Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9060/2006-3
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: AGENTE PROVOCADOR
PROVAS
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Se a transacção de droga foi desencadeada/determinada pela PJ, tendo sido utilizado agente provocador, a prova obtida é nula, por inadmissível, por ter sido utilizado meio enganoso, proibido por lei, já que afecta a liberdade de vontade ou de decisão dos arguidos em causa.
A actividade do agente provocador não pode deixar de ser considerada ilícita e, por isso, as provas assim obtidas são provas proibidas, por inadmissíveis face, desde logo, ao artº 125º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que, apenas, «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei .
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I A) No processo de querela nº 258/88 da 6ª Vara Criminal de Lisboa, 3ª Secção, por acórdão de 10 de Outubro de 2003, foram condenados os arguidos C., J. e M. pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 23º, nº 1 do Dec.-Lei nº 430/83, de 13/12, com referência à tabela anexa I-C, e, actualmente, p. e p. pelo 21º, nº 1 do Dec.-Lei nº 15/93, de 22/1, ex vi do artº 2º, nº 4 do Código Penal, nas penas, respectivamente, de: 3 (três) anos, 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, e 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, todas suspensas na sua execução pelo período de 3 (três) anos.
B) A arguida M. interpôs recurso para o STJ, mas este declarou-se incompetente para o apreciar, por versar matéria de facto, e deferiu a competência para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 27 de Maio de 2004, decidiu declarar nulo o acórdão de 10/10/03, por não se ter pronunciado sobre a problemática do “agente provocador e as consequências da sua intervenção na determinação da prática do acto criminoso” – cfr. artº 668º, nº 1, al. d) do CPC, ex vi do artº 1º do CPP (1929), nomeadamente (vd. seu ponto III) :
«... Dos factos apurados resulta que intervieram, no caso sub judice, um agente da P.J. e um seu colaborador.
A fls. 790 vº da fundamentação da matéria de facto consta que o tribunal baseou a sua convicção para além dos outros meios de prova enumerados, no depoimento do agente da Polícia Judiciária “S. V. que foi o “agente provocador” desta apreensão”.
“Agente provocador” constitui um conceito de direito, que terá de se aferir dos factos provados em audiência de julgamento.
Portanto, é essencial para a decisão apurar, face à matéria de facto provada, se a actuação do agente da P.J. e do seu colaborador integram a figura do agente provocador ou do agente infiltrado/encoberto (artº 59º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro) e quais as consequências que daí resultam, que são completamente distintas. No primeiro caso, a prova por eles recolhida será nula por perturbar a liberdade de vontade ou decisão dos arguidos, artº 261º nº 1 al. a) do C.P. Penal e no segundo caso será válida.
O acórdão recorrido é completamente omisso quanto a tais questões, limita-se a constatar que o elemento da P.J. foi o “agente provocador” desta apreensão, no entanto, não apresenta os motivos pelos quais a actuação daquele e do colaborador assim possa ser considerada, ou se assim não se entender, porque é que se subsumem na figura do agente infiltrado/encoberto, e em consequência se a prova por eles recolhida è ilícita ou não.
É certo que o Acórdão desta Relação de fls. 259 a 263, em sede de recurso do despacho de pronúncia, já se pronunciou sobre tais questões, mas tal não obsta a que na sentença tenham que ser apreciados de novo.
A decisão instrutória de pronúncia é uma decisão com conteúdo meramente processual, pois nela não se resolve a questão de saber se o acusado deve ou não ser punido, mas somente se se verificam os pressupostos indispensáveis para sua submissão a julgamento pelos factos da acusação.
A pronúncia valora em matéria indiciária, enquanto que o julgamento valora em termos de certeza, por isso, os juízos de valor feitos naquela sede não podem substituir o resultado das provas prestadas em julgamento, além de que os factos indiciados podem não coincidir com os provados em audiência de julgamento.
Com o despacho de pronúncia determinou-se, no caso concreto, uma introdução em julgamento dos meios de prova considerados lícitos, mas não se decidiu em definitivo sobre a sua validade e as consequências dos mesmos na culpa dos arguidos, pelo que se impõe que o tribunal a quo se pronuncie sobre as questões referidas e daí retire as consequências devidas.
O acórdão recorrido é, assim, nulo por omissão quanto às questões mencionadas, artº 668º nº 1 al. d) do C.P. Civil, facto que prejudica o conhecimento da questão número 3.
IV – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em declarar nulo o acórdão de fls. 788 a 795, que deverá ser substituído por outro, a elaborar pelos mesmos Juízes, onde se deverão debruçar sobre as questões mencionadas no ponto nº III e daí retirarem as consequências legais”.»
C) Na sequência do acórdão da Relação de Lisboa de 27/05/2004, veio a ser proferido, na 1ª instância, o acórdão de 30 de Maio de 2005.
Mais uma vez inconformada, recorreu a arguida M. para esta Relação de Lisboa, arguindo a nulidade deste acórdão, igualmente por omissão de pronúncia sobre a problemática do agente provocador e consequências da sua intervenção na determinação da prática dos factos; e suscitando ainda a existência de contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação.
Pelo acórdão TRL de 28 de Março de 2006 (cfr. fls. 1063 e segs.) foi decidido declarar nulo o acórdão de 30 de Maio de 2005 e que, em sua substituição, fosse elaborado outro, pelos mesmos Juízes, « onde se deverão debruçar acerca da problemática em questão, ou seja apurar face à matéria de facto provada se a actuação do agente da P.J. e do seu colaborador integram a figura do agente provocador ou do agente infiltrado/encoberto e quais as consequências que daí resultam, que são completamente distintas e daí retirarem as consequências legais.»
Aí se ponderou, nomeadamente, o seguinte:
« Afigura-se-nos que o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 27 de Maio de 2004, que declarou nulo o Acórdão de 10 de Outubro de 2003 e ordenou que o mesmo fosse substituído por outro que se debruçasse sobre a temática do agente provocador ou agente infiltrado/encoberto, extraindo as adequadas consequências legais da conclusão a que chegasse, não foi cumprido.
