Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
96/14.8T2MFR.L1-2
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: ORGANISMO CORPORATIVO
NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
COMPETÊNCIA DISCIPLINAR
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A competência do tribunal administrativo deve-se aferir em função, essencialmente, das normas de atribuição, in casu, as constantes do art 4º/1 al a) e b) do actual ETAF, conjugadas com a análise da estrutura da relação jurídica subjacente ao direito invocado, tal como ela é delimitada pela parte, bem como pelo pedido efectuado ao tribunal.
II – Se, em função destes critérios, para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional não podem deixar de ser competentes os Tribunais Administrativos, então, ter-se-á de concluir que são estes mesmos tribunais que serão competentes para levar ao conhecimento de um associado dessa Ordem, através de notificação judicial avulsa, o despacho de acusação sancionatória proferido em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente.
III- Entendimento diferente poderia levar a concluir que todas notificações judiciais avulsas são da competência dos tribunais judiciais, o que implicaria prejuízo na administração da justiça pois que estes estão, naturalmente, menos apetrechados técnico juridicamente do que os tribunais das demais ordens jurisdicionais para aferirem da validade formal e da existência em abstracto do direito subjacente ao respectivo requerimento, bem como da legitimidade do requerente e do destinatário, aferições sempre necessárias para a execução de uma notificação judicial avulsa.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:

I - I -  A Ordem Profissional O. requereu junto de Tribunal Judicial – o Tribunal de Comarca da Grande Lisboa Noroeste - a notificação judicial avulsa de A., sua associada, pretendendo a sua notificação do despacho de acusação proferido no âmbito de um processo disciplinar em que a mesma é visada, referindo que, tendo tentado a notificação da mesma pelo correio, veio por duas vezes  devolvida a carta registada com aviso de recepção que, para tal efeito, utilizou.

Na 1ª instância foi proferido despacho que declarou o tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar da viabilidade em abstracto da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, indeferindo liminarmente a pretensão deduzida, atribuindo tal competência aos tribunais administrativos.
 
Tendo tal despacho o seguinte conteúdo:
«Antes do mais, e atenta à natureza do procedimento no âmbito do qual se pretende realizar a notificação em apreço, compete aferir da competência material deste Tribunal para a sua apreciação e realização.
Como é consabido, na Constituição da República Portuguesa, mais precisamente no n.º 1 do artigo 209.º, prevêem-se três categorias de tribunais permanentes, entre os quais os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais.
Assim sendo, impõe-se apurar qual a medida de jurisdição de cada tribunal pertencente a ordens jurisdicionais diferentes.. Semelhante delimitação da competência é realizada – também – por via de aplicação de critérios qualitativos, que determinam a susceptibilidade do exercício pelo tribunal da função jurisdicional para apreciação de certo objecto processual.
Assim, e como escreve Remédio Marques «...,em primeiro plano, a competência em razão da matéria distingue os tribunais judiciais relativamente aos tribunais de ordens judiciais em função da especialização das matérias em causa no julgamento dos conflitos de interesses sobre diferentes objectos processuais».
Na mesma senda, refere Rodrigues Bastos: «Quando a divisão do trabalho judicial se faz tendo em conta a particular natureza das relações jurídicas a apreciar, a sua qualidade, diz-se que a competência é fixada em razão da matéria. Posto isto, impõe-se desde já avançar que a competência dos tribunais judiciais apresenta-se como residual em face das outras ordens jurisdicionais, face ao disposto no artigo 64º do Cód. Proc. Civil e do vertido no artigo 26.º, n.º1 da LOFTJ.

 Considerando o acima referido, apenas se pode concluir por possuir este Tribunal, na sua qualidade de tribunal judicial de 1.ª Instância, competência para a realização da notificação solicitada quando em face da natureza da relação jurídica litigada, a lei não atribua a iurisdictio a qualquer tribunal que integra uma das restantes duas ordens jurisdicionais.

