Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2304/10.5TVLSB-A.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
AUDIÇÃO DO REQUERIDO
CONTRATO DE GARANTIA BANCÁRIA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A regra no procedimento cautelar inominado consiste na audição do requerido, sendo a excepção a sua não audição. E, para que esta se verifique o julgador tem de sopesar a seriedade do risco para a eficácia da providência, sendo certo que para essa apreciação nem sequer o julgador está dependente da iniciativa, nesse sentido, do requerente da providência.
2. O contrato de garantia bancária, muito utilizado no comércio internacional, tem o seu campo de eleição nos contratos de empreitada, quer de obras públicas, quer privadas, sobretudo quando estão em jogo grandes somas pecuniárias.
3. A figura da garantia “on first demand” representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco que a presta ficar constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, no caso de alegada inexecução ou má execução do contrato base. Mas, apesar da natureza automática da garantia “on first demand”, a sua automaticidade não é absoluta, admitindo-se a oposição, pelo garante ao beneficiário, da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório.
4. É legitimo o recurso, por parte da requerente, a um meio de tutela antecipada ou conservatória do seu direito, consistente na intimação das requeridas, a primeira, a abster-se de accionar a garantia bancária prestada e, a segunda, a não pagar qualquer quantia ao abrigo dessa garantia, condicionada à realização de prova da verificação do seu invocado direito, bem como da lesão grave e dificilmente reparável desse direito, inexistindo providência cautelar específica particularmente adequada e esta situação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DA 2ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

“A” –…, S.A., com sede na Rua ..., nº ..., 4º Direito, em ..., deduziu contra “B” –…, S.A., com sede na Av. ..., nº ... – 5º Direito, em ..., e “C”-BANCO .... S.A., com sede na Rua de ..., nº ..., no ..., procedimento cautelar inominado, no qual requer que:

a) A primeira requerida seja intimada a abster-se de accionar a garantia bancária prestada pela requerente no âmbito do contrato de empreitada, até ao trânsito em julgado da acção principal de que a providência cautelar depende;
b) A segunda requerida seja intimada a não pagar qualquer quantia à segunda requerida ao abrigo da garantia bancária dos autos, até ao trânsito em julgado da acção principal de que a providência cautelar depende.

Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de ter celebrado com a primeira requerida um contrato de empreitada e que, a segunda requerida, a pedido da requerente, prestou à primeira requerida uma garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, no valor de € 130.759,45, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pela requerente no referido contrato de empreitada.

A primeira requerida não pagou à requerente a totalidade do preço da empreitada, estando em dívida a quantia de € 161.337,94, o que determinou que a mesma intentasse uma providência cautelar de arresto, que foi decretada.

Subsequentemente, e alegando a ocorrência de defeitos na obra, a primeira requerida intimou a requerente a realizar as reparações inerentes no prazo de 15 dias, com a advertência de que volvido tal prazo as mandaria executar por terceiro e accionaria a garantia bancária.

Mais invocou a requerente que nunca se recusou a ir ao local nem a efectuar os trabalhos de reparação das anomalias da sua responsabilidade e que o accionamento da garantia bancária lhe causará prejuízos graves e de difícil reparação.

O Tribunal a quo dispensou a prévia audição da requerida, por considerar que existiam motivos suficientemente ponderosos que permitiam dispensar o contraditório.

Foi levada a efeito a audiência final, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do dispositivo o seguinte:

Em consequência, julga-se a providência procedente e decide-se intimar:
a) A primeira requerida a abster-se de accionar a referida garantia bancária prestada pela requerente no âmbito do contrato de empreitada, até ao trânsito em julgado da acção principal de que a presente providência cautelar depende; e
b) A segunda requerida a não pagar qualquer quantia à primeira requerida ao abrigo da garantia bancária dos presentes autos, até ao trânsito em julgado da acção principal de que a presente providência cautelar depende.
(…)

Inconformada com o assim decidido, a 1ª requerida “B” – PROMOÇÕES IMOBILIÁRIAS, S.A., interpôs recurso de apelação, relativamente à aludida decisão.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:

1. A aqui recorrida não fez prova em tribunal de que até à presente data tenha efectivamente corrigido as “anomalias” reclamadas pela ora recorrente;

2. Que no decurso da carta datada de 14.10.2010, os seus serviços tenham vistoriado o empreendimento e que no seguimento do conteúdo da missiva supra referida, tenha sequer contestado o conteúdo da mesma, dando assim razão às “queixas” da recorrente;

3. O texto da garantia bancária em crise nos presentes autos, permite à aqui recorrente que esta, sem qualquer justificativo, se apresente junto da instituição bancária e exija o pagamento da mesma.

4. Contudo e como sempre foi seu apanágio, a aqui recorrente, usou de toda a lisura neste conturbado processo, “avisando” a ora recorrida das suas “intenções”, através da carta datada de 14.10.2010.

5. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 385º e 423º do CPC, era vedado ao tribunal pronunciar-se sobre o presente procedimento cautelar, sem ouvir previamente os requeridos, ou sem justificar a falta da sua audiência, o que e s.m.o. não se verificou.

6. A falta de prévia audição da requerida, ou a falta de fundamentação para essa dispensa do cumprimento do contraditório, implica que o despacho em causa esteja ferido de nulidade,

7. o que implica, nos termos do artigo 201º, nº 2 do CPC, a anulação de todo o processado subsequente, nomeadamente a inquirição de testemunhas e o despacho que decretou a inibição da ora recorrente de accionar a referida garantia bancária.

