Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
843/08.7TJLSB.L1-7
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: INJUNÇÃO
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: a) As prescrições presuntivas apenas operam a inversão do ónus da prova sobre o cumprimento da obrigação, mas não têm sobre ela qualquer eficácia extintiva;
b) O crédito de uma sociedade sobre outra, emergente de um contrato de prestação de serviços entre ambas celebrado, não cabe na previsão da alínea c) do artigo 317º do CC, ainda que tal prestação seja feita através de profissional liberal.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª secção da Relação de Lisboa:

C, Lda, com rede na Rua ..., 8, 2ºdto, em Lisboa, requereu injunção contra M, Lda, com vista ao pagamento da quantia de €5.162,00 referente a serviços de contabilidade por si prestados à sociedade requerida, valor a que acrescem juros vencidos e vincendos, liquidando os primeiros no montante de €1.066,00.
Regularmente notificada, veio a requerida deduzir oposição, dizendo, em síntese, que o preço dos serviços contratados à requerente foi pago e, para além disso, o crédito em causa sempre estaria prescrito em face do disposto na alínea c) do artigo 317º do CC.
Discutida a causa, foi proferida sentença a julgar a acção improcedente por não provada, com a consequente absolvição da requerida do pedido formulado.
Inconformada, recorre a requerente para pugnar pela revogação da sentença, alinhando para tal os seguintes fundamentos com que encerra a alegação oferecida:
1 – A prescrição presuntiva tem o seu fundamento na existência de obrigações perante as quais os devedores não guardarão por muito tempo ou nem sequer exigirão recibo. Existe a necessidade de “proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é usual exigir recibo durante muito tempo”.
2 – O artigo 317° remete para devedores que merecem essa protecção e não pode tratar-se de comerciantes, estabelecimentos que prestam serviços a estudantes, profissionais da indústria, porque só assim essa necessidade de protecção se pode justificar: não se encontrarem no exercício ou a obrigar-se por ligação com o exercício de actividade profissional (…).
3 – Os devedores para efeitos da prescrição presuntiva não podem, como aquelas entidades previstas no artigo 317°C.C, e para que aquela protecção não perca sentido, estar sujeitos legalmente a registo das transacções que efectuam. A prescrição fiscal é de 8 anos de acordo com o artigo 48°, n°1 da LGT pelo que as sociedades comerciais têm de arquivar e registar todos os movimentos no âmbito da sua actividade ou por causa dela pelo menos nos 8 anos seguintes.
4 – A prestação dos serviços em causa mais não é do que um fornecimento de bens ou serviços à apelada, não sendo a Apelante mais do que uma fornecedora da actividade da ré, obrigada por lei a ter contabilidade organizada (…).
5 – O contrato de avença de prestação de serviços é uma obrigação duradoura pelo que a prescrição aplicável é a do artigo 310º, alínea g) do CC (5 anos).
6 – A apelante pode ter profissionais liberais a trabalhar para si mas não enquanto tal, por não trabalharem por conta própria. Não é a apelada, em si, profissional liberal.
7 – O artigo 314° do CC refere o afastamento da prescrição presuntiva por confissão tácita do devedor que, sem qualquer justificação e notificado regularmente, não presta depoimento em tribunal por esta atitude ser incompatível com a presunção de cumprimento.
8 – O despacho emitido em 19 de Outubro deixa subentendida a improcedência da excepção da prescrição, por invocar o artigo 342° do CC como não cumprido pela apelada, sobre quem incidia o ónus de provar o alegado, por si, cumprimento da obrigação.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Âmbito do recurso:
Sopesado o teor das conclusões acima enunciadas e que balizam o elenco das questões cujo conhecimento foi deferido a este tribunal, ressalta que a única questão de que nos cumpre decidir se prende com a verificação da prescrição presuntiva invocada pela requerida na respectiva oposição e a sua incidência sobre as regras do ónus de prova.
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Factos Provados:
Na sentença foram dados como provados os seguintes factos:
1. A requerente dedica-se à prestação de serviços de contabilidade (fls. 68).
2. No âmbito da sua actividade comercial, a requerida contratou serviços de contabilidade à requerente.
3. Para tanto, as partes celebraram uma avença mensal, nos termos que constam de fls. 55 e 56.
4. No decurso daquela relação contratual e no período entre 30 de Abril de 2004 e 29 de Setembro de 2005, foram emitidas facturas com os nºs 251, 326, 396, 467, 540, 615, 683, 750, 817, 17, 80, 145, 208, 271, 333, 394, 455, 513, no montante global de €5.162,00.
