Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1384/2008-2
Relator: FARINHA ALVES
Descritores: LEGITIMIDADE ACTIVA
PROMITENTE-COMPRADOR
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ALTERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - O simples promitente-comprador de uma fracção autónoma tem legitimidade para pedir alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, mas não para arguir a nulidade.
II - O regime da nulidade cominada no art. 1418.º n.º 3 do C. Civil não é diferente do estabelecido nos art.s 1416.º e 1419.º, designadamente no que respeita à legitimidade para a sua invocação.
(FA)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

 

A propôs a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra S, Lda., pedindo que fosse:

a) Declarada a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio urbano sito na (….) Charneca da Caparica, descrito na 2° Conservatória do Registo Predial de Almada, que constitui a escritura lavrada de fls. 100 a fls (….) no Cartório Notarial do Montijo, por falta de correcta individualização da fracção "A" e desconformidade com o documento camarário;

b) Ordenado o cancelamento do registo de constituição do prédio descrito na alínea anterior sob o regime da propriedade horizontal, requerido sob a Ap. e correspondente à inscrição F-2;

c) Condenada a ré a obter, na Câmara Municipal de Almada, a alteração da utilização da fracção "A", correspondente à loja n.º 1, no r/c, com entrada pelo n.º 5-A, do prédio descrito na alínea anterior, de comércio para estabelecimento de restauração e bebidas;

d) Condenada a ré a proceder à rectificação da escritura de constituição da propriedade horizontal do prédio n.º (..) da 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada, no tocante à fracção "A", dela constando, de harmonia com a certidão camarária que instruiu a escritura a rectificar, que é constituída por rés-do-chão e cave.

e) Condenada a R. a proceder à harmonização entre a descrição predial e a inscrição matricial da fracção “A”.

Alegou para tanto, em síntese:

- Por contrato-promessa de 18-01-04 a R. prometeu vender ao A., que prometeu comprar, a loja n.º 1 do prédio identificado na petição inicial, que então se encontrava a ser construído.

- A loja objecto do contrato-promessa destinava-se à instalação de um estabelecimento de pastelaria/snack-bar, tendo-se a R. obrigado a tratar das necessárias alterações ao projecto.

- A R. diligenciou nesse sentido e aceitou executar alguns trabalhos relativos a essas alterações.

- Mas, a 16-11-04 a R. proibiu o acesso à loja às pessoas que ali executavam trabalhos por conta do A. e nunca mais o facultou.

- E, depois de em 15-12-2004 ter requerido na Câmara Municipal de Almada o licenciamento da loja prometida vender para utilização como snack-bar/pastelaria, a 07-01-2005 requereu a anulação daquele requerimento e a alteração do uso da mesma loja, mantendo a solução arquitectónica, sem contudo indicar agora um destino específico, anulando-se a pastelaria.

- Na escritura de constituição da propriedade horizontal a fracção correspondente à loja prometida vender foi descrita como “Rés-do-chão, com acesso pelo n.º 5-A, comércio, loja número um, com terraço com a área de vinte e seis vírgula oitenta metros quadrados e um logradouro com a área de noventa metros quadrados ao nível do rés-do-chão”.

- Mas nos elementos constitutivos para propriedade horizontal constantes do processo camarário, conforme certidão camarária que serviu de base à referida escritura, a constituição da fracção é “Loja 1, composta por 1 divisão principal, 1 arrecadação, terraço com a área de 26,80 m2 e um logradouro com a área de 90 m2 ao nível do R/c; 3 Inst. Sanitárias, um vestiário e arrumos ao nível da cave”.

Nesta mesma certidão foi riscada, na coluna designada “UTILIZAÇÃO”, a expressão “PASTELARIA/SNACK-BAR”.

- Existe desconformidade entre a matriz e o registo quanto à área descoberta do prédio e não está identificada a localização do logradouro da fracção em causa, nem a do terraço.

- Mantendo interesse no cumprimento do contrato, o A. instaurou acção de execução específica e requereu previamente, em procedimento cautelar, que a ora R. fosse impedida de arrendar, alienar ou onerar, a loja prometida vender.

- O A. já pagou € 2.606,10 com a colocação de ar condicionado e € 2.750,00 pela colocação de tecto falso na loja; gastou € 14.126,00 na compra de equipamentos, que estão na loja e pagou € 1651,76, de diferença de preço dos revestimentos aplicados. Gastou ainda € 2058,70 na compra de mesas e cadeiras, €17.698,28 em equipamento hoteleiro, € 1.000,00 em iluminação e € 443,65 no projecto de segurança.

