusiva responsabilidade.        
De registar ainda, que os bens comuns do casal apresentam uma autonomia mitigada, em virtude de o legislador permitir que aqueles respondam pelo pagamento de dívidas singulares, em iguais moldes que respondem os bens próprios do consorte obrigado perante terceiro. [16]  
Note-se que o legislador não deixou em tais circunstâncias de acautelar a posição do cônjuge não obrigado pela dívida singular do outro, através de compensação do um crédito sobre o património comum, diferindo-o, embora, para o momento da partilha por dissolução, conforme o estatuído no artigo 1689, nº2 do Código Civil. [17]        
Prosseguindo igual caminho, parte da jurisprudência mais recente  sustenta a dispensa da citação do cônjuge do executado demandado por dívida da sua exclusiva responsabilidade, no caso de penhora dos bens comuns enunciados no artigo 1696, nº2, do CC, maxime, o salário, no domínio do anterior CPC , e também no actual NCPC.[18]
Entre outros, assim se decidiu : no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.01.2013; [19] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2006,  Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.07.2012 ; Decisão sumária do Tribunal da Relação de Évora de 8.02.2018; e no Acórdão [20] da Relação de Guimarães de 7.3.2019 .[21]
3. Retomando a questão crucial a decidir nos autos - é de atender o fundamento da embargante/apelante ao reclamar da indevida afectação do seu direito sobre o salário do marido executado, penhorado na ausência da sua citação nos termos do artigo 740, nº1 do Código de Processo Civil? 
Para nós, tendo em conta a interpretação conjugada dos preceitos aplicáveis, suportada na argumentação acima expendida, a resposta é negativa, acompanhando-se o sentido decisório do Tribunal a quo.
Com efeito, partindo da ratio estrutural da tutela dos embargos de terceiro- a defesa de direito incompatível com o acto judicial -  tal pressuposto não se verifica no caso em juízo.
Isto porque, repete-se, sendo embora o salário do cônjuge executado um bem comum, responde a par, em iguais termos, aos bens próprios pelas dívidas da responsabilidade exclusiva - artigo 1696, nº2 a) b do CC, não ocorrendo, em consequência, afectação ilegítima do direito do cônjuge não demandado.
Não se olvide, de resto, que cada um dos consortes detém a administração dos proventos do seu trabalho, e o poder de da sua livre disposição por acto entre vivos, conforme preceitua o artigo 1682, n. º2 do Código Civil.
Ora, justamente porque assim é, pese embora integrando a categoria legal de bem comum dos cônjuges, é de questionar no caso a aplicação da disposição adjectiva do artigo 740, nº1/786, nº1 do CPC, vocacionados para bens comuns que não são livremente alienáveis por um dos consortes, como são os imóveis.
De outro passo, olhando aos bens comuns do casal como um património colectivo, não se vislumbra qual a necessidade/vantagem de partilha prévia à “venda” do bem penhorado, na circunstância de o objecto da penhora –  salário- como coisa fungível / quantia monetária.  
A categoria legal do salário de cada um dos cônjuges como bem comum, e a consequente igualação de meações em caso de afectação por dívida própria, encontra-se devidamente salvaguarda pelo legislador, através do direito à compensação por parte do outro cônjuge, conforme o estabelecido nos artigos 1682, nº4 e 1697, nº1 e nº2 do Código Civil, aquando do apuramento ulterior de contas entre os cônjuges.   
Por seu turno, garantir, ainda assim, a citação da embargante, com a finalidade de poder requerer a partilha-  artigo 740, nº1 do CPC- não se ajusta à natureza do bem penhorado /salário, e não menos relevante, ultrapassa a função instrumental do direito processual, interferindo com o regime legal substantivo relativo à responsabilidade patrimonial pelas dívidas dos cônjuges, quando são objecto de cobrança coerciva.         
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Finalmente, não é só por aqui que a decisão recorrida se deve manter.