Ora, como acima já se foi referindo, o acto que se pretende comunicar ao requerido consubstancia-se numa decisão sancionatória proferida em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente. Por outro lado, não se pode deixar de atentar na natureza jurídica da requerente, que se constitui como pessoa colectiva de Direito Público, na categoria de Associação Pública, que integra a denominada Administração Autónoma – cfr. artigo 1.º do Dec. Lei n.º 452/99 de 05.11 (na redacção dada pelo Dec. Lei n.º 310/2009 de 26.10). A propósito da Administração Autónoma, escreve Freitas do Amaral: «... é aquela que prossegue interesses públicos próprios das pessoas que as constituem e por isso se dirige a si mesma, definindo com independência a orientação das suas actividades, sem sujeição a hierarquia ou à superintendência do governo». Já na densificação do conceito de Associação Pública, afirma o mesmo autor serem pessoas colectivas públicas, de tipo associativo, criadas para assegurar q prossecução de determinados interesses públicos pertencentes a um grupo de pessoas que se organizam para a sua prossecução.
 Na subespécie a que pertence a requerente, a saber, associação pública de entidades privadas, a lei confere-lhes poderes de autoridade para o exercício de determinadas funções públicas, que em princípio pertenceriam ao Estado: com efeito, as Ordens e as Câmaras profissionais beneficiam do monopólio legal da unicidade, da inscrição obrigatória, « ..., e poderes disciplinares sobre os membros da respectiva profissão, que são poderes de autoridade pública, e que podem ir até à proibição do exercício da profissão». Podem assim aplicar verdadeiras sanções administrativas, desempenhando por tanto funções de autoridade, que a lei considera deverem estar nas mãos dos próprios profissionais, colectivamente organizados, e não directamente a cargo do Estado.
 Por fim, resta acrescentar que a estas associações se aplica o Direito Administrativo sempre que exerçam os poderes públicos que lhe foram atribuídos.
Ora, a notificação de um despacho de acusação proferido em sede de processo disciplinar consubstancia um acto do iter procedimental em apreço, que por sua vez e sem margem para quaisquer dúvidas, consubstancia a manifestação do exercício das acima referidas funções de autoridade, ou seja, manifestação do exercício de um poder público.

Do exposto resulta com clareza para este Tribunal que tudo o que se relacione com o exercício dos poderes sancionatórios sobre os associados de uma qualquer associação pública é substantivamente tema de Direito Administrativo, e processualmente da competência dos Tribunais Administrativos.
Tal resulta do vertido no artigo 1.º e 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ínsito na Lei n.º 13/2002 de 19.02. É que o último dos preceitos encerra uma enumeração meramente exemplificativa, como é doutrina unânime, não se incluindo apenas no foro em apreço as situações jurídicas aí descritas, mas antes todas as que se reconduzam ao conceito de relação jurídica administrativa, critério constitucionalmente consagrado como atributivo de jurisdictio à ordem judicial administrativa – cfr. artigo 212.º, n.º 3 da Const. Rep. Portuguesa.
Escreve a este propósito Vieira de Andrade: «…, aquele preceito serve ainda para delimitar o sentido da parte final do n.º 1 do artigo 211.º (continuado no artigo 66º do Código de Processo Civil), que atribui aos tribunais judiciais uma competência jurisdicional residual, de modo que uma questão de natureza administrativa passa a pertencer à ordem judicial administrativa quando não esteja expressamente atribuída a nenhuma jurisdição».

 Mas não só: após da reforma do Processo Administrativo, este passou a ser um contencioso de plena jurisdição, ao qual se aplica subsidiariamente o Cód. Proc. Civil, o que resulta dos artigos 1.º in fine, 2.º, n.ºs 1 e 2, 23.º e 25.º, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contido na Lei n.º 15/2002 de 22.02; razão pela qual é perfeitamente admissível que naquele foro se tramitem e realizem as notificações judiciais avulsas que se reportem a relações jurídicas administrativas, pois é o mesmo o único constitucionalmente reputado como detendo o apetrechamento técnico jurídico que lhe faculta a correcta aferição, em abstracto, da validade do acto/comunicação que se pretende levar ao conhecimento de outrem.
É que não se pode olvidar que semelhante aferição é imposta pelo regime resultante do artigo 256.º do Cód. Proc. Civil: este preceito, aplicável subsidiariamente ao contencioso administrativo nos termos preditos, faz depender a realização da notificação solicitada de despacho prévio do Juiz por forma a aquilatar da validade da situação jurídica na base da qual se encontra a comunicação que se pretende empreendida mediante notificação judicial.
Entendimento que prescinda de tais sumárias análise e julgamento, transforma o julgador, in casu, num mero elemento no circuito do correio, a quem nada mais se pede do que olhar para o requerimento que lhe é presente, e bem assim ordenar o seu cumprimento.
Sendo inaceitável o entendimento consignado no parágrafo anterior, não se vislumbra qual a razão, não sendo o tribunal judicial competente para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional, aquela lhe há-de ser reconhecida somente para determinação da realização de um acto de comunicação, quando tal determinação envolve a realização de um julgamento sobre matérias substancialmente atribuídas a uma outra ordem jurisdicional.