Citada, a R. contestou invocando, no que agora interessa, a ilegitimidade do A. por não ser proprietário da fracção objecto do litígio e visto o disposto nos art.s 1416.º n.º 2 e 1419.º do C. Civil; e a sua própria ilegitimidade em relação aos pedidos que contendem com a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, por não ser a única proprietária das fracções do prédio.

O A. replicou opondo, quanto à questão da sua legitimidade, que apenas invocou a nulidade prevista no n.º 3 do art. 1418, e que esta nulidade está sujeita ao regime geral das nulidades. E, quanto à questão da legitimidade da R., que esta era a única proprietária do prédio na data em que foi proposta a presente acção.

Na oportunidade, formulou o seguinte pedido subsidiário, quanto ao pedido formulado sob a alínea a):

b’ Ordenado o cancelamento do registo de constituição do prédio descrito na alínea anterior no regime da propriedade horizontal, requerido sob a Ap. e correspondente à inscrição , na parte respeitante à fracção “A”.

E ampliou o pedido pela forma seguinte:

f) Condenada a R. a pagar ao A. a quantia de € 100,00 por cada dia de atraso, a contar da notificação do presente articulado, no cumprimento da obrigação de obter a alteração da utilização da fracção “A” de comércio para estabelecimento de restauração e bebidas (pastelaria/snack-bar).

g) Condenada a R. a pagar ao A. uma indemnização pelos prejuízos que a sua conduta lhe causar, em quantia a fixar em execução de sentença, por não ser ainda determinável.

Estes prejuízos foram sumariamente identificados como sendo resultantes de o A. ter, há muito adquirido equipamento que não pode utilizar e que se torna obsoleto, bem como do atraso, ou da impossibilidade, de instalação do estabelecimento de pastelaria/snack-bar.

No seguimento foi proferido despacho saneador onde foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade do A., com a consequente absolvição da R. da instância. Decisão que foi confirmada em resposta ao pedido de aclaração apresentado pelo A.

Inconformado, o A. agravou do assim decidido, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:

1. O A. deduziu sete pedidos (alíneas a) a g)) e um pedido subsidiário (alínea b').

2. A nulidade a que se referem os pedidos das alíneas a), b) e b)' é a nulidade prevista no art°. 1418/3CC e não a nulidade prevista no art°. 1416CC.

3. A nulidade mencionada no art°. 1416CC só pode resultar da falta dos requisitos previstos no art°. 1415CC e não de quaisquer outros.

4. A causa de pedir da declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal na parte respeitante à fracção "A", é a falta de correcta individualização da fracção (omissão de referência à cave) e a desconformidade entre o título e o documento camarário quanto à especificação das partes do edifício correspondentes à mesma fracção.

5. A nulidade prevista no art°. 1418/3CC é invocável a todo o tempo por qualquer interessado, uma vez que a lei não estatui, para ela, qualquer regime especial, ao contrário do que acontece com as nulidades previstas nos art°s. 1416 e 1419/3 CC.

6. O A. tem, pois, legitimidade para os pedidos constantes das alíneas a), b) e b)'.

7. Ainda que assim não fosse, o que se não concede, sempre o A. teria legitimidade para deduzir os restantes pedidos.

8. Legitimidade que lhe é conferida pela sua qualidade de promitente-comprador da fracção "A"e pela utilidade derivada da procedência da acção.

9. O A. tem legitimidade para pedir que a R. seja condenada a rectificar a escritura de constituição da propriedade horizontal e a R. tem legitimidade para o fazer.

10. E à R. compete obter o acordo dos restantes condóminos, se ele for necessário.

11. Não havendo, pois, qualquer situação de litisconsórcio necessário.

12. Não é exacto que todos os pedidos sejam "decorrência uns dos outros", com se diz na sentença recorrida.

13. Os pedidos constantes das alíneas c) a g) não dependem do pedido de declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.

14. E muito menos da qualidade de condómino.

15. Dependem tão-somente da R. ter, ou não, cumprido as obrigações assumidas para com o A.

16. A sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação do disposto nos art°s. 285, 286, 1416 e 1418/3 CC e dos art°s. 26 e 28CPC.

