Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6025/05.2TBSXL.L1-6
Relator: FÁTIMA GALANTE
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIVÓRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/15/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Sumário: 1 - Na acção em que se pede a restituição por enriquecimento sem causa cumpre ao empobrecido alegar e provar a deslocação patrimonial resultante quer de acto jurídico (não negocial) quer de acto material, à custa do seu património, sem qualquer causa obrigacional, ou negocialmente clausulada ou legal que a justifique.
2 - Com a separação do casal e posterior divórcio, o cônjuge que ficou com a casa deve restituir ao outro, com base no enriquecimento sem causa, as contribuições monetárias deste último para a construção dessa mesma casa.
3 - As contribuições monetárias para a construção da casa da morada de família que fique a ser bem próprio do outro cônjuge, não são referenciáveis a qualquer dos deveres conjugais elencados no art. 1672º do Cód. Civil, designadamente os de assistência e de cooperação.
4 – A condenação como litigante de má fé exige que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, o que requer grande cautela para evitar condenações injustas, designadamente quando assente em provas, como a testemunhal, sujeita a um certo grau de falibilidade.
(Sumário da Relatora – FG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DELISBOA
I – RELATÓRIO
M instaurou acção declarativa sob a forma ordinária contra Ma pedindo que este seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 98 896,65, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa. Alega, em síntese, que :
- A. e R., viveram maritalmente em Portugal desde 1985, conjugando esforços para angariarem proventos, tendo iniciado tal relação quando ainda viviam em Cabo Verde, nascendo dessa união um filho de ambos, em 11/02/1982;
- Em 1988 o R. celebrou, em seu nome, um contrato promessa de compra e venda de um lote de terreno, sito na Quinta do Morgado…, designado por lote…, em Fernão Ferro, cujo pagamento seria feito através da entrega de Esc. 1 000 000$00 a título de sinal, e de Esc. 1 100 000$00, a pagar fraccionadamente em 16 prestações mensais e sucessivas de Esc. 68 750$00, com início em 31 de Maio de 1989;
- Nesse lote de terreno existia um barracão, para o qual a A. e o R. foram, viver tendo iniciado a construção de um anexo;
- Com o intuito de angariar mais dinheiro para a construção de uma moradia, a A., em 1990, foi trabalhar para Itália e, entre os anos de 1990 e 1995, a A. enviou para o R. a quantia de Esc. 5 366 000$00, para além de vários objectos para a utilização do lar;
- O dinheiro que a A. enviou serviu para o pagamento de parte do lote e construção das moradia que vieram a construir no ano de 1996, no referido lote;
- A A. casou com o R. em 1992 e em 1994 regressou a Portugal tendo ambos adquirido, nessa altura, agora em nome dos dois, um outro lote de terreno;
- A. e R. divorciaram-se no ano de 2000 e, em 2001, o R. celebrou uma escritura de justificação notarial do já referido lote de terreno e da moradia entretanto construída, em que ele é o único a figurar como adquirente, deixando de fora a A., sua ex-mulher e ex-companheira que tanto contribuiu para a sua aquisição;
- O lote de terreno e a moradia, tal como estavam no ano de 2000, valiam a quantia de Esc. 39 654 000, ou seja, € 197 793,31, pelo que deve o R. ser condenado a pagar à A., a quantia de € 98 896,65 correspondente a metade do valor dos referidos bens à data de 2000, data em que cessou o casamento de ambos.

O Réu, citado para contestar, veio fazê-lo, deduzindo a excepção de prescrição do direito a que a A se arroga, impugnando ainda alguns dos factos articulados pela A., e articulando factos tendentes a, no seu entender, declinar a sua responsabilidade pelo pagamento peticionado. Para o efeito, alega, em síntese, que:
- Foi o R. quem construiu o anexo no lote de terreno de Fernão Ferro, com dinheiro que ganhou numa empreitada, não tendo a A. efectuado quaisquer entregas em dinheiro nem prestado quaisquer serviços domésticos, nos anos de 1985 a 1989;
- Naquele período, A. e R. geriam individualmente os seus próprios proventos do trabalho e viviam separados, não fazendo vida em comum e, de Itália, a A. apenas enviou para o R. a quantia de Esc. 2 100 000$00 (€ 10 474,76), que foi utilizada no arranque da construção da moradia;
- A moradia sita em Fernão Ferro é propriedade do R. e aquilo a que a A. tem direito é a restituição das quantias que lhe enviou.
Conclui que apenas deve restituir à A. a quantia de € 10.474,65 e, consequentemente, pela improcedência parcial da acção, bem como pela procedência da excepção peremptória deduzida.

