Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1958/2006-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: DECISÃO JUDICIAL
FUNDAMENTAÇÃO
JUNTA MÉDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Sumário: Existindo discrepância entre pareceres de peritos médicos, propondo uns, sem fundamentação, uma IPP de 10% e outros uma IPP duas ou três vezes superior, a decisão do juiz que fixou a IPP em 10% sem especificar as razões que a levaram a fundamentar-se exclusivamente naquele laudo e a desprezar todos os demais exames e pareceres, desrespeitou o disposto nos art. 205º nº 1 da CRP e 158º e 659º do CPC.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório, ocorrências processuais relevantes e objecto do recurso

No dia 18/10/2001, J… sofreu um acidente de trabalho, quando carregava valores, por conta e sob a autoridade de Prossegur - Companhia de Segurança, S.A., de que lhe resultou lombalgia de esforço;
Na data do acidente, o sinistrado auferia o salário anual de € 15.686,83;
A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros Zurich, S.A. pelo salário atrás referido, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 002477835;
Os serviços clínicos da seguradora atribuíram ao sinistrado uma IPP de 10%, após a data da alta.
Participado o acidente ao tribunal, o sinistrado foi submetido a exame médico, tendo o Ex.mo perito médico do tribunal lhe atribuído uma IPP de 23,5%, a partir da data da alta, ocorrida em 11/8/2003 (cfr. fls. 89).
Esse exame foi precedido de um exame da especialidade de neurocirurgia e, neste, o especialista concluiu que o sinistrado mantém lombalgia com irradiação aos membros inferiores com predomínio no lado direito e está afectado com uma IPP de 23,5% (cfr. fls. 72)
Na tentativa de conciliação a que se procedeu, no final da fase conciliatória, as partes acordaram na caracterização do acidente como de trabalho, na existência de nexo de causalidade entre o acidente e as lesões apresentadas pelo sinistrado, no montante da retribuição auferida pelo sinistrado à data do acidente, na transferência da responsabilidade para a Companhia de Seguros Zurich, S.A., tendo-se frustrado a conciliação por ambas as partes terem discordado do coeficiente de 23,5% desvalorização atribuído pelo perito médico do tribunal.
O processo transitou para a fase contenciosa, apenas com esta questão controvertida, tendo ambas as partes requerido a realização de exame por junta médica e formulado os respectivos quesitos.
Após a realização de exames de electromiografia aos membros inferiores e radiografia à coluna lombar, procedeu-se a exame por junta médica.
Nesse exame, os peritos do tribunal e da seguradora declararam que o sinistrado apresenta as lesões descritas no laudo de fls. 199 e atribuíram-lhe uma IPP de 10%; o perito do sinistrado considerou que este além dessas lesões apresenta alterações de motricidade e sensibilidade dos membros inferiores, tendo-lhe atribuído uma IPP de 30% (cfr. fls. 199 a 200).
Seguidamente, a Mma juíza proferiu a seguinte sentença:
“Na presente acção emergente de acidente de trabalho, com processo especial em que é sinistrado José Carmo Ramalhete Bicho e entidade responsável Companhia de Seguros Zurich, SA, ambos com sinais nos autos, mediante a realização de exame médico foi arbitrado ao autor uma IPP de 23,5%, desde a data da alta, ocorrida em 11/08/03.
A tentativa de conciliação frustou-se, por o sinistrado e a seguradora não estarem de acordo com a medida da incapacidade.
A requerimento de ambos, procedeu-se à realização da Junta Médica, que por maioria, arbitrou ao autor uma IPP de 10%, desde a data da alta.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo não enferma de nulidade total.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Inexistem outras nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias de que cumpra conhecer.
A única questão que se discute neste momento é a percentagem de IPP de que o sinistrado ficou afectado em consequência do acidente a que se referem os autos.
Ora, radicado no laudo de fls. 199 e 200, fixa-se em 10% a IPP de que o autor se encontra afectado desde a data da alta ( 11/08/2003).
Ora, considerando o salário anual auferido pelo autor no valor de € 15.686,83 e a IPP fixada, tem este direito a receber uma pensão anual e obrigatoriamente remível de € 1.098,08, desde 12/8/03, da total responsabilidade da seguradora.
Condeno pois a Companhia de Seguros a pagar ao autor uma pensão anual e obrigatoriamente remível de € 1.098,08, com inicio em 12/8/03. Mais se condena a seguradora no pagamento ao autor da quantia de € 10.00, a título de transportes.
Condeno ainda a ré seguradora a pagar à sinistrada juros de mora sobre o capital em divida, desde 12/8/03 até integral pagamento, à taxa anual legal.
Custas a cargo da seguradora.
Fixo à acção o valor de € 14.983,41.
Proceda a secção ao calculo do capital de remição, após o que vão os autos ao Ministério Público