A decisão recorrida reproduz a primeira limitando-se, no ponto II, na indicação da prova testemunhal que serviu para formar a convicção do Tribunal, a substituir a expressão “agente provocador” pela de “potencial comprador”, nada tendo sido dito em sede de fundamentação de facto e de direito.
O que não resolve a questão fundamental que está na base da decisão do Tribunal da Relação e que se reporta ao facto ilícito cometido pelos Arguidos ter sido ou não provocado, para o que é essencial, na verdade e como no mesmo se afirma, apurar face à matéria de facto provada, se a actuação do agente da P.J. e do seu colaborador integram a figura do agente provocador ou do agente infiltrado/encoberto e quais as consequências que daí resultam, que são completamente distintas. Até porque um potencial comprador tanto pode ser um agente provocador como um agente infiltrado/encoberto.
A conclusão que se impõe é a de que a decisão recorrida não deu resposta à determinação efectuada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pois, continua a ser omissa acerca da problemática em questão, essencial para a boa compreensão dos factos e correcta aplicação do Direito aos mesmos.
Assim sendo, o Acórdão recorrido é nulo por ser omisso quanto às questões mencionadas, nos termos da alínea d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artº 1º do Código de Processo Penal de 1929, donde resulta prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada pela Recorrente, relativa à eventual contradição insanável entre a decisão e a sua fundamentação. »
D) Mais uma vez na 1ª instância, os mesmos Juízes daquela 6ª Vara Criminal de Lisboa elaboraram novo aresto, o acórdão de 17 de Julho de 2006 (cfr. fls. 1097 e segs.), no qual se mantiveram as condenações dos arguidos, nos mesmos termos já referidos.
As únicas alterações foram as que adiante realçamos (em itálico) e constam da motivação da prova testemunhal. No mais, repete-se a matéria de facto dada como assente (II), o acórdão com os quesitos e as respectivas respostas, tal como se manteve inaltarado o “enquadramento jurídico-penal dos factos” (III) e o mesmo se diz quanto à “determinação da medida concreta da pena” (IV).
II – A) Deste acórdão de 17/07/06, recorre a arguida, extraindo as seguintes conclusões:
« a) O acórdão recorrido e as respostas aos quesitos (que) logicamente o antecederam mostram-se datados de 17 de Julho de 2006;
b) A única sessão da audiência de discussão e julgamento teve lugar em 11 de Julho de 2003;
c) Entre a produção de prova e a resposta aos quesitos mediaram mais de três anos, sendo certo que a prova não foi objecto de gravação, nem de registo, por se tratar de processo de querela e os depoimentos terem sido prestados perante o tribunal que procedeu ao julgamento;
d) O artº 468º do Código de Processo Penal de 1929 determinava que as respostas aos quesitos fossem dadas imediatamente após o encerramento da discussão da causa, não estando prevista uma interrupção de tempo superior ao estritamente necessário para o Tribunal Colectivo se pronunciar sobre a matéria de facto;
e) A interrupção verificada tem por consequência a perda de eficácia da produção a prova realizada na audiência, conduzindo à imperiosa necessidade de ser anulado o julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artº 328º, nº 6 do Código de Processo Penal actualmente vigente, por terem sido violados os artºs 468º do Código de Processo Penal e 99º do Estatuto Judiciário;
f) O acórdão recorrido não respeitou a doutrina consagrada no douto acórdão desta Veneranda Relação, proferido em 6 de Fevereiro de 2002, a fls. 598 e ss.;
g) Entre a fundamentação do acórdão proferido em Outubro de 2003 e a daquele agora sob recurso regista-se uma fundamental diferença, pois no primeiro referiu-se a intervenção de um agente da Polícia Judiciária como “agente provocador”, enquanto neste último se degradou a intervenção do mesmo agente, que passou a ter a classificação de “infiltrado”, sem que sejam explicados os contornos de tal “infiltração”;
h) Essa “infiltração” pressupõe a pré-existência de uma actividade criminosa de que os autos não dão testemunho e a fundamentação sob medida não soube explicar;
i) O único acto em abstracto penalmente censurável de que há notícia nos autos foi provocado pela Polícia Judiciária, que induziu a Ré ora recorrente – através da ardilosa utilização de um conhecido dela e “colaborador” daquela Polícia – a obter cerca de 500 gr. de haxixe, destinados ao dito agente provocador, que montou o crime à sua medida e pelo montante que bem entendeu, tendo sido a própria Polícia a fornecer o dinheiro para a “aquisição” de droga;
j) Nem antes, nem depois, desse acto isolado, conseguido através de artifícios da Polícia Judiciária, há notícia nos autos de um único facto penalmente censurável susceptível de ser imputado à ora recorrente;
k) Os autos atestam que a intervenção da Polícia Judiciária não se destinou à obtenção da prova da conduta ilícita, mas à própria perpetração do crime;
l) Só o dinheiro do Estado Português, utilizado pela Polícia Judiciária sem que nos autos haja notícia de que a tanto estivesse superiormente autorizada, possibilitou a transacção de droga;
m) O único dinheiro que se provou estar relacionado com a venda de droga na posse do alegado traficante de “avultadas quantidades” (cfr. auto de fls. 2) – o co-réu C – foi, justamente, o do Estado Português (160 contos), porquanto os demais valores monetários que aquele Réu possuía no momento da operação policial (35 contos) lhe foram devolvidos, por não se ter provado a sua proveniência ilícita;
n) As respostas dadas pelo Tribunal Colectivo – três anos depois da produção de prova – aos quesitos 18º e 19º, enfermam de erro grosseiro, por desconsiderarem as concretas circunstâncias do caso e obliterarem que a vontade dos Réus – designadamente a da Ré recorrente – não foi livre, porque submetida à solicitação exterior do agente provocador e à pressão psicológica que sobre ela exerceu o “colaborador” policial;
