Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7506/2007-8
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: ADVOGADO
FORMA DO CONTRATO
DESPESAS
FUNCIONAMENTO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O contrato respeitante às despesas de um escritório de advogados pode ser celebrado consensualmente (artigos 219.º e 405.º ambos do Código Civil).
II- Decorrendo de sentença transitada em julgado que houve contrato do qual emergia o pagamento repartido de determinados serviços, a acção ulterior onde se reclamam prestações em dívida fundadas no mesmo contrato e derivadas das mesmas circunstâncias está abrangida pela autoridade do caso julgado, pois há casos, como o presente, em que os fundamentos em si possuem valor próprio de caso julgado, designadamente nas situações em que se verificam relações de prejudicialidade, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto de uma acção posterior

(SC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. J. […] advogado, intentou a presente acção declarativa de condenação, na forma de processo sumário, contra:
A. […] também advogado, e com escritório na mesma morada.

Pedindo a condenação do R. no pagamento da quantia de € 8.911,89, acrescida de juros legais, nos termos que constam dos autos.

Para tanto alegou, e em suma, que compartilha o seu escritório com mais três advogados, participando cada um nas despesas de escritório na proporção de ¼, com excepção das despesas com a empregada que apenas são pagas por A. e R. na proporção de ½ para cada um, devendo o R. ao A., a título de despesas não pagas, o valor peticionado nos autos.

2. O R. contestou argumentando que não houve qualquer acordo no sentido de suportar as despesas com a empregada do escritório, sendo apenas devedor das demais despesas peticionadas, e que ainda não pagou por o A. se recusar a recebê-las.

3. A presente acção foi julgada procedente, por provada e, em consequência, foi o Réu condenado a pagar ao A. a quantia de € 8.911,89, acrescida dos juros de mora à taxa legal supletiva aplicável aos juros civis, contados desde a citação e até integral e efectivo pagamento.

4. Inconformado o Réu recorreu, tendo formulado as conclusões singelas que se seguem:
1. Entre o A. e o R. nunca foi celebrado qualquer contrato;
2. O Réu foi condenado a pagar ao A. importância que não deve.

5. Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela confirmação da decisão proferida.

6. Corridos os Vistos legais,
Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Os Factos:

- Mostram-se provados os seguintes factos:

