Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
308/21.1JELSB-C.L1-3
Relator: MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA
Descritores: TRÁFICO NO MAR
COMPETÊNCIA DA MARINHA DE GUERRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A competência da Marinha de Guerra para abordagem de um navio no mar não se confunde com a intervenção da PJ, em face da existência de indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em curso na referida embarcação.
A actuação da Marinha de Guerra Portuguesa cinge-se à abordagem com vista à identificação da embarcação - verificação de nome, registo e pavilhão - bem como dos seus tripulantes.
Havendo suspeitas de tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, a confirmação dessas suspeitas é da competência da PJ que, apenas em face da sua confirmação, tem legitimidade para proceder à detenção dos arguidos e apreensão do produto, enquanto actos de inquérito já no âmbito processual penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:

I – Relatório:
Os arguidos JHGR________ , CSO_______ e XFA_____ interpuseram, a 18/10/2021, providência de habeas corpus com fundamento em que foram detidos cerca da uma hora da manhã do dia 16 de Outubro de 2021, quando foram abordados no mar, mas que dos documentos que “foram obrigados a assinar” consta a detenção no dia 17, às oito horas, pelo que, à data do pedido, tinha sido excedido o prazo de entrega “ao poder judicial” de 48 horas.
Procedeu-se à inquirição dos detidos, nos termos do artigo 221º/1, do CPP, foi produzida decisão, e dela vêm agora recorrer.
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II- Fundamentação de facto:
1- A decisão recorrida contém-se nos seguintes termos:
« Os arguidos CSO_____, JHGR________  e XFA_____ têm a legitimidade para deduzir o presente requerimento de Habeas Corpus em virtude de detenção ilegal.
Tendo-se procedido à tomada de declarações aos arguidos, pelos mesmos foi referido, de forma, no essencial coincidente, que a embarcação em que seguiam foi abordada em alto mar por uma outra embarcação, no dia 16 de Outubro de 2021, entre a 01H00 e a 01H30 da madrugada, ocasião em que os arguidos foram algemados, tendo o arguido CSO_______ e o arguido JHGR________  adiantado que, de seguida, a embarcação em que seguiam foi conduzida para junto da costa portuguesa, tendo todos os arguidos referido, de forma coincidente, que no dia 17 de Outubro foram interpelados por elementos da Polícia Judiciária.
As declarações dos arguidos apresentam-se, neste particular, em consonância com o acervo documental junto aos autos, de onde resulta que no dia 16 de Outubro pelas 02h38m (hora portuguesa), elementos do destacamento de acções especiais da Marinha Portuguesa, nas coordenadas 36 21 3N - 013 13 10W, no âmbito da convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar, de 10 de Dezembro de 1982, ao abrigo do art. 110.°, procederam ã intersecção/abordagem de embarcação suspeita, tendo nessa ocasião encontrado a bordo dessa embarcação dezenas de embalagens (tipo fardo), que se encontravam em zonas comuns, na sequência do que foi accionado o convénio existente entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha (tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a repressão do tráfico ilícito de droga no mar, em conformidade com o art. 17.°, n.° 9 da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
Apenas na sequência da realização do teste rápido, documentado nos autos a fls. 36, é que foi determinada a apreensão da embarcação, tipo veleiro, que navegava com a denominação MONKEY BAY (cfr. auto de apreensão de fls 68) e que os Inspectores da Polícia Judiciária procederam à detenção dos três arguidos, que, como resulta do expediente que integra fls. 107 a 114, apenas teve lugar no dia 17 de Outubro de 2021, pelas 08H00, pela que não se suscitam quaisquer dúvidas, em como, no caso vertente, a detenção dos arguidos foi efectuada por autoridade competente, e foi observado o prazo de 48 horas para apresentação dos arguidos, a que é feito a menção no art.º 254.°, n.° 1, al. a) do Cód. Processo Penal.
Não se suscitam, pelo exposto, quaisquer dúvidas quanto à legalidade da detenção de qualquer um dos três arguidos, o que se declara, considerando-se improcedente o requerimento de Habeas Corpus, em virtude de o requerimento de Habeas corpus em virtude de detenção ilegal, apresentado pelos arguidos, carecer de fundamento legal.