Pediu, por isso, a apelante, o total provimento do recurso e em consequência seja revogado o despacho proferido pelo Tribunal a quo.

A requerente apresentou contra-alegações, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

i) Os fundamentos invocados para sustentação do presente recurso não são efectivamente passíveis de o fundamentar, tendo sido utilizado o meio de reacção inadequado por parte da recorrente.

ii) São três os fundamentos pelos quais a recorrente discorda da douta Decisão recorrida, a saber:
§ a alegada falta de prova do facto de a recorrida ter efectivamente corrigido as “anomalias” reclamadas pela ora recorrente;
§ a alegada falta de prova de que, após o envio da carta de 14/10/2010, os serviços da recorrida tenham vistoriado o Empreendimento em causa ou de que esta tenha sequer contestado o conteúdo da mesma;
§ a falta de audição prévia da ora recorrente, alegadamente sem justificação para tanto, o que implicaria, na tese de recorrente, a anulação de todo o processado.

iii) O recurso é o meio adequado de reacção quando o recorrente pretenda manifestar a sua discordância quanto à integração jurídica dos factos que o Tribunal deu como provados ou quanto à própria decisão sobre a matéria de facto, a partir dos meios de prova a que o Tribunal acedeu.

iv) O recurso já não é o meio adequado de reacção quando o recorrente pretenda remover ou modificar a decisão cautelar em apreço, afastando os fundamentos da medida ou promovendo a sua redução a limites mais razoáveis, através da alegação de factos novos ou de factos não tidos em conta pelo Tribunal quando proferiu a decisão em causa, para o que deve apresentar oposição.

v) O meio adequado para possibilitar o conhecimento por parte do Tribunal dos dois primeiros fundamentos do presente recurso - a alegada falta de prova de duas coisas essenciais, a saber (i) que, até à presente data, a recorrida tenha corrigido as “anomalias” reclamadas pela recorrente e (ii) que, após a carta de 14/10/2010, os serviços da recorrida tenham vistoriado o Empreendimento em causa ou que a recorrida tenha sequer contestado o teor de tal carta - seria a dedução de oposição, com a alegação dos factos correspondentes, e não a interposição de recurso.

vi) A recorrente não põe em causa nem a integração jurídica dos factos, nem a própria decisão sobre a matéria de facto, limitando-se a dizer que não foi feita prova de dois factos essenciais, para posteriormente não retirar qualquer conclusão juridicamente relevante para efeitos de recurso.

vii) Além de alegar que não foi feita prova sobre esses dois factos essenciais, a recorrente alega ainda que terá um crédito sobre a recorrida (facto inteiramente novo e desconhecido nos autos) e que actuou de boa fé, dando conhecimento à recorrida das suas intenções de accionar a garantia bancária em causa nos presentes autos por meio de carta (o que também consubstancia um facto novo – a actuação de boa-fé - o qual, para que pudesse ser atendido nos presentes autos, careceria de ter sido alegado e demonstrado em juízo).

viii) Caso pretendesse ver apreciadas tais questões e factos novos, a recorrente deveria ter apresentado oposição, em vez de recurso.

ix) E quanto aos factos que a recorrente alega não terem sido demonstrados em juízo e que seriam essenciais, sempre importaria que esta, em sede de recurso, tivesse alegado e demonstrado a essencialidade de tais factos, alegadamente não tidos em conta pelo Tribunal “a quo”, para a boa decisão da causa e que, por força da sua não demonstração, a aplicação do Direito ao caso em apreço padeceria de incorrecção, o que a recorrente não fez.

x) Ainda que assim não se entenda, o que por mera hipótese de patrocínio se admite sem no entanto conceder, sempre cumprirá relevar que, ao contrário do alegado pela recorrente, foi efectivamente feita prova em juízo sobre os dois mencionados factos essenciais.

xi) Ao contrário do alegado pela recorrente, foi efectuada prova bastante nos presentes autos de que a recorrida, no decurso do prazo de garantia, executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade, indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas, conforme resulta do teor das alíneas K) e S) da matéria de facto provada.

xii) Não tendo a recorrente impugnado o facto de tal matéria ter sido dada como provada, designadamente alegando que tais factos não estariam suportados pelos depoimentos ou documentos juntos à presente acção, não se descortina como pode pura e simplesmente ignorá-los, mencionando que não foi feita prova em juízo sobre tal matéria, quando é perfeitamente evidente o contrário.

xiii) Ao contrário do alegado pelo recorrente, feita prova em Tribunal de que, após o envio da carta de 14/10/2010, os serviços da recorrida tenham vistoriado o Empreendimento ou que a recorrida contestou o teor de tal carta, conforme resulta do teor das alíneas T), U) e V) da matéria de facto dada como provada.

xiv) O Tribunal “a quo” proferiu um despacho pronunciando-se sobre os motivos determinantes para a não audição das partes contrárias, dando razão aos fundamentos para tanto invocados pela recorrida.

xv) Não obstante os procedimentos cautelares serem em regra contraditórios, o que é certo é que a própria lei admite excepções a tal regra, “quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência” – cfr. art. 385º do Código de Processo Civil.

xvi) No caso em apreço, existiam fundados receios de que a audiência contraditória pusesse em risco sério o fim da providência, conforme alegado no requerimento inicial pela recorrida.

