Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
946/2004-5
Relator: FILOMENA CLEMENTE LIMA
Descritores: REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: Nos termos do artº 495º, nº 2 do C.P.P. a decisão a proferir no âmbito da mesma norma para os efeitos do disposto no art~56º do CP deve ser precedida de parecer do MºPº e da audição do condenado. Não se tendo cumprido este último pressuposto, de dignidade constitucional, praticou-se por omissão nulidade insanável nos termos do artº 119º, al. c) do CPP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. No processo comum do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras foi julgado o arguido (J), tendo sido condenado, por sentença de 31.01.2000, como autor de um crime de emissão de cheque sem provisão p.p. pelo art.º 11º, n.º1 a) DL 454/91 de 28.12 na redacção dada pelo DL 316/97 de 19.11, na pena de 10 meses de prisão cuja execução se suspendeu por 2 anos sob condição de o arguido, no prazo de 10 meses, comprovar documentalmente nos autos o pagamento à demandante “Rações Acral, AS” da indemnização arbitrada no valor de 567.788$00, acrescida de juros à taxa anual de 10% desde a data de apresentação a pagamento até 16.4.99 e de 7% desde essa data até integral pagamento.
Por decisão de 25.01.2001, depois de a demandante ter informado que o arguido não efectuara o pagamento devido e por não constar dos autos qualquer comprovativo desse pagamento e, por alegadamente “se desconhecer o paradeiro do arguido o que tornava inviável a sua notificação para esclarecer as razões por que não procedera ao pagamento”, sob promoção do MºPº, revogou-se a suspensão da execução da pena nos termos do art.º 56º, n.º1 a) CP, após o que se aplicou o perdão da Lei 29/99 de 12.5, declarando-se extinta pelo perdão a pena, sob condição do pagamento da indemnização nos 90 dias posteriores à sua notificação e do não cometimento de infracção dolosa nos 3 anos subsequentes à data da entrada em vigor da Lei de Amnistia.
Não se procedeu à notificação pessoal do arguido, tendo sido notificado o seu defensor oficioso, após o que se determinou a sua notificação edital.
Por despacho de 04.11.2002, tendo-se constatado que o arguido não dera cumprimento à condição de aplicação da Lei 29/99, foi revogado o perdão e determinada a emissão de mandados de detenção do arguido para cumprimento da pena.
Foi o arguido detido em 16.12.2003 não resultando dos autos que tenha sido notificado do teor da decisão de 4.11.2002.

Veio o arguido requerer a sua libertação imediata para o que invoca o facto de em 30.10.2002 ter procedido ao pagamento da indemnização ao demandante civil.
Por decisão de fls. 237 indeferiu-se o requerido pelo arguido por se ter esgotado, muito antes da decisão de revogação da suspensão da execução da pena bem como do prazo de 90 dias da notificação da decisão que aplicou o perdão, o prazo para pagamento da indemnização.

Inconformado com esta decisão interpôs recurso o arguido que motivou com as conclusões que se referem, em síntese:
- O tribunal revogou a suspensão da execução da pena sem prévia audição do arguido, violando as regras relativas ao modo de revogação da suspensão da pena;
- A revogação da suspensão da execução da pena não é automática;
- Tendo violado o disposto nos art.ºs 495º, n.ºs 1 e 2 c), 61º, n.º1 a) CP e 56º a) CP, 32º n.º1 CRP;
- O que acarreta a nulidade insanável nos termos do art.º 119º, n.º1 c) CPP e a invalidade do acto em que se verificou (art.º 122º, n.º1 e 2 CPP) sendo nulo o despacho que revogou a suspensão da execução da pena;
- O despacho de revogação do perdão deveria ter sido precedido pela audição do arguido, o que resulta do direito consagrado no art,º 32º, n.º1 CRP que prevê que se assegurem todas as garantias de defesa uma vez que toda a reacção penal deve basear-se na culpa – art.ºs 1º, 13º,n.º1 e 25º CRP e 13º e 71º CP;
- O arguido atravessou um longo período de graves dificuldades económicas e financeiras não podendo cumprir com a obrigação imposta nestes autos que cumpriu, embora tardiamente, mesmo antes da revogação do perdão da pena ;
- Não tendo o tribunal previamente solicitado ao arguido a explicação para o facto de não ter cumprido a obrigação ou notificado pessoalmente o arguido no sentido de averiguar se procedera já ao pagamento devido;
- Violando assim os art.ºs 32º, n.º1, 1º, 13º e 25º CRP e 13º e 71º CP e 61º, n.º1 a) CPP;
- O que constitui nulidade insanável nos termos do art.º 119º CPP e acarreta a invalidade do despacho nos termos do art.º 122º, n.ºs 1 e 2 CPP;
- O tribunal também não fundamentou devidamente a decisão de revogação da execução da pena ao concluir que “...não se encontram verificadas as circunstâncias a que alude o art.º 5º, n.º7 da Lei 29/99 de 12.5 para que seja concedido novo prazo de 90 dias”;
- Violando o disposto no art.º 97º, n.º4 CPP e o n.º1 do art.º 225º CRP;
- Os despachos de revogação da suspensão da pena e do perdão não transitaram em julgado ;
- O arguido prestou termo de identidade e residência a 3.3.1999, na redacção dada pelo art.º 10º da Lei 59/98 de 25.8;
- Nos termos do art.º 112º, n.º2 CPP, 495º a), 113º,n.º1 CPP, 32º n.º1, 1º, 13º,n.º 1, 25º CRP e 13º e 71º CP deveria ter sido notificado pessoalmente o arguido dos referidos despachos tendo o tribunal notificado o arguido do despacho de revogação do perdão por éditos, devendo ter tentado saber do paradeiro do arguido tal como fez quando pretendeu cumprir os mandados de detenção;
- Sendo o despacho de revogação da suspensão da execução da pena uma pena autónoma equipara-se a uma sentença tendo de ser notificada pessoalmente ao arguido (art.º 113º n.º9 CPP);
- Não se tendo demonstrado, ao realizar a notificação edital, que se tivessem esgotado as possibilidades para sua notificação pessoal;
- Violou o tribunal as normas constitucionais e processuais imperativas – art.º 32º, n.º1 CRP e n.º1 a) e n.º9 do art.º 113º CPP;
- Também não notificou o arguido do despacho que revogou o perdão da pena aplicada ao arguida nem se encontram provas nos autos de que a notificação pessoal haja sido feita;
- Não tendo ele conhecimento pessoal do despacho da revogação do perdão da pena;
- O arguido pagou a indemnização a 30.10.2002 não podendo reagir contra os referidos despachos por deles não ter conhecimento;
- Deve ser reformado o despacho de 4.11.2002 que revogou o perdão e ordenada a imediata libertação do arguido.
- Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, respondeu o MºPº pugnando pela improcedência do recurso por entender que as decisões que afectam o arguido foram-lhe notificadas e são inatacáveis por via de recurso por terem transitado em julgado.
- Foi proferido despacho de sustentação do recurso e ordenada a subida dos autos.