Termos em que se mantêm a detenção dos arguidos e se determina que os mesmos sejam presentes, de imediato, para se proceder à diligência de 1,° interrogatório judicial de arguido detido.»
2- De seguida, os arguidos foram sujeitos a primeiro interrogatório de detidos, tendo-lhes sido aplicada medida de coacção de prisão preventiva.
3- A Polícia Judiciária apresentou os arguidos ao Ministério Público mediante a seguinte informação:
« Exmo. Sr. Coordenador de Investigação Criminal
Fara os devidos efeitos, apresento a V. Ex.a. sob detenção os indivíduos abaixo identificados, detidos em flagrante delito, no veleiro de nome G. SIRO, com matrícula ..., registo ..., de pavilhão espanhol, pelas 08H00, do dia 17 de outubro de 2021, (…) pelos factos que passo a descrever.
Conforme é do conhecimento de V. Exa., no dia 11 de outubro, no âmbito das competências desenvolvidas por esta 2ª Brigada / 1ª SCITE da UNCTE, foi veiculada pelo Maritine Anaíysis Operations Centre (Narcotics) / MAOC(N), informação, tida por fidedigna, relativa ao transporte de produto estupefaciente, a bordo de uma embarcação do tipo veleiro sloop (de apenas um mastro), não identificada (nome, registo e pavilhão), que se dirigia para águas portuguesas.
Ainda de acordo com a informação inicial subscrita pelo Sr. Inspector MM, datada de 11/10/2021, essa embarcação encontrar-se-ia a transportar produto estupefaciente a bordo.
À data havia sido equacionada a possibilidade de poder ocorrer um transbordo para outra embarcação, situação essa que teria lugar algures no Atlântico, entre o arquipélago do Açores e Portugal continental.
Por tal motivo, foi solicitado à Força Aérea Portuguesa a realização de um voo de reconhecimento, para que pudesse localizar o referido veleiro, tendo em conta a sua origem (América do Sul).
Assim, no dia 13 de outubro, foi possível a realização de um voo de reconhecimento, tendo como fim identificar a embarcação suspeita (do tipo veleiro sloop).
Uma embarcação desse tipo (sloop), de cor branca, com dimensões entre os 18 e os 25 metros de comprimento, foi avistado nas coordenadas 33,40 00N / 16 7(3 00W, do dia 13.11.2020 às 18h30Z  (20h30 de Lisboa), seguindo com uma velocidade reduzida, estimada em cerca de 3 a 4 milhas por hora.
No dia 14 de Outubro, pelas 15h00, de acordo com a estratégia / decisão da Polícia Judiciária, a Marinha de Guerra Portuguesa, empenhou um meio naval, colocando a bordo o Sr. AI, Inspector, por forma a interceptar a embarcação suspeita, o ora, veleiro G.SIRO, com matrícula ..., registo ..., de pavilhão espanhol, evitando que a sua tripulação, perante a aproximação a águas portuguesas, viesse a proceder a um transbordo do produto estupefaciente, impedindo, dessa forma, que grande quantidade de cocaína pudesse ser introduzida no circuito comercial ilegal procedendo posteriormente à sua venda a terceiros.
Concomitantemente, a Força Aérea Portuguesa (FAP), em mais um voo de reconhecimento, realizado nesse mesmo dia, veio a localizar o veleiro, nas coordenadas 37 07 45N - 015 00 18W, com uma velocidade de 3 KTS (nó), pelas 19h00Z (20h00 em Lisboa).
Urna vez mais o veleiro, do tipo “sloop" trazia a vela recolhida, navegando com o auxilio de motor (cfr fls. 7 a 10)
De realçar que as condições meteorológicas que se manifestavam naquele local do oceano Atlântico (estado do mar, direção e velocidade o vento) permitiam navegar em circunstâncias normais, i.e., com vela, sem recurso a motor auxiliar.