Conclui-se, assim, que a notificação aqui solicitada deveria tê-lo sido no Tribunal Administrativo territorialmente competente, o materialmente apto a ajuizar em abstracto o bem fundado da pretensão da aqui requerente, e em face da competência material residual dos tribunais judiciais a que acima se aludiu, não resta senão concluir pela incompetência material deste Tribunal para a realização da diligência em causa.
 Semelhante incompetência integra o conceito mais vasto de incompetência absoluta que consubstancia a excepção dilatória [artigos 96.º, alínea a) e 577º, alínea a) do Cód. Proc. Civil], do conhecimento oficioso em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da decisão de fundo a proferir (artigos 578º e 97.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil) e determinante, consoante haja ou não lugar a despacho liminar, do indeferimento liminar da petição inicial ou da absolvição do R. da instância (artigo 99.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil).
Donde, nos termos dos dispositivos legais acima referidos, declaro este Tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria para apreciar da viabilidade em abstracto da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, o que determina, dada a natureza liminar do presente, o indeferimento liminar da pretensão deduzida [cfr. ainda artigos 256.º, 99.º, n.º 1, 590.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 278º, n.º 1, alínea a), todos do Cód. Proc. Civil]».

II – Do assim decidido apelou a requerente, tendo concluído as respectivas alegações no seguintes termos:
1- A O. requereu junto de Tribunal Judicial a notificação judicial avulsa de uma sua associada, visando assegurar a sua notificação do despacho de acusação proferido no âmbito de um processo disciplinar em que é visada.
Com efeito, toda a correspondência remetida à associada é devolvida, por não reclamada, embora regularmente remetida para a morada que indicou à Instituição.
2- O Tribunal a quo, todavia, declarou-se absolutamente incompetente para apreciar e executar a diligência solicitada.
3- Considerou a MM. Juiz que o tribunal competente para a promoção de uma notificação judicial avulsa será o Tribunal Administrativo por estar em causa a notificação de um despacho de acusação prolatado em sede de processo disciplinar o qual consubstancia a manifestação de um poder público atribuído à O. enquanto associação pública.
4 - O que se discorda, pois é incontroverso que a regra geral atinente à competência material é atribuída globalmente, por via negativa, aos Tribunais Judiciais.
5 - Mais, a atribuição da competência deve basear-se essencialmente num critério material, assente na natureza das relações jurídicas em causa e não na dos respectivos titulares.
6 - E, in casu, não está em causa a execução de nenhuma pena ou sanção aplicada pela ora recorrente no exercício das suas funções de autoridade.
7 - Pretendeu apenas a ora recorrente que, por via da notificação judicial avulsa, seja dado conhecimento ao Técnico Oficial de Contas do despacho de acusação proferido no âmbito de um procedimento disciplinar.
8 - Já que, nos termos do disposto no art.° 75.° n.° 2 do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, aprovado pelo Decreto- Lei 452/99, de 5 de Novembro, com a revisão constante do Decreto- Lei 310/09, de 26 de Outubro" o arguido é notificado da acusação pessoalmente ou por carta registada, com aviso de recepção, com a entrega da respectiva cópia" e, perante a frustação da notificação ao notificando, por meio de carta registada com aviso de recepção, requereu-se, assim, a sua notificação por meio de notificação judicial avulsa.
9 - O Tribunal a quo é pois o materialmente competente, em razão da matéria, para executar a diligência requerida - uma mera notificação judicial avulsa.
10 – Aliás, conforme entendimento da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, 1ª secção, no âmbito do Proc. 1368/09.9 YRLSB, Apelação 2, o que aqui está em causa "tem a ver com o processo extra-judicial invocado pela requerente para justificar o seu interesse na notificação, mas constitui uma diligência completamente autónoma da relação jurídica que intercede entre a requerente e a notificanda, refletida nesse processo extrajudicial, verifica-se que simplesmente se requer que se dê conhecimento de certo facto à notificanda".
11- E, ainda de acordo com a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa "deste modo em causa não está qualquer relação jurídica e, consequentemente, não é possível afirmar que na notificação judicial avulsa em apreciação se discute uma relação jurídica administrativa, não é possível afirmar que em causa se acha um litígio nos termos e para os efeitos do disposto no art.° 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro".
12- A causa, na notificação judicial avulsa em apreciação, reduz-se à actividade a exercer conducente a dar conhecimento ao notificando de que pode apresentar a sua defesa.
Crê-se, portanto, que para o efeito pretendido, o Tribunal a quo é, pois, materialmente competente.
13 - Tal como foi entendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 8ª Secção (Proc.°1086/10.5 TAMD.L1), de 02/11/2010 "(...) não há qualquer conflito de interesses a resolver nem se discute qualquer relação jurídica.
14- Estamos perante um processo extrajudicial e a pretensão da recorrente é a de tão só dar conhecimento de certo facto à requerida. Não estando em causa qualquer relação jurídica, não se pode atribuir competência aos tribunais administrativos".
15 - De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, 8ª Secção, proc.° 723/10.6 T2AMD.L1, de 10/12/2010, afirmou-se que "no despacho recorrido, o M° juiz a quo analisa a natureza jurídica da relação jurídica, quando não é este que é posto à consideração do tribunal. Qualquer que seja a natureza da relação jurídica, atue o não a parte no exercício de poder público, nada disto integra o mero requerimento de notificação avulsa, que seria exatamente o mesmo estivesse a requerente dotada de autoridade ou não".
De resto, o entendimento agora perfilhado uma vez mais resultou bem evidenciado nas conclusões da decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa, 8ª secção, proc. 75/12.0 T2MFR.L1, de 21.05.2012, de acordo com a qual "a notificação judicial avulsa visa dar conhecimento a alguém de algum facto que não seja ilegal ou imoral, não se destinando a resolver qualquer conflito de interesses, pelo que não se configura como uma qualquer ação".
16 - E, no mesmo sentido, vd. a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, 6ª secção, proc. 154/12.3 T2MFR.L1, Apelação-2.ª, de 28/09/2012.
17 - E, já mais recentemente, em 04/04/2014, no Proc. 5/14.4T2MFR. L1, que correu termos na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, promoveu-se o entendimento que "não estando em discussão qualquer relação jurídica invocada pela recorrente, não pode o critério da pretensão deduzida em juízo, que será sempre aferido em face da análise da estrutura da relação jurídica subjacente ao direito invocado, ser determinante para a  determinação da competência material do tribunal, a qual se afere, como é sabido, pela articulação da causa de pedir e do pedido formulados pela parte, sendo que a causa, na notificação judicial avulsa em apreciação, se reduz à actividade a exercer conducente a dar conhecimento ao notificando de que pode apresentar a sua defesa, por escrito, no prazo de vinte dias a contar da notificação".