A A. veio apresentar articulado de resposta à contestação, concluindo pela improcedência da excepção deduzida e como na petição inicial.

Foi realizada audiência preliminar e elaborado despacho saneador, onde foi julgada improcedente a excepção de prescrição alegada pelo R.. Procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e organização da base instrutória, que não sofreram reclamação.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais, conforme consta das respectivas actas.
A fls. 251 a 256 foi decidida a matéria da base instrutória de que não houve reclamação.
Foi proferida sentença que julgou a acção procedente por provada e, em consequência condenou o Réu Ma a pagar à Autora M a quantia de € 98 896,65, acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação, à taxa legal, e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

Inconformado, vem o Réu apelar da sentença, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
1. Há que provar por parte da A. qual foi o seu contribuinte, o quantum das suas contribuições monetárias para a compra do terreno e construção da vivenda que se destinava a casa de morada de família, mas em que nunca viveram por esta estar inacabada, construída apenas em 45 %, à data da separação definitiva e da avaliação.
2. Com a separação do casal, o R que ficou com a casa deve restituir à A, com base no enriquecimento sem causa, as contribuições monetárias desta para a construção dessa mesma casa, que se destinava a habitação de família, embora nunca o tenha sido, por inacabada.
3. Foi o Réu que é pedreiro de profissão e trabalha também como sub-empreiteiro quem fez as obras da vivenda quase única e exclusivamente, com pequenas ajudas de amigos, fora das horas do seu trabalho por conta doutrem ou corno sub-empreiteiro.
4. A A alega ter contribuído para as despesas do casal, logo que veio de Cabo Verde em 1985, porque trabalhava como mulher a dias, sendo certo que, como diz uma testemunha indicada pela A, à data as mulheres a dias ganhavam a cinco escudos a hora.
5. O R., porém, como consta do depoimento das testemunhas ganhava cerca de dez mil escudos por dia, como pedreiro, salário que é público e notório correr nessa época, tomando também sub-empreitadas onde auferia rendimentos superiores.
6. A A alega que enviou da Itália a importância de 5.366.000$00, todavia, não fez prova cabal desse facto, porquanto os documentos juntos aos autos para esse efeito foram impugnados pelo R e têm como remetentes das remessas outras pessoas que não apenas a A, ou seja, as suas irmãs.
7. O presente recurso é de facto e de direito e os pontos da Base Instrutória que o R põe em causa são os números 1, 5, 6 e 7, 14 , 21 e 22, e devia ter sido elaborado um quesito novo, em que fosse perguntado qual o montante exacto com que a A contribuiu efectivamente para a construção da vivenda.
8. Apresenta como resposta para os mesmos pontos, o seguinte:
Ponto n° 1 - Não Provado.
Ponto n°14 - Não provado ou então provado apenas que enviou dinheiro não concretamente apurado.
Ponto n°21 - Não provado que contribuíssem de igual modo ou provado apenas que A. e R. contribuíram para os encargos da vida familiar, bem como aquisição de bens, não tendo sido apurado o quantum da contribuição da A.
Ponto n°22- Não provado. O valor do lote do terreno tal como estava no ano e 2000 era muito inferior ao constante desse ponto da Base instrutória.
Quanto aos pontos 5 e 6, embora sendo verdadeiros, a sua utilidade depende do aditamento do quesito acima referido, destinado a precisar o montante exacto da contribuição da A.
Ponto n° 7: Não provado.
            9. A sentença recorrida viola, entre outros, os artigos 473º e 479° do C.C., ao acolher o pedido da Autora no sentido de se computar o dano em metade do valor do imóvel, ao tempo da dissolução do casamento e da convivência marital, ou seja, a importância de Esc: 19.827.000$00 = 98.896,65 €.
10. Tal decisão viola a lei e é contrária à Jurisprudência. Na verdade, o que há é determinar o quantum das prestações pecuniárias da A. E mesmo que fossem dadas como assentes as prestações da A. que foram dadas como provadas, estas ficam muitíssimo aquém desta importância.
           
