Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1572/13.5TVLSB.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
VIOLAÇÃO DAS LEGIS ARTIS
ÓNUS DA PROVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Cabia à Autora (paciente) alegar e provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados/omitidos pela 1ª Ré (cirurgiã) e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais atos e o dano.
II. Feita a prova da violação das legis artis, opera a presunção de culpa.  O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo.
III. A operacionalidade da presunção de culpa (quando ocorra) impõe ao médico – caso queira eximir-se da sua responsabilidade – que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido utilizados) não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados. Poderá também o médico provar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior, assentando o primeiro na ideia de imprevisibilidade (podendo prevenir-se o dano se tivesse sido previsto) e o segundo na ideia de inevitabilidade (acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências).
IV. O que ocorreu foi uma complicação pós-operatória atípica, sendo que não está demonstrado que para o surgimento de tal complicação tenha concorrido qualquer erro cometido durante a cirurgia realizada 12 anos antes.
V. Sendo conjeturável que os pontos de sutura em nylon, aplicados aquando da realização da uretrocistopexia, se tenham solto e migrado para a parede anterior da bexiga, trata-se de um risco ínsito à realização de cirurgia com recurso a tal tipo de sutura, não estando demonstrado que – à data da realização de tal cirurgia – constituísse procedimento incorreto a utilização de tal tipo de sutura, tanto mais que a literatura não indica a migração dos pontos como um risco típico de tal cirurgia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
 AA intenta ação declarativa de condenação contra BB, CC, DD, S.A. e EE, S.A., formulando os seguintes pedidos de condenação dos Réus a pagarem, solidariamente, à Autora:
a) a título de danos patrimoniais, a quantia de €5.000,00;
b) a título de danos não patrimoniais, a quantia de €50.000,00;
c) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, referente e após a nova ou 3§. intervenção cirúrgica corretiva, já prognosticada; e
d) juros moratórios, a contar da citação e até efetivo integral pagamento.
Para tal, e em síntese, alega que a 1ª Ré lhe fez uma intervenção cirúrgica ginecológica, em 1998, vindo a Autora a sofrer posteriormente duas novas intervenções cirúrgicas para remoção de quatro fios de sutura (dois dos quais calcificados), encontrados no seu interior, em resultado da má prática cirúrgica da Autora. Esta situação causou à Autora danos patrimoniais e não patrimoniais.
A Ré CC contestou, arguindo a prescrição do direito de indemnização, a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial bem como a exceção dilatória da sua ilegitimidade.  Mais requereu incidente de intervenção principal provocada da DD (fls. 50-65).
A 1ª Ré contestou, negando a existência de qualquer erro técnico durante a execução da histerectomia e urectrocistopexia, concluindo pela improcedência da ação. Mais suscitou incidente de intervenção principal da EE, SA (fls.  84-98).
A Interveniente DD apresentou contestação, aderindo às invocadas exceções de prescrição, nulidade da petição inicial e ilegitimidade da CC (fls. 164-167).
A EE, SA também contestou, aderindo à contestação da 1ª Ré (fls. 175-179).
Foi proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial (fls. 261), o qual foi acatado (fls. 268-280).
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções dilatórias da ineptidão da petição inicial e da ilegitimidade da CC, tendo sido enunciados os Temas da Prova (fls. 345-348).
Após julgamento, foi proferido sentença que julgou a ação totalmente improcedente.
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
«1ª - O que consta quer do facto provado n° 13 quer o facto provado n° 26 está em absoluta contradição com o que consta do relatório pericial, pois dá como provada a utilização de fios de sutura em nylon no âmbito de procedimentos de suspensão da fáscia para-uretral, que não tiveram lugar.
2a - Resulta do relatório pericial em sede de apuramento das causas da existência de pontos de sutura, é que os mesmos derivam de complicações com origem na intervenção cirúrgica realizada em 13/07/1998, nomeadamente que:
- “Decorridos 12 anos (17/02/2010) desenvolveu complicação pós-operatória (...) e,
- “(...) apesar de uma evolução longa das referidas complicações pós-operatórias (...)”
3a - A resposta dos Srs. Peritos ao Quesito 5° que perguntava se “Os estados referidos de 1 a 4 são consequência da intervenção cirúrgica a que foi submetida em 13/07/1998” e ao qual foi respondido: Prejudicado, só pode significar que já foi dada anteriormente resposta afirmativa a um quesito (neste caso aos quesitos 1 a 3) o que impossibilita que se venha agora dar uma resposta negativa.
4a - Assim, ficou patente na prova produzida, isto é, nos relatórios médicos juntos aos autos, bem como na perícia efetuada, que os cálculos se formaram e tiveram a sua origem, nos fios de sutura, de antiga cirurgia ginecológica de 13/07/1998. Tal factualidade deveria, pois, ter sido dada como provada.
5a - Assim devem ser eliminados os factos provados n° 13 e 26 e o paragrafo penúltimo e antepenúltimo dos Factos Não Provados e acrescentados à factualidade dada como provada os seguintes factos:
A - Os cálculos formaram-se e tiveram a sua origem nos fios de sutura, de antiga cirurgia ginecológica de 13/07/1998;
B - Apesar de uma evolução longa das referidas complicações pós-operatórias foi a existência de pontos de sutura, que veio a justificar as 3 intervenções cirúrgicas para que se procedesse à sua remoção.