1. A., R. e mais dois advogados compartilham entre si o escritório de advogados situado […] em Lisboa.
2. As despesas da renda, água, luz, limpeza e reparações das partes comuns são repartidas por todos, na proporção de um quarto para cada um.
3. A gestão corrente do escritório foi atribuída ao A. que a exerceu durante mais de vinte anos.
4. No seu exercício, o A. pagava as despesas correntes e cobrava dos colegas, no fim de cada mês, a sua parte.
5. As contas eram apresentadas mensalmente com a indicação da quantia a pagar por cada um.
6. Por sentença de 08/12/2004 […] já transitada em julgado, o R. foi condenado a pagar ao A. a quantia de € 4.803,72, acrescida de juros de mora civis desde 04/04/2003, até integral pagamento, nos termos constantes de fls. 10 e segs.
7. Nessa sentença foram dados por provados e, entre outros, os seguintes factos:
a. “(…) 1.4. Antes dos factos referidos em 1.5. infra, autor e réu acordaram que a empregada prestaria serviços a ambos e que os salários, segurança social e os demais encargos com aquela, seriam suportados por autor e réu.
b. 1.5. O autor pagou mensalmente, desde Janeiro de 2001 a Janeiro de 2002: (diversas quantias) (…).
c. os subsídios de Natal e de férias da empregada de € 422,73 cada um.”
8. O R. não pagou a sua parte nas despesas posteriormente a Janeiro de 2002.
9. Em 2002, de Fevereiro a Dezembro, o A. pagou de renda 550 € (50 € mensais); de água, 174,96 € (Janeiro a Março, 18,92 €, Março a Maio, 31,47 €, Maio a Julho, 39,50 €, Julho a Setembro, 39,90 €, e Setembro a Novembro 45,17 €); de luz, 124,94 € (Fevereiro, 15,30 €, Março, 10,49 €, Abril, 10,40 €, Maio, 13,31 €, Junho 11,94 €, Julho, 10,58 €, Agosto, 10,88 €, Setembro 11,26 €, Outubro, 10,30 €, Novembro 10,77 € e Dezembro 9,71 €); de limpeza, 863,02 € (823,02 de salários – 11 meses a 74,82 € mensais – e 40 € de produtos de limpeza), num total de € 1.712.
10.  Ainda neste ano de 2002, e no mesmo período, o A. pagou de salários à empregada 5.101,88 € (463,88 mensais); de subsídio de férias e de Natal, 928,46 €; para a segurança social, 1.775 € (126 € mensais); de subsídio de alimentação, 877,91 € (79,81 € mensais); do passe social, 246,95 € (22,45 € mensais), num total de € 8.930,20.
11.  No ano de 2003, o A. pagou de rendas 600 € (50 € mensais); de água, 265,73 € (Janeiro, 40,11 €, Janeiro a Março, 61,54 €, Março a Maio, 41,07 €, Maio a Julho, 41,71  €, Julho a Setembro, 39,16 € e Setembro a Novembro, 42,14 €; de luz, 107,60 € (Janeiro, 10,11 €, Fevereiro, 15,98 €, Março, 9,67 €, Abril, 9,96 €, Maio, 9,87 €, Junho, 6,90 €, Julho, 8,88 €, Agosto, 9,17 €, Setembro, 8,98 €, Outubro, 8.98 €, Novembro, 9,07 € e Dezembro, 10,03 €); de limpeza, 563,74 € (523 € de salários a 74,82 € mensais – 8 meses – e 40 € de produtos de limpeza, num total de € 1.537,97.
12.  Ainda neste ano de 2003, o A. pagou de salários à empregada 3.711,04 €, correspondentes a 8 meses, sendo o seu salário de 463,88 € mensais; de subsídios de férias e de Natal 927,76 €; para a segurança social 1.260 € (126 € mensais); de subsídio de alimentação, 648,48 € (79,81 Euros mensais); com o passe social, 179,66 Euros e (22,45 € mensais), num total de 6.666,94 Euros.
13.  Finalmente no ano de 2004, o A pagou de rendas 600 €; de água 421,63 € (Janeiro, 42,14 €, de Janeiro a Março 20,56 €, de Março a Maio, 42,60 €, de Maio a Julho, 42,65 €, de Julho a Setembro, 7,10 € e de Setembro a Novembro 266,58 € (inclui reparações das canalizações pela Companhia); de luz, 121,74 € (Janeiro 9,09 €, Fevereiro, 10,41 €, Março, 8,05 €, Abril, 10,41 €, Maio, 9,26 €, Junho, 8,96 €, Julho, 9,06 €, Agosto 9,26 €, Setembro, 9,06 €, Outubro, 9,06 €, Novembro, 9,26 €, Dezembro, 9,06 €); de limpeza, 60 €, num total de 1.203,37 Euros.

III – O Direito:

1. O recurso interposto pelo R. assenta unicamente nos seguintes pontos:
1º Alega o Réu que nunca celebrou qualquer contrato com o A.;
2º E que nada deve a este.

Porém, a posição do Réu não merece qualquer acolhimento.

Vejamos porquê.

2. Resulta da matéria factual provada que, por sentença de 08/12/2004 […] já transitada em julgado, o Réu foi condenado a pagar ao A. a quantia de 4.803,72, Euros, acrescida de juros de mora até integral pagamento, por não ter pago ao Autor a sua parte correspondente nas despesas então em dívida e  conforme ambos tinham acordado quanto à divisão de despesas respeitantes ao escritório que compartilham.

Posteriormente, e porque se mantém, ainda, em dívida, o pagamento das despesas compreendidas entre Dezembro de 2002 e Dezembro de 2004, foi proposta contra o Réu a presente acção.