Não foram produzidas contra-alegações.

Corridos os Vistos legais,
                       Cumpre apreciar e decidir.
Tendo em conta as conclusões de alegação do Recorrente importa decidir se:
- deve ou não ser alterada a decisão da matéria de facto proferida em 1ª Instância.
- se, verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa, foi correctamente determinado o objecto da restituição.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Resultam provados os seguintes factos:
1. Em 11 de Fevereiro de 1982 nasceu I, filha da Autora e Réu - (al. A) dos factos assentes);
2. No ano de 1988 foi celebrado um contrato promessa de compra e venda de um lote de terreno, com o seguinte teor:
“(…)” - (al. B) dos factos assentes);
3. Em 23/12/1992 a Autora M contraiu casamento com Ma - (al. C) dos factos assentes);
4. No ano de 1995 a Autora vivia ao lado do seu marido, sendo que no ano de 1998 nasceu um outro filho do casal - (al. D) dos factos assentes);
5. Em 20.1.2000 foi decretado divórcio entre A. e R. por sentença transitada em julgado em 21.02.2000 (al. b) dos factos assentes) - (al. E) dos factos assentes)[1];
6. A aquisição do prédio urbano sito na Rua da República, …, inscrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal com o nº.  da freguesia de Fernão Ferro, encontra-se inscrito a favor do Réu, no estado civil de divorciado, por usucapião – inscrição G1 Ap. - (al. F) dos factos assentes);
7. A Autora viveu com o Réu em Cabo Verde em data anterior a 1982 - (resposta ao ponto 1º da base instrutória);
8. Em 1982 o Réu veio para Portugal - (resposta ao ponto 2º da base instrutória);
9. A Autora veio juntar-se ao Réu em Portugal em 1985 - (resposta ao ponto 3º da base instrutória);
10. Desde que veio para Portugal a Autora sempre trabalhou fora de casa como mulher a dias - (resposta ao ponto 4º da base instrutória);
11. Contribuindo com o rendimento do seu trabalho para a economia do casal e com a sua total dedicação para as tarefas domésticas - (resposta ao ponto 5º da base instrutória);
12. Autora e Réu auferiam um rendimento mensal, proveniente do seu trabalho - (resposta ao ponto 6º da base instrutória);
13. As poupanças - cujo valor global se desconhece, mas que não ultrapassa 500.000$00 - realizadas por A. e R. em percentagem não apurada, fruto do rendimento dos respectivos salários, foram utilizadas para efectuar pagamentos a que se alude em b) dos factos assentes - (resposta aos arts. 7º e 8º da base instrutória)[2];
14. No lote a que se alude em b) existia um barracão - (resposta ao ponto 10º da base instrutória);
15. Para o qual Autora e Réu foram viver - (resposta ao ponto 11º da base instrutória);
16. O dinheiro que a Autora e Réu despendiam com a renda da casa passou a ser utilizada para a construção de um anexo - (resposta ao ponto 12º da base instrutória);
17. Com o intuito de angariar mais dinheiro para a construção da casa, em 1990 a Autora foi trabalhar para Itália - (resposta ao ponto 13º da base instrutória);
18. Entre os anos de 1990 e 1995 a Autora enviou para o Réu a quantia de Esc. 5.366 000$00 (cinco milhões trezentos e sessenta e seis mil de escudos) - (resposta ao ponto 14º da base instrutória);
19. Para além de quantias em dinheiro a Autora enviou também para o Réu vários objectos para utilização do lar - (resposta ao ponto 15º da base instrutória);
20. O dinheiro que a Autora enviou serviu para o pagamento de parte do lote e construção da moradia que vieram a construir no ano de 1996, no referido lote - (resposta ao ponto 16º da base instrutória);
21. Em 1995 a Autora regressou definitivamente a Portugal - (resposta ao ponto 17º da base instrutória);
22. Desde antes do ano de 1985 até à data em causa, Autora e Réu viveram na mesma casa, dormiam e tomavam refeições em conjunto como se marido e mulher se tratassem, com excepção dos anos que a Autora passou em Itália - (resposta ao ponto 18º da base instrutória);
23. Mas nessa altura mantinham contactos como se marido e mulher fossem e partilhavam economias - (resposta ao ponto 19º da base instrutória);
24. A Autora desempenhava as tarefas domésticas, lavava a roupa, passava a ferro, fazia a limpeza, confeccionava as refeições - (resposta ao ponto 20º da base instrutória);
25. Durante a sua vida em comum a Autora e Réu contribuíram para os encargos da vida familiar, bem como para a aquisição de bens, em montante não apurado, realizando ainda a Autora tarefas domésticas – (resposta ao ponto 21º da base instrutória)[3];
26. O lote de terreno e a moradia, tal como estavam no ano de 2000, tinham um valor não concretamente apurado, não superior a Esc. 39.654 000$00/€ 197.793,31 - (resposta ao ponto 22º da base instrutória)[4].
27. Encontra-se inscrito a favor da A. e do Réu, no estado civil de casados em comunhão de adquiridos, o prédio rústico sinto na Quinta ...., Pinhal dos Frades, Arrentela, designado por parcela A. – Ap. ... (cfr. fls. 54 a 57 dos autos).[5]