No dia 16 de Outubro, pelas 01h38Z (02h38 em Lisboa), elementos do Destacamento de Acções Especiais (DAE) da Marinha de Guerra Portuguesa, nas coordenadas 36 21 3N - 013 13 10W, a cerca de 200 milhas náuticas do Cabo de São Vicente, no âmbito da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982, ao abrigo do art.° 110.°, procederam à intercepção / abordagem da embarcação suspeita, veleiro, co tipo "sloop”, com vista à identificação da mesma (nome, registo e pavilhão), bem como dos seus tripulantes.
Após abordagem e verificada a documentação da embarcação, a mesma correspondia ao veleiro de nome G. Siro já acima identificado, seguindo a bordo 3 (três) tripulantes: JHGR________ , CSO_______ e XFA_____
Foi ainda fornecida a informação, por parte da Marinha de Guerra Portuguesa, que os elementos dos DAE, cipós entrada no veleiro, nas zonas comuns, identificaram de imediato, uma série de embalagens, usualmente identificadas como “fardos”, compatível com o transporte de produto estupefaciente.
Posteriormente e já com luz do dia, constatou-se que o veleiro arvorava uma bandeira dos Países Baixos, exibindo à ré uma placa aparafusada com o nome de “MONKEY BAY ROTTERDAM".
Reforce-se que toca a documentação que se encontrava no veleiro indicava o nome de G. Siro, com pavilhão espanhol, não estando quaisquer dúvidas sobre a sua identificação.
Na posse dessa informação, nome da embarcação, pavilhão, matrícula e registo, foi accionado o Convénio (acordo bilateral) existente entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha (Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar), em conformidade com o art.° 17.°, n.° 9, da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, já que a informação reunida apontava para a existência de fortes suspeitas de se estar a realizar um transporte de produto estupefaciente.
No dia 17 de outubro de 2021, pelas 08h00, foi possível o Sr. AI, Inspector da UMC'E / Polícia Judiciária, entrar a bordo do veleiro G. Siro.
Após a sua entrada no veleiro e de ter dado conhecimento â tripulação da sua qualidade de Inspector aa Polícia Judiciária, deparou-se, de imediato, a meia nau, em zona comum, com numerosos “fardos”, em tudo idênticos aos que habitualmente transportam produto suspeito de tratar de estupefaciente.
De imediato realizou um teste rápido - Tipo,r- Reagente Scott (cocaína) que veio a resultar positivo.
Foram os tripulantes detidos em flagrante delito, pelas 08h00 (hora de Lisboa), do dia 17 de oututro, por um crime de tráfico de estupefacientes.
O veleiro foi conduzido, sob escolta da Marinha de Guerra Portuguesa, para a Base Naval do Alfeite, onde chegou, no dia de hoje, pelas 14h30.
Foi dado seguimento à busca, que veio a resultar na apreensão do seguinte: (…)»    
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III- Recurso:
Os arguidos recorreram, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. O presente recurso é interposto da decisão que indeferiu a requerida providência de habeas corpus em virtude de detenção ilegal dos arguidos.
2. Os arguidos ora recorrentes não se conformam com a decisão de que ora se recorre.
3. Andou mal o tribunal “a quo” ao considerar que os arguidos apenas foram detidos no dia e hora em que assinaram o auto de detenção e o auto de constituição de arguido.
4. Pois resulta da prova documental junta aos autos e das declarações prestadas pelos arguidos que os mesmos foram abordados no dia 16/10/2021 data em que foram de imediato detidos.
5. Tendo sido presentes a Juiz Instrução apenas no dia 18/10/2021, volvidas que estavam mais de 48 horas desde a detenção dos arguidos.
6. Afigurando-se a detenção dos arguidos manifestamente ilegal.
7. A decisão recorrida viola o artigo 141.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e o artigo 31.º da nossa Constituição.
A detenção dos arguidos é manifestamente ilegal, com o que se fará justiça! ».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
« 1.° O douto despacho recorrido publicitado dia 18-10-2021, considerou improcedente o requerimento de Habeas Corpus apresentado pelos arguidos, ora recorrentes XFA______, CSO_______ e JHGR_____, porquanto entendeu:
2. º “Não se suscitam, pelo exposto, quaisquer dúvidas quanto à legalidade da detenção de qualquer um dos três arguidos, o que se declara, considerando-se improcedente o requerimento de Habeas Corpus, em virtude de o requerimento de Habeas corpus virtude de detenção ilegal apresentado pelos arguidos, carecer de fundamento legal.
