Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6740/2006-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: FORO CONVENCIONAL
SOCIEDADE
CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - O legislador introduziu uma norma transitória especial no artigo 6º da Lei nº 14/2006, sob a epígrafe aplicação no tempo, ao dispor: “A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”.
II - Esta norma só pode significar que a lei nova prevalece nos processos entrados após o início da sua vigência, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante, pois que não haveria dúvida quanto à sua aplicação aos contratos celebrados posteriormente à sua entrada em vigor.
III - Tal norma de direito transitório afasta a convenção das partes quanto ao foro de eleição ainda que inserta em contrato celebrado anteriormente à data em que aquela Lei entrou em vigor, tendo, assim, plena aplicação o disposto no nº 1 do artigo 74º e na alínea a), do nº 1 do artigo 110º, na nova redacção que lhes foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.
IV - Não obstante, à luz da redacção actual do nº 1 do artigo 74º, pode a requerente optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, se a requerida for uma pessoa colectiva.
V - Estabelecendo o artigo 774º do Código Civil em matéria de cumprimento de obrigações pecuniárias, que a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento (constituindo o procedimento cautelar preliminar da acção destinada a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária e indemnização decorrente do não cumprimento das obrigações pecuniárias e podendo o credor optar, nos termos do art. 74º, nº 1, pelo tribunal do lugar onde a obrigação devia ser cumprida visto a requerida ser uma pessoa colectiva), devia o procedimento ser proposto no Tribunal Cível da Comarca em que a requerente tem a sua sede.
VI – O facto de as partes terem convencionado, no contrato que celebraram, que o pagamento das prestações seria efectuado por transferência bancária, sendo a conta a debitar e de que a requerida é titular, da agência bancária de Rio Maior, não significa que a obrigação deveria ser cumprida em Rio Maior, isto porque, a obrigação não fica cumprida quando o dinheiro relativo à prestação “sai” da conta do devedor, mas apenas quando esse valor “entra” na conta do credor, no caso, na agência de Lisboa, como convencionado no contrato.
VII - Só quando é creditado o montante da respectiva prestação nesta conta sedeada em Lisboa, se pode dizer que a obrigação está cumprida, pelo que o lugar do cumprimento das prestações do contrato dos autos é Lisboa.
F.G.
Decisão Texto Integral: 6

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
Nos autos de procedimento cautelar de entrega judicial de veículo e cancelamento de registo que Banco, SA, instaurou, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, contra I, Lda, com fundamento na resolução do contrato de locação financeira agravou a requerente do despacho que julgou aquele Tribunal territorialmente incompetente e competentes os Juízos de Rio Maior baseado em que a requerida tem domicílio em Rio Maior e a obrigação de pagamento das rendas acordadas deveria ser cumprida em Rio Maior, uma vez que aí se localiza a agência bancária onde existe a conta titulada pela locatária de onde deveriam ser feitas as transferências para a conta do locador.

Formulou na alegação de recurso a seguinte síntese conclusiva:
1ª O despacho recorrido, atento o R. ser uma sociedade, o demais referido na petição inicial e a opção expressa no artº 20º da petição inicial, violou o disposto no artigo 74º, nº 1, do Código de Processo Civil, na própria redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril.
2ª O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a reacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5º e 12º, nºs. 1 e 2, do Código Civil.
3ª O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo nº 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da Republica Portuguesa.
4ª Impõe-se, pois, como se requer, procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido, e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos.

Não houve contra alegação
Foi proferido despacho tabelar de sustentação.

2. Fundamentos:
2.1 De facto:
Para o conhecimento do recurso releva a seguinte factualidade:
a) o presente procedimento cautelar entrou em juízo no dia 31 de Maio de 2006;
b) o contrato celebrado pelas partes, cuja cópia se encontra junta a fls. 9-12, denominado “Contrato de Locação Financeira Mobiliária” foi outorgado no dia 25 de Junho de 2004;
c) as partes convencionram na clª 13ª das condições particulares do contrato como forma de pagamento “Transferência bancária da conta do Locatário”;
d) a requerida tem sede na Rua Maestro Fernando Carvalho, em Rio Maior;
e) por escrito datado de 26 de Junho de 2004, cuja cópia se encontra a fls. 13, a requerida comunicou ao Banco Totta & Açores de Rio Maior o seguinte:
Ao abrigo do Contrato de Locação Financeira Mobiliária, celebrado com o Banco, SA, autorizo que debitem na minha conta adiante indicada, que para esse efeito desde já me comprometo a manter devidamente habilitada, pelo valor apresentado pelo Banco, SA.
Conta a Debitar
Titular: (…)Lda
Banco: (…)s
Agência: Rio Maior
(…)
Conta a Creditar
Titular: Banco, SA.
Banco: Banco T
Agência: 24 de Julho (…)”
f) as partes convencionaram no artigo 23º das condições gerais do contrato que todos os litígios emergentes do mesmo “serão dirimidos pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, com renúncia expressa a qualquer outro”.