6a - O Tribunal a quo valorizou plenamente o depoimento da Ré, tendo sido considerada factualidade com base nesse depoimento, que carecia de demonstração no caso concreto, nomeadamente a invocação da ocorrência de uma intervenção cirúrgica à coluna, com o intuito de criar a dúvida acerca da possibilidade de os pontos de sutura terem migrado dessa cirurgia, o que prejudicou a posição da autora -não obstante ter resultado dos depoimentos dos médicos que tal situação pode ocorrer, mas não se pode dizer que seja normal ou que tenha acontecido do caso dos autos.
7a - Tratando-se de um facto essencial, que não foi alegado pelas partes, não poderia ter sido considerado pelo Tribunal, conforme resulta do artigo 5°, n.° 1 do cpc, nem como elemento desvalorizador do depoimento da autora.
8a - A Autora provou todos os factos constitutivos do seu direito e foi a Ré que não logrou afastar a presunção de culpa como lhe competia.
9a - O esquecimento de instrumentos utilizados na cirurgia, dentro do corpo do doente, incluindo fios de sutura, tem sido considerado como omissão de um dever de diligência sendo certo que as 3 cirurgias a que a Autora se submeteu, em 28.03.2010, em 15.10.2011 e em 02.02.2014, se destinaram a remover pontos de sutura, pelo que, se mostra provado que foi praticado um facto ilícito.
10a - Competia à Ré afastar a presunção de culpa, provando que a presença de tais fios não se deve a culpa sua, o que não logrou fazer, pois consta do relatório pericial que não foi levantada por meio de cirurgia a fáscia para-uretral, justificação apresentada pela Ré para a presença de pontos de sutura.
11 - A Autora teria de provar e provou que a remoção dos fios de sutura lhe provocou danos e que a conduta da Ré, ao deixar pontos de sutura aquando da cirurgia ginecológica, foi causa adequada à formação dos cálculos que determinaram as 3 intervenções cirúrgicas posteriores.
12a -Pelo contrário a sentença não fundamenta a razão pela qual decidiu por em causa a jurisprudência dos Tribunais Superiores e o relatório de peritagem, considerando não provado que a presença de fios de sutura represente uma prática desaconselhada ou inadequada, que exista nexo causal entre a existência destes fios e a formação de cálculos, bem como que considere sem mais que tenha ocorrido migração de pontos de sutura de outra cirurgia.
13a - Um parecer técnico poderia ajudar a esclarecer algumas questões técnicas de forma isenta e mais concreta, mas o tribunal não julgou serem necessários quaisquer esclarecimentos, pelo que recusou o requerimento apresentado pela Autora. Sendo esta uma decisão tomada ao abrigo do princípio da gestão processual e, portanto, irrecorrível quando foi proferida é, todavia, recorrível no momento presente.
14a - Sucede pois que a douta sentença, ao arrepio das conclusões constantes do relatório de peritagem e sem qualquer fundamentação, ignorou as conclusões dos peritos médicos, pelo que deste ponto de vista a sentença é nula por falta de fundamentação.
15a - Pelo que a decisão proferida deve ser revogada e substituída por outra que retire do relatório de peritagem todas as consequências, condenando a Ré em conformidade.
16a - a Douta Decisão recorrida violou, pois, o disposto nos artigos 607°, 608°, n° 2 e 5°, n° 1 do Cód. Proc. Civil, nos artigos, 566°, 798°, 799° do Cód. Civil, e artigos 6°, 601° e 615°, n° 1 al. b) do Cód. Processo Civil
Pelo que, com o Mui Douto suprimento deste Venerando Tribunal, se aguarda a acostumada Justiça!»
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação (fls.).
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
I. Nulidade da sentença;
II. Impugnação da decisão de facto;
III. Se a 1ª Ré está constituída em responsabilidade contratual/extracontratual perante a Autora.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. °
A 1ª Ré, médica ginecologista, prestou consulta à Autora, pela primeira vez, em novembro de 1997.
2. °
Na consulta a Autora referiu:
- Ciclos Menstruais Encurtados (Ciclos Menstruais com frequência superior ao normal);
- Dismenorreia Secundária (dor pélvica durante a menstruação), que se estabeleceu tardiamente, muito depois da Menarca (primeira menstruação);
- Coitorragias (dor nas relações sexuais);
- Corrimento;
- Apendicectomia;
- Antecedentes de Neoplasia Maligna da Mama, na linha materna.
3. °
Da observação e exames de diagnóstico verificou-se:
- Aumento do volume uterino e dor à sua mobilização;
- Hiperestrogenismo, no Estudo Hormonal, de 12.11.1997;
- Heterogeneidade do Útero, a par do aumento relativo do seu volume, no Exame Ultrassonográfico, de 03.12.1997.
4. °
Face a estes resultados, a 1ª Ré diagnosticou à Autora Adenomiose, tendo a Autora sido medicada pela 1ª Ré com Dimetriose.
5. °
Na reavaliação feita em consulta de 08.06.1998, após três meses de terapêutica, a Autora mantinha queixas de dor pélvica, a mobilização uterina apresentava-se mais dolorosa, a par da existência de Cistocelo e Incontinência Urinária de Esforço.
6. °
A 1ª Ré solicitou nova avaliação Ultrassonográfica Endovaginal e Estudo do Cólon, por Clister Opaco.
7. °
Dos exames realizados em 02.07.1998, a Ecoestrutura Uterina apresentava- se já homogénea.
8. °
A 1ª Ré propôs à Autora que fizesse medicação injetável, o que esta não aceitou.
9. °
Optando por se submeter a intervenção cirúrgica.
10. °
Porque a Autora era beneficiária da ADSE, a 1ª Ré sugeriu a realização da intervenção cirúrgica na CC, que tinha convenção com tal sistema, o que a Autora aceitou.