Todos os factos alegados pelo A. nesta acção foram dados como provados e, em consequência, o Tribunal “a quo” julgou a acção procedente e condenou o Réu no respectivo pedido.

Insurge-se o Réu dizendo que não celebrou qualquer contrato com o A. e que nada deve.

Argumentos que não convencem.

3. Quanto à celebração do contrato, está provado nos autos que A. e Ré compartilham o mesmo escritório, que as despesas comuns são repartidas por todos na proporção de um quarto para cada um, que a gestão corrente do escritório foi atribuída ao A., que a exerceu durante mais de 20 anos, que nesse exercício o A. pagava as despesas correntes e cobrava aos colegas, no fim do mês, a parte respeitante a cada um – cf. factos provados e inseridos nos pontos 1) e segts. da matéria de facto.

Fundando-se a presente acção, nos termos em que foi proposta pelo A., e de acordo com o respectivo pedido e causa de pedir, no âmbito de uma acção de cumprimento, baseada na inobservância, por parte do Réu, do acordo celebrado entre ambas as partes e no incumprimento quanto ao pagamento das despesas de um escritório de advogados nos termos acordados.


De acordo com as regras processuais e substantivas, cabe ao A. o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito que invoca e ao Réu o ónus de prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que contra si foi invocado – cf. arts. 264º do CPC e 342º do CC.

4. Ora, desde logo o Réu nada provou que pusesse em causa os referidos factos ou infirmasse a pretensão deduzida pelo A.

E defender que não se provou a existência de qualquer contrato é não ter em consideração que o A. logrou provar a celebração de um acordo com as referidas características.

É certo que não foi celebrado entre as partes um contrato escrito. Mas o acordo estabelecido entre ambos para partilha de despesas e traduzido numa prática de mais de vinte anos (cf. factos provados e inseridos no ponto 3)) não deixa de constituir uma modalidade de declaração negocial, nos termos estabelecidos no art. 217º, nº 1, do CC.
Podendo configurar-se os pagamentos mensais na figura jurídica de assunção de uma obrigação de carácter divisível, que o CC também prevê expressamente no art. 534º do CC, obrigação assumida pelo Réu, livre e voluntariamente, e que agora se recusa a cumprir.

5. Com efeito, para existir declaração negocial que leve à constituição de um contrato, basta haver um comportamento declarativo, ou seja, um comportamento que, visto de fora, apareça como significativo de uma vontade negocial, [1] independentemente da própria escrita.

Importante é que esse comportamento se deduza de factos que com toda a probabilidade o revelem. [2]

A este propósito salienta Vaz Serra que os factos concludentes em que assenta a declaração tácita não têm, necessariamente, de ser inequívocos em absoluto, sendo suficiente que eles com toda a probabilidade a revelem. [3]

E a confirmação da declaração negocial, que o referido comportamento integra, tanto pode fazer-se tacitamente, ou através da execução do negócio, como até através de outros comportamentos dos quais se depreenda, com toda a probabilidade, a intenção confirmatória. [4]

Por outro lado, o amplo princípio da liberdade contratual que vigora no direito civil, enquanto fonte de obrigações bilaterais, permite que as partes fixem livremente o conteúdo dos contratos, os possam celebrar até de forma diferente daquela que se encontra prevista no CC. e possam, ainda, incluir nesses contratos as cláusulas que melhor lhes aprouver.

Contudo, a partir do momento em que os celebram devem cumpri-los pontualmente – cf. art. 406º do CC.

E o devedor só cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, devendo proceder, no cumprimento da obrigação, de acordo com as regras da boa-fé – cf. art. 762º do CC.

6. Por fim dir-se-á também que, conforme consta dos factos assentes, o R. foi já condenado, por sentença transitada em julgado, no pagamento das despesas em dívida, no período decorrido entre Janeiro de 2001 a Janeiro de 2002.