III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Impugnação da matéria de facto
Começa o Recorrente por pedir a alteração da matéria dada por assente e constante das respostas aos artigos 1º, 5º, 6º e 7º, 14º, 21º e 22º.
A decisão da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada nas situações previstas o art. 712º/1 do CPC, nomeadamente se do processo constarem todos os elementos probatórios em que se baseou a decisão recorrida quanto à matéria de facto em causa.
Como ficou bem vincado no Preâmbulo do DL nº 39/95 de 15/2, um dos objectivos fundamentais da gravação das audiências e da prova foi o de possibilitar às partes a “reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante…”. Neste contexto, o regime não se destina a permitir a modificação de toda e qualquer decisão, mas, fundamentalmente, a detectar e corrigir os erros mais evidentes.
Importa, ainda, ter presente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação das provas, constante do art. 655º do CPC. De acordo com este princípio, a prova é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios preestabelecidos. As provas são livremente valoradas, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação quanto à natureza de qualquer delas, respondendo o julgador de acordo com a sua convicção, excepto se a lei exigir para a prova do facto, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada[6].
O erro de apreciação haverá de resultar da constatação da existência de afirmação ou de não afirmação da realidade de certos factos controversos na lide, em termos processual e substantivamente relevantes, e em relação a cuja afirmação se imporia concluir por dever a formação de decisão ser em sentido diverso daquele em que se julgou. E, isto, sempre sem esquecer que a actuação do princípio da imediação, ou seja, do contacto pronto, pessoal e directo do juiz com as diversas fontes probatórias, especialmente as que impliquem contacto imediato com pessoas, fornece ao julgador elementos importantes para o sentido das suas opções de decisão, impondo-se-lhe, não obstante, que racionalmente transponha, para a fundamentação e motivação das respostas, as bases do seu convencimento.

1.1. Dos arts. 1º, 5º, 6º e 7º, 14º, 21º e 22º da base instrutória
(…)
Também se considera relevante aditar aos factos assentes a matéria constante da certidão junta pela A. a fls. 54 e segs dos autos.
Assim, tem-se por provado que:
- Encontra-se inscrito a favor da A. e do Réu, no estado civil de casados em comunhão de adquiridos, do prédio rústico sinto na Quinta ....., Pinhal dos Frades, Arrentela, designado por parcela A. – Ap. 05/950913 (cfr. fls. 54 a 57 dos autos).

2. Da união de facto: enriquecimento sem causa
A A. pretende, com a presente acção, que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de €98.896,65, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.
A A. defende que o montante a restituir deve ter por base o valor do lote de terreno e da moradia, tal como estavam no ano 2000 e que era de 197.793,31€, pelo que se acha com direito a metade desse valor. O R./Apelante, afirma que esse valor não pode ser encontrado com base na avaliação do terreno e da casa (que não tinham ao tempo do divórcio o valor que a A. lhe atribui), argumentando que a A. apenas terá direito a reaver o que por esta foi entregue e aplicado na construção da dita casa, segundo as regras do enriquecimento sem causa.