11º
A Autora foi admitida na CC no dia 12.07.1998 com diagnóstico de adenomiose e incontinência urinária de esforço.
12. °
No dia 13.07.1998 foi submetida a intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido realizada histerectomia total, anexectomia bilateral, ligamentopexia, vaginoplastia e uretrocistopexia tipo Marchall-Marchetti/Burch, por via abdominal.
13. °
Que consiste, esta última, em elevar a fáscia para-uretral para corrigir a Incontinência Urinária da Autora.
14. °
Depois de ter sido intervencionada cirurgicamente em 13.07.1998, a Autora apresentou queixas álgicas de teor diferente das que apresentava anteriormente: de intensidade e localização diferentes das anteriores, contínuas, ao nível da pélvis, e dificuldade no esvaziamento da bexiga
15. °
A Autora continuou a ser observada pela 1ª Ré após a cirurgia, sendo por esta medicada para as queixas apresentadas, e proibindo-a de realizar esforços.
16. °
A mando da 1§. Ré, a Autora fez vários exames complementares de diagnóstico: análises laboratoriais e osteodensitometrias, bem como uroculturas.
17. °
Nos exames imagiológicos efetuados em 18.10.2002, a Autora não apresentava ao nível da bexiga qualquer alteração, apresentando esta com parede fina, regular e lisa, e a cúpula vaginal com normal morfologia.
18. °
A 1ª Ré consultou a Autora pela última vez em 17.11.2002.
19. °
No período compreendido entre 13.07.1998 e 17.11.2002 a Autora manteve- se continente.
20. °
A mando do Dr. MC, ginecologista, a Autora fez uma ecografia pélvica, em 01.10.2009, na qual não foram observadas massas anómalas na área retro vesical, e foram detetadas bandas ecogénicas no interior da bexiga.
21. °
Acompanhada na consulta de urologia do Hospital (…), em 17.02.2010 foi diagnosticado à Autora bexiga neurogénica e corpo estranho intravesical.
22. °
No dia 28.03.2010 a Autora foi internada no Hospital (…), com o diagnóstico de litíase vesical múltipla, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica (fragmentação com lithoclast e cistolitoextração), vindo a ter alta no dia 31.03.2010.
23. °
No dia 03.10.2011 a Autora esteve presente em consulta de urologia na Casa de Saúde (…), por novo cálculo.
24. °
No dia 15.10.2011 a Autora foi internada na Casa de Saúde (…) e efetuada remoção endoscópica por via trans-uretral de corpo estranho intra-vesical - fio de sutura - tendo alta em 17.10.2011.
25. °
À data de entrada em juízo dos autos a Autora aguardava a realização de nova intervenção para remoção de cálculo da parede anterior da bexiga, formado a partir de fio de sutura, o que ocorreu em 02.02.2014.
26. °
O fio de sutura de nylon em causa está relacionado com uretrocistopexia e não com a histerectomia, tendo sido usado na suspensão da fáscia para-uretral
27. °
À data de realização do exame pericial não se apurou sequelas permanentes, sendo fixável a cura em 13.03.2014.
28.°
Entre as datas referidas em 22.° e 24° a Autora terá sofrido dores fixáveis num grau 3 de dez; e encontrava-se parcialmente incapacitada na realização de tarefas domésticas e atividades profissionais.
29. °
Os serviços prestados pela 1ª Ré e pela Ré CC à Autora foram-no ao abrigo de convenção com a ADSE, de que esta última era beneficiária.
30. °
À data de entrada na CC a Autora procedeu ao pagamento da quantia de Esc.: 100.000$00, correspondente ao valor estimado não comparticipado e a seu cargo.
31. °
No total, a autora pagou à CC (CC) o valor de Esc.: 135.700$00, para remuneração dos serviços prestados e discriminados no recibo de fls. 20, cujo teor se dá por reproduzido, correspondente ao valor não comparticipado pela ADSE.
32. °
Posteriormente, a ADSE pagou à 2ª Ré o valor fixado na tabela em vigor, para remuneração dos serviços prestados, entregando esta à 1ª Ré o valor correspondente aos seus honorários.
33º
Para pagamento de consulta de ginecologia realizada em 16.09.2009 na (…) a Autora despendeu a quantia de €65,00.
34. °
Para pagamento de ecografia pélvica realizada em 01.10.2009 na (...) a Autora despendeu a quantia de €5,30.
35. °
Para pagamento de consulta de urologia realizada em 13.11.2009 na (...) a Autora despendeu a quantia de €60,00.
36. °
Para pagamento de serviços prestados na Clínica de (…), em 17.11.2009 a Autora despendeu a quantia de €150,00.
37. °
Para pagamento de honorários clínicos a (…), Serviços Médicos, Lda., em 17.11.2009 a Autora despendeu a quantia de €150,00.
38. °
Para pagamento de taxa moderadora de exame complementar de diagnóstico (TAC) realizado em 27.11.2009 no Centro Hospitalar de Coimbra a Autora despendeu a quantia de €18,80.
39. °
A Dra. BB não era, em 13.07.1998, nem nunca tinha sido antes ou foi até hoje, empregada ou trabalhadora da CC, nem esta sociedade alguma vez celebrou com ela qualquer contrato de prestação de serviços visando intervenções cirúrgicas da sua especialidade.
40. °
Tinha e mantinha, em todos os atos médicos que determinou, praticou ou realizou no que se refere à Autora, total independência e autonomia técnica, científica e de prestar recomendações e conselhos, seja no que se refere ao local, ao momento, ao tipo, à quantidade, à qualidade, à prescrição, à fixação das respetivas datas, termos desses atos médicos, que são exclusivamente seus.