Termos em que, dando provimento ao presente recurso, deverá ordenar-se a revogação do despacho recorrido para ser substituído por outro que reconheça a competência dos tribunais comuns e ordene o prosseguimento dos autos com a realização da requerida diligência de notificação judicial avulsa do requerido.

IV- De acordo com as conclusões das alegações a questão a decidir é somente a de saber se para a notificação judicial avulsa de um despacho de acusação proferido no âmbito de um processo disciplinar movido pela requerente – que constitui uma Ordem Profissional - a uma sua associada, são competentes os tribunais judiciais ou os tribunais administrativos.

Questão, cuja análise, deverá ter à partida em consideração o carácter residual da competência dos tribunais comuns, assinalado no art 212º/1 da CRP, segundo o qual «os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais», bem como no art 64º NCPC- «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», e ainda no artº 26º/1 da LOFTJ, ao estabelecer que «os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Residualidade mais facilmente aferível na situação dos autos quando se tenha também em consideração que nos termos do disposto no art 212º/3 da CRP «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.»

O despacho recorrido atribuiu competência em razão da matéria para a realização da pretendida notificação judicial avulsa aos tribunais administrativos, em função, essencialmente, do facto de entender que a notificação de um despacho de acusação proferido em sede de processo disciplinar movido pela requerente a uma sua associada consubstancia um acto do iter procedimental inserto numa relação jurídica de carácter administrativo para o exercício do poder disciplinar da mesma, enquanto pessoa colectiva de direito público, e de entender que o art 256º do CPC, aplicável subsidiariamente ao contencioso administrativo, ao fazer depender a realização da notificação de despacho prévio do juiz lhe exige que verifique a validade da situação jurídica na base da qual se encontra a comunicação que se pretende empreendida mediante notificação judicial, aferência para a qual, em matéria administrativa - como o é tudo o que se relacione com o exercício de poderes sancionatórios sobre os associados de uma qualquer associação pública - será necessariamente mais bem exercida pelos tribunais administrativos.