2.1. A obrigação de restituir, baseada no enriquecimento sem causa, pressupõe, nos termos do disposto pelo artigo 473º, nº 1, do CCivil, a verificação cumulativa de três requisitos: um enriquecimento; que este se encontre desprovido de causa justificativa; que tenha sido obtido, à custa de quem requer a restituição e suportou o correspondente empobrecimento[7].
Mas, para além do campo de aplicação específica do enriquecimento sem causa, constituído pelas atribuições patrimoniais, actos mediante os quais uma pessoa (atribuinte) aumenta o património da outra (atribuído), à sua custa, enriquecendo-a, qualquer que seja a forma por que este resultado se produz, o enriquecimento sem causa também ocorre em situações em que a vantagem obtida pelo beneficiado procede de acto, por ele próprio praticado, como se verifica, v.g., nas hipóteses de intromissão, sob a forma de uso, fruição, consumo ou alienação, nos direitos ou bens jurídicos alheios, que, assim, consegue uma vantagem patrimonial, à custa de outrem, o que representa uma deslocação patrimonial, pressuposto de todo o enriquecimento sem causa[8].
O enriquecimento mostra-se injusto quando deve pertencer a outrem. No dizer de Pereira Coelho, o que suscita a reacção da lei é a circunstância de determinado valor se achar no património de A, quando o seu lugar não é aí, mas antes no património de B, em função da ordem de atribuição ou destinação dos bens[9].
Entre os casos especiais da obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, destaca-se a situação de alguém receber uma prestação, em virtude de uma causa que deixou de existir (art. 473º, nº 2 do CCivil), como acontece quando a entidade patronal faz adiantamentos ao empregado, por conta de ordenados futuros, vindo, entretanto, a cessar a relação de trabalho. Pode também dizer-se que o mesmo sucede, por manifesta identidade de razão, quando, como no caso, um dos membros da união de facto, com vista a adquirir a co-titularidade de terreno e construção de moradia destinada a servir como casa de morada de família, entrega ao outro dinheiro para suportar parte dos encargos dessa aquisição e construção. Pese embora, entretanto, tenham contraído matrimónio, veio a ser decretado o divórcio entre A. e R., antes da conclusão da obra, e posteriormente, o parceiro que continuou a viver na casa, fez registar a titularidade do terreno e construção em seu nome[10].
Neste caso, escreve-se no Ac. da RC de 11.5.2004, “a recepção constitui o «accipiens» na obrigação de restituir, por locupletamento à custa alheia, o que tiver obtido da outra parte, logo que cesse a causa da prestação, tratando-se de um crédito comum desta última, baseado no instituto subsidiário do enriquecimento sem causa, que nasce no preciso momento em que ocorre o fim da comunhão de vida[11].
A ruptura do casamento veio a determinar o desaparecimento posterior da causa da deslocação patrimonial verificada e, em consequência, originou o nascimento do direito da Autora a exigir a restituição do que entregou ao Réu, atendendo à verificação daquela «condictio ob causam finitam»[12]

2.2. Do objecto desse enriquecimento
O R. aceitando embora o empobrecimento da A., discorda do método e do cálculo apresentados pela A. que teve por base o valor que a A. entende ser o de metade do terreno e da construção, no estado em que se encontrava, quando se divorciou, em 2000.
Diz o R. que nem a casa e terreno valiam o montante referido pela A. (até porque, a casa ainda estava em construção), nem a A. pode exigir metade do valor da mesma, já que apenas terá direito à restituição das quantias que entregou ao R. e que foram aplicadas na construção da moradia.
Vejamos.
É certo que a A. está impedida de usar ou fruir a casa, como local da sua residência, como projectava fazer anteriormente. E o R. vem usufruindo de um bem precioso, como é a habitação, podendo dar-lhe o destino que entender, inclusivamente, vendendo o imóvel.
Contribuindo com o seu dinheiro, inicialmente, para a aquisição do terreno e, posteriormente, para aquisição de materiais destinados à construção da casa que o R. enquanto pedreiro, foi edificando ao longo dos anos, a A. agiu na convicção de que a comunhão, resultante da união de facto e o posteriormente casamento, se manteria e de que, assim, contribuía para a formação de um património comum, tendo sido esta a causa da deslocação patrimonial da empobrecida, a favor do enriquecido.
A sentença recorrida, teve por ajustada a pretensão da A., cabendo-lhe, assim o montante de € 98 896,65.
O certo é que o casamento se dissolveu antes de o R. ter adquirido o direito de propriedade sobre o dito imóvel.