 Aceitando por hipótese de raciocínio a imposição da citação do cônjuge do executado nos termos do artigo 740, nº1 do CPC, tampouco se poderá acolher o fundamento dos embargos no caso ajuizado.
Está assente que não se verifica qualquer vício prévio ou contemporâneo à penhora, e não resulta que o executado tenha bens próprios que respondam pela dívida exequenda.
 Na verdade, no plano factual não está sequer alegado pela embargante, que para a satisfação da dívida do executado marido, existam bens próprios deste para responder em primeira linha,[22] não ocorrendo, por conseguinte, o último dos pressupostos da citação do cônjuge do executado-  artigo 740, nº1 do CPC -Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado (…)   
Pelo que, no quadro factual em apreciação, a penhora em um terço do vencimento do executado marido, casado com a embargante sob o regime de comunhão de adquiridos, não colide com seu direito, tendo-se efectivado   em consonância com o regime normativo aplicável.  
Por último, a invocada violação da protecção constitucional da família decorrente da afectação do meio de sustento da unidade familiar.  
Não vemos que a decisão recorrida afronte qualquer preceito da Constituição da República, designadamente o apontado artigo 67º. [23]
O casamento constitui apenas uma forma de contratualizar a união familiar entre dois cidadãos; de maior amplitude ergue-se o conceito jurídico constitucional de família, que se realiza e assenta em várias tipologias de união e constituição.  
Nessa vertente, e de jure constituto, o legislador ordinário pontificou  desde logo pela protecção do próprio executado , e dessa forma do casal , ao estabelecer o limite até 1/3 na penhora do salário/produto do trabalho - artigo 783, nº1 do CPC,[24] em certa casuística, reduzir ou até  isentar ( nº6 ) . Acresce reportar que o montante do salário do executado/base da penhora nos autos ultrapassa o valor actual do Salário Mínimo Nacional.
Não se mostra então beliscado preceito constitucional, e revela-se respeitado o princípio da dignidade humana, ínsito ao Estado de Direito, conforme resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição da República Portuguesa.
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Em suma, a decisão de indeferimento liminar dos embargos deve manter-se, pois que, a penhora de parte do salário do executado não inflige ofensa de direito da embargante, com o consequente prosseguimento da execução, na aplicação dos preceitos legais aludidos e a subsunção ao caso.
III.DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar improcedente o recurso, e em consequência, manter a decisão de primeira instância.
As custas do recurso ficam a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 2 Junho de 2020
ISABEL SALGADO
CONCEIÇÃO SAAVEDRA
CRISTINA COELHO
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[1] Em traços genéricos o incidente de intervenção de terceiros configura o meio processual incidental para alguém intervir numa acção em que não é sujeito processual principal, com a finalidade de deduzir um direito próprio, incompatível com a pretensão do autor ou do réu reconvinte.
[2] No qual se destaca a possibilidade de um dos cônjuges poder obrigar o outro, sem ter participado no acto de vinculação, e também a circunstância de o património de um dos cônjuges, e o património comum, serem adstritos a pagar débitos que extravasam a sua quota parte, sem prejuízo do direito de compensação em caso de dissolução do casamento ou separação de bens.
[3] Cf. artigo 1689 do Código Civil:” 2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.”
[4] Cf. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in “Curso de Direito da Família” vol. I, “Introdução ao Direito Matrimonial”, 5ª Edição, disponível em formato PDF, open space, pág. 500.   
[5] Neste particular, Pires de Lima e Antunes Varela, defendem que o alargamento não se justifica para além do caso dos bens previstos na al. a) do artigo 1696, nº2, in Código Civil anotado, vol. IV, pág. 352.
[6] In obra citada, pag.467 e seguintes.
    [7] “……concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente de execução, a situação registral dos bens, é o cônjuge do executado citado, para a execução, quando se verifique o caso previsto no número 1, do artigo 740.”