xvii) O Tribunal formulou o seu juízo e concordou existirem tais riscos sérios que permitiam dispensar o contraditório, tendo então proferido o despacho acima mencionado.

xviii) Não existe qualquer falta de fundamentação ou de audição da recorrente, não se verificando igualmente qualquer nulidade do processado, nos termos do art. 201º do Código de Processo Civil.


xix) Em face do que antecede, deverá ser julgado totalmente improcedente, por não provado, o presente recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Termina a recorrida as suas contra alegações propugnando que o recurso seja julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 684º, nº 3 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, mediante a sua precedência lógica:

Þ DO PROCEDIMENTO CAUTELAR INOMINADO

a. Da dispensa do contraditório prévio à determinação da providência e a fundamentação para essa dispensa;

b. Dos requisitos de que depende a procedência do procedimento cautelar inominado.

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III . FUNDAMENTAÇÃO

A - OS FACTOS

Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:

1. A requerente dedica-se à actividade de construção civil e obras públicas (A);

2. A primeira requerida dedica-se à actividade de promoções imobiliárias, compra, venda, gestão, estudos, investimentos imobiliários, transformação, urbanização, construção, exploração e arrendamento de bens imóveis, próprios e alheios; administração de toda a classe de negócios imobiliários, prestação de quaisquer serviços a empresas, sociedades ou pessoas físicas que desenvolvam tais actividades - cfr. doc. Fls. 27 a 30 dos autos cujo teor se dá por reproduzido ( B) ;

3. A segunda requerida é uma instituição de crédito autorizada a realizar todas as operações permitidas por lei ( C ).

4. No âmbito da sua actividade, a segunda requerida, a pedido da requerente, prestou à primeira requerida uma garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, no valor de € 130.759,45, destinada a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações assumidas pela requerente no contrato de empreitada de construção do Empreendimento “D”, localizado no ..., que veio a celebrar com a segunda requerida - cfr. doc.fls. 31 cujo teor se dá por reproduzido ( D ) ;

5. Em 31 de Outubro de 2003, foi emitido o título da garantia bancária, a que foi atribuído o N/NR ..., do qual consta que o Banco, ora segunda requerida, se obriga a pagar aquela quantia à primeira solicitação da primeira requerida, sem que esta tenha de justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu beneficio quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que a requerente assume com a celebração do respectivo contrato (E);

6. Da garantia bancária N/NR ... consta ainda que o Banco, ora segunda requerida, deve pagar aquela quantia no dia seguinte ao do pedido, findo o qual, sem que o pagamento seja realizado, contar-se-ão juros moratórios à taxa mais alta praticada pelo Banco para as operações activas, sem prejuízo de execução imediata da dívida assumida por este (F).

7. Em 26 de Novembro de 2003, a requerente e a primeira requerida celebraram o contrato para a realização da empreitada (doravante designado por "Contrato de Empreitada") - cfr. doc. Fls. 33 a 96 cujo teor se dá por reproduzido ( G).

8. Conforme convencionado no Contrato de Empreitada, nomeadamente na cláusula 1.11 da parte A das Cláusulas Jurídicas e Administrativas Gerais do Caderno de Encargos, o valor da caução era de 5% do preço total do contrato e seria prestado pelo empreiteiro na altura da celebração do contrato de empreitada, o que a requerente veio a fazer mediante garantia bancária - cfr. cláusula 1.11 da parte B das Cláusulas Jurídicas e Administrativas Complementares do Caderno de Encargos - ( H ) ;

9. Razão pela qual, em Novembro de 2003, a requerente entregou à primeira requerida o título de garantia bancária N/NR ... (I);

10. Em 19 de Setembro e em 31 de Dezembro de 2006, a primeira requerida e a Fiscalização da obra, na pessoa do Senhor Eng. “E”, procederam à vistoria conjunta para efeitos de recepção provisória dos diversos apartamentos que constituem o Empreendimento “D” construído pela Requerente, tendo-se verificado que a generalidade dos trabalhos se encontrava em condições de serem recepcionados provisoriamente, conforme resulta dos respectivos autos de recepção provisória - cfr. docs. Fls. 97 e 98 cujo teor se dá por reproduzido (J);

11. No decurso do prazo de garantia, a requerente fez, imediatamente e à sua custa, as substituições de materiais ou equipamentos e executou todos os trabalhos de reparação indispensáveis para assegurar a perfeição e o uso normal da obra nas condições previstas, e executou todos os trabalhos de reparação da sua responsabilidade (K);

12. A primeira requerida deve à requerente a quantia global de € 161.337,94, correspondendo € 120.081,71 ao capital em dívida e € 41.256,23 aos juros de mora vencidos ( L).

13. Apesar das inúmeras tentativas da requerente para cobrar o seu crédito, até à presente data, a primeira requerida não pagou a quantia em dívida (M).

14. O que levou a que a requerente intentasse contra a Primeira Requerida uma providência cautelar de arresto, que correu termos junto do 2º Juízo Cível do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de ..., com o número .../10…., para garantir o pagamento daquela quantia referente aos trabalhos da empreitada que há muito se encontram em dívida (N).

15. Tendo por decisão de 13 de Julho de 2010 sido decretado o arresto das fracções autónomas designadas pelas letras D e E, do prédio urbano descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ..., freguesia do ..., concelho de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..., da mesma freguesia, o qual foi mantido na sequência de dedução de oposição pela primeira requerida - doc. Fls. 107 a 120 dos autos cujo teor se dá por reproduzido ( O).