Vejamos.

A questão a dirimir não passa pela exclusão da natureza do procedimento judicial em causa – trata-se, em qualquer caso, de uma notificação judicial avulsa, o que significa, tal como o refere Alberto dos Reis [1], que  se está perante uma “notificação fim” e não uma notificação em processo pendente, uma  “notificação meio”.
Com efeito, enquanto «a notificação relativa a processo pendente é um acto-meio, porque serve de instrumento ou de meio num processo cujo fim nada tem que ver com o objectivo directo da notificação (…), a notificação avulsa  é um acto-fim, porque toda a actividade que se exerce é conducente à notificação».
E mais expressivamente comenta: « … O que caracteriza as notificações avulsas  é a circunstância de não darem origem a um processo: a diligência é efectuada em consequência de um despacho lançado em requerimento avulso e os papéis, uma vez feita a notificação, são entregues ao requerente».

Como acima se referiu, na situação destes autos não está em causa excluir o carácter avulso à notificação que se pretende seja realizada através do tribunal, não sendo porque a mesma se insere no âmbito, decerto já final, de um procedimento disciplinar, que a mesma deixa de merecer aquela qualificação, certo como é que a “notificação-meio” pressupõe que a mesma se insira num processo já pendente em tribunal, o que não é manifestamente o caso de um procedimento disciplinar.
O que está em causa é saber se o requerimento e execução da concreta notificação judicial avulsa requerida pela O. cabe ao tribunal administrativo ou residualmente ao tribunal judicial.

 Alberto dos Reis quando comenta as notificações judiciais [2] refere que em sede de Comissão Revisora tinha mostrado a sua indiscutível preferência pela dispensabilidade de despacho prévio a ordenar a notificação avulsa, justificando essa dispensabilidade nos seguintes termos: «O despacho não serve para nada, ou melhor só serve para fazer perder tempo e dar trabalho material do juiz. Este não exerce na realidade, nem tem que exercer qualquer espécie de fiscalização sobre as notificações avulsas. Por meio de notificação avulsa a parte exerce um direito que, em regra, pode exercer por via extra-judicial; se se emprega a via judicial é porque dá mais garantias de certeza . A prova do aviso extra judicial pode tornar-se difícil ao passo que a prova do aviso judicial faz-se pela certidão de notificação. Para que fazer intervir o juiz num acto com o qual nada tem? O despacho tem o inconveniente de poder inculcar que o juiz, ordenando notificar, reconhece o direito do requerente … Quer dizer o juiz manda fazer a notificação mas ao mesmo tempo declara como Pilatos “ lavo daí as minhas mãos”. Então é preferível que não tenha de dar despacho algum e tudo se passe sem a sua intervenção».
Sucede, como o mesmo autor dá notícia, que, não obstante na Comissão Revisora se ter levantado «vivo debate» sobre a questão em apreço, veio a resolver-se que a notificação avulsa depende de prévio despacho do juiz, levando Alberto dos Reis a referir que o que aí se passou, quando se discutiu o art 165º do Projecto, «autoriza a concluir que o despacho de notificação avulsa, é, como o de citação, um despacho de carácter jusrisdicional e não um despacho de simples expediente (…) um  despacho de tabela, ou chancela, uma simples formalidade».
Acrescenta que «a Comissão quis que a notificação avulsa dependesse de despacho, porque viu neste despacho uma garantia contra notificações imorais ou ilegais».
Pelo que entende «que o juiz antes de ordenar a notificação, pode e deve verificar se o requerimento está em condições de ser deferido, quer quanto à forma, quer quanto ao fundo; se o exame o conduzir a resultado negativo, impõe-se-lhe  o indeferimento. (…) Não especifica a lei os fundamentos de indeferimento. Há-de aplicar-se por analogia até onde for possível, o disposto no art 481º» 

Isto significa que sendo requerida uma notificação judicial avulsa o juiz tem que exercer uma actividade jurisdicional, verificando, entre, e antes de mais, a competência absoluta do tribunal para a mesma – pois que, se for evidente essa incompetência, deverá indeferir liminarmente a pretensão, nos termos do actual nº1 do art 590º CPC e arts 96º, 99º/1 e 577º/1 al a) CPC - tendo sido esse o entendimento  do tribunal a quo.