41. °
A Dra. BB não tinha com a CC qualquer compromisso, ou mesmo indicação, de obrigatoriedade de realização de um número mínimo ou determinado de consultas ou intervenções cirúrgicas nas instalações daquelas.
42. °
Dependendo exclusivamente da sua iniciativa e decisão realizar ou não na CC essas consultas ou intervenções cirúrgicas.
43. °
A única coisa a que a CC contratou com a doente foi prestar-lhe serviços de acompanhamento e de cuidados não médicos pré e pós-operatórios, de cedência de sala do bloco operatório, de alojamento, de alimentação, de enfermagem, e outros não médicos que são necessários em consequência de intervenções cirúrgicas que se realizem na CC.
44. °
Em 13.07.1998 a CC tinha celebrado e mantinha em vigor contrato de seguro visando a transferência da Responsabilidade Civil na Exploração da sua Atividade e a Responsabilidade Civil Profissional da clínica para a DD, SA, contrato esse que ficou titulado pela Apólice n° (…) que foi substituída e anulada pela Apólice n° (…), e regulado pelas Condições Gerais, Especiais e Particulares juntas de fls. 69 a fls. 75, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
45. °
Nos termos das Condições Particulares, em caso de sinistro por responsabilidade civil profissional, o segurado está sujeito ao pagamento de uma franquia de 10% do valor coberto, com o limite mínimo de 100.000$00 (€ 498,79) e máximo de 2.000.000$00 (€9.9975,95).
46. °
Nos termos das Condições Particulares do contrato de seguro celebrado com a DD encontra-se excluída a responsabilidade civil profissional de médicos que não estejam ao serviço do hospital, ainda que o utilizem a título de clínica privada.
47. °
A 1ª Ré contratou com a (…), atualmente EE, SA, através da Apólice n°(…), sendo a apólice atual a n.° (…), Seguro de Responsabilidade Civil Profissional.
48. °
Nos termos do seguro contratado, a seguradora obrigou-se a reparar todos os danos patrimoniais resultantes da atividade profissional da 1ª Ré.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da sentença
Sustenta a apelante que a sentença é nula por falta de fundamentação porque ignorou as conclusões constantes do relatório pericial, fazendo-o sem qualquer fundamentação (conclusão 14ª).
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil  , é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença.
Ensinava a este propósito ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil  Anotado, V Volume, p. 140, que
«Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»[3]
Nas palavras precisas de Tomé Gomes, Da Sentença Cível, p. 39, «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, CJ 1995 – II, p. 58, “ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.” O mesmo Tribunal precisou que a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final (Acórdão de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08). Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11.[4] «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.»[5]
Ora, compulsada a sentença, verifica-se que a mesma se encontra fundamentada, de facto e de direito. A fundamentação de facto espraia-se ao longo de 15 páginas contendo o resumo e análise crítica dos depoimentos, prova pericial e documental, designadamente. No que tange à fundamentação de direito, a mesma também é extensa e clara.
Assim sendo, não ocorre o vício arguido.
O que a apelante pretende questionar é a convicção formada pelo tribunal a quo e a correção da mesma. Todavia, neste circunspecto, poderemos estar perante eventual erro de julgamento de facto, mas não perante o vício da nulidade.
Impugnação da decisão de facto
A apelante pretende que os factos provados sob 13 e 26 passem a ser considerados não provados, sendo aditado o seguinte facto provado: os cálculos formaram-se e tiveram a sua origem nos fios de sutura, de antiga cirurgia ginecológica de 13.7.1998.
Para tal efeito, invoca – em primeiro lugar-  o teor do relatório pericial (conclusões 1ª a 4ª, 10ª), sendo que o esquecimento de instrumentos utilizados na cirurgia, incluindo fios de sutura, deve ser considerado como omissão de um dever de diligência.
Sustenta a apelante que a alegada origem dos fios de sutura noutra intervenção cirúrgica à coluna constitui um facto essencial, não alegado pelas partes, pelo que não poderia ter sido considerado pelo tribunal (fls. 701 e conclusões 6ª e 7ª).
Esta última linha de argumentação, é totalmente improcedente. Com efeito, o tribunal a quo não deu como provado que fios de sutura em causa provenham de intervenção cirúrgica à coluna da Autora. Só nessa eventualidade é que a argumentação da apelante, atento o disposto no Artigo 5º do Código de Processo Civil, colheria algum fundamento. A circunstância de, durante o julgamento, resultar uma eventual causa diversa para a litíase vesical subsume-se – simplesmente - à figura da contraprova (cf. Artigo 346º do Código Civil).
No que tange à relevância dada ao relatório pericial pela apelante, há que observar o seguinte.
Na Discussão do relatório pericial, escreveram as Sras. Peritas:
«No dia 13.7.98, a examinada foi submetida a intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido realizada histerectomia total, anexetomia bilateral, ligamentoplexia, vaginoplastia e uretrocistopexia de Marcha Marchetti.
Decorridos 12 anos (17.2.2010) desenvolveu complicação pós-operatória, designadamente organização dos fios de sutura com formação de corpos estranhos vesicais, trata posteriormente cirurgicamente três vezes.
No dia 28.3.2010 por litíase vesical múltipla, foi submetida a fragmentação com lithoclas e cistoliextração. No dia 15.10.2011 foi submetida a remoção endoscópica por via trans-uretral de corpo estranho intra-vesical (fio de sutura). Foi novamente intervencionada a 2.2.2014, tendo-lhe sido removido cálculo da parede anterior da bexiga, formado a partir de um fio de sutura.