Termos em que se mantém a detenção dos arguidos e se determina que os mesmos sejam presentes, de imediato, para se proceder à diligência de 1° interrogatório judicial de arguido detido
3.° Do despacho que impôs as medidas de coacção, pelos ora recorrentes foi interposto recurso, entendendo, para além do mais que - a detenção dos arguidos é “manifestamente ilegal”, com os mesmos argumentos invocados no presente recurso.
PORÉM, consigna o art.º 219.° do C. P. P inexistir “relação de litispendência” entre o recurso e a providência do Habeas Corpus.
Atentas as 10 Conclusões da Motivação de recurso, uma única questão se coloca: saber se:
- A detenção dos arguidos foi ilegal, pelo que a decisão recorrida viola o artigo 141.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e o artigo 31.° da nossa Constituição.
4.° A providência de “habeas corpus” constitui um instrumento reactivo dirigido ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal.
5.° A privação do direito à liberdade só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art.º 27.°, n.ºs 2 e 3 da Constituição.
6.° É entendimento uniforme quer doutrinal, quer jurisprudencial do nosso Mais Alto Tribunal que providência em causa assume uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais, pelo que não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.
7.° O Mm.° Juiz de Instrução da área em que se encontrar o detido, é o órgão competente para decidir o “habeas corpus” em virtude de detenção ilegal - cf. arts.º 220.° do CPP.
8.° Entendem os recorrentes que a ilegalidade da detenção se funda na alínea a) do n.°1 do artigo 220.° do Código de Processo Penal, porquanto, quando apresentados ao interrogatório aludido na al. a) do artigo 141.°, n.° 1 do mesmo Código, já decorrera “o prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção. ”
9.° Entendem que a sua detenção foi ilegal, porque foram privados da sua liberdade no dia 16 de Janeiro de 2021, pela 01H00, e a sua apresentação ao Mm.° Juiz de Instrução Criminal a quo, teve lugar dia 18 de Janeiro de 2021.
11.° PORÉM, sempre se dirá que da conjugação dos factos fortemente indiciados sob os n°s 12,13,14 e 16 a 18 resulta:
- no dia 16/10/2021. pelas 02h38, os arguidos não foram detidos:
- a detenção só aconteceu após a entrada do Sr. Inspector da P.J na embarcação ocorrida dia 17/10/2021. pelas 08h00. e a realização do “teste rápido à substância existente nesses fardos”, tendo o mesmo tido resultado positivo para cocaína.”
12.° Os recorrentes não atentaram no facto de ter existido uma separação de funções entre a Marinha de Guerra Portuguesa e a Polícia Judiciária.
13.°A intervenção da Marinha de Guerra Portuguesa, autoridade marítima com atribuições no âmbito da prevenção e controlo da criminalidade, designadamente, narcotráfico de acordo com o disposto no art.° 6. ° ns.° 1 e 2, al. k) do D.L. n.° 43/2002, de 02/03, foi feita de acordo com as Convenções aplicadas, tendo ocorrido apenas uma intercepção, tutelada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 - cfr. art.° 108.°, e pela Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988 - art.° 17.°, ambas ratificadas por Portugal, sendo isso o que está documentado nos autos, designadamente do expediente junto e contemporâneo da intercepção da embarcação pela Marinha de Guerra Portuguesa.
14.° A Marinha não actuou como órgão de polícia criminal, mas na intercepção da embarcação, o que só ela o podia fazer, ao abrigo da legitimidade conferida pelo art.° 17.° da Convenção de 1988, no âmbito, apenas, da cooperação devida à P.J.