Não sendo caso de incompetência absoluta, caberá ao juiz, como se assinala no Ac RL 19/9/2007 (Mª José Simões) «apreciar a validade formal do requerimento, apurar da existência, em termos abstractos, do direito subjacente ao requerido na notificação judicial avulsa e por último verificar da legitimidade do requerente e do destinatário em face do peticionado». Explicitando ainda: «No que toca à validade formal do requerimento, deve o juiz, para além de apreciar da inteligibilidade do requerimento em si, verificar se é o meio próprio para o requerente providenciar pelo direito de que se arroga, podendo indeferir tal requerimento nomeadamente se for ininteligível ou se houver erro na forma do processo». Prosseguindo: «No que diz respeito à apreciação da legalidade em abstracto do direito invocado, deve o juiz apreciar se o mesmo está legalmente consagrado na lei vigente, com vista a evitar o exercício de pretensões ilegais». Acrescentando, ainda: «Por último, deve o juiz verificar, se em face ao requerido, em abstracto, o requerente é o titular do direito invocado, ou se o exerce legalmente por força de qualquer norma legal ou disposição contratual e ainda se o destinatário tem legitimidade para receber a notificação».  [3]

Ora, o que o tribunal recorrido acentua é que desde que, «após a reforma do Processo Administrativo, este passou a ser um contencioso de plena jurisdição, ao qual se aplica subsidiariamente o Cód. Proc. Civil, o que resulta dos artigos 1.º in fine, 2.º, n.ºs 1 e 2, 23.º e 25.º, todos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contido na Lei n.º 15/2002 de 22.02», não haverá razão para que «naquele foro» não «se tramitem e realizem as notificações judiciais avulsas que se reportem a relações jurídicas administrativas, pois é o mesmo o único constitucionalmente reputado como detendo o apetrechamento técnico jurídico que lhe faculta a correcta aferição, em abstracto, da validade do acto/comunicação que se pretende levar ao conhecimento de outrem».

É evidente que o acerto desta consideração depende daquilo que está precisamente em apreço: saber se a notificação judicial avulsa em causa se reporta a uma relação jurídica administrativa.

O art 4º/1 al a) do actual ETAF estabelece que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal, ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal». E a respectiva al b) refere ainda competirem a esses mesmos tribunais, a «fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, (...)»
Tal como o referem Mário Esteves de Oliveira/Rodrigo Esteves de Oliveira [4] são estas duas normas as gerais em matéria de delimitação da jurisdição administrativa.
Para Vieira de Andrade [5] a determinação do domínio material da justiça administrativa continua a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, tendo de considerar-se relações jurídicas públicas aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido. O que pressupõe um conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. E conclui: «É por isso que se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas de direito privado, que formam uma ordem jurídica administrativa; será aí que se justificará a existência de uma ordem judicial diferente da ordem dos «tribunais judiciais».
Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, interrogam-se a respeito do que é que define uma relação jurídica como sendo de natureza administrativa, «quais são os factores e critérios a que deve recorrer-se de modo a poder aplicar-se, em função disso, a cláusula material de jurisdição dos tribunais administrativos que se encontra consagrada no art. 212º/3 da CRP», respondendo: «Diremos, sem grandes preocupações de rigor, que são relações jurídico-administrativas: i) em princípio, aquelas que se estabelecem entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos (relações intersubjectivas públicas e relações inter-orgânicas), desde que não haja nas mesmas indícios claros da sua pertinência ao direito privado; ii) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado), actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v. Acórdão do TC nº 746/96 de 29 de Maio, e Vieira de Andrade, A Justiça …, cit, p.55 e 56); iii) aquelas em que esse sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos, de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137)».
Para Freitas do Amaral [6], relação jurídica administrativa é «aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».
Mota Pinto[7], numa visão mais tradicional, mas nem por isso menos caracterizadora, entende que o critério mais adequado para distinguir o direito público do direito privado é o designado por teoria dos sujeitos, «nos termos do qual, o direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes público, mas intervindo estes despidos de «imperium» ou poder soberano. Se a relação jurídica disciplinada pela norma não se apresenta com estas características, estamos perante uma norma de direito público, onde, pelo menos um dos sujeitos da relação disciplinada é um ente titular de autoridade e que intervém nessa veste, sendo, pois, detentor do poder de emitir comandos que se imponham a outrem, mesmo sem ou contra a vontade dos destinatários»[8].