Neste Tribunal o Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela nulidade insanável da decisão que determinou a revogação da execução sem prévia audição do arguido e dos actos posteriores o que tem como efeito a imediata libertação do arguido.
Colhidos os vistos legais procedeu-se a conferência.

2. O objecto do recurso reporta-se à apreciação das nulidades arguidas pelo arguido, a propósito da revogação da execução da pena e de revogação do perdão, sem prévia audição do arguido, com a apreciação da consequente invalidade desses actos e dos demais actos afectados, como seja a detenção do arguido.

3. Nos termos do art.º 495º, n.º2 CPP a decisão a proferir no âmbito do referido preceito, a propósito da falta de cumprimento dos deveres ou obrigações para efeitos nomeadamente do disposto no art.ºs 56º CP, deve ser precedida de parecer do MºPº e de audição do condenado.
Como decidimos recentemente no acórdão de 20.01.2004 desta secção - rec. n.º 10861/03, “A omissão da concessão ao arguido da faculdade prevista na norma constante do art.º 495º, n.º2 CPP que o impediu de demonstrar a impossibilidade de cumprir o determinado” ou seja “a falta de audição do arguido, antes de se apreciar a revogação da suspensão da execução da pena, configura a nulidade a que alude o art.º 119º al. c) CPP. É assim assegurado ao arguido o direito de audiência – art.º 32º, n.º8 CRP e de acordo com o art.º 495º, n.º2 CPP a eventual apreciação da revogação da suspensão da execução da pena não deve ser feita sem que antes se tenha assegurado a possibilidade de o arguido se pronunciar sobre a mesma. Ora se ao direito de audiência é conferível dignidade constitucional, a postergação de tal direito só tem protecção adequada se tal omissão se considerar nulidade insanável, tal como sucede com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência – art.º 119º, al. c) CPP”.
O arguido não foi chamado a pronunciar-se acerca das razões por que faltara ao cumprimento das obrigações impostas como condição da suspensão da execução da pena.
Com efeito, a averiguação das razões por que não cumpriu as obrigações impostas visa apurar se existiu incumprimento culposo por parte do arguido, com vista à aplicação do disposto no art.º 56º CP, face a provas recolhidas nos autos a esse propósito e face às próprias declarações do arguido, interpretadas perante o contexto dos autos e os demais elementos de prova.
Não tendo sido ouvido o arguido para se pronunciar acerca dos motivos do não cumprimento, a decisão omitiu a imposição de audição a que alude o art.º 495º, n.º2 CPP, não dando ao arguido a possibilidade de se pronunciar acerca das razões por que não cumpriu a obrigação que condicionava a suspensão da execução da pena, não podendo ter averiguado se tal incumprimento era culposo e se a falta de observância dos deveres impostos era grosseira.
Não se compreende como se pode ter concluído ser tal infracção culposa e grosseira, depois de se reconhecer que o desconhecimento do paradeiro do arguido não permitia averiguar das razões por que este não procedera ao pagamento devido.
Acresce que não foram notificados ao arguido a sentença condenatória (que deveria ter sido notificada após a sua detenção, nos termos do art.º 333º, n.º4 CPP na redacção da Lei 59/98 de 25.8 ) nem a decisão que revogou a execução da pena nem a que revogou o perdão pelo que, não tendo transitado em julgado, sempre poderá o arguido colocá-los em causa por via de recurso ( que, no caso, se refere apenas a estes dois despachos já que não mostrou pretender colocar em crise a sentença, parecendo aceitar os efeitos decorrentes da sentença cujos eventuais vícios, ou outros que a pudessem afectar nomeadamente relacionados com o julgamento, não invocou ).
De todo o modo, a omissão de audição do arguido previamente à revogação da suspensão da execução da pena, constitui nulidade insanável que afecta a decisão proferida, o que se declara sem necessidade de maiores desenvolvimentos e considerações e acarreta a invalidade dos actos posteriores dele dependentes e afectados por tal nulidade, como sejam os despachos que revogaram o perdão e que determinaram a detenção do arguido.

4. Pelo exposto, acordam os juízes nesta secção em dar provimento ao recurso revogando a decisão que revogou a suspensão da execução da pena sem que previamente tenha ouvido o arguido, nos termos do art.º 495º,n.º2 CPP .
Sem custas.
Restitua de imediato à liberdade, emitindo os competentes mandados de libertação.
Lisboa, 10/02/04

Filomena Lima
Ana Sebastião
Pereira da Rocha.