15.° As diligências processuais penais de investigação nos presentes autos após receber informação policial remetida pelo Maritime Anlyysis and Operations Centre - Narcotics (doravante MAOC), dando conta de um possível transporte de produto estupefaciente, por via marítima, informação que necessitava de ser confirmada, foram levadas a cabo por Inspectores da PJ, e não pelos fuzileiros, e a prova obtida obedeceu ao formalismo legal do Código de Processo Penal.
16.° Os recorrentes foram detidos e constituídos como arguidos «no momento próprio, quando a suspeita se objectivou o que só aconteceu, depois da busca e apreensão, no preciso momento em que se confirmou mediante “teste rápido, Tipo F -reagente Scott” que o produto que transportava deu positivo para cocaína, isto é, uma base indiciária segura para lhe imputar a prática de crime de tráfico de estupefacientes (art. 58.71/c, 255.°/l/a, CPP, art. 21.° DL 15/93).” - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2021, 2976/19.5JAPRT.P1. SI -5a Secção.
17.° Como bem se decidiu no douto despacho em que se impôs prisão preventiva aos arguidos e se decidiu quanto às nulidades pelos mesmos suscitadas:
“Não se suscitam, pelo exposto, quaisquer dúvidas quanto à legalidade da detenção e subsequente apresentação de qualquer um dos três arguidos neste tribunal, para o efeito de cada um deles ser submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, porquanto a detenção dos arguidos foi efectuada em flagrante delito, nos termos do disposto nos arts. 255.°, n.° 1, al. a) e 256.°, n.°s 1 e 3, ambos do Cód. Processo Penal, tendo sido respeitado o prazo de apresentação a que se referem os artigos 141.°, n.° 1 e 254.°, n.º 1, al. a), ambos do Cód. Processo Penal. ”
18.º O douto despacho impugnado não violou qualquer preceito legal, designadamente, artigo 141.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e o artigo 31.° da Constituição da República Portuguesa.
19.° Desta forma, o recurso deve ser julgado improcedente e confirmada a douta decisão recorrida.».
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à contra-motivação.
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V- Questões a decidir:
Do artº 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
A questão colocada pelos recorrentes é a ilegalidade da não apresentação a primeiro arguido detido no prazo de 48 horas, considerando que foram detidos no dia 16/10/2021, pela uma hora.  
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VI- Fundamentos de direito:
A questão que os arguidos colocam remete-se para a discordância relativamente à decisão recorrida porque, em seu entendimento, não pode «ser considerado que as autoridades atuaram no âmbito do direito de visita e/ou de fiscalização à embarcação, pois aquando da abordagem à embarcação as autoridades já haviam tomado conhecimento de que aquela embarcação em concreto alegadamente transportaria produto estupefaciente. »
Manifestamente, nesta argumentação está ínsita uma confusão entre eventualidade e realidade. O facto de haver suspeitas de que a embarcação transportava carga ilícita não prescinde, para efeitos processuais, da concretização dessas suspeitas, ou seja, da verificação, no caso, em flagrante delito, por quem de direito, de que isso estava a ocorrer. Nem a suspeita transforma uma actuação de fiscalização da embarcação numa fiscalização da sua carga.
Conforme consta da decisão recorrida «No dia 16 de Outubro (…) elementos do Destacamento de Acções Especiais (DAE) da Marinha de Guerra Portuguesa, (…) no âmbito da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982, ao abrigo do art.° 110.°, procederam à intercepção / abordagem da embarcação suspeita, veleiro, do tipo "sloop”, com vista à identificação da mesma (nome, registo e pavilhão), bem como dos seus tripulantes.
Após abordagem e verificada a documentação da embarcação, a mesma correspondia ao veleiro de nome G. Siro já acima identificado, seguindo a bordo 3 (três) tripulantes: JHGR________ , CSO_______ e XFA_____  (…)
Posteriormente e já com luz do dia, constatou-se que o veleiro arvorava uma bandeira dos Países Baixos, exibindo à ré uma placa aparafusada com o nome de “MONKEY BAY ROTTERDAM".
Reforce-se que toca a documentação que se encontrava no veleiro indicava o nome de G. Siro, com pavilhão espanhol, não estando quaisquer dúvidas sobre a sua identificação.