o) A “conjugação de esforços” dos Réus, dada por assente na resposta ao quesito 19º, não teve em conta o papel decisivo da iniciativa policial na actuação dos Réus e na prática (e na existência) do acto penalmente ilícito;
p) Os factos constantes dos autos – onde não é referido qualquer outro comportamento ilícito imputado aos Réus – deveria ter levado o Colectivo a não repetir os erros do primeiro julgamento, dando resposta diversa aos quesitos 18º e 19º;
q) A resposta dada ao quesito 27º é infirmada por todas as afirmações e elementos constantes dos autos, que não permitem conclusão diversa de que foi a Polícia Judiciária, utilizando o seu “colaborador” – ex-colega de liceu da recorrente, quem, seguindo as ordens do agente policial provocador, montou a operação de compra da droga, abordando a recorrente e fornecendo os indispensáveis meios financeiros que, aliás, eram do Estado Português;
r) O quesito 28º deveria ter sido respondido afirmativamente, sem reservas, uma vez que consta de fls. 2 a forma como o acto ilícito foi preparado, conduzido e determinado pela Polícia Judiciária, sendo melhor explicitado no “auto de inquirição” do agente provocador, S.V., o qual, a fls. 46, esclareceu que “foi o agente encoberto [na verdade agente provocador, que era ele próprio] quem forneceu o dinheiro à M. e ao J. PARA QUE O NEGÓCIO PUDESSE SER REALIZADO”;
s) Esclareceu ainda o mesmo funcionário policial que os potenciais compradores eram o “agente encoberto” (que era o próprio depoente) e um colaborador da Polícia Judiciária. Face a estes indesmentidos elementos, as respostas dadas pelo Colectivo aos quesitos 27º, 28º, 29º e 30º contrariam, inelutavelmente, a realidade dos factos processualmente adquirida, pelo que esta Veneranda Relação deve alterar aquelas respostas, se necessário mediante renovação da prova a produzir perante o Tribunal ad quem, sendo, a final, tais quesitos dados como provados;
t) É da própria essência das circunstâncias em que os factos ocorreram que o “negócio” – o acto abstractamente susceptível de demérito penal – só foi possível porque o Estado Português forneceu o dinheiro indispensável à sua consumação;
u) As provas obtidas com recurso ao agente provocador – cuja intervenção foi apagada no acórdão recorrido, mas reconhecida no que o antecedeu – são nulas, não podendo ser utilizadas, face ao preceituado no nº 1 do artº 126º do Código de Processo Penal actualmente vigente;
v) As provas obtidas através do agente provocador – situação em que a actividade policial é dirigida à obtenção da própria notícia do crime, compelindo o agente provocado a cometê-lo – constituem ofensa da integridade moral da pessoa e, por isso, são nulas também, por força do estatuído no nº 6 do artº 32º da Constituição Política vigente;
w) Os Senhores Juízes que proferiram o acórdão recorrido tinham perfeito conhecimento desta realidade, que reconheceram ao qualificar o Inspector S.V. como agente provocador, não tendo querido extrair dela as necessárias consequências jurídicas, como lhes foi ordenado por esta Veneranda Relação no seu acórdão de 28 de Março de 2006, a fls. ...;
x) O acórdão recorrido, para além da nulidade de que enferma (pela perda de eficácia da prova produzida na audiência de discussão e julgamento) procedeu a errada interpretação e aplicação, por omissão, do nº 6 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa de 1976 e do artº 126º do Código de Processo Penal actualmente vigente, normas essas que foram violadas por aquela decisão.
Pelo exposto e pelo douto suprimento do Venerando Tribunal ad quem, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, como é de inteira
JUSTIÇA. »
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B) A Exmª Procuradora da República contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso e pugnando pela manutenção da decisão recorrida, mormente: por não ter perdido eficácia a prova produzida em julgamento (não se aplica o actual CPP, mas o CPP de 1929); por não ter sido violado o princípio da continuidade da audiência (não houve hiatos superiores a 30 dias; as subsequentes decisões – de 30 de Maio de 2005 e de 17 de Julho de 2006 – ocorreram em obediência ao determinado por Tribunal superior); e considera que, agora, foi acatada a determinação da Relação de Lisboa, para concluir que “... não pode proceder a tese de que o crime de tráfico de estupefaciente, por que a ora recorrente M. foi condenada, foi ‘provocado’ pelos elementos da Polícia Judiciária ...”; aliás, como entendeu que a testemunha em causa agiu antes como ‘agente encoberto’, não tendo a sua actuação sido decisiva ou determinante do cometimento do crime, pelo que “não há qualquer contradição insanável naquele aresto”; e daí conclui que inexiste fundamento na argumentação da ora recorrente a propósito da alegada nulidade dos meios de prova atendidos pelo Tribunal no acórdão recorrido.
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C) Novamente nesta Relação, o Exmº PGA apôs o seu visto (artº 664º do CPP de 1929).
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III – Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A) Estamos no âmbito do CPP de 1929 (processo de querela), onde a regra é a do conhecimento amplo e sem restrições pelo tribunal superior, pelo que não é lícito aos intervenientes restringir o recurso a certas questões.
Assim, esta Relação deve conhecer do recurso quanto a todos os arguidos, desde logo por a responsabilidade dos não recorrentes ter conexão com a da recorrente (co-autoria material no imputado crime de tráfico de estupefacientes) – cfr. artºs 56º a 58º, e 663º, corpo e § 2º, do CPP/1929. Neste sentido, entre outros, Prof. Cavaleiro de Ferreira (S.J., XIV, nºs 71-72, 144) e Prof. Eduardo Correia (Direito Criminal, II, 1971, p. 215, nota 1), vide Ac.STJ de 07/07/65 e anotações (BMJ 149, 245).
1. Começamos por abordar as arguidas nulidades ou eventuais irregularidades que não se considerem sanadas ou supridas (cfr. artºs 98º, 99º, § 3º e 100º do CPP/1929) e que possam afectar a justa decisão da causa.