Tendo nessa acção sido dado como provado (cf. factos provados e inseridos no ponto 7), a)) que A. e R. tinham acordado, em momento anterior a Janeiro de 2001, que a empregada prestaria serviços a ambos e que os salários, segurança social e os demais encargos com aquela seriam suportados por Autor e Réu.

Está assim, assente, para todos os efeitos, que A. e R. celebraram um acordo nesses termos, tendo o Réu assumido perante o A. o compromisso de suportar o pagamento das referidas verbas. O que não fez.

Por sua vez na presente acção pretende o A. obter o pagamento das prestações em dívida e que, por serem posteriores, não se encontram abarcadas por aquela.

Ora, tendo em atenção os reflexos derivados da força da autoridade do caso julgado material, na sua vertente positiva, relativamente ao respeito pela decisão transitada na parte que aqui releva e a qual constitui pressuposto indiscutível da decisão a proferir nestes autos, está este Tribunal igualmente vinculado a esses efeitos, nos termos do art. 671º, n.º 1 do CPC.

Conquanto não se verifique a tríplice identidade estatuída pelos arts. 498º e 497º do CPC, da excepção do caso julgado (uma vez que o pedido da presente acção não é o mesmo que o formulado naquela, pois abrange prestações em dívida diferentes), não pode, contudo, deixar de se entender que tais pedidos são substancialmente idênticos, porquanto as prestações em dívida possuem a mesma origem e derivam das mesmas circunstâncias.

Donde, fazer todo o sentido chamar à colação a autoridade do caso julgado, entendida como proibição de contradição com uma decisão já transitada. [5]

Com efeito, embora em regra o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto da respectiva decisão, conforme se extrai do art. 96º, n.º 2 do CPC, casos há em que os fundamentos em si possuem valor próprio de caso julgado, como nas situações em que se verificam relações de prejudicialidade, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto de uma acção posterior. [6]

Destarte, tendo ficado provado, na sentença anterior transitada, que A. e R. acordaram que a empregada prestaria serviços a ambos e que os salários, segurança social e os demais encargos com aquela seriam suportados por ambos, resulta de forma inequívoca que o R. tem a obrigação de suportar metade dos valores despendidos pelo A. com a empregada, com fundamento no acordo ao qual se vinculou.

E porque tais montantes ainda se encontram em dívida, quanto às despesas entretanto efectuadas e que igualmente não foram pagas pelo Réu, estão preenchidos os pressupostos legais que conduziram à procedência da presente acção e à condenação do Réu pelo referido incumprimento.

Falece, por conseguinte, a apelação.

7. Em Conclusão:

1. Para existir declaração negocial que leve à constituição de um contrato, basta haver um comportamento declarativo que, visto de fora, apareça como significativo de uma vontade negocial, que tanto pode ser expressa, como tácita.
2. Importante é que esse comportamento se deduza de factos que com toda a probabilidade o revelem.
3. O incumprimento do pagamento de prestações mensais acordadas nesses termos configura a assunção de uma obrigação de carácter divisível, de acordo com o preceituado no art. 534º do CC.
4. Sendo exigível por força dos princípios gerais que vigoram no direito civil, no domínio dos contratos, v.g., os arts. 405º, 406º e 762º do CC.

IV – Decisão:

- Termos em que se acorda em julgar improcedente a Apelação e se confirma a sentença recorrida, nos seus precisos termos.

- Custas pelo Apelante.

Lisboa, 15 de Novembro de 2007
    
Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
António Manuel Valent
Ilídio Sacarrão Martins

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[1] Neste sentido cf. Acórdão do STJ, de 27/11/1991, in BMJ., 411º/513.
[2] Cf. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 424, 2ª ed.
[3] Vaz Serra in RLJ., 110º, pág. 377 e segts.
[4] Cf. Rui Alarcão in “Confirmação”, 1º Vol., pág. 217, citado por Abílio Neto in CC Anotado.

[5]  Cf., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 2ª Edição, págs. 567 e segs.
[6] Teixeira de Sousa, ibidem, págs. 579 e segts.