2.3. Ao contrário do entendimento que parece estar implícito na tese da decisão impugnada, as contribuições monetárias para aquisição de terreno e construção de moradia que se projecta venha a ser casa de morada de família e que fique a ser bem próprio do outro do parceiro da comunhão, não são referenciáveis a qualquer dos deveres conjugais elencados no art. 1672º do Cód. Civil, designadamente os de assistência e de cooperação[13].
Com efeito e como refere o Ac. do STJ de 17.1.2002[14], que aborda questão idêntica e aqui vamos seguir de perto, o dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram. Logo, as contribuições monetárias para a construção da casa de morada da família, não podem enquadrar-se no dever de cooperação.
Já o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar. Ora as referidas atribuições patrimoniais como as contribuições em dinheiro da A. para a construção da casa de morada da família, são estranhas a este dever, pois não se trata, aí, de pagar despesas do dia a dia da família, como são, com efeito, as da habitação comum, mas, tão só, de investir na realização de património imobilizado de um dos cônjuges (o R./Apelante), embora a benefício da família.
No entanto, “deve reter-se que o projecto de plena comunhão de vida assumido pelo legislador como referência do casamento explica a gratuitidade das ajudas, mas também a explica a circunstância de o resultado económico delas acabar por beneficiar o próprio agente, através da via indirecta da elevação do padrão de vida da família[15].
No caso, portanto, as contribuições monetárias da A. para a construção da casa de morada da família, que ficou a ser bem próprio do R. não sendo referenciáveis a qualquer dos deveres conjugais aludidos, ou a qualquer dos outros, elencados no citado art. 1672º, CC, não deixam de ter suporte na relação jurídica familiar.
Trazendo à colação, mais uma vez, o Ac. do STJ de 17.1.2002, diremos que “com a separação do casal, e posterior divórcio, a causa extinguiu-se, e passou, assim, a não ser justificável que a autora continuasse desapossada do que dera para a construção da casa, que é pertença do réu, e que já não iria ser a habitação da família. Nos termos do nº. 2, do art. 473º, CC, o réu deve, por isso, restituir à autora o que dela recebeu por virtude de tal causa finita. Houve, pois, enriquecimento injustificado do réu mas apenas quanto às contribuições monetárias da autora para a casa”.

2.4. Essas contribuições, por banda da A., terão ocorrido, num primeiro momento, entre 1985, quando veio para Portugal, e 1990, quando foi para Itália, e destinaram-se a pagamentos parcelares do terreno objecto do contrato-promessa em que o R. figura como promitente comprador e onde veio a construir a casa dos autos. Desconhece-se, contudo, qual o valor dessas entregas por banda da A., sabendo-se apenas que o valor global das poupanças da A. e do R. não ultrapassaria 500.000$00.
Não existindo elementos que permitam determinar, nesse período (entre 1985 e 1990), o valor das entregas da A., haverá que lançar mão do disposto no art. 661º nº 2 do C.P.C., isto é, não havendo elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja ilíquida.
Mais ficou provado que a A. entre os anos de 1990 e 1995, enquanto esteve a trabalhar em Itália, enviou ao Réu a quantia de Esc. 5.366 000$00, também utilizados em pagamentos parcelares do lote de terreno e na construção da casa dos autos.
Assim, no que respeita ao objecto da obrigação de restituir, atendendo ao disposto no art. 479º do CCivil, vai o R. condenado na restituição do equivalente em euros à quantia de 5.366.000$00, bem como na quantia que se vier a liquidar, apurados os valores das entregas feitas pela A. em dinheiro ao R., e que integraram poupanças de ambos, que não ultrapassavam 500.000$00 e com os quais o R. deu início ao pagamento do preço do terreno objecto do contrato-promessa e onde veio a ser construída a moradia dos autos. A estes valores acrescem os juros de mora à taxa legal, a contar da citação até integral pagamento.