16. Em 14 de Outubro de 2010, a primeira requerida enviou à requerente uma carta, que esta recebeu no dia seguinte, na qual lhe denuncia a existência de anomalias no Empreendimento “D” referidas na listagem anexa - cfr. doc.fls. 121 e 122 cujo teor se dá por reproduzido (P);

17. Na referida carta de 14 de Outubro de 2010, a primeira requerida fez consignar que desde a conclusão da obra por diversas ocasiões solicitou à requerente que procedesse à regularização das anomalias existentes no empreendimento relacionado com a construção, sem que esta tivesse tomado, até àquela data, qualquer medida necessária à resolução das mesmas (Q).

18. Na mesma carta, a primeira requerida informou a requerente que se, no prazo de 15 dias, não procedesse à reparação das anomalias referidas na listagem anexa, iria de imediato mandar proceder aos trabalhos através de uma empresa de Construção Civil por si designada, accionando a Garantia bancária existente para pagamento da totalidade do custo destas reparações (R).

19. No decurso do prazo de garantia da empreitada dos presentes autos, sempre que a primeira requerente denunciou a existência de defeitos de construção, os serviços de pós-venda da requerente compareceram no Empreendimento “D” para verificar a existência dos alegados defeitos, tendo executado diversos trabalhos de reparação da sua responsabilidade ( S ).

20. Não obstante o vertido em L), a requerente fez deslocar ao Empreendimento “D” os seus serviços pós-venda para aferirem da existência das "anomalias" que foram agora detectadas e denunciadas pela primeira requerida (T);

21. Acresce ainda que a grande maioria das `"anomalias" referidas na listagem anexa à carta da primeira requerida de 14 de Outubro de 2010 nunca foram previamente denunciadas à Requerente (U);

22. As "anomalias" referidas na listagem anexa à carta da primeira requerida de 14 de Outubro de 2010 não impedem a normal utilização das fracções e das garagens (V);

23. Caso a garantia bancária venha a ser accionada e paga, a segunda requerida exigirá de imediato à requerente a quantia equivalente (W);

24. Ao desembolsar daquele avultado montante de forma a reembolsar a segunda requerida, a requerente ficará numa situação financeira debilitada perigando o prosseguimento do seu objecto social e podendo pôr em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores, fornecedores e financiadores (X).

25. Acresce ainda que o accionamento da garantia bancária e pagamento pela segunda requerida contribuirá decisivamente para o aumento das comissões pela emissão de garantias bancárias cobradas à requerente pelas instituições de crédito em geral (Y).

26. As empresas que se dedicam à construção civil e às obras públicas, como é o caso da requerente, necessitam impreterivelmente, no exercício da sua actividade, de prestar garantias bancárias aos donos-das-obras de que são adjudicatárias, recorrendo correntemente a financiamentos e outros tipos de operações financeiras em que aquelas são parceiras ( Z ).

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B - O DIREITO


Þ DO PROCEDIMENTO CAUTELAR INOMINADO

a. Da dispensa do contraditório prévio à determinação da providência e a fundamentação para essa dispensa


O princípio do contraditório ou da audiência contraditória, que é um pilar do nosso direito processual, pode ser definido, como salientou MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 379, como aquele em que, cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto ou de direito), a oferecer as duas provas, a controlar as provas do adversários e a discretear sobre o valor e resultados de algumas e outras.

Este princípio com proclamação constitucional, encontra consagração no artigo 3º, nº 1 do CPC que dispõe que O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedido por uma das partes e outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.

E, estipula o nº 2 do citado preceito que Só nos casos excepcionais previstos a lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida, estatuindo ainda o seu nº 3 que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem,

A audiência prévia da pessoa contra quem tenha sido requerida uma providência só pode, assim, ser dispensada quando a realização do direito do requerente possa perigar, por via do conhecimento da pretensão deduzida. É o caso dos procedimentos cautelares nominados cuja lei processual expressamente estabelece a não audição do requerido (arresto e restituição provisória de posse) e do procedimento cautelar comum, ou nominado, no qual se verifique que a audição do requerido pode pôr em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

Com efeito, a este respeito dispõe o nº 1 do artigo 385º do C.P.C. que O Tribunal ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

Tal significa que decorre do enumerado normativo que a regra é a do Tribunal ouvir o requerido, sendo a excepção a sua não audição.

E, para que se verifique a excepção – não audição do requerido – o julgador tem de sopesar a seriedade do risco para a eficácia da providência, sendo certo que para essa apreciação nem sequer o julgador está dependente da iniciativa, nesse sentido, do requerente da providência.

Como esclarece LEBRE DE FREITAS, C.P.C. anotado, Vol. 2º, 25, O critério legal de conceder um amplo poder de apreciação ao juiz deve ser aplicado considerando as regras gerais da experiência e as particularidades do caso concreto, equacionando o equilíbrio a observar entre os valores da contraditoriedade e os de eficácia da Justiça (…).

Já ensinava também ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 123 que o juiz teria de ponderar conveniente e prudentemente os elementos constantes do processo reveladores, á luz da experiência comum, do perigo inerente à audição do requerido.

E, por se considerar que a decisão do julgador de ouvir ou não o requerido não é proferida no uso de um poder discricionários, terá este de preencher os conceitos indeterminados de “risco sério” e “fim ou eficácia da providência”, segundo critérios de razoabilidade, e proferir um despacho fundamentando se entende que deverá ser dispensada a audiência do requerido.