Importa, assim, apurar se:
a) O acórdão ora recorrido (de 17/07/06) é nulo por alegada violação do princípio da continuidade e, em consequência, se há perda da eficácia da prova produzida na audiência de discussão e julgamento – cfr. artº 468º do CPP/1929 ?
b) O acórdão ora recorrido é nulo por não ter cumprido o determinado pelo acórdão TRL de 28/03/06, por não se ter pronunciado sobre a já referida questão relativa à «...intervenção de um agente da Polícia Judiciária como “agente provocador”, enquanto neste último se degradou a intervenção do mesmo agente, que passou a ter a classificação de “infiltrado”, sem que sejam explicados os contornos de tal “infiltração» - cfr. al. d) do nº 1 do artº 668º do CPC, ex vi do artº 1º do CPP/1929 ?
c) O tribunal a quo violou, por omissão, a norma constante do nº 6 do artº 32º da CRP (artºs 261º, nº 1 do CPP/1929 e 126º do CPP/1987) ao ter em consideração meios proibidos de prova, por que obtidas com recurso a “agente provocador” (o “negócio” apurado nos autos “só foi possível porque o Estado Português forneceu o dinheiro indispensável à sua consumação”; e foi «...provocado pela Polícia Judiciária, que induziu a Ré ora recorrente – através da ardilosa utilização de um conhecido dela e “colaborador” daquela Polícia – a obter cerca de 500 gr. de haxixe, destinados ao dito agente provocador, que montou o crime à sua medida e pelo montante que bem entendeu, tendo sido a própria Polícia a fornecer o dinheiro para a “aquisição” de droga.» [ v. conclusão j) ] ? O tribunal a quo concluiu, erroneamente, por qualificar agora aquele agente como “infiltrado” o que pressupõe “a pré-existência de uma actividade criminosa de que os autos não dão testemunho e a fundamentação sob medida não soube explicar.” ?
2. A recorrente impugna ainda a matéria de facto, no que concerne às respostas dadas aos quesitos 18º e 19º – que entende devem ser diversas, na medida em que “...a vontade dos Réus – designadamente a da Ré recorrente – não foi livre, porque submetida à solicitação exterior do agente provocador e à pressão psicológica que sobre ela exerceu o “colaborador” policial...”; e as dos quesitos 27º, 28º, 29º e 30º – que entende devem ser dados como provados, sem restrições.
Para tal alteração da matéria de facto, entende que deve ter-se em consideração o que consta dos autos, especialmente a fls. 2 e no auto de inquirição de fls. 46 [ ao inspector S.V. , no qual admitiu (cfr. conclusão r) ) que “foi o agente encoberto [na verdade, agente provocador, que era ele próprio] quem forneceu o dinheiro à M. e ao J. PARA QUE O NEGÓCIO PUDESSE SER REALIZADO] – cfr. artº 665º do CPP/1929 (sem a restrição operada pelo Assento de 29 de Junho de 1934, cfr. Ac. T.C. nº 340/90 e Ac. TRL de 14/02/01, a fls. 518-530 destes autos)?
*
B) Para melhor ponderar e sopesar as questões suscitadas, passamos a transcrever o texto da decisão ora recorrida, mormente no que concerne à decisão sobre a matéria de facto (fazendo-se agora referência aos nºs dos quesitos dados como provados):
1. « II – FUNDAMENTAÇÃO:
Das respostas aos quesitos, resultaram os seguintes:
FACTOS PROVADOS:
(1º) No dia 18/12/87, cerca das 19h e 30 m, na Av. da Liberdade, Póvoa de St.ª Iria, a R. M. foi encontrada na posse de um produto com o peso de 508 gramas;
(2º) Que transportava dissimulado, no interior do blusão;
(3º) Que havia comprado, momentos antes ao Réu C. , (4º) por Esc. 160.000$00;
(5º) Tal produto tratava-se de “Cannabis Sativa L” (1), sob a forma de haxixe;
(6º) Aquela compra verificou-se na residência do R. C. (7º) sita na Av. da ., na P. .
(8º) Tal produto havia sido adquirido pelo Réu C. , em circunstancialismo que se desconhece, e na zona dos Restauradores, em Lisboa;
(9º) Tendo-o transportado para a sua residência.
(11º) O R. C. foi encontrado em posse de Esc. 195.000$00, em notas do Banco de Portugal, sendo Esc. 160.000$00, o resultado da transacção referida;
(12º) E ainda 3,621 gramas de um produto, que se tratava de “cannabis Satina L” (1), sob a forma de haxixe.
(16º) O R. J. havia planeado a transacção com os restantes Réus.
(13º) O Réu J. acompanhou a Ré M. até à Póvoa de St.ª Iria e bem assim os “potenciais compradores”, um agente da P.J. – S. V. e um colaborador da Polícia Judiciária – N. T..
(14º-15º) O R. J. assistiu à entrega dos Esc. 160.000$00 e esperou, com os “potenciais compradores”, numa “Marisqueira” próxima da residência do R. C. a chegada da R. M. com o produto pretendido.
(17º) A quantia de Esc. 160.000$00 era pertença da P. J..
(18º) Os RR. agiram de vontade livre e consciente.
(19º) Previamente, concertados e em conjugação de esforços;
(20º) Bem sabendo que tal conduta era proibida.
(21º) Os RR. conheciam a natureza estupefaciente do produto em questão.
(39º-40º) O R. C. prestou confissão e mostrou arrependimento;
(41º) Tem bom comportamento posterior.
(22º) O R. C. era consumidor de haxixe há largos anos.
(42º) Este R. tem boa condição social.
(43º) É controlador de processo de construção de automóveis, na fábrica “Auto-Europa”, em Palmela.
(44º) Tem uma situação económica remediada, auferindo cerca de € 2.000, no exercício da sua actividade profissional. E ainda numa outra empresa, em “part time”, cerca de € 300, mensais.
(45º-46º) O R. J. prestou confissão e mostrou arrependimento;
(47º) Tem bom comportamento posterior;
(48º) Tem uma modesta condição social;
(49º) É motorista de taxi, na “Auto…”;
(50º) Tem uma situação económica remediada, auferindo cerca de € 750, mensalmente, como taxista.