17. Deve, por isso, ser revogada e substituída por outra que, julgando o A. parte legítima para todos os pedidos, ordene o prosseguimento dos autos.

A agravada contra-alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas conclusões, está em causa no presente agravo saber se o A. e a R. são partes legítimas em relação a todos os pedidos formulados na presente acção.

É verdade que no dispositivo da decisão ora recorrida apenas foi declarada a ilegitimidade do A., nada se dizendo em relação à R., mas logo no parágrafo imediatamente anterior, e em aparente ligação, foi ponderado que o pedido de rectificação da escritura de constituição da propriedade horizontal deveria ter sido deduzido contra todos os condóminos, numa situação de litisconsórcio necessário.

Ou seja, também ali se julgou que, pelo menos em relação ao referido pedido, se verificava uma situação de ilegitimidade da R., enquanto desacompanhada dos demais condóminos, faltando apenas a declaração formal dessa ilegitimidade.

Ora, vindo essa questão suscitada no presente recurso, crê-se que cumpre dela conhecer.

A matéria de facto a considerar é integrada pelos pedidos formulados na acção, e pela respectiva fundamentação, já acima sumariamente enunciada, e para onde agora se remete.

O Direito

Como se referiu, está em causa a legitimidade das partes para os diversos pedidos formulados na acção, que o agravante agrupou em três conjuntos diferentes, a saber:

- Os que visam a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal;

- Os que visam a condenação da R. na alteração da utilização da fracção, na rectificação do título constitutivo no que respeita à fracção prometida vender e á harmonização entre a descrição predial e a inscrição matricial da mesma fracção;

- Os que visam a condenação da R. no pagamento de indemnizações.

Mantendo este agrupamento de pedidos, julga-se que não assiste razão ao agravante quando pretende que o regime da nulidade cominada no art. 1418.º n.º 3 do C. Civil é diferente do estabelecido nos art.s 1416 e 1419, designadamente no que respeita à legitimidade para a sua invocação.

Os n.ºs 2 e 3 do art. 1418.º foram introduzidos pelo DL 267/94 de 25-10 e vieram confirmar, por via de norma expressa, a solução que já havia sido fixada pelo Assento do STJ de 10-05-1989, D.R., II Série, n.º 141, de 22-06-1989, nos seguintes termos:

Nos termos do art. 294.º do C. Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela Câmara municipal”.

Na respectiva fundamentação deixou-se claro, logo no seu ponto 2, que o que está em causa é saber qual a interpretação a dar ao art. 1416.º, n.º 1 do CC, isto é, se a expressão «falta de requisitos legalmente exigidos» abrangia tão-só os enunciados no art. 1415 do mesmo CC (constituírem as fracções autónomas unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum ou para a via pública) ou também «os concretizados pelas competentes autoridades camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas».

Questão a que foi dada resposta positiva nos dois pontos seguintes, subsumindo-se na previsão art. 1416.º do CC a nulidade fundada na divergência entre o título constitutivo da propriedade horizontal e o projecto aprovado pela Câmara Municipal.

E foi esta solução que, sem qualquer justificação acrescida, o legislador veio estabelecer no aditamento introduzido no art. 1418.º do C. Civil, pelo DL 267/94 de 25-10, sendo certo que, também aqui está em causa a falta de requisitos legais na constituição da propriedade horizontal.

Neste sentido, pode ver-se Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 3.ª Ed., em anotação ao art. 1416.º do C. Civil.

De resto, nem faria sentido que a legitimidade para invocar a falta dos requisitos legais enunciados no art. 1415 do CC fosse limitada aos condóminos, para além do Ministério Público, sob participação da entidade pública, e a falta dos requisitos enunciados no art. 1418.º, pudesse ser invocada por qualquer interessado. Pois que aqueles são, reconhecidamente, os vícios mais graves, em relação aos quais maior justificação teria o alargamento da legitimidade para a sua invocação.

E a reconhecer-se legitimidade ao simples promitente-comprador de uma fracção, suscitava-se uma questão de legitimidade conflituante com a da promitente vendedora, que continua a ser a proprietária da fracção prometida vender e a detentora de legitimidade para os efeitos previstos no art. 1416.º n.º 2 do CC.

Neste sentido pode ver-se Aragão Seia, Propriedade Horizontal. 2.ª Edição, em anotação ao art. 1416 do C. Civil.