Caso o julgador nada disser sobre a dispensa da audição do requerido, entende-se que tal implicará a omissão da prática de um acto prescrito por lei que acarreta uma invalidade processual.

No caso vertente, a requerente tomou a iniciativa de requerer o decretamento da providência cautelar sem audição das requeridas, explicitando as razões que, no seu entender, justificavam tal procedimento.

E, o julgador de 1ª instância, ponderando os argumentos invocados, entendeu que o contraditório prévio colocaria em sério risco o fim e a eficácia da requerida providência e, por isso, declarou, expressamente, que existiam motivos suficientemente ponderosos que permitiam dispensar o contraditório.

Não foi, pois, cometida qualquer nulidade, já que inexiste falta de pronúncia, e a fundamentação da não audiência das requeridas, apesar de parca, consta do procedimento em questão.

Improcede, por isso, o que a esse propósito consta das três últimas conclusões das alegações de recurso da 1ª requerida/apelante.

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b. Dos requisitos de que depende a procedência do procedimento cautelar comum

Como é sabido, tendo sido decretada a providência cautelar sem audiência do requerido, o contraditório subsequente vem regulado

no artigo 388º do CPC, aplicável ao caso por força do artigo 392º nº1 do mesmo código.

É a seguinte a redacção do nº 1 do referido artigo 388º:
Quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no nº6 do artigo 385º:
a) recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução, aplicando-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 386º e 387º.”

Da citada disposição legal se conclui que, não podendo ser cumuladas estas duas formas de defesa (o recurso e a oposição), caberá recurso da decisão, quando há discordância quanto ao decretamento da providência face aos elementos já existentes nos autos antes do contraditório e, haverá lugar à oposição, quando o requerido, ao exercer o contraditório, pretende uma alteração da decisão mediante a invocação de factos novos ou de novos meios de prova.

Tendo a apelante optado por interpor recurso da decisão proferida no procedimento cautelar, apenas haverá que apreciar da sua discordância face aos elementos probatórios adquiridos nos autos face à prova produzida.

O procedimento cautelar não especificado do artigo 381º, nº 1 do C.P.C. que a requerente lançou mão, depende da concorrência dos seguintes pressupostos:
i. Pressupostos positivos:
a) Fumus boni iuris – aparência do direito, i.e., probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente;


b) Periculum in mora – fundado receio de que, na pendência de uma acção, esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação;
c) Adequação da providência requerida à situação de lesão iminente;
d) Inaplicabilidade de qualquer uma das outras providências cautelares previstas no CPC.
ii. Um requisito negativo:
a) prejuízo resultante da providência não seja superior ao dano que com ela se pretende evitar.

Quanto ao requisito da existência do direito, apenas se pede ao Tribunal uma apreciação ou um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança; relativamente ao requisito da lesão grave e de difícil reparação, exige-se um juízo, senão de certeza e segurança absoluta, ao menos de probabilidade muito forte, não bastando qualquer receio que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, ou de um exame precipitado das circunstâncias.
Não é, pois, necessário que o direito esteja plenamente comprovado, mas apenas que dele exista um mero “fumus boni iuris”, ou seja, e como acima ficou dito, que o direito se apresente como verosímil.
Mas, para além da verificação do fumus boni iuris, importa que preenchido se mostre o requisito consistente no fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito invocado no procedimento cautelar - o periculum in mora – sendo que, como se disse, o critério de avaliação deste requisito não poderá assentar em simples conjecturas.

É que, no procedimento cautelar não especificado a lei não se contenta com a existência de um risco de lesão do direito do requerente.

Segundo decorre do disposto no artigo 381º, nº 1 do Código de Processo Civil, o direito invocado não tem apenas de se encontrar sujeito ao risco de sofrer uma lesão na pendência de uma acção. Não basta, pois, a verificação de uma qualquer lesão.

Pretendeu o legislador dificultar o acesso ao procedimento cautelar, exigindo o risco de verificação de uma lesão que revista foros de gravidade e que, cumulativamente, seja dificilmente reparável.

Tal significa que não preenchem os requisitos legais, nem um caso de lesão sem gravidade, apesar de ser dificilmente reparável; nem uma situação de lesão grave, se facilmente reparável.

No caso vertente, visou a requerente com o procedimento cautelar interposto, a intimação da 1ª requerida para se abster de accionar a garantia bancária prestada pela requerente, e a intimação da 2ª requerida a não proceder ao pagamento à 1ª requerida ao abrigo da aludida garantia bancária, por entender que nunca se recusou a ir ao local verificar a existências da anomalias invocadas pela 1ª requerida, nem efectuar os trabalhos de reparação das anomalias que eram de sua responsabilidade, defendendo ainda que a 1ª requerida lhe deve, há mais de três anos, avultada quantia, não demonstrando esta qualquer intenção de a pagar, constituindo, no entender da requerente/apelada, o accionamento da garantia bancária um comportamento ilegal e abusivo.
Vejamos, então, se face à matéria dada como provada, não demonstrou a requerente deter o direito que invocou, começando por analisar se a requerente logrou demonstrar a aparência do direito de que se arroga.
Como resulta da matéria de facto apurada, requerente e 1ª requerida celebraram um contrato de empreitada – v. Nºs 7 dos Fundamentos de Facto.

