Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2191/08.3TDLSB-A.L1-3
Relator: MARIA JOSÉ MACHADO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: O prazo de 90 dias previsto no nº 4 do artº 105º do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, apenas impede que possa ter lugar a punição, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social se inicia na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº 2 do artº 5º do RGIT terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à segurança social.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – Relatório
1. O arguido V…, juntamente com “P…, Lda.”, foi acusado pelo M.º Público, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social p. e p. pelos art.ºs 3º, al. a), 6º, nº1, 7º, nº1, 107º, nº1 em conjugação com o art.º 105º, nºs2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) aprovado pela Lei nº15/2001 de 5/06.
2. Notificado da acusação, o arguido requereu a abertura de instrução invocando, além do mais, a prescrição do procedimento criminal.
3. No despacho que declarou aberta a instrução, a Sra. Juíza de instrução, proferiu o seguinte despacho quanto à questão da prescrição:
O arguido vem acusado da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social previsto e punido pelos art.ºs 3° a), 6° nº1, 7°nº1, 107º nº1 RGIT em conjugação com o art.º 105° nºs 2, 4 e 5 RGIT.
O prazo de prescrição é de cinco anos – art.º. 21° nº1 RGIT.
A última prestação devida à Segurança Social é de Junho de 2003 que deveria ter sido entregue à Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte, ou seja, até ao dia 15 de Julho de 2003.
Nos termos da legislação em vigor, os factos só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo legal da entrega da prestação ou seja 14 de Outubro de 2003.
Assim, o procedimento estaria prescrito em 14 de Outubro de 2008. Porém, o arguido foi constituindo nessa qualidade em 6 de Outubro de 2008, facto que interrompeu o prazo de prescrição – art.º 121º nº1 a) CP.
Assim, não se verifica a prescrição do procedimento criminal.
4. Não se conformando com tal despacho, o arguido interpôs o presente recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões: (transcrição)
1ª) O arguido, ora Recorrente, vem acusado da prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada, crime este p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 3°, aliena a), 6°, nº1, 7° nº1, 107°, nº1, em conjugação com o art. 105°, nº2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/2001 de 5 de Junho, e ainda com o disposto nos arts 30°, nº2 e 79° do Código Penal.
2a) O crime que vem imputado ao arguido é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (cfr. art. 105°, nº1 do RGIT).
3a) O prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal é, assim, de 5 anos, a contar da data da prática do último facto que integra a continuação (cfr. disposições conjugadas dos arts 118°, nº1, alínea c) e 119º nº2. alínea b) do Código Penal).
4a) Uma vez que o arguido apenas foi constituído como tal em 6 de Outubro de 2008 (cfr. fls. dos autos), verifica-se a PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL.
Com efeito
5a) A última prestação devida à Segurança Social é de Julho de 2003 e deveria ter sido entregue à Segurança Social até ao dia 15 de mês seguinte, ou seja, até ao dia 15 de Julho de 2003.
6ª) Com a não entrega nesta data (15 de Julho de 2003) da dita prestação à Segurança Social, ficaram preenchidos todos os elementos do tipo legal in causa, começando então a contar o respectivo prazo de prescrição.
6ª) Termos em que deveria o despacho recorrido ter considerado verificada a prescrição do procedimento criminal.
7ª) Não o tendo feito, violou, designadamente, as disposições conjugadas dos arts. 105°, nº4 e 5º, nº2 do RGIT e 119°, nº 1 e nº2, alínea b) do Código Penal.
5. O Ministério Público respondeu à motivação de recurso defendendo a sua improcedência.
6. Admitido o recurso, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, foi o mesmo remetido a este Tribunal onde a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no qual conclui também pela improcedência do recurso.
7. Colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
II – Fundamentação
O âmbito do recurso é dado, nos termos do art.º 412º, nº1 do CPP, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação nas quais sintetiza as razões do pedido.
Tendo em conta as conclusões supra transcritas, a questão que importa decidir é a de saber se ocorreu ou não a prescrição do procedimento criminal.