(51º-52º) A R. M. prestou confissão e mostrou arrependimento;
(53º) Tem bom comportamento posterior;
(54º) Tem boa condição social;
(55º-56º) É advogada, tem uma razoável situação económica, auferindo cerca de € 1.500, mensalmente, como advogada. »
*
Os RR. não têm antecedentes criminais.
*
2. Mais se consignou ali que:
« Serviram para formar a convicção do Tribunal:
- a prova documental:
- Auto de apreensão de fls. 43,
- Exame de fls. 57 e 62,
- Relatório de IRS, de fls. 116,
- Os documentos de fls. 384 e 385, quanto à actividade profissional do R. João Peralta.
- Os certificados de registo criminal dos RR.
*
O teor do interrogatório dos RR., que prestaram confissão e mostraram arrependimento, tendo mostrado vontade de colaborar com o Tribunal, para a descoberta da verdade material dos factos,
*
- a prova testemunhal:
a) – Testemunhas de acusação:
- Os agentes da Polícia Judiciária, actualmente, Inspectores-Coordenadores na mesma instituição:
- S. V. que foi o agente da P.J., que actuou, após ter tido conhecimento, de que se estava a desencadear uma actividade de tráfico de estupefacientes, através do Réu J. e que, juntamente com este se dirigiu ao local, por ele indicado, como sendo aquele em que se iria terminar a transacção de produto estupefaciente, anteriormente combinada, com a entrega do dinheiro e recebimento da droga; tendo, como se acaba de explicar pela descrição do “iter criminis”, esta testemunha actuado como agente “infiltrado”;
- M R, que apenas se lembrava, que neste processo, era relatada a apreensão de 500 grs. de haxixe,
- F. L. e que confirmaram os relatos de diligências externas e apreensões,
- E ainda A. S. que foi a testemunha da P.J., que mais colaborou, tendo relatado, ainda com alguma vivacidade os factos, de que então teve conhecimento e participou, tendo em conta, que já decorreram quase 20 anos sobre a prática dos factos delituosos, referindo que participou com os outros seus colegas, acima referidos, nesta operação em que apreenderam 500 grs. de haxixe à Ré M. e apuraram de onde o estupefaciente provinha, de casa da R. C. e a quem era destinado, ou seja, era para entregar ao R. J. que por sua vez o entregaria ao agente da P. J., que era o S. V. e ao outro colaborador da P. J., que era o N.T.;
B) – Testemunhas de defesa (do R. C.):
- N. T., ( que era o outro “ potencial comprador” do 0,5 Kg de haxixe) e, que colaborou com a P. J., para poder ser libertado, visto que tinha sido detido por esta autoridade policial, pouco tempo antes, e que com um agente da P.J. – S. V., foram a casa dos RR. J. e M., e junto do J. fez pressão para que este lhe arranjasse haxixe, e disse ainda que o agente policial era seu amigo e relatou, a medo, a restante matéria fáctica.
- A Inspectora da P.J. – M. F. , na altura coordenadora-superior da P.J., que relatou a operação levada a cabo pelos seus subordinados, os agentes da P.J. supra mencionados, sucinta e na medida que da mesma se lembrava, visto que já decorreram mais de 15 anos,
- V. M. M. – técnico comercial na “Renault”, colega do R. C.
- J. F. S. , advogado amigo do Réu C. há largos anos, e que conhecem a sua vida, em profundidade, e relataram as suas dificuldades, visto que para além de ter sido toxicodependente cerca de 30 anos, foi o “amparo” da sua mãe e tem 3 filhos, sendo a filha mais velha deficiente,
- A. L. T. , auditora no B.C.P. que também é amiga do R. C. há muitos anos e também conhecia o seu percurso de toxicodependente e os seus problemas com a filha deficiente, e J. A. , cunhado do R. C.
(da Ré – M.):
- além da Inspectora-Superior – M.F. , ainda,
- M. F. B. P., que conhece a R. M. há 26 anos e que sabe, que esta consumia haxixe aos 20 anos, mas, que actualmente, vive da advocacia, e é uma mulher digna e honrada;
- I.M.S. V. , secretária, que trabalha com a Ré há 10 ou 11 anos, e que disse ser esta muito zelosa no trabalho, preocupada com a filha que tem cerca de 10 anos e é filha também do R. J. e que vive angustiada, com o presente processo.
- P. B. C. , advogada e amiga da Ré há 20 anos, e que relatou, que esta tentava afastar o R. J. do mundo da droga e que ela consumia haxixe, aos 20 anos, mas actualmente é uma advogada responsável e tem uma filha de 10 anos, que depende unicamente dela.
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Foi relevante(s) para a descoberta da verdade material, o depoimento das testemunhas de acusação, os então agentes da P.J., em especial do Inspector A. S. e também das testemunhas de defesa N.T. e a Inspectora da P.J. – M.F. , mas eminentemente foi importante os Réus terem colaborado com o Tribunal e terem-se disposto a contar o sucedido e que consubstancia a matéria de facto, dada como provada.
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Por outro lado, as testemunhas de defesa dos RR. C. e M., também foram importantes, já que deram uma panorâmica, do que é a vida actual destes Réus, tendo inclusivamente a testemunha do R. C. referido – V. M. M. -, que este tinha dois empregos e que se esforçava por manter a família, com uma vida económica o mais desafogada possível. »
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C) Quanto à nulidade da sentença.
1. Vem alegada a violação do princípio da continuidade da audiência de julgamento e consequente perda de eficácia da prova.
Assim, pretende a recorrente que foi violado o princípio que subjaz ao supracitado artº 468º do CPP.
Acontece, porém, que parte do pressuposto, errado (como veremos adiante), de que houve interrupção da audiência de discussão e julgamento e daí que considere que, como a anterior sessão teve lugar em 11/07/2003: “Entre a produção de prova e a resposta aos quesitos mediaram mais de três anos, sendo certo que a prova não foi objecto de gravação, nem de registo, por se tratar de processo de querela e os depoimentos terem sido prestados perante o tribunal que procedeu ao julgamento...