2.2. De direito:
Está em causa neste recurso determinar qual o tribunal territorialmente competente para o procedimento cautelar de entrega judicial e cancelamento de registo de veículo previsto no artigo 21º do DL nº 149/95, de 24 de Junho, que regula os contratos de locação financeira.
É pacífico que este procedimento cautelar segue, em matéria de competência territorial, as regras supletivas constantes do Código de Processo Civil (diploma a que se referirão doravante todos os preceitos citados sem menção expressa), pelo que o mesmo deve ser proposto no tribunal em que deve ser proposta a acção respectiva (artigo 83º nº 1 al. c)).
No caso vertente, as partes elegeram no contrato que firmaram em 25 de Junho de 2004 um foro convencional, atribuindo competência territorial para dirimir os litígios dele emergentes ao Tribunal da Comarca de Lisboa.
Os artigos 74º nº 1 e 110º nº 1 al. a), permitiam tal eleição do tribunal territorialmente competente, visto não se tratar de qualquer dos casos em que a competência em razão do território devia ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Estes preceitos foram, porém, alterados pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, passando o artigo 74º nº 1 a dispor que “A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
E o artigo 110º passou a incluir as causas a que refere o artigo 74º nº 1 na al. a) do seu nº 1, o que significa que nelas o conhecimento da incompetência relativa passou a ser de conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 100º.
E perante esta alteração legislativa a primeira questão que se coloca é a de saber se a mesma tem aplicação no caso concreto, visto o contrato em causa, que contém a cláusula atinente à competência convencional, ter sido celebrado em data anterior.
Sobre a problemática da aplicação das leis processuais no tempo, na vertente de a relação material litigada se constituir na vigência de lei processual diferente da que vigora no momento em que é posta em juízo a acção fundada nessa relação, escrevem A. Varela, M. Bezerra e S. Nora que “A solução de problemas desta natureza vem a cada passo formulada na nova lei, através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação” (1).
Dizem os mesmos autores que “Ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc.)”(2).
E acrescentam que o sentido da solução geral aplicável ao comum das leis processuais, sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial, em contrário, é o do princípio da aplicação imediata da lei processual.
A este princípio, que não tem formulação expressa na lei, estão subjacentes, para a generalidade dos autores, o facto de o direito processual ser um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes e a circunstância de se tratar de um ramo de direito adjectivo que apenas regula o modo como as partes podem exercer os seus direitos que a lei substantiva consagra.
No entanto, para os citados autores a solução passa por estender ao domínio do processo civil, com as necessárias adaptações, a doutrina estabelecida, em termos genéricos, no artigo 12º do Código Civil. Assim, a “…ideia, proclamada neste artigo, de que a lei dispõe para o futuro significará, na área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também a actos futuramente praticados nas acções pendentes”, continuando a aferir - se a validade e regularidade dos actos processuais anteriormente praticados pela lei processual antiga vigente ao tempo(3).
No caso, o legislador introduziu uma norma transitória especial no artigo 6º da Lei nº 14/2006, sob a epígrafe aplicação no tempo, ao dispor: “A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”.
Esta norma só pode significar que a lei nova prevalece nos processos entrados após o início da sua vigência, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante, pois que não haveria dúvida quanto à sua aplicação aos contratos celebrados posteriormente à sua entrada em vigor.
Logo, tal norma de direito transitório afasta a convenção das partes quanto ao foro de eleição ainda que inserta em contrato celebrado anteriormente à data em aquela Lei entrou em vigor, como sucede no caso vertente, tendo, assim, plena aplicação o disposto no nº 1 do artigo 74º e na alínea a), do nº 1 do artigo 110º, na nova redacção que lhes foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, visto este procedimento cautelar ter entrado em juízo após a sua entrada em vigor.
E este sentido interpretativo não viola qualquer princípio constitucional, designadamente, os invocados princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica e confiança.
O princípio da proporcionalidade está consagrado na segunda parte do nº 2 do artigo 18º da Constituição em termos genéricos, como limitação geral ao exercício do poder público. Este princípio, que se desdobra em três subprincípios: princípio da adequação, princípio da exigibilidade e princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, só é violado em conexão com qualquer outro direito fundamental relativamente ao qual se afirme que uma determinada situação subjectivável é desproporcionada.