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 3º, al. a), 6º, nº1, 7º, nº1, 107, nº1 em conjugação com o art.º 105º, nº2, 4 e 5 do RGIT, aprovado pela Lei nº15/2001 de 5/06, pelo facto de ter retido o valor das contribuições descontadas nos salários dos trabalhadores e dos corpos sociais da sociedade arguida, da qual é gerente, e o não ter entregue à Segurança Social, como estava obrigado.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social é um dos crimes contra a segurança social previstos no Capítulo IV do Título I do RGIT (Lei 15/2001 de 5/06) que tem a epígrafe de crimes tributários sendo-lhe aplicável, em primeiro lugar, as disposições previstas naquele diploma, nos termos do seu art.º 1º, nº1, al. d) e, subsidiariamente, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar – art.º 3º, al. a) da mesma Lei.
Nos termos do art.º 21º, nº1 do RGIT, o procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
Este prazo não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou superior a cinco anos – nº 2 do mesmo preceito.
Ao contrário do que era estabelecido no art.º 5º do RJIFNA em que à semelhança do C. Penal (art.º 3º) o facto considerava-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado, o art.º 5º, nº2 do RGIT estabelece como momento da prática da infracção tributária nas infracções tributárias omissivas apenas a data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.
Ficou quanto a nós clara a intenção do legislador de fazer equivaler a omissão tributária à omissão penal, independentemente do momento em que se tiver produzido o resultado típico.
O prazo de prescrição inicia-se pois desde a prática do facto e interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo nos termos previstos no nº2 do art.º 42º e no art.º 47º – nº4 do art.º 21º do RGIT.
Entre outras, que ao caso não interessa, constitui causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal a constituição de arguido e a notificação da acusação (als. a) e b) do nº1 do art.º 121º do C. Penal), começando a correr novo prazo de prescrição depois de cada interrupção (nº2 do mesmo artigo).
A pendência do processo a partir da notificação da acusação é também causa de suspensão do procedimento criminal que não pode ultrapassar 3 anos, voltando a prescrição a correr a partir do dia em que cessar a causa da prescrição (art.º 120º, nº1, al. b), nºs 2 e 3do C. Penal).
Em qualquer caso, independentemente da interrupção, a lei estabelece um prazo legal máximo de prescrição do procedimento criminal que é o prazo normal de prescrição contado desde o início, acrescido de metade, uma vez ressalvado o tempo de suspensão, o que significa que o período da suspensão acresce sempre àquele – nº3 do art.º 121º do C. Penal.
Posto isto, vejamos o caso dos autos:
Tendo em conta o montante de cada uma das prestações não entregue pelo arguido à Segurança Social, o crime por ele praticado é punido com prisão até 3 anos ou multa até 360 dias por força do disposto no art.º 79º do C. Penal e dos art.ºs 105, nº1 e 107º do RGIT.
Por isso não lhe é aplicável o disposto no nº2 do citado art.º 21º do RGIT mas sim o seu nº1 que estabelece como prazo de prescrição o prazo de cinco anos contados sobre a prática do crime.
Estando em causa um crime continuado de abuso de confiança contra a segurança social, nos termos do disposto no art.º 119º, nº2, al. b) do C. Penal, aplicável subsidiariamente, o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal só corre, desde o dia da prática do último acto.
Importa pois apurar qual foi o último acto típico praticado pelo arguido, a partir do qual se deve contar aquele prazo de 5 anos.
O crime de abuso contra a segurança social, sendo um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais.
Tratando-se de omissão de dever de entregar as contribuições à segurança social, serão as datas limite para o cumprimento de tal dever a ter em conta para efeito da responsabilidade penal pelos ilícitos correspondentes, atento o disposto no nº2 do já citado art.º 5º do RGIT.
Dispõe, porém o nº 4 do art.º 105º do RGIT, aplicável ex vi art.º 107º do mesmo diploma, na redacção vigente à data dos factos, que “os factos só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação”. Actualmente continua a existir disposição idêntica embora sob a al. a) do referido nº4.