Para o melhor esclarecimento médico-legal das eventuais consequências permanentes, as peritas médicas solicitaram a realização dos exames complementares de diagnóstico, que revelaram ausência atual de prolapso urogenital ou incontinência urinária significativa, bem como ausência de qualquer lesão da mucosa vesical, nomeadamente sinais de cicatrizes de eventuais cirurgias anteriores.
Por colocada ainda em dúvida, eventual consequência permanente do foro psicológico/psiquiátrico, que, no entanto, também foi excluída, conforme relatório do exame complementar psiquiátrico realizado.
(…)
Tendo em consideração tudo acima referido, apesar de uma evolução longa das referidas complicações pós-operatórias, é possível concluir, que a situação evoluiu para a cura médico-legal, podendo ser valorizados apenas danos temporários.
(…)
5. Os estados referidos de 1 a 4 são consequência da intervenção cirúrgica a que foi submetida em 13.7.1998? Prejudicado.
6. A bexiga da examinada apresenta alguma intromissão/deformação proveniente de cirurgia? Ou apresenta vestígios de ter sido cirurgicamente intervencionada? Não de acordo com os exames de diagnóstico efetuados.
7. Pela análise da examinada pode concluir-se que lhe foi levantada por meio de cirurgia a fáscia para-uretal? Não, conforme exames complementares de diagnóstico anexados» (Fls. 620-621).
Há que apreciar criticamente este relatório pericial.
Em primeiro lugar, e questão de importância fulcral para estes autos, o relatório pericial não se pronuncia sobre a existência de alguma violação das legis artis durante a realização da intervenção cirúrgica da Autora, efetuada pela 1ª Ré em 13.7.1998, sendo que foram duas intervenções cirúrgica no mesmo ato: uma para ablação do útero e acessórios e outro para debelar a incontinência urinária.  Em parte alguma, se afirma que a 1ª Ré aplicou uma técnica não recomendada à época ou que, aplicando uma técnica recomendada, a tenha executado de forma deficiente. O que o relatório pericial se limita a constatar é que, passados 12 anos sobre a intervenção cirúrgica, a Autora desenvolveu complicação pós-operatória com organização dos fios de sutura com formação de corpos estranhos vesicais. Mas não se pronúncia sobre se esse surgimento de cálculos vesicais derivados da presença do nylon na bexiga é algo recorrente ou, pelo contrário, raro e, muito menos, se tal só sucedeu porque a 1ª Ré desrespeitou algum procedimento devido e recomendado, durante a execução das cirurgias.
Em segundo lugar, o relatório é contraditório nos seus próprios termos. Por um lado, dá como assente a realização de uretrocistopexia de Marshall (e não Marchall como é aí escrito) Marchetti e, por outro lado, afirma que, pela análise da examinada, não pode concluir-se que lhe foi levantada por meio de cirurgia a fáscia para-uretral.  Ora, trata-se de realidades incompatíveis porquanto a Marshall-Marchetti-Krantz  «é uma técnica via abdominal de suspensão da junção vesico-uretral, que usa a fáscia periuretral que é fixada no periósteo da sínfise púbica, tracionando o colo vesical anteriormente. Demonstrou-se uma taxa de cura subjetiva de 86% após 5 anos do procedimento, que caiu para 75% após 15 anos. A taxa de complicações pós-cirúrgicas foi de 21%. Dentre as complicações mais comuns da MMK estão a dificuldade miccional e a hiperatividade detrusora (11%), a osteíte púbica (2,5%) e as fístulas uretrovaginais (0,3%)» - Lucas Luã Machado Pereira e Outros, “Manejo Cirúrgico Da Incontinência Urinária De Esforço Na Mulher”.
Em terceiro lugar, do depoimento de parte da 1ª ré e dos depoimentos das testemunhas LF (médico urologista) e MMS (urologista) resulta um quadro minimamente claro e consistente quanto ao âmbito das intervenções cirúrgicas (uma ginecológica, consistente na ablação do útero e acessórios, e outra para debelar a incontinência urinária) e às eventuais causas da migração dos pontos de nylon para a bexiga.
Assim, a testemunha LF, colega da 1ª Ré com quem já trabalhou, esclareceu que, no âmbito da realização da uretrocistopexia, utilizam-se fios de sutura de nylon, sendo os pontos dados lateralmente na vagina e não na bexiga. O nylon não é utilizado no útero nem na bexiga porque rasga o tecido, não sendo absorvível. Com o decurso dos anos, o nylon pode acabar por cortar os tecidos onde foi passado e fica livre. O organismo procura-se livrar-se deste corpo estranho, sendo que a porta mais próxima para tal efeito é a face anterior da bexiga que tem tecido que facilita a migração. Quando o nylon migra através da parede da bexiga, entra em contacto com a urina, induzindo a formação de cálculos.[6] Isto não significa que a técnica aplicada na execução da uretrocistopexia seja incorreta.
A testemunha MMS, urologista que não conhece a 1ª Ré, afirmou que, se algo tivesse corrido mal na intervenção cirúrgica de 1998, teriam que ocorrer sintomas muito antes. Mais esclareceu que pode ocorrer migração de pontos de sutura, não sendo isso sinónimo de uma prática errada. Dá o seu exemplo pessoal, sendo que foi operada ao apêndice e, 10 anos depois, um ponto soltou-se e veio para a parede abdominal.