Segundo o disposto no artigo 1207º do Código Civil, o contrato de empreitada é aquele pelo qual uma das partes se obriga para com outra a realizar certa obra, mediante um preço, neste caso, a pagar pela requerida, obrigando-se a requerente a efectuar a construção acordada, bem como a fornecer os materiais necessários à sua execução.

Com efeito, por via do contrato, o empreiteiro obriga-se a executar a obra, ou seja, produto acabado que incorpora o trabalho fornecido, em conformidade com o que foi convencionado com o dono da obra, impondo-se a inexistência de vícios que excluam ou reduzam o seu valor, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, conforme decorre do preceituado no artigo 1208º do Código Civil.

A empreitada é um contrato oneroso e sinalagmático, cumulativo e, em regra, consensual. Dele resultam vantagens para ambas as partes, e emergem obrigações recíprocas e interdependentes - a obrigação do empreiteiro realizar a obra e a obrigação do dono da obra a pagar o preço.

O empreiteiro está adstrito a uma obrigação de resultado – efectuar a obra completa e isenta de defeito no prazo acordado - sendo responsável pelos vícios ou defeitos que a obra apresentar ou nela se venham a revelar.

Na empreitada, e como refere PEDRO R. MARTINEZ, Contrato de Empreitada, 189, o cumprimento será defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades, porque desconforme com o plano convencionado, ou com vícios, se as imperfeições verificadas excluem ou reduzem o valor da obra ou afectem a sua aptidão para o seu uso ordinário ou fim previsto no contrato.

E se a obra apresenta defeitos, tem o empreiteiro o dever de os eliminar, como decorre do disposto no artigo 1221º, nº 1 do CC.

Ao dono da obra assiste o direito de verificar, se aquela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios, antes de a aceitar, já que a aceitação da obra sem reserva desonera o empreiteiro de responsabilidade pelos vícios aparentes.

A análise do regime jurídico do cumprimento defeituoso no contrato de empreitada permite constatar que o legislador facultou ao dono da obra uma série de direitos a exercer sequencialmente.

Assim, o dono da obra goza do direito de exigir a eliminação dos defeitos e, caso tal eliminação não seja viável, tem o direito a exigir nova construção, salvo, em ambos os casos, se as despesas com a eliminação dos defeitos ou a nova construção forem desproporcionadas em relação ao proveito.

E, apenas no caso de não serem eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, tem o dono da obra o direito a exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, mas, neste último caso, somente se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.

Todavia, o exercício dos direitos conferidos nos artigos 1221º e 1222º do Código Civil não exclui o direito a ser indemnizado nos termos gerais, como se infere do disposto no artigo 1223º do Código Civil, nem a possibilidade de resolução do contrato por incumprimento definitivo, independentemente da existência ou não de defeitos na obra ou da possibilidade da sua eliminação e consequente ressarcimento baseado na responsabilidade civil contratual.

No caso vertente, o contrato de empreitada celebrado entre requerente e a 1ª requerida (empreiteira e dona da obra) foi reduzido a escrito, com elaboração de um exaustivo caderno de encargos, conforme consta do caderno de encargos de fls. 33 a 96 - v. Nº 7 dos Fundamentos de Facto.

Resulta da cláusula 1.11 da parte A das cláusulas jurídicas e administrativa gerais do caderno de encargos do contrato em causa, que a requerente, na qualidade de empreiteiro, se vinculou a prestar, a favor da 1ª requerida, dona da obra, uma caução no valor de 5% do preço total do contrato, o que veio a sucedeu, já que a requerente entregou à 1ª requerida, em Novembro de 2003, o título de garantia bancária, que consta de fls. 31 - v. Nº 8 e 9 dos Fundamentos de Facto.

E, conforme se infere do aludido documento de fls. 31/32 (actualmente fls. 58/59), a garantia bancária entregue pela requerente à 1ª requerida cifra-se no valor de € 130.759,45, correspondente a 5% do valor total da empreitada ajustada entre as partes e destinava-se a garantir o bom e integral cumprimento das obrigações que a requerente assumiu no contrato celebrado com a 1ª requerida.

Tal garantia destinava-se, portanto, a assegurar, por parte da garantida, o pagamento à beneficiária – a 1ª requerida - das responsabilidades assumidas pela requerente.

E, a entidade bancária – 2ª requerida - declarou obrigar-se perante a 1ª requerida a entregar-lhe quaisquer quantias que esta lhes reclamasse, até ao montante da dita garantia, e logo que reclamada com o fundamento de não terem sido devidamente cumpridas as obrigações da requerente, não cabendo aquela entidade verificar a existência do respectivo fundamento.
Foi, por conseguinte, celebrado, como resulta inequivocamente do teor do aludido documento, um contrato de garantia bancária, também designada de garantia bancária autónoma, que traduz o compromisso assumido por um banco de satisfazer determinada obrigação perante terceiro sempre que o cliente o não faça, por atraso ou em definitivo.

O contrato de garantia bancária é muito utilizado no comércio internacional, pois as relações contratuais estabelecem-se entre pessoas que se desconhecem mutuamente. Mas também tem o seu campo de eleição nos contratos de empreitada, quer de obras públicas, quer privadas, sobretudo quando estão em jogo grandes somas pecuniárias.
Segundo JOSÉ MARIA PIRES, Direito Bancário, 2º volume, Lisboa, 284, o contrato de garantia bancária pode definir-se como "o contrato pelo qual um banco, por mandato do seu cliente, se obriga a pagar certa importância à outra parte (beneficiário), ficando esta com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre este e o beneficiário".
A garantia autónoma, para GALVÃO TELLES, Garantia Bancária Autónoma, O Direito, Ano 120º, págs. 275 e seguintes, é definida como a garantia pela qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.