[8]   Correspondente ao artigo 825, nº1 do CPC anterior /versão última. 
[9] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa in A Execução Das Dívidas Dos Cônjuges -PERSPECTIVAS DE EVOLUÇÃO (versão actualizada), disponível em open space, pág.4 a 7.
[10] Cf. Salvador da Costa in Incidentes da Instância, 6.ª Edição, Almedina, 2013, pág. 166; e, também, Braga da Cruz in Capacidade patrimonial dos cônjuges, pág. 408.
[11] Obra citada, pág. 505.
[12] In A Ação Executiva à luz do CPC DE 2013, 7ª edição, pág. 338.
[13] Também do mesmo autor no quadro do anterior CPC, in A Acção Executiva, à luz do Código revisto, 2.ª ed., 1997, pág. 238
[14] Nesse âmbito de vigência, lê-se  no  Ac.STJ de 30.10.1984 :” “…o artigo 825.°, n.º 2, e o artigo 1038.°, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil respeitam a todos os bens comuns, com excepção dos indicados no n.º 2, alíneas a), b) e c) do artigo 1696.° do Código Civil, e n.º 2, alínea b), do artigo 1038.° do Código de Processo Civil, pelo que, no caso dos autos, o credor podia penhorar o produto do trabalho do devedor executado, sem requerer a citação da sua mulher, não sendo permitido a esta embargar de terceiro, como se comanda no artigo 1038.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.”
[15] Cf. Artigo 825 do anterior CPC.
[16] Cf. a propósito Rita Xavier in, os limites da autonomia privada na disciplina das relações
patrimoniais entre os cônjuges, pág. 301 e seg.
[17] Cf. Braga da Cruz in Capacidade patrimonial dos cônjuges, pág. 419 e seg.”  …pretendeu restaurar o valor integral do património comum que, antes de se destinar a dividir-se entre os cônjuges, serve de garantia das dívidas comuns, em face dos credores de ambos, com prioridade sobre outras dívidas-artº1689, nº2- “
[18] Que neste particular não sofreu alteração- os actuais artigos 343, 740 e 742 do NCPC, correspondem os artigos 352, 825, 864 e 864º-A do anterior CPC.
[19] “8. Mas nomeando-se à penhora qualquer dos bens referidos no n.º 2 do artigo 1696.º do Código Civil não há que proceder à citação do executado para, querendo, requerer a separação de bens.”
[20] “(…)Nesta conformidade, “tratando-se de bens comuns em dois casos não pode o cônjuge do executado embargar: a) quando tenha sido citado nos termos do art. 740º, nº 1 do CPC e o executado não tenha bens próprios; b) quando a penhora incida sobre bens levados para o casal pelo executado ou por ele posteriormente adquiridos a título gratuito e/ou sobre rendimentos de uns e outros desses bens, ou sobre bens sub-rogados no lugar deles, ou ainda sobre o produto do trabalho e os direitos de autor do executado, dado que estes bens, ainda que comuns, respondem ao mesmo tempo que os bens próprios (art. 1696, nº 2 do CC).
[21] Disponíveis in www.dgsi.pt.
[22] Tal opção da embargante inscrita no seu poder de condução da lide, concatenado com o princípio da auto -responsabilização das partes, não autoriza que o tribunal lhe imponha outro efeito de que o litigante dispensou- cfr. Acórdão do STJ, de 17 de maio de 2016, in www.dgsi.pt.
[23] Cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional de 19.12.2007, que se pronunciou expressamente sobre a constitucionalidade do disposto no artigo 1696 do Código Civil.
[24]  A preconização de solução jure constituendo, como a eventual impenhorabilidade total do salário de um dos cônjuges por dívida da sua exclusiva responsabilidade, passaria pela incontornável alteração do regime legal vigente de responsabilidade patrimonial dos cônjuges por dívidas contraídas exclusivamente por um dos membros do casal.