Conclui-se, pois, que, nesta parte, deve ser confirmada a decisão recorrida, recusando-se legitimidade ao ora agravante para invocar a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, mesmo que fundada no art. 1418.º do CC.

Mas o mesmo já não sucede, segundo se julga, em relação aos demais pedidos formulados, em relação aos quais deve ser reconhecida legitimidade ao A.

A legitimidade activa para os pedidos que visam a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal não se enquadra nos artigos 1416.º a 1419 do C.Civil, ficando, pois, reduzida à sua condição de simples pressuposto processual, definido nos art.s 26.º e ss do CPC. E, nos termos deste preceito legal, o demandante é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, interesse que é expresso pela utilidade derivada da procedência da acção.

Assim limitado o conceito de legitimidade, parece seguro que o A. é parte legítima, não apenas em relação ao pedido de indemnização, para o qual a legitimidade é manifesta, mas também para os referidos pedidos de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Não relevando, nesta sede, a viabilidade dos pedidos formulados, a legitimidade do A. depende apenas da utilidade que para ele decorre da sua hipotética procedência. Utilidade que está adequadamente justificada nos autos.

Posto isto, julga-se que volta a não assistir razão ao agravante quando pretende que os pedidos que contendem com a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal podem ser validamente apreciados no simples confronto com a R., desacompanhada dos demais condóminos do prédio, cujo acordo àquela incumbiria obter.

Resultando do preceituado no art. 1419.º do C. Civil, que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal depende do acordo de todos os condóminos, é seguro que terá de ser proposta contra todos os condóminos a acção que tenha essa finalidade, configurando um caso de litisconsórcio necessário. Aliás, só se for proferida no confronto com todos os condóminos a decisão final lhes será oponível e produzirá, portanto, todo o seu efeito útil normal. O que, nos termos do art. 28.º n.º 2 do CPC, também é fundamento de litisconsórcio necessário.

Ora, em relação a esta questão de legitimidade, o A. alegou, como se viu, que a R. era a única proprietária do edifício na data em que foi proposta a acção, o que, a ser verdade, asseguraria a sua legitimidade para a causa. Pois que a decisão final será oponível, independentemente de habilitação, aos adquirentes de fracções que não tenham registo de aquisição anterior ao registo da presente acção, nos termos do art. 271.º, n.º 3 do CPC. Mas, a existirem registos de aquisição de fracções anteriores ao registo da presente acção, os respectivos adquirentes terão de ser chamados ao processo, para assegurar a legitimidade passiva.

Tanto quanto nos foi dado verificar, não consta dos autos informação sobre a situação registral do prédio na data do registo da acção, sendo limitadas à fracção prometida vender todas as certidões de registo até agora apresentadas. O que obsta a que, neste momento, se possa formular conclusões nesta questão de legitimidade, havendo que esclarecer previamente essa situação.

Posto isto, tendo em conta que a eventual ilegitimidade da R. pode ser sanada, fazendo intervir na acção as pessoas cuja falta é causa dessa ilegitimidade, julga-se que a apreciação da questão deve ser deixada para o tribunal recorrido que, não existindo outros obstáculos, estará em condições de dar seguimento ao processo nesta parte.

Ou seja, uma vez documentada nos autos a situação registral do prédio, pelo menos na data do registo da acção, o tribunal estará em condições de verificar se a presente acção deveria ter sido proposta também contra outros condóminos e de, na afirmativa, convidar o A. a requerer a intervenção desses condóminos, de modo a assegurar a legitimidade passiva na acção.

Naturalmente, sem prejuízo de, sendo caso disso, o A. se poder adiantar no pedido de intervenção que se justificar.

Nos termos expostos dá-se parcial provimento ao presente agravo, revogando-se a decisão recorrida na parte em que, com fundamento na ilegitimidade do A. absolveu da instância a R. em relação aos pedidos formulados sob as alíneas c), d), e), f) e g), acima identificados, devendo os autos prosseguir com verificação e eventual suprimento, nos termos acima referidos, da legitimidade da R. em relação aos pedidos que visam a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, seguindo-se os demais termos processuais, limitados à apreciação daqueles pedidos.

Custas por ambas as partes, na proporção de 1/3 pelo apelante e de 2/3 pela apelada.

Lisboa, 10-04-2008

(Farinha Alves)

(Tibério Silva)

(Ezagüy Martins)