O garante paga ao credor sem discutir. Depois, o devedor tem de reembolsar o garante, também sem discutir. E será, por último, entre o devedor e o credor que se estabelecerá controvérsia, se a ela houver lugar, cabendo ao devedor o ónus de demandar judicialmente o credor para reaver o que houver desembolsado, caso a dívida não existisse e ele não fosse, afinal, o verdadeiro devedor.
Trata-se de um contrato, inominado, causal, autónomo e que não tem ainda consagração legislativa em Portugal.
Como salienta FERRER CORREIA, Rev. Direito e Economia, ano VIII n° 2, 1982, 248, o contrato de garantia não corresponde a qualquer perfil ou tipo de negócio jurídico descrito na lei, é atípico ou inominado. A sua admissibilidade só do princípio da liberdade contratual ou autonomia privada poderá derivar.

O contrato autónomo de garantia bancária, sendo um contrato atípico, tem, portanto, o seu fundamento legal no princípio da liberdade contratual, consagrado no artigo 405° do Código Civil. E esta garantia é causal porque é vinculada à prestação da garantia, e é autónoma porque é independente do contrato base.

De entre as garantias bancárias, destaca-se a garantia à primeira solicitação ou on first demand, que pode qualificar-se como uma promessa de pagamento à primeira interpelação. Esta cria uma situação jurídica por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo credor, terá de pagar a quantia garantida, sem poder contestar o pagamento do que lhe é exigido.
A figura da garantia on first demand representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o seu significado é o de que o banco que a presta ficar constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, no caso de alegada inexecução ou má execução do contrato base, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente, sem poder discutir o incumprimento do devedor ou invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado com esse mesmo contrato – v. GALVÃO TELLES, ob. cit., pg. 283 e ALMEIDA COSTA e PINTO MONTEIRO, O contrato de garantia à primeira solicitação, CJ, Ano XI, 5, 17 .
O processo de formação do negócio de garantia decompõe-se numa estrutura triangular, com três relações distintas:
i) um contrato base - no caso, vertente, uma empreitada, que constitui a relação subjacente ( relação garantido-beneficiário);
ii) um contrato de mandato, pelo qual o obrigado naquele primeiro contrato (ao cumprimento de determinadas obrigações e ao pagamento do preço estipulado) – a empreiteira - incumbiu o garante, de prestar a garantia exigida pela contraparte – o dono da obra ( relação garantido-garante );
iii)um contrato de garantia, pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obriga a pagar o montante convencionado, logo que solicitado pelo beneficiário ( relação garante-beneficiário ).
Perante uma garantia à primeira solicitação, o garante está obrigado a satisfazê-la de imediato, bastando para tal que o beneficiário o tenha solicitado nos termos previamente acordados.
O devedor, depois de reembolsar o garante da importância por este paga ao beneficiário, tem o ónus de intentar procedimento judicial para reaver a referida importância, caso o credor/beneficiário haja procedido sem fundamento – v. neste sentido ALMEIDA COSTA E PINTO MONTEIRO, ob. cit, loc. cit.
Mas, apesar da natureza automática da garantia on first demand, a sua automaticidade não é absoluta. Como salienta GALVÃO TELLES, ob. cit., 286, admite-se a oposição, pelo garante ao beneficiário, da excepção de fraude manifesta ou abuso evidente deste na execução da garantia, desde que o garante tenha em seu poder prova líquida e inequívoca dessa fraude ou abuso, ou sejam estes um facto notório.
A recusa de pagamento com esta motivação pode ter lugar desde que o garante esteja na posse de prova líquida, inequívoca de um comportamento abusivo do beneficiário – v. neste sentido, SIMÕES PATRÍCIO, R.O.A., ano 43. vol. II, 1983, 709 e 710. Nesta hipótese, a obrigação assumida perante o beneficiário perde a sua autonomia e independência em relação ao contrato principal.

Admite-se, outrossim, a instauração, pelo mandante, de providências cautelares, urgentes e provisórias, em sede judicial, destinadas a impedir o garante de entregar a quantia pecuniária ao beneficiário ou este de a receber, desde que o mandante apresente a aludida prova líquida e inequívoca.
Acresce que, exigida a garantia, o garante pode sempre opor ao beneficiário as excepções que resultem directamente do contrato de garantia, designadamente, a sua invalidade, caducidade ou divergências relativamente ao clausulado - cfr. neste sentido e sobre o carácter cada vez mais relativo da garantia bancária à 1ª solicitação, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Contratos em Especial, ed. da U. Católica, 1996, 347 e segts.

Honrada a garantia pelo garante, este pode exigir do ordenador - em nome de quem, ou por ordem de quem, a garantia é emitida - que lhe restitua o montante da garantia por ele prestada nos casos em que, da parte daquele, tenha havido culpa na eclosão do pressuposto da exigência da garantia pelo beneficiário.

Ora, a conexão entre o contrato de garantia bancária e o contrato de empreitada é evidente, certo que a execução daquele depende necessariamente do incumprimento deste.