E, por isso, considera violado o princípio da continuidade que subjaz ao disposto no citado artº 468º do CPP/1929, no qual se determinava que “...as respostas aos quesitos fossem dadas imediatamente após o encerramento da discussão da causa, não estando prevista uma interrupção de tempo superior ao estritamente necessário para o Tribunal Colectivo se pronunciar sobre a matéria de facto...” - nosso sublinhado.
Equivoca-se, porém, já que esquece que o acórdão de 10/10/03 (1ª instância) foi, entretanto, anulado por esta Relação de Lisboa, pelo acórdão de 27/05/04, no qual se determinou a sua substituição por outro em que se devia suprir aquela nulidade (do acórdão, e não do julgamento).
Assim, na 1ª instância foi proferido novo acórdão, o de 30/05/05, o qual, mediante novo recurso da arguida, veio a ser também anulado, igualmente por omissão de pronúncia, pelo mencionado acórdão TRL de 28/03/06 (cfr. fls. 1063 e ss.).
Em nenhum dos casos ocorreu a anulação do julgamento, mas antes e somente a nulidade da sentença (ou acórdão).
Não ocorreu, assim, novo julgamento, nem houve interrupção da audiência (da 1ª instância).
O que aconteceu foi determinado por esta Relação, em ambos os casos, em que, mediante recurso, foi determinado que os autos baixassem à 1ª instância para aí se proceder à substituição do(s) acórdão(s) declarado(s) nulo(s) por outro(s) – a elaborar pelos mesmos juizes sempre com a finalidade específica de suprir o vício detectado: nulidade da sentença por omissão de pronúncia – cfr. artº 668º, nº 1-d) do CPC, ex vi do artº 1º do CPP/1929.
Por tudo isto, quando no acórdão TRL de 28/03/06 (fls. 1063 e ss.), mais uma vez, se ordenou a substituição do acórdão anulado por outro, a fim de ser suprida a nulidade cometida naquele acórdão da 1ª instância (omissão de pronúncia), e se realça que, sem alterar a matéria de facto, os mesmos Mmºs Juízes daquele Colectivo «...se deverão debruçar acerca da problemática em questão ou seja apurar, face à matéria de facto provada, se a actuação do agente da P.J. e do seu colaborador integram a figura do agente provocador ou do agente infiltrado/encoberto e quais as consequências que daí resultam...».
Improcede a arguida nulidade.
2. O mesmo acontece quando a recorrente alega o incumprimento do decidido no acórdão TRL de 28/03/06 ou quando invoca existir alteração do acórdão com os quesitos e suas respostas.
Se naquele primeiro caso, a sanação do vício se pode dizer que foi parca em palavras e nos argumentos, já quanto a este último basta ler o acórdão com os quesitos e suas respostas para se constatar o óbvio: – o seu conteúdo é exactamente igual ao anterior (só diverge na data de emissão, coincidindo esta agora com a do acórdão recorrido, no qual se integra, de acordo com a lei).
Repete-se, em qualquer dos casos, cumpriu-se o determinado pelo acórdão TRL de 28/03/06, substituindo-se o acórdão anulado por outro no qual se limitou a suprir a nulidade ali apontada – cfr. artº 668º, nº 1, al. d) do CPC, ex vi do artº 1º do CPP/1929.
3. Concluindo:
Não procedem as arguidas nulidades da sentença (rectius, do acórdão recorrido).
Não foi reaberta a produção de prova nem a discussão da matéria de facto.
Não foi violado o princípio da continuidade da audiência de discussão e julgamento.
E não foi violado o disposto no artº 468º do CPP/1929.
Aliás, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores, em casos idênticos (nulidade da sentença/acórdão a ser suprida pelos mesmos juízes na 1ª instância) vem entendendo que não é posta em crise o princípio da continuidade da audiência, nem torna ineficaz a prova ali produzida.
Neste sentido, vejam-se, entre muitos, os Acs. STJ de 06/11/96 (C.J., Acs. STJ, IV, tomo 3, 195), de 15/10/97 (C.J., Acs. STJ, V, tomo 3, 197), e de 20/11/97 (C.J., Acs. STJ, V, tomo 3, 243).
Finalmente, considera-se minimamente cumprido o determinado no Ac. TRL de 28/03/06 (2).
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D) Da inadmissibilidade da prova obtida por agente provocador.
1. Como vimos, apreciamos factos de Dezembro de 1987, ou seja, no âmbito do DL nº 430/83, de 13/12, por um lado; e, por outro lado, no âmbito do direito processual penal, no do CPP de 1929.
Adiantamos assim que, naquele DL nº 430/83, o artº 52º dispunha sob a rubrica de conduta não punível (corresponde ao artº 59º do DL 15/93, de 22/1, o qual teve alterações relevantes operadas pela Lei nº 45/96, de 3/9):
«Não é punível a conduta do funcionário de investigação criminal que, para fins de inquérito preliminar, e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas
Sobre o qual Lourenço Martins (vd. Droga, p. 154), comentou estar-se perante uma impunidade que não aproveitará ao funcionário da polícia que « prepara, oferece, põe à venda, vende, distribui ou cede substâncias estupefacientes ou psicotrópicas ainda que no propósito de identificar consumidores e, através destes, os seus fornecedores ou traficantes.»
Decisivamente, neste âmbito, veio o Prof. Manuel da Costa Andrade, na sua obra “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal” (Coimbra Editora – 1992, págs. 229), equacionar o problema da proibição de prova, sub specie «meios enganosos» introduzir duas correcções metodológicas:
«Terá, em primeiro lugar, de se pôr entre parênteses o elemento específico da provocação ou precipitação de um crime, desta forma se alargando e generalizando o horizonte problemático, tornando-o extensivo ao homem de confiança sem mais. Como problema de meio enganoso de prova, o Lockspitzel não tem autonomia conceptual ou normativa face ao agente encoberto que se limita a ganhar, disfarçadamente, a confiança dos suspeitos para melhor os observar e obter informações sobre os seus crimes. Terá, em segundo lugar, de se privilegiar a dimensão processual das questões, mais concretamente a sua relevância probatória, deixando na sombra a valência material-substantiva de manifestações como o Lockspitzel
Para, mais adiante (ob. cit., p. 231) considerar como ponto de partida: « o recurso ao homem de confiança configurará normalmente um meio enganoso, sendo, como tal, recondutível à categoria dos métodos proibidos pelo artigo 126º, nº 2, al. a), do CPP...»