Por sua vez, a 1ª Ré frisou que o útero está situado atrás da bexiga pelo que qualquer lesão, que ocorresse durante a histerectomia, ocorreria na parede posterior e não anterior da bexiga. E, de facto, o útero situa-se atrás e acima da bexiga e em frente ao reto (cf., por todos, Enciclopédia de Medicina, Seleções do Reader’s Digest, p. 1087 e Frank H. Netter, Atlas de Anatomia Humana, Elsevier, 7ª ed., 2019, p. 356). Logo, tendo-se formado os cálculos vesicais na parede anterior da bexiga (cf. fls. 620 v, relatório pericial), está indiciado que os mesmos não têm origem na histerectomia. Apenas a uretrocistopexia implicou a aplicação de 4 pontos, sendo que o nylon só se usa para a suspensão de tecidos, v.g., prolapso e curas de hérnia, nunca sendo usado na histerectomia. Em todo o caso, quando ocorre exposição de linha na bexiga, a formação de cálculos surge após 28 dias, o que não ocorreu na sequência das intervenções cirúrgicas, sendo que, em 2002, a autora não apresentava ao nível da bexiga qualquer alteração, apresentando a bexiga uma parede fina, regular e lisa (facto 17). Mais invocou a 1ª Ré que, posteriormente, a Autora foi sujeita a uma intervenção cirúrgica à coluna, sendo que esta implica a realização de algaliação. Neste preciso contexto, cabia à Autora alertar que tinha realizado a uretrocistopexia sob pena de ocorrer traumatismo da mucosa, o que a 1ª Ré desconhece se ocorreu, mas resulta do conhecimento científico como ocorrência eventual neste contexto específico.
Deste conjunto coerente e confluente de depoimentos, corroborados por dados objetivos, resulta que foi feita contraprova – mais do que suficiente- quanto à alegação da autora de que «Os cálculos formaram-se e tiveram a sua origem nos fios de sutura, de antiga cirurgia ginecológica de 13.7.1998», sendo que a única cirurgia ginecológica ocorrida em 13.7.1998 foi a histerectomia, não assumindo a uretrocistopexia tal índole ginecológica.
Todavia, mesmo que houvesse razões para dar tal facto como provado, tal não alteraria o sentido da decisão final, conforme será visto infra.
Ainda em sede de impugnação da matéria de facto, argumenta a apelante que um parecer técnico poderia ajudar a esclarecer algumas questões técnicas, tendo o tribunal a quo recusado o requerimento apresentado pela autora (conclusão 13ª).
E, de facto, em 10.7.2019, a Autora requereu a elaboração de um Parecer Técnico pelo INML (fls. 670-671).
Tal pedido foi objeto de indeferimento por despacho de 20.9.2019 (fls. 679-680), sendo aí fundamentada a decisão designadamente nestes termos:
«Não tendo sido suscitada qualquer reclamação ou pedido de esclarecimento face ao teor do relatório pericial, entende-se que, presentemente, se encontra prejudicada a possibilidade de requerer, designadamente ao perito subscritor, a prestação de quaisquer esclarecimentos ou questões adicionais. (…) nem a autora suscita dúvida ou questão concreta que pretenda ver respondida (…)» (fls. 680).
O meio de impugnação de tal despacho era a apelação autónoma imediata (Artigo 644º, nº2, al. e), do Código de Processo Civil), o que não foi feito pela Autora pelo que é intempestiva tal discussão neste momento.
Se a 1ª Ré está constituída em responsabilidade contratual/extracontratual perante a Autora
Na petição, a Autora imputou à 1ª Ré má prática cirúrgica, evidenciada pelos quatro fios de sutura que foram encontrados no interior da Autora (cf. máxime artigo 29º da petição aperfeiçoada). Ou seja, simplificando, a Autora imputou à 1ª Ré falta de zelo, má avaliação da situação, “má atuação humana”, “conduta negligente grosseira” (artigos 31º e 32º da petição aperfeiçoada).
Todavia, da matéria de facto provada não emerge factualidade concreta que sustente tais imputações genéricas.
Com efeito, da factualidade provada não resulta que os procedimentos cirúrgicos adotados pela 1ª Ré fossem inadequados perante o quadro clínico que a Autora então apresentava, nem que, na execução desses procedimentos, a 1ª Ré tenha incorrido na violação de qualquer legis artis (cf. factos 11 a 15, 17, 21 a 26).
Na verdade, conforme é exigível neste tipo de casos, cabia à Autora alegar e provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados/omitidos  pela 1ª Ré e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais atos e o dano.[7]
 O ponto de partida essencial para qualquer ação de responsabilidade médica é a desconformidade da concreta atuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura. [8]
As legis artis correspondem a «métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes.»[9] No que tange à definição do conteúdo material das legis artis, realce-se o contributo da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (vigente em Portugal desde 1.12.2001 [10]) que veio dispor, no seu Artigo 4º, que “Qualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efetuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como as regras de conduta aplicáveis ao caso concreto”. Daqui decorre o reforço do valor jurídico dos “Protocolos”, “Guidelines” e das “Reuniões de consenso”, os quais consubstanciam documentos criados pelos médicos que contribuem diretamente para a definição das regras de conduta a que se deverá subordinar a sua atividade. Deste modo, tais documentos colhem uma aplicação indireta. A respetiva violação faz presumir uma violação das legis artis .[11]
Feita a prova da violação das legis artis, opera a presunção de culpa.[12] O que se presume é a culpa do cumprimento defeituoso e não o cumprimento defeituoso em si mesmo.[13]
A culpa [14] deve ser entendida não só como deficiência da vontade, como falta de cuidado, de zelo, de aplicação (a incúria, o desleixo, a precipitação, a leviandade ou ligeireza), mas também como deficiência da conduta, abrangendo-se aqui a falta de senso, de perícia, de aptidão (a incompetência, a incapacidade natural, a inaptidão, a inabilidade).[15] Cura-se de saber se «seria exigível ao médico ter atuado de outra forma naquele circunstancialismo, tendo em consideração os dados existentes e as informações conhecidas à data em que o agente atuou.»[16]
O médico não deverá ser responsabilizado por riscos atípicos nem tampouco quando na sua atuação optou por utilizar um dos procedimentos ou das técnicas validamente alternativas em termos científicos.