Coloca-se então aqui a questão de saber se este prazo não deve ser tido em conta no prazo da prescrição que se inicia com a prática do crime, o qual se tem por consumado na data em que termina o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, ou se, ao invés, como decidiu o tribunal recorrido e se decidiu nos arestos da Relação do Porto de 11/11/2009 e de 25/03/2009 e no aresto da Relação de Coimbra de 28.10.2008 (acessíveis em http://dgsi.pt/jtrp), deverá tal prazo de 90 dias ser tido em conta, só devendo contar-se o início do prazo de cinco anos de prescrição do procedimento criminal a partir do termo de tal prazo.
Este prazo de 90 dias tem sido considerado, à semelhança do prazo estabelecido na actual al. b) do nº4 do art.º 105º do RGIT, relativamente ao qual incidiu o acórdão de fixação de jurisprudência nº6/2008 de 9.04.2008, uma condição objectiva de punibilidade.
Conforme se escreve neste acórdão, as condições objectivas de punibilidade são circunstâncias que se situam fora do tipo de ilícito e da culpa e de cuja presença depende a punibilidade do facto, ou seja, são um pressuposto para que o actuar anti jurídico importe consequências penais. São condições em que uma ponderação das finalidades extra-penais tem prioridade em face da necessidade da pena. Uma vez que não pertencem ao tipo nem sequer sejam abrangidas nem pelo dolo nem pela negligência a aparição das condições objectivas de punibilidade é indiferente para o lugar e tempo da infracção”.
Não sendo pois este prazo de 90 dias um elemento do tipo, na esteira do que defende Tolda Pinto e Reis Bravo não será reportado a este elemento que se atenderá para início do prazo de prescrição. Segundo estes autores o momento a atender “não é o do termo do prazo de 90 dias mas sim o do termo do prazo legal da entrega da prestação. A dilação de tal prazo contende apenas com aspectos relacionados com o atendimento de circunstâncias geralmente relevantes, no âmbito do relacionamento jurídico-tributário, para a contemporização com situações de justificado atraso na entrega da prestação” (Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais, pág. 333).
Não podemos ignorar que esta condição objectiva da punibilidade configura, objectivamente, uma situação mais favorável para o eventual agente do crime, sendo objectivo inequívoco do legislador conceder uma possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva.
Se assim é, ao não se considerar esse prazo para efeitos de prescrição, está-se por um lado a agravar a posição processual do agente na medida em que se está a prorrogar o prazo normal da prescrição legalmente previsto e, por outro está-se a aplicar uma “causa de suspensão” da prescrição, não prevista no C. Penal e a violar, por isso, o princípio da legalidade penal.
Posto isto e, em conclusão, entendemos que este prazo de 90 dias previsto no nº4 do art.º 105º do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, apenas impede que possa ter lugar a punição, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a segurança social se inicia na data em que o crime se consumou, isto é, na data em que nos termos do nº2 do art.º 5º do RGIT terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à segurança social.
Assim, uma vez que as últimas contribuições retidas pelo arguido respeitantes aos descontos efectuados nos vencimentos pagos aos trabalhadores e corpos sociais no mês de Junho de 2003 deveriam ter sido entregues até ao dia 15 do mês seguinte, ou seja, até ao dia 15 de Julho de 2003 (art.º 47º, nº1 da Lei nº32/2002 de 20/12), a partir de então iniciou-se o prazo de 5 anos de prescrição do procedimento criminal que terminou a 15 de Julho de 2008.
Uma vez que o arguido só foi constituído nessa qualidade no dia 6 de Outubro de 2008 e a acusação, deduzida a 22.07.2008, só foi notificada ao arguido no dia 06.10.2008 e não ocorreu qualquer outra causa de interrupção ou de suspensão da prescrição, importa concluir pela prescrição do procedimento criminal.
Termos em que não pode deixar de proceder a pretensão do recorrente.

III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes da 3ª Secção deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso e, em consequência declarar prescrito o procedimento criminal contra o arguido pelo crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social de que foi acusado.
Sem custas.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010
(processado e revisto pela relatora)

Maria José Machado
Nuno Maria Garcia