3. Da litigância de má-fé
Por último cabe apreciar a condenação do Réu como litigante de má-fé, em multa correspondente a 8 (oito) UCs.
Afirma-se na decisão que o R. negou factos que eram do seu conhecimento o que lhe estava vedado nos termos do art. 456º do CPCivil, nomeadamente quando pôs em crise os valores enviados pela A., de Itália, para o R., quando negou terem vivido juntos em Cabo Verde e antes de 1990, em Portugal, já que a A. veio para Portugal em 1985, esteve em Espanha a trabalhar e depois foi para Itália de onde regressou apenas em 1990.
Os pressupostos da litigância de má fé, regulados no art. 456º do CPCivil, podem distinguir-se entre os que têm natureza subjectiva e os que têm natureza objectiva.
Se bem que tradicionalmente e no que respeita aos pressupostos subjectivos, só havia litigância de má fé quando uma das partes, pelo menos, tivesse agido com dolo, a partir de 1 de Janeiro de 1997, a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Reforma de 1995/1996, operada pelo Dec-lei 329-A/95, de 12/12, introduziu uma nova filosofia de colaboração, dando um especial relevo ao “dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos"[16].Ou seja, os pressupostos subjectivos da litigância de má fé alargaram-se e, por isso, quem actuar com negligência grosseira também pode e deve ser condenado como litigante de má fé.
A partir da reforma do Código de Processo Civil, o princípio da cooperação constitui um princípio fundamental e angular do processo civil, com expressão no art. 266º do Código, no sentido de fomentar a colaboração entre os magistrados, os mandatários e as próprias partes, com vista a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio. Como reflexo e corolário deste princípio, obteve também expressa consagração, com a reforma, o princípio da boa fé processual (art. 266º-A).

Distinguindo-se, na formulação legal, a má fé instrumental, que tem a ver com questões de natureza processual, com a relação processual, e a má fé material, que diz respeito ao fundo da causa, à relação material, a verdade é que estará sempre presente ou uma intenção maliciosa, ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.
Em suma, a litigância de má fé, é censurável do ponto de vista, por um lado, da dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar e da alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a descoberta da verdade (artigo 456º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil). Por outro, como omissão grave do dever de colaboração, do uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem sério fundamento, o trânsito de julgado da decisão (artigo 456º, nºs 1 e 2, alíneas c) e d), Código de Processo Civil).

3.1. É certo que não se provou a versão apresentada pelo R. Mas também a versão da A. não teve integral acolhimento, designadamente por via da apreciação, em sede de recurso, da matéria de facto impugnada pelo R./Recorrente. Afinal A. e R., mesmo enquanto casados, viveram praticamente sempre em espaços territoriais distintos (Cabo Verde/Portugal e Portugal/Espanha/Itália), excepto quando a A. regressou definitivamente da Itália em 1995. Porém, em 1998 já estavam separados. Por outro lado, a quantia de 5.366.000$00 referida na petição inicial como correspondendo ao total dos valores enviados de Itália pela A., não tinha, por si só, na sua totalidade, suporte documental, sendo certo que essa prova resultou muito do depoimento das testemunhas (irmã da A. e filha da A. e do R.) e ainda de comprovativo de depósito na conta do R. e da A. e que estava na posse da filha I quando prestou depoimento em audiência de julgamento.
Não pode deixar de se trazer à colação o que, a este respeito, se escreve no Ac. STJ de 11 de Dezembro de 2003:
“O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé.
A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico.
Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu.
Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual”[17]
Não estão preenchidos os fundamentos previstos na lei para a condenação do Recorrente como litigante de má fé.
Concluindo:
1 - Na acção em que se pede a restituição por enriquecimento sem causa cumpre ao empobrecido alegar e provar a deslocação patrimonial resultante quer de acto jurídico (não negocial) quer de acto material, à custa do seu património, sem qualquer causa obrigacional, ou negocialmente clausulada ou legal que a justifique.
2 - Com a separação do casal e posterior divórcio, o cônjuge que ficou com a casa deve restituir ao outro, com base no enriquecimento sem causa, as contribuições monetárias deste último para a construção dessa mesma casa.
3 - As contribuições monetárias para a construção da casa da morada de família que fique a ser bem próprio do outro cônjuge, não são referenciáveis a qualquer dos deveres conjugais elencados no art. 1672º do Cód. Civil, designadamente os de assistência e de cooperação.
4 – A condenação como litigante de má fé exige que o procedimento do litigante evidencie indícios suficientes de uma conduta dolosa ou gravemente negligente, o que requer grande cautela para evitar condenações injustas, designadamente quando assente em provas, como a testemunhal, sujeita a um certo grau de falibilidade.