A operacionalidade da presunção de culpa (quando ocorra) impõe ao médico – caso queira eximir-se da sua responsabilidade – que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido utilizados) não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados.[17] Ou seja, cabe ao médico provar a conformidade entre a sua conduta efetivamente observada e a atuação que lhe era exigível. Na expressão precisa de Vera Lúcia Raposo, o médico tem que «demonstrar que atuou de forma diligente, exatamente como atuaria um qualquer outro médico naquela mesma situação, porque é sobre a diligência da sua conduta (ou a falta dela) que recai a presunção», não bastando ao médico sugerir várias hipóteses por força das quais o dano possa ter ocorrido, nem sendo-lhe exigível que demonstre qual a real causa do dano.[18]
Poderá também o médico provar que o dano se deve a caso fortuito ou de força maior, assentando o primeiro na ideia de imprevisibilidade (podendo prevenir-se o dano se tivesse sido previsto) e o segundo na ideia de inevitabilidade (acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências). [19]
Atentas as complicações que podem produzir-se no corpo humano, a possibilidade de ocorrência de situações reconduzíveis a caso fortuito é maior em medicina do que em outras atividades humanas. Em Espanha, o Supremo Tribunal já decidiu, por exemplo, que o risco de complicações urinárias causadas por uma ligadura no uréter era previsível e evitável, segundo os conhecimentos comuns de urologia. [20] O nosso STJ também já salientou que a atividade médica envolve, por natureza e por pequena que seja, uma álea. Na expressão do mesmo, «A medicina progrediu imenso, mas a variedade das doenças, a sua evolução, a particularidade, genética ou não, de cada doente e outros fatores, determinam que se lide sempre em termos de probabilidade de ser alcançado o fim pretendido; nuns casos com mais probabilidade, noutros com menos, mas sempre probabilidade.» Dito de outra forma, é necessário assegurar a margem de risco tolerado ao ato médico.[21] Há que admitir o erro escusável, aquele que recai no âmbito da denominada falibilidade médica, ou seja, que decorre da imperfeição dos conhecimentos científicos para a mediana cultura médica.[22]
Contudo, não constitui causa de exculpação a demonstração singela de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, ocorre uma franja de casos (por ex., 5%) em que se produzem determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico). A estatística em causa nada esclarece sobre a proporção que, dentro dessa percentagem de risco, deve ser imputável a uma deficiente aplicação da técnica cirúrgica .[23]Caberá sempre apurar a causa efetiva de tais sequelas.
Revertendo ao caso em apreço, a Autora não provou o que lhe incumbia provar, ou seja, a desconformidade objetiva entre os atos praticados/omitidos pela 1ª Ré e as legis artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais atos e o dano. Mesmo que tivesse logrado provar que os cálculos tiveram a sua origem nos fios de sutura da cirurgia ginecológica (histerectomia) de 1998 (nexo de causalidade), essa prova seria insuficiente porquanto haveria também que demonstrar que a aplicação de tais pontos de nylon correspondia a uma técnica errada ou mal-executada, prova essa também não realizada.
O que ocorreu foi uma complicação pós-operatória atípica, sendo que não está demonstrado que para o surgimento de tal complicação tenha concorrido qualquer erro cometido durante a cirurgia ocorrida 12 anos antes (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.7.2006, Nuno Cameira, 06A1503). 
Atendendo à contraprova efetuada (cf. supra), é conjeturável que os pontos de sutura em nylon, aplicados aquando da realização da uretrocistopexia, se tenham solto e migrado para a parede anterior da bexiga. A ser assim, trata-se de um risco ínsito à realização de cirurgia com recurso a tal tipo de sutura, não estando demonstrado que – à data da realização de tal cirurgia – constituísse procedimento incorreto a utilização de tal tipo de sutura, tanto mais que a literatura não indica a migração dos pontos como um risco típico de tal cirurgia (cf. supra).
Conforme refere António Carlos Fontes Cintra, A Imputação do Erro Médico, FDUL, 2012, p. 189, «A intervenção médica, via de regra, apresenta riscos. É possível que a conduta médica abrevie a vida do paciente, prolongue, ou ao menos tenha reflexos positivos ou negativos na qualidade de vida do paciente. Não basta que se realize um juízo a posteriori que possa constatar o acerto da decisão médica. Importa que, por meio de um juízo retrospetivo, se faça a análise, de acordo com os dados conhecidos à época e com o estado da técnica, do potencial de incremento e de diminuição de risco que havia em um juízo prognóstico.» Ora, não está demonstrado esse juízo retrospetivo desfavorável à 1ª Ré, no caso em apreço.
O nosso sistema jurídico só excecionalmente admite a responsabilidade objetiva médica, v.g. ensaios clínicos, doações de órgãos ou tecidos em vida, não se subsumindo uma situação da índole dos autos a qualquer das exceções previstas – cf. Carla Gonçalves, “A responsabilidade médica objetiva”, in Responsabilidade Civil dos Médicos, Coimbra Editora, 2005, pp. 359-388.
Termos em que improcede a apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 13.10.2020
Luís Filipe Sousa
Carla Câmara
José Capacete
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14.