Por outro lado, como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 88/2004, de 10.02.2004,(4) “…estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, um largo âmbito de discricionariedade, pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder assinalar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, um carácter manifestamente excessivo da medida ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.”
Ora, no caso, a questionada interpretação da norma em causa não evidencia que se esteja perante uma medida legislativa manifestamente inadequada ou excessiva, com inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação a vantagens que podem dela advir. A mesma explica-se, apesar da ausência de exposição de motivos, por razões práticas de administração da justiça e visa obviar à concentração de elevada pendência processual em certas circunscrições territoriais motivada pela litigiosidade de “massa”.
E o princípio da segurança jurídica e confiança ínsito no Estado de Direito (artigo 2º da Constituição) também se não mostra violado.
É certo que o equilíbrio contratual é alterado, na medida em que da aplicação da norma em questão, com a interpretação que lhe foi dada, advêm custos acrescidos para uma das partes.
Atendendo, porém, ao interesse público que está em causa, ligado à organização dos meios judiciários, procurando, bem ou mal não cabe aqui apreciar, a sua racionalização num quadro de litígios de “massa” em que o “queixoso” é uma entidade profissionalizada e o tipo de litígio se prende mais com a análise documental do que testemunhal ou pericial, com meios de comunicação à disposição dessas entidades que lhes permite a prática da generalidade dos actos processuais à distância, não há razões para se concluir que a referida interpretação ofende a lei fundamental.
Não obstante, à luz da redacção actual do nº 1 do artigo 74º, aplicável ao caso, como se referiu, face à data em que foi instaurado o presente procedimento cautelar e à norma de direito transitório consagrada no artigo 6º da Lei nº 14/2006, podia a requerente optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, visto a requerida ser uma pessoa colectiva, como parece ter sido o caso face à alegação inserta no artigo 20º da petição.
Estabelece o artigo 774º do Código Civil em matéria de cumprimento de obrigações pecuniárias, como é o caso, que a prestação deve ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.
Sendo assim, constituindo o presente procedimento cautelar preliminar da acção destinada a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária e indemnização decorrente do não cumprimento das obrigações pecuniárias e podendo o credor optar, nos termos do art. 74º, nº 1, pelo tribunal do lugar onde a obrigação devia ser cumprida visto a requerida ser uma pessoa colectiva, devia ser proposto, como foi, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, por ser em Lisboa que a requerente tem a sua sede (o domicílio do credor é o lugar do cumprimento da obrigação – art. 774º do Código Civil).
Logo, mesmo à luz da nova redacção dos artigos 74º nº 1 e 110º nº 1 al. a) dada pela Lei nº 14/2006, que afasta o pacto de aforamento, sempre seria competente para apreciar este procedimento cautelar o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa.
Não colhe, com efeito, o entendimento seguido no despacho recorrido de que a obrigação deveria ser cumprida em Rio Maior, sendo competente o Tribunal da Comarca de Rio Maior, pelo facto de as partes terem convencionado no contrato que celebraram que o pagamento das prestações seria efectuado por transferência bancária, sendo a conta a debitar e de que a requerida é titular da agência do Banco T de Rio Maior
Efectivamente, a obrigação não fica cumprida quando o dinheiro relativo à prestação “sai” da conta do devedor, mas apenas quando esse valor “entra” na conta do credor, no Banco T, Agência da 24 de Julho, em Lisboa, como convencionado no contrato.
Só quando é creditado o montante da respectiva prestação nesta conta sedeada em Lisboa, se pode dizer que a obrigação está cumprida, pelo que o lugar do cumprimento das prestações do contrato dos autos é Lisboa.(5)
Tendo o credor optado pelo foro de Lisboa para intentar este procedimento cautelar, fê-lo com observância das disposições conjugadas dos artigos 74º nº 1, na redacção actual, e 774º do Código Civil.
Merece, assim, o agravo provimento.

3. Decisão:
Termos em que se concede provimento ao agravo e, revogando o despacho recorrido, se julga territorialmente competente para conhecer deste procedimento cautelar o Tribunal Cível da Comarca de Lisboa.
Sem custas (artigo 2º nº 1 al. g) do código das Custas Judiciais.
Lisboa, 26.7.2006
Fernanda Isabel Pereira
Maria Manuela Gomes
Olindo Geraldes
________________________________
1 - In Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 45.
2 - Ob. cit. Pág. 46.
3 - Ob. cit., pág. 49.
4 - Publicado no DR – IIª Série de 16.04.2004.
5 - Cfr. neste sentido os Acs. da RL, de 24.06.2004, 24.02.2005 e 24.11.2005, disponíveis em www.dgsi.pt/jtrl, que nesta matéria se seguiram de muito perto.