Daí que este Autor interprete a admissibilidade prevista na lei, para o domínio específico dos crimes de tráfico ilícito de estupefacientes, sob a forma de agente encoberto – cfr. artº 52º do Dec.-Lei 430/83 (ob. cit. p. 232).
O que caracteriza o agente encoberto é «a sua absoluta passividade relativamente à decisão criminosa» - cfr. Manuel Augusto Alves Meireis, in O Regime das Provas Obtidas pelo Agente Provocador em Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1999, p. 192.
2. Ao invés, já é inadmissível a prova obtida através do agente provocador, definindo-o o Prof. Costa Andrade “como aquele que, de alguma forma, precipita o crime: «instigando-o, induzindo-o, nomeadamente, aparecendo como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos.” - ob. cit., p. 221 (cfr., neste sentido, Ac. TC nº 578/98, Proc. nº 835/98 (DR II Série, 26/02/99, p. 2950)
Também o Prof. Germano Marques da Silva considera que: «...a provocação não é apenas informativa, mas sobretudo formativa, não revela o crime e o criminoso, mas cria o próprio crime e o próprio criminoso e, por isso, é contrária à própria finalidade da investigação criminal, uma vez que gera o seu próprio objecto.» - “Bufos, Infiltrados, Provocadores e Arrependidos”, in Direito e Justiça, F.D.U. Católica, Vol. VIII, T. 2, 1994, p. 29.
3. Aparece, entretanto, uma outra figura, a do agente infiltrado que, como se sabe, “está actualmente consagrada em praticamente todos os ordenamentos jurídicos, designadamente europeus, como v.g., França, Itália, Alemanha...” – e Portugal não foge à regra – como se refere em “Lei e Crime, O Agente Infiltrado versus Agente Provocador...” de Fernando Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, Almedina, Coimbra, 2001, p. 262 e segs.
O agente infiltrado distingue-se do agente provocador, é substancialmente diferente deste, na medida em que:
« O agente provocador cria o próprio crime e o próprio criminoso, porque induz o suspeito à prática de actos ilícitos, instigando-o e alimentando o crime, agindo, nomeadamente, como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos. O agente infiltrado, por sua vez, através da sua actuação limita-se, apenas, a obter a confiança do(s) suspeito(s), tornando-se aparentemente num deles para, como refere Manuel Augusto Alves Meireis, «desta forma, ter acesso a informações, planos, processos, confidências... que, de acordo com o seu plano constituirão as provas necessárias à condenação.
No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional, ao considerar que «O que verdadeiramente importa, para assegurar essa legitimidade – da intervenção do agente infiltrado – é que o funcionário de investigação criminal não induza ou instigue o sujeito à prática de um crime que de outro modo não praticaria ou que não estivesse já disposto a praticar, antes se limite a ganhar a sua confiança para melhor o observar, e acolher informações a respeito das actividades criminosas de que ele é suspeito. E bem assim, que a intervenção do agente infiltrado seja autorizada previamente ou posteriormente ratificada pela competente autoridade judiciária.» - cfr. “Lei e Crime – o Agente infiltrado..”, p. 264, citando o mencionado Ac. TC nº 578/98.
4. Aplicando ao caso concreto:
Ao invés do que no acórdão ora recorrido se conclui, classificando ou denominando a intervenção do agente da P.J. (e do seu colaborador ?!), na transacção de haxixe apurada nos autos, como sendo um agente infiltrado, termos por certo que, no caso, se está perante a actuação de agente provocador – aliás, como já fora designado nos autos (no acórdão de 10/10/2003, entretanto anulado, cfr. I-A supra).
Na verdade, a actuação do agente da P.J., S.V., como resulta do próprio texto do acórdão recorrido, e é confirmado pelo que consta dos autos (vide, entre outras, fls. 2, 3, 4, e auto de fls. 46) não foi passiva, antes pelo contrário:- não integra a figura do dito agente encoberto.
Nem se limitou a obter a confiança dos suspeitos para dessa forma ter acesso a informações, planos, confidências, etc. – como acima vimos; pelo que também não integra a figura do agente infiltrado (ao invés do que se conclui no acórdão ora recorrido).
Antes, precipitou o crime, pois, como melhor se verá adiante, instigou-o, induzindo-o, aparecendo como comprador (vide supra).
Estamos, assim, perante agente provocador!
Na verdade, como resulta do próprio texto do acórdão recorrido e confirmam os autos, o então Subinspector da PJ, S.V. (id. nos autos, cfr. fls. 46) admite (embora se autodenomine de “agente encoberto”), que foi ele, como chefe daquela brigada da P.J. que, munido de 160.000$00 pertencentes àquela Polícia, entregou o dinheiro aos arguidos M. e J. “para que o negócio pudesse ser realizado” – cfr. ainda facto 17º.
Acresce que é este Subinspector que faz intervir o colaborador da P.J. (ao que tudo indica, seu amigo – cfr. apreciação ao depoimento no texto do acórdão recorrido), N.T.. Porém, também esta colaboração, do N.T. não foi espontânea, mas sim provocada, porquanto – como este último referiu em audiência de julgamento (1ª instância) – colaborou “para poder ser libertado” (vide supra).
Estamos, assim, perante uma transacção, um ‘negócio’ de compra e venda de cerca de 0,5 kg de haxixe por 160.000$00, no qual a intervenção dos arguidos M. e J., (como intermediários), naquele dia 18/12/87, é desencadeada, instigada pela actuação dos já mencionados Subinspector da P.J., S. V. e o colaborador da P.J., N. T., agindo estes como compradores do haxixe (ali designados, eufemisticamente, como “potenciais compradores”), na medida que: o dinheiro (160.000$00) para efectuar, como se efectuou, a compra do haxixe, pertencia à P.J. e foi entregue por estes, S. V. e seu colaborador, N. T., aos arguidos M. e J. – cfr. facto 13º.