IV – DECISÃO
Termos em que se acorda em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência, altera-se a decisão recorrida, julgando a acção parcialmente procedente por provada, condenando-se o Réu a restituir à A.
- a quantia de € 26.765,50 (5.366.000$00), acrescida de juros de mora vencidos desde a data da citação, à taxa legal, e vincendos, até efectivo e integral pagamento;
- a quantia que se vier a liquidar, correspondente às entregas em dinheiro feitas pela A. ao R., que integraram poupanças de ambos, cujo valor global não ultrapassa 500.000$00, a que acrescem juros de mora desde a citação e até efectivo e integral pagamento.
            Não se condena o R. como litigante de má fé.
Custas da acção e da apelação, por A. e R. em partes iguais, proporção esta que poderá ser corrigida na liquidação.
Lisboa, 15 de Outubro de 2009.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)

[1]Após a alteração, de acordo com certidão junta aos autos e conforme consta Parte III/1.2. deste acórdão, da matéria de facto dada como provada em 1ª instância: “No ano de 2000 o casal divorciou-se”.
[2] Após a alteração, conforme Parte III/1.1. deste acórdão, da matéria de facto dada como provada em 1ª instância: “Em pouco tempo o casal conseguiu juntar aproximadamente Esc. 500.000$00, resultado da poupança e trabalho de ambos e organização da Autora” (art. 7º B.I.), valor que foi utilizado para realizar os pagamentos dos montantes a que se alude em b) - (art. 8º B.I.).
[3] Após a alteração, conforme ParteIII/1.1., deste acórdão, da matéria de facto provada em 1ª instância: “Durante a sua vida em comum a Autora e Réu contribuíram em igual modo para os encargos da vida familiar, bem como para a aquisição de bens realizando ainda a Autora as tarefas domésticas”.
[4] Após a alteração, conforme ParteIII/1.1, deste acórdão, da matéria de facto provada em 1ª instância: “O lote de terreno e a moradia, tal como estavam no ano de 2000, valiam a quantia de Esc. 39.654 000$00/ € 197.793,31”.
[5] Matéria aditada, conforme ParteIII/1.2, deste acórdão.
[6] Vide Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pags. 544 e segs.
[7] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, pags. 454 a 458; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, pag. 195; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, 1986, reimpressão, pag. 53; Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 1970, pags. 48 e 49.
[8] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1966, pag. 67; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 1970, pags. 315 e 316.
[9] Pereira Coelho, O Enriquecimento e o Dano, 1970, pag. 56.
[10] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 458.
[11] Ac. RC de 11-05-2004 (Relator Hélder Roque), www.dgsi.pt/jtrc.
[12] Vaz Serra, Enriquecimento Sem Causa, BMJ, nº 81, pág. 27.
[13] Ac. STJ de 17.1.2002 (Relator Quirino Soares), www.dgsi.pt/jstj.
[14] Ac. STJ de 17.1.2002 (Relator Quirino Soares), já citado.
[15] Ac. STJ de 17.1.2002 (Relator Quirino Soares), citado.
[16] Relatório do DL 329-A/95 de 12 de Dezembro.
[17] Acs. STJ de 11 de Dezembro de 2003 (Relator Quirino Soares) e de 28 de Maio de 2009 (Relator Álvaro Rodrigues), www.dgsi.pt/jstj