À luz destas considerações, ponderando a natureza jurídica da requerente – pessoa colectiva de direito público, mais especificamente, associação pública - a quem a lei confere poderes de autoridade para o exercício das respectivas funções públicas, designadamente para o exercício de poderes sancionatórios relativamente aos respectivos associados – não poderá deixar de se admitir que quando no exercício do poder disciplinar sobre estes se move no âmbito de relações jurídicas administrativas.

Ora, se a competência do tribunal administrativo se deve aferir em função, essencialmente, das acimas referidas normas de atribuição, conjugadas com a análise da estrutura da relação jurídica subjacente ao direito invocado, tal como ela é delimitada pela parte, bem como pelo pedido efectuado ao tribunal [9], e se para dirimir os conflitos emergentes da aplicação de sanções disciplinares aos membros de uma qualquer Ordem Profissional não podem deixar de ser competentes os Tribunais Administrativos, então ter-se-á de concluir que são estes mesmos tribunais que serão competentes para levar ao conhecimento de um associado dessa Ordem o despacho de acusação sancionatória proferido em sede de procedimento disciplinar instaurado no exercício das atribuições da requerente.

Assim, e sob pena de se ter de concluir que todas notificações judiciais avulsas serão da competência dos tribunais judiciais, com o inevitável prejuízo na administração da justiça que resulta destes estarem, naturalmente, menos apetrechados técnico juridicamente do que os tribunais das demais ordens jurisdicionais para aferirem da validade formal e da existência em abstracto do direito subjacente ao respectivo requerimento, bem como da legitimidade do requerente e do destinatário, entende-se assistir razão ao Exmo juiz a quo quando concluiu pela incompetência em razão da matéria dos tribunais judiciais, para apreciar da viabilidade em abstracto da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, determinando o indeferimento liminar da pretensão deduzida e a atribuiu aos tribunais administrativos.

V- Pelo exposto acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 5 de Março de 2015
                                                                                          Maria Teresa Albuquerque
Sousa Pinto                                             
Jorge Vilaça
                                    

[1] - «Comentário…» II , 589 «A notificação ou é consequência de processo pendente, quer dizer constitui um acto do processo que está a correr os seus termos, ou é uma diligencia separada e autónoma  que nada tem que ver com qualquer processo em curso»
[2] Ainda, «Comentário…» II, p 589 e ss
[3] - No mesmo sentido já se expressara anteriormente o Ac RG 4/12/2002 (Silva Rato), referindo que «nas notificações judiciais avulsas, a função útil do despacho prévio do Juiz, previsto no artigo 261.º, n.º 1 do CPC, passa por efectuar uma apreciação da validade formal do requerimento, apurar da existência, em termos abstractos, do direito subjacente ao pedido da notificação avulsa e verificar da legitimidade do requerente e do destinatário em face do requerido. No que respeita à validade formal do requerimento, deve o Juiz, para além de apreciar da inteligibilidade do requerimento em si, verificar se é o meio próprio para o requerente providenciar pelo direito de que se arroga, podendo indeferir tal requerimento, nomeadamente se for ininteligível ou se houver erro na forma de processo. Quanto à apreciação da legalidade em abstracto do direito invocado, deve o Juiz apreciar se o mesmo está legalmente consagrado na lei vigente, com vista a evitar o exercício de pretensões ilegais. Deve, ainda o Juiz verificar, face ao requerido, se, em abstracto, o requerente é o titular do direito invocado, ou se o exerce legalmente por força de qualquer norma legal ou disposição contratual e ainda se o destinatário tem legitimidade para receber a notificação».
[4] - CPTA, I, Anotado 2004, p 40
[5] - «A Justiça Administrativa, Lições», 8ª ed, pgs. 57/58
[6] - «Direito Administrativo»,. III, p 439/440.
[7] - « Teoria Geral do Direito Civil», p 16
[8] - Esteve-se a citar quase ispsi verbis o Ac RL 20/1/2015 (Pimental Marcos), incluindo as  referências bibliográficas 
[9] Como é referido no Ac RL  3/4/2014 (Magda Geraldes)