Na posse dessa informação, nome da embarcação, pavilhão, matrícula e registo, foi accionado o Convénio (acordo bilateral) existente entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha (Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar), em conformidade com o art.° 17.°, n.° 9, da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, já que a informação reunida apontava para a existência de fortes suspeitas de se estar a realizar um transporte de produto estupefaciente».
Conforme resulta do referido, a actuação da Marinha de Guerra Portuguesa cingiu-se à abordagem da embarcação, com vista à identificação da mesma (verificação de nome, registo e pavilhão), bem como dos seus tripulantes, ao abrigo do disposto no artigo 10º da Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982, aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97, de 14 de Outubro, nos termos dos artigos 164º/j) e 169º/5, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Refere o normativo, intitulado de “Direito de visita” que «1. Salvo nos casos em que os actos de ingerência são baseados em poderes conferidos por tratados, um navio de guerra que encontre no alto mar um navio estrangeiro que não goze de completa imunidade em conformidade com os artigos 95º e 96º não terá o direito de visita, a menos que exista motivo razoável para suspeitar que: (…)
2. Nos casos previstos no nº 1, o navio de guerra pode proceder à verificação dos documentos que autorizem o uso da bandeira. Para isso, pode enviar uma embarcação ao navio suspeito, sob o comando de um oficial. Se, após a verificação dos documentos, as suspeitas persistirem, pode proceder a bordo do navio a um exame ulterior, que deverá ser efectuado com toda a consideração possível. (…)»
Por outro lado, há que considerar o disposto no artigo 17º da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 29/91, de 06/09, e ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 45/91, de 06/09 que, com a epígrafe de "Tráfico ilícito por mar”, determina, entre o mais, que «1 - As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar.
2- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio com o seu pavilhão, ou sem qualquer pavilhão ou matrícula, é utilizado para o tráfico ilícito, pode solicitar auxílio às outras Partes a fim de pôr termo a essa utilização. As Partes assim solicitadas prestam essa assistência no limite dos meios de que dispõem.
3- A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matricula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio.
4- De acordo com o n.° 3 ou com os tratados em visor entre as Partes ou com qualquer outro acordo ou protocolo por elas celebrado, o Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia:
a) Ter acesso ao navio:
b) Inspeccionar o navio:
c) Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo. (…
9- As Partes devem considerar a possibilidade de celebrar acordos ou protocolos bilaterais ou regionais com vista a dar aplicação às disposições do presente artigo ou a reforçar a sua eficácia.
10- As medidas adoptadas nos termos do n.° 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fím. (…)»
Ao abrigo deste mecanismo internacional foi celebrado o Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 9/2000, de 28/01 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 2/2000, de 28/01, do qual consta, entre o mais, que:
 «Artigo 4.º, “Direitos das Partes”
1 — No caso de suspeita fundada da prática de alguma das infracções referidas no artigo 1.º, cada Parte reconhece à outra um direito de representação que legitima a intervenção dos seus navios de guerra ou aeronaves militares ou outros navios ou aeronaves com sinais exteriores bem visíveis ou identificáveis de que estão ao serviço do Estado e devidamente habilitados para o efeito sobre os navios do outro Estado que se encontrem a operar fora das suas águas territoriais.
2 — No exercício do direito de representação a que se refere o n.º 1, os navios ou aeronaves oficiais poderão perseguir, parar e abordar o navio, verificar os documentos, interrogar as pessoas que se encontrem a bordo e, se existirem fundadas suspeitas de infracção, inspeccionar o navio e, se constatada, proceder à apreensão da droga, à detenção das pessoas presumivelmente infractoras e à condução do navio para o porto mais próximo ou mais adequado à sua imobilização, até à sua eventual devolução. (…)
Artigo 5.º “Intervenção”
1 — Sempre que existirem fundadas suspeitas de que um navio se está a dedicar ao tráfico ilícito, comunicar-se-á esse facto ao Estado do pavilhão, o qual responderá, no mais breve prazo possível, que não deverá, em princípio, exceder as quatro horas seguintes à recepção do pedido, transmitindo as informações de que dispuser a respeito desse navio.