[3] No mesmo sentido, vejam-se Acórdão da Relação de Coimbra de 14.4.93, Ruy Varela, BMJ nº 426, p. 541, Acórdão da Relação do Porto de 6.1.94, António Velho, CJ 1994- I, p. 197, Acórdão da Relação de Évora de 22.5.97, Laura Leonardo, CJ 1997-II, p. 266, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj , RODRIGUES BASTOS,  Notas ao Código de Processo Civil  , III Vol., LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil  Anotado, II Vol., 2001, p. 669.
[4] No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2015, Granja da Fonseca, 460/11, de 10.5.2016, João Camilo, 852/13, de 20.11.2019, Oliveira Abreu, 62/07.
[5] Luís Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, p. 116.
[6] «Outra forma de desenvolvimento de cálculos vesicais é devido à presença de corpos estranhos na bexiga, que servem como um ninho para a formação da pedra. Esses corpos estranhos podem ser: material de sutura, migração de aparelhos contraceptivos, stents (cateteres) ureterais, entre outros» - http://sbu-sp.org.br/publico/calculo-vesical/#:~:text=Outra%20forma%20de%20desenvolvimento%20de,cateteres)%20ureterais%2C%20entre%20outros.
[7] Na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.5.2003, Neves Ribeiro, 912/03, o doente tem que provar que um certo diagnóstico, tratamento ou intervenção foi omitido e, por assim ser, conduziu ao dano, pois se outro ato médico tivesse sido (ou não tivesse sido) praticado teria levado à cura, atenuado a doença, evitado o seu agravamento ou mesmo a morte. Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.7.2010, Serra Baptista, 398/1999, clarifica-se que a prova do nexo causal, como um dos pressupostos da obrigação de indemnizar e medida da mesma, cabe ao credor da obrigação, independentemente da sua fonte. «Como elemento constitutivo do direito invocado pelo doente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das “leges artis” ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.1.2020, Rosa Ribeiro Coelho, ECLI:PT:STJ:2020:700.16.3T8PRT.P1.S1).
[8] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.9.2007, Alves Velho, CJ 2007 – III, pp. 54-57.
[9] Acórdão do STA de 13.3.2012, Políbio Henriques, 0477/11.
[10]Acessível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais- dh/tidhregionais/convbiologiaNOVO.html.
[11] André Gonçalves Dias Pereira, “Responsabilidade civil dos médicos: danos hospitalares – Alguns casos da Jurisprudência”, in Lex Medicinae, Ano 4, Nº 7, Jan- Jun (2007), p. 59.
[12] No sentido da aplicação do regime do art. 799º do Código Civil, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.10.2015, Prazeres Beleza, 2104/05, de 28.1.2016, Graça Trigo, 136/12, de 23.3.2017, Tomé Gomes, 296/07.
[13] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.9.2007, Alves Velho, 2334/07, de 16.69.2009, João Camilo, 287/09, de 13.9.2011, João Camilo, 10527/07, de 11.6.2013, Salreta Pereira, 544/10.
[14] Segundo Manuel Rosário Nunes, Da responsabilidade civil por atos médicos – Alguns Aspetos, Universidade Lusíada, 2001, p. 35, “Autores como planiol, de martini, convicini, pennequ, gonzález morán ou ataz lópez confluem na definição da culpa médica como a infração por parte do médico ou do cirurgião, de algum dever próprio da sua profissão e, mais concretamente, do dever de atuar com a diligência objetivamente exigida pela natureza do ato do médico que se executa, segundo as circunstâncias das pessoas, do tempo e do lugar.”
[15] Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2001, Ferreira de Almeida, 1987/01, atua com negligência o médico que não exercite todo o seu zelo nem ponha em prática toda a sua capacidade técnica e científica na execução das suas tarefas para proporcionar cura ao doente, sendo que traduz imperícia do médico a utilização da técnica incorreta dentro dos padrões científicos atuais (no mesmo sentido quanto à noção de imperícia, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.10.2010, Ferreira de Almeida, 1364/05). No Acórdão de 18.5.2006 do mesmo Tribunal, sendo relator Ferreira de Sousa, 1279/06, foi enfatizado que “A deficiência da atuação médica poderá ser avaliada em função da situação patológica do doente antes e após a intervenção contratada, mas, ainda assim, para funcionar a responsabilidade médica necessário se torna que se verifique uma desconformidade da concreta atuação do médico, no confronto com o padrão de conduta profissional exigível a um operador medianamente competente e prudente.”
[16]  Vera Lúcia Raposo, Do Ato Médico ao Problema Jurídico, Almedina, 2013, p. 80.
[17] Na expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.5.2003, Neves Ribeiro, 912/03, no âmbito da responsabilidade contratual, cabe ao médico provar que não houve erro técnico profissional, com recurso às leis da arte e meios da ciência médica, prevalentes em certa época e local e de que razoavelmente dispunha.
[18]  Do Ato Médico ao Problema Jurídico, Almedina, 2013, p. 98. Na mesma obra e mais à frente, afirma a mesma autora que “Basta que o réu ofereça uma explicação excludente do dano simultaneamente congruente com a sua conduta diligente” (p. 142).
[19] Cf. almeida costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12ª Ed., 2016, pp. 1073-1074.
[20] Cf. fernández hierro, Sistema de responsabilidad médica, Comares, 2007, pp. 154-155.
[21] Cf. Acórdão do STJ de 15.12.2011, Gregório Silva Jesus, 209/06.
[22] Cf. Acórdão do STJ de 24.5.2011, Hélder Roque, 1347/04.
[23] Cfr. fernández hierro, Op. Cit., pp. 158-159.