Mais: esta abordagem só se concretiza porque o N. T. (toxicodependente), que conhecia aqueles dois arguidos há já alguns anos, junto do J. “faz pressão para que este lhe arranjasse haxixe” (cfr. texto do acórdão recorrido supra).
É só no decurso da audiência de julgamento (1ª instância) que se ficam a conhecer todos estes contornos desta transacção.
Ou seja, tal como se reafirmou nos acórdãos TRL de 27/05/04 e de 28/03/06, está, neste aspecto, ultrapassado o que se decidiu no acórdão TRL de 27/05/97 (a fls. 259 e segs.) já que este último foi proferido no âmbito do recurso do despacho de pronúncia, não produzindo caso julgado sobre tal problemática (agente encoberto/infiltrado versus agente provocador), até porque, como se pode ver, deixou de abordar questões essenciais como, por exemplo, o facto de o dinheiro necessário para se efectuar a transacção ter sido fornecido pela PJ.
5. Concluindo:
Concordamos com a recorrente quando conclui que o “negócio” apurado nos autos – ou seja, a “transacção” de 0,5 kg. de haxixe – foi desencadeado/determinado pela PJ, pelo que tendo sido utilizado agente provocador, a prova assim obtida é nula, por inadmissível, por ter sido utilizado meio enganoso, proibido por lei, já que afecta a liberdade de vontade ou de decisão dos arguidos em causa.
Mostram-se, assim, violadas as normas constantes dos artºs 32º, nº 6 da CRP e 261º, nºs 1, al. a), e 2, do CPP/1929.
Já vimos que a inadmissibilidade do agente provocador advém da violação do princípio democrático, ou seja, «... o da suprema dignidade da pessoa humana e o da igualdade de todos os cidadãos, igualdade perante a lei, de direitos e deveres, mas também e essencialmente, igualdade de natureza, de dignidade. » – Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 28; cfr. artºs 1º e 2º, da CRP.
Mas também por violar o princípio da lealdade:
“ A lealdade, como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, «não é uma norma jurídica autónoma, é sobretudo de natureza essencialmente moral, e traduz uma maneira de ser da investigação e obtenção das provas em conformidade com o respeito dos direitos das pessoas e a dignidade da justiça. ...” – Lei e Crime – o Agente infiltrado... págs. 258-261.
Em suma, “... a actividade do agente provocador não pode deixar de ser considerada ilícita e, por isso, as provas assim obtidas são provas proibidas, por inadmissíveis face, desde logo, ao artº 125º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que, apenas, «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei » ”
Neste sentido, são nulas, não podem ser utilizadas “a não ser para o seguinte e exclusivo fim: proceder criminalmente contra quem as produziu (agente provocador), nos termos do nº 4 do mesmo preceito legal” (refere-se ao artº 126º do CPP/87) - in Lei e Crime – o Agente infiltrado... pág. 261; neste sentido, o já citado Ac. TC nº 578/98.
Estamos, aliás, perante situação semelhante à aqui tratada, no Ac. STJ de 15/01/97, (in Col. Jur., Acs. STJ, Ano V, Tomo I, págs. 185-188), decidiu-se absolver o arguido, « devido ao facto de os agentes ..., através da sua actuação, determinarem o arguido à prática do crime, induzindo-o e instigando-o, sem o qual o crime não seria cometido. Os agentes actuaram, pois, como verdadeiros agentes provocadores, sendo por isso, considerada ilícita, com a consequente nulidade de todas as provas assim obtidas e a punição dos mesmos, como se referiu supra.» - in Lei e Crime – o Agente infiltrado...págs. 265-266.
Note-se que também no presente caso se está perante arguidos sem antecedentes criminais (de relevo) – cfr. o último dos factos provados (vd. supra).
Aliás, na obra que vimos seguindo, cita-se com muito interesse, o Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Caso Teixeira de Castro c. Portugal (44/1997/828/1034) de 9 de Junho de 1998, no qual foi condenado o Estado português a pagar uma indemnização de dez milhões de escudos a um cidadão português, condenado pelos tribunais portugueses por tráfico de droga, «...por concluir que os agentes da PSP, aí referidos, com ocultação da sua qualidade, ao procederem à detenção do cidadão, no momento em que lhes entregou certa porção de heroína, que insistiram comprar, não actuaram como agentes infiltrados, mas sim como verdadeiros agentes provocadores do crime.» - Lei e Crime – o Agente infiltrado...págs. 267.
Concluindo:
Declaram-se nulas todas as provas obtidas nos autos – porquanto o foram através de agente provocador – cfr. artºs 32º, nº 6 da CRP e 261º, nºs 1, al. a), e 2, do CPP/1929;
Em consequência, é nulo todo o processado (excepto para o efeito do nº 4 do artº 126º do CPP/87).
Há, assim, que absolver todos os arguidos.
Prejudicadas ficam, assim, as demais questões.
IV - DECISÃO:
Nos termos acima expostos, acordam em dar provimento ao recurso da arguida e em consequência, como acabou de se expor:
Declaram-se nulas todas as provas obtidas nos autos – porquanto o foram através de agente provocador – cfr. artºs 32º, nº 6 da CRP e 261º, nºs 1, al. a), e 2, do CPP/1929.
Em consequência, declara-se nulo todo o processadoexcepto para os efeitos do disposto no nº 4 do artº 126º do CPP/87.
E, em conformidade, decide-se:
Absolver todos os arguidos.
Prejudicadas ficam as demais questões.
Notifique.
Lisboa, 29 de Novembro de 2006.



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1.-Lapso de escrita, quis-se dizer: Cannabis Sativa L

2.-Como os factos são de DEZ/1987 (já lá vão quase 19 anos), consideramos que tal atraso é tanto mais lamentável quanto, qualquer que seja a solução do presente caso, dificilmente se alcançará a almejada JUSTIÇA.