2 — Se essas informações confirmarem as suspeitas do Estado interveniente, poder-se-á efectuar uma intervenção a bordo, praticando-se os actos previstos no artigo 4.º. Se a intervenção não for iminente, comunicar-se-á a intenção de a iniciar à autoridade competente do Estado do pavilhão, a qual responderá, na medida do possível, num prazo máximo de quatro horas seguintes à recepção do pedido, autorizando-a ou recusando-a.
3 — Se, porém, em função das circunstâncias, não for possível obter essa autorização prévia em tempo útil, poder-se-ão praticar os actos previstos no artigo 4.º após o que o comandante do navio ou da aeronave oficial comunicará imediatamente a sua actuação à autoridade competente do Estado do pavilhão. (…)
Artigo 8.º “Autoridades competentes”
1- Sem prejuízo das atribuições genéricas dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de ambas as Partes, as comunicações previstas no presente Tratado decorrem, em regra, entre Ministérios da Justiça.
2- Em caso de especial urgência, as autoridades competentes do Estado de intervenção podem dirigir-se directamente ao Ministério da Justiça do Estado do pavilhão ou às autoridades competentes indicadas por este Ministério.
3- As Partes designam, por troca de notas, oficiais de ligação e as autoridades competentes para os fins do presente Tratado»
Conforme se pode verificar, toda a abordagem feita pelos oficiais da Marinha de guerra, no âmbito dos referidos acordos internacionais, com reporte para os Ministérios da Justiça de ambos os países, têm correspondência com o conteúdo das normas relativas ao direito de visita, a que se reporta a Convenção das Nações Unidas Sobre o Direito do Mar, aos deveres a que Portugal está adstrito relativamente à Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e bem assim ao Tratado entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha para a Repressão do Tráfico ilícito de Droga no Mar.
A abordagem feita ao veleiro, no dia 16/10/2022, destinou-se exclusivamente à verificação da sua identificação completa, o que quer dizer, à avaliação da legalidade da sua circulação - relativamente à qual, diga-se, foram evidenciadas violações graves, conforme do relatório elaborado se fez constar.
Só depois de entregue o barco à PJ é que se procedeu, legalmente, à detenção dos arguidos e apreensão dos objectos relativos à prática do crime. Toda esta tramitação, levada a efeito pela PJ, foi processada no dia 17 e os arguidos foram entregues ao MP para primeiro interrogatório de detidos no dia 18, dia em que foram efectivamente ouvidos e mantidos em prisão preventiva, por fortes indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
Conforme refere o MP:
«- a Marinha não actuou como órgão de polícia criminal, mas na intercepção da embarcação, o que só ela o podia fazer, ao abrigo da legitimidade conferida pelo art.° 17° da Convenção de 1988, no âmbito, apenas, da cooperação devida à P.J e
- a Polícia Judiciária efectuou as pertinentes diligências processuais penais, de investigação nos presentes autos após receber informação policial remetida pelo Maritime Anlyysis and Operations Centre - Narcotics (doravante MAOC), dando conta de um possível transporte de produto estupefaciente, por via marítima, informação que necessitava de ser confirmada.(…)
Os recorrentes foram detidos e constituídos como arguidos “no momento próprio, quando a suspeita se objetivou o que só aconteceu, depois da busca e apreensão, no preciso momento em que se confirmou mediante “teste rápido, Tipo F -reagente Scott” que o produto que transportava deu positivo para cocaína, isto é, uma base indiciária segura para lhe imputar a prática de crime de tráfico de estupefacientes (art. 58.71/c, 255.71/a, CPP, art. 21.° DL 15/93).” (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2021, 2976/19.5JAPRT.P1. SI -5a Secção.)»
Não foi, pois, cometida qualquer detenção ilegal, porque não foi ultrapassado o prazo de 48 horas para os arguidos serem presentes a autoridade judiciária para efeitos do disposto no artigo 141º/1 do CPP.
Improcede, consequentemente, o presente recurso.  
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 3 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
Lisboa, 16/ 02/2022
Graça Santos Silva
A. Augusto Lourenço
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[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em  B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em  B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.