No caso em apreciação, visou a requerente com o presente procedimento cautelar, a intimação da 1ª requerida no sentido de não accionar a garantia bancária prestada, e da 2ª requerida no sentido de a não pagar, visto considerar que, na sua qualidade de empreiteira, cumpriu o que decorre do contrato com esta celebrado.

A garantia foi prestada no âmbito de uma empreitada e, atentas as características dessa empreitada, e as menções exaradas no título, não pode a mesma deixar de se considerar como tendo a natureza de garantia bancária à 1ª solicitação. Por isso, o banco garante nunca poderia opor quaisquer meios de defesa próprios do devedor garantido, tanto relativos ao contrato base, como ao contrato de mandato, mas apenas e tão só os respeitantes ao contrato de garantia, salvo nas situações excepcionais antes aludidas.

O móbil do accionamento da garantia bancária só poderia residir, consequentemente, no incumprimento da empreitada. Daí que, tendo em consideração a pretensão da requerente, incumbia a esta provar que deu integral cumprimento ao que se dispõe no contrato de empreitada.

E, será que a requerente demonstrou o “fumus boni iuris”, já que, como acima ficou dito, no procedimento cautelar o direito invocado apenas tem de se apresentar como verosímil.

No caso em análise, foi possível apurar que Em 19 de Setembro e em 31 de Dezembro de 2006, a primeira requerida e a Fiscalização da obra procederam à vistoria conjunta para efeitos de recepção provisória dos diversos apartamentos que constituem o Empreendimento “D” construído pela Requerente, tendo-se verificado que a generalidade dos trabalhos se encontrava em condições de serem recepcionados provisoriamente, conforme resulta dos respectivos autos de recepção provisória ( docs. Fls. 97 e 98) - v. Nº 8 a 10 dos Fundamentos de Facto.

Mais se apurou que decurso do prazo de garantia, sempre que a 1ª requerida denunciou a existência de defeitos de construções, os trabalhos de reparação da responsabilidade da requerente foram executados à custa desta - v. Nº 11 e 19 dos Fundamentos de Facto.

É que, se é certo que a 1ª requerida enviou à requerente uma carta, datada de 14.10.2010, denunciando a existência de anomalias no empreendimento objecto do contrato de empreitada, a verdade é que se provou que as mesmas se referem, na sua grande maioria a “anomalias” que nunca foram previamente denunciadas pela 1ª requerida - v. Nº 16 a 18, 20 a 22 dos Fundamentos de Facto.

Sucede que o valor da garantia prestada se cifrava em € 130.759,45 e, não se tendo provado que a requerente não tivesse dado cumprimento aos trabalhos que constavam da lista anexa ao auto de recepção provisória, estando vedado à apelante, neste meio de defesa, de invocar factos novos não apreciados na 1ª instância, forçoso é concluir que no caso em análise está verificada a aparência do direito invocada pela requerente como, de resto, se assinalou na sentença recorrida

Preenchido se mostra igualmente o supra mencionado requisito da lesão grave e dificilmente reparável, bem como o requisito negativo - prejuízo resultante da providência não superior ao dano que com ela se pretende evitar – requisito que impõe ao julgador sopesar, na salvaguarda dos interesses em causa, a par dos danos que o requerente invoca, também aqueles que, possivelmente, a decisão, no caso de se propender para o deferimento, possa comportar para o requerido, e, assim, recusar o seu decretamento se os prejuízos decorrentes para o segundo excederem manifestamente os danos alegados pelo primeiro (art. 387º, n.º 2, do CPC).

Igualmente se apurou que a 1ª requerida ainda não procedeu ao pagamento de toda a quantia em dívida, a qual se cifra em € 161.337,94, e que, com o accionamento da garantia bancária a requerente ficará numa situação financeira debilitada perigando o prosseguimento do seu objecto social, o que poderá colocar em causa o cumprimento integral dos seus compromissos face a trabalhadores, fornecedores e financiadores, sendo certo que não se pode desconhecer da importância da prestação de garantias bancárias, por parte da requerente, para o exercício do seu escopo social ligado à construção civil e obras públicas - - v. Nº 12 a 15, 24 a 26 dos Fundamentos de Facto.

Os factos apurados e as regras de experiência aconselhem, necessariamente, uma decisão cautelar imediata, como factor potenciador da eficácia da acção a instaurar posteriormente, como bem se decidiu na sentença recorrida.

Dúvidas não restam, pois, acerca da verificação de lesão do direito da requerente e também se admite que tal lesão reveste foros de gravidade, visto que o valor económico em causa evidência, objectivamente, que poderemos estar perante uma lesão grave e dificilmente reparável.

Mostra-se inteiramente legitimo o recurso, por parte da requerente, a um meio de tutela antecipada ou conservatória do seu direito, condicionada à realização de prova sumária da verificação desse direito que, como se disse, está demonstrado, tal como igualmente demonstrado está o requisito da lesão grave e dificilmente reparável, inexistindo providência cautelar específica particularmente adequada à situação em apreço.

Tem, portanto, a requerente, o direito que pretende exercer com o presente procedimento cautelar, consistente em impedir a 1ª requerida – dona da obra - e ora apelante, de accionar a garantia bancária e a 2ª requerida de a pagar até à decisão definitiva da acção principal que vier a ser intentada.

Improcede, assim, o recurso de apelação, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

*
A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.


***
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 16 de Junho de 2011

Ondina Carmo Alves – Relatora
Ana Paula Boularot
Lúcia Sousa