5. A requerente interpelou a requerida para pagar o montante de € 5.162,24, por carta registada com aviso de recepção, datada de 10 de Agosto de 2007.
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Análise do recurso:
Na sentença escreveu-se o seguinte para fundamentar a decisão ora em crise: “No caso dos autos, provou-se que a Requerente prestou à Requerida os seus serviços de contabilidade. Esta alegou que pagou esses serviços, os quais não foram postos em causa, mas não demonstrou esse pagamento (por não produção de prova). Contudo, a situação em apreço subsume-se na alínea c) do artigo 317º do Código Civil (…) A última factura a considerar data de 29 de Setembro de 2005 (…) e esta acção só entrou em juízo em 18 de Março de 2008, o que significa que nessa data o crédito da Requerente já se encontrava prescrito”.
É exacto que se provou que a requerente prestou os serviços cujo pagamento reclama, mas tal prova resulta da confissão constante da oposição, valorada à luz do disposto no artigo 490º do CPC.
De resto, tendo a requerida esgrimido a excepção peremptória de pagamento a fim de beneficiar da prescrição presuntiva estabelecida na alínea c) do artigo 317º do CC, estava-lhe vedado impugnar a prestação de serviços sob pena de se considerar confessada a dívida, em harmonia com o disposto na parte final do artigo 314º do CC.
Com efeito, o devedor que impugna a obrigação não pode beneficiar da prescrição presuntiva - que assenta numa mera presunção de cumprimento – pois aquela impugnação é incompatível com esta presunção, dado que não faz sentido o devedor alegar ter pago uma obrigação que diz não ter existido.
Por conseguinte, todo o enfoque do litígio tem de ser colocado na prova sobre o pagamento, ganhando então importância a questão da presunção presuntiva.
Na verdade, ao contrário do entendimento que subjaz à decisão proferida e acima transcrita, a prescrição presuntiva releva apenas no plano probatório, dispensando aquele que dela beneficia de provar o cumprimento (nº1 do artigo 350º do CC), uma vez que opera a inversão do ónus da prova (nº1 do artigo 344º do CC).
Aplicado o exposto ao caso concreto, dir-se-á então que, no caso de a dívida ser subsumível à previsão da invocada alínea c) do artigo 317º do CC, cumpriria à requerente demonstrar que a requerida não lhe pagou o preço dos serviços prestados e não a esta demonstrar o facto extintivo, em harmonia com o nº2 do artigo 342º do mesmo diploma.
O tribunal recorrido, com o devido respeito, não fez correcta aplicação das regras estabelecidas nas disposições legais atrás referidas, pois considerou não provado o pagamento invocado pela apelada assinalando que tal demonstração lhe incumbia por força do nº2 do artigo 342º CC (fls 122), mas depois julgou a acção improcedente com base na prescrição presuntiva.
Aliás, se o tribunal entendia que o ónus da prova do pagamento impendia sobre a ré e depois afirma que ela não fez a prova que lhe cumpria, é incoerente declarar depois a acção “integralmente improcedente, por não provada” pois a improcedência se ancorou exclusivamente no facto de se considerar procedente a excepção de prescrição (valorada como extintiva).
Como se disse já, a entender-se que o crédito cabe na previsão da alínea c) do artigo 317º, então o tribunal deveria submeter a demonstração o facto negativo – o não pagamento – cabendo então à requerente o ónus da prova, por força da aplicação conjugada dos artigos 344º, nº1 e 350º, nº1 do CC.
E, assim sendo, a esta Relação mais não restava do que anular a decisão, em harmonia com o disposto no nº 4 do artigo 712º do CPC, a fim de ser submetido a demonstração, não o facto pagamento mas antes o facto não pagamento.
Simplesmente tal decisão teria como pressuposto que a dívida nestes autos reclamada fosse subsumível à previsão do artigo 317º.
E, decisivamente, o crédito da requerente não cabe na previsão da alínea c) do mencionado artigo porquanto não emerge do exercício de profissão liberal pois, como é intuitivo, uma sociedade, enquanto tal e dada a sua própria natureza, não exerce nenhuma profissão.
Ora, mesmo que a autora prestasse os seus serviços através de profissionais liberais (facto nem sequer alegado), o crédito da recorrente emerge do contrato de prestação de serviços e não do exercício da actividade de tais profissionais.
Ou seja, a prescrição presuntiva invocada pela recorrida apenas abarca os créditos de que sejam titulares os profissionais liberais, emergentes de serviços prestados (ou despesas efectuadas) no âmbito da respectiva profissão, não se estendendo aos créditos de quaisquer outras entidades sobre os terceiros beneficiários de tais serviços.
Concede-se que o que vem de afirmar-se não é isento de controvérsia pois já se entendeu que “para efeitos da aplicação do artigo 317º, c) do Código Civil é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta” (Ac. STJ de 12/9/2006, Cons. Nuno Cameira).
Entendeu-se no caso invocado que “os serviços na área da contabilidade, traduzidos em consultoria fiscal, designadamente a realização de estudos económicos e análises contabilísticas (…) se enquadram substancialmente no exercício duma profissão liberal”, dizendo-se ainda que “tanto da letra como do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito se define unicamente pela natureza dos serviços e não da entidade que os presta”.
Ora, com o devido respeito, a afirmação transcrita não nos parece isenta de dificuldades, tanto no que tange ao elemento literal como no que concerne à intenção que lhe está subjacente.
Com efeito, será porventura temerário sustentar que a expressão “profissões liberais” abarca a actividade dos entes societários e não estritamente das pessoas singulares (“dos arquitectos, engenheiros e agentes técnicos de engenharia, dos médicos, médicos veterinários e dentistas, dos enfermeiros e parteiras, dos professores e explicadores, dos advogados e solicitadores, dos desenhadores” como refere Mário de Brito (CCAnotado, vol.I, pág.407).
Por outro lado, a razão de ser das prescrições presuntivas radica na circunstância de “as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não se exigir, por via de regra, quitação, ou pelo menos não se conservar por muito tempo essa quitação” (Almeida Costa, Obrigações, 4ª ed. pág. 795).
Tem por isso razão a recorrente quando assinala que, na situação dos autos, tal circunstancialismo não se verifica, porquanto todos os pagamentos tem necessariamente de ser acompanhados de documento de quitação e este deve ser incorporado na contabilidade e aí permanecer por largo lapso de tempo.
Aliás, radica por certo na mesma ordem de considerações a diferenciação operada na alínea b) do mesmo artigo, ao estabelecer igual presunção a favor das dívidas resultantes da aquisição de bens a comerciantes e industriais, mas excluindo-a quando tais bens se destinam ao exercício da “actividade industrial” do devedor (entendendo-se tal expressão com o alcance que a doutrina e a jurisprudência lhe conferem, ou seja, qualquer actividade económica produtora de riqueza).
De qualquer modo e ainda que se aderisse ao entendimento acolhido no aresto em análise, torna-se óbvio que, tendo-se a ré limitado a invocar a prescrição presuntiva, sem caracterizar minimamente os termos da sua prestação, também não podia o tribunal suprir a omissão a partir dos termos do contrato (fls 70) pois este engloba também a prática de tarefas materiais sem qualquer conexão com a matriz das profissões liberais.
Neste contexto e porque ao crédito ajuizado não é aplicável a prescrição presuntiva invocada, torna-se agora exacta a afirmação constante da motivação da decisão de facto sobre o ónus da demonstração do pagamento (fls 122).
E como a requerida não produziu qualquer prova sobre o pagamento que invocara, a acção e, consequentemente, a presente apelação, não podem deixar de proceder.
Em síntese:
a) As prescrições presuntivas apenas operam a inversão do ónus da prova sobre o cumprimento da obrigação, mas não têm sobre ela qualquer eficácia extintiva;
b) O crédito de uma sociedade sobre outra, emergente de um contrato de prestação de serviços entre ambas celebrado, não cabe na previsão da alínea c) do artigo 317º do CC, ainda que tal prestação seja feita através de profissional liberal.
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Decisão:
Nos termos expostos, julga-se a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a sentença e condena-se a requerida no pedido, incluindo os juros vencidos desde 29/9/2005 e vincendos até efectivo pagamento, calculados à taxa legal aplicável.
Custas pela apelada.

Lisboa, 12 de Outubro de 2010

Gouveia Barros
Roque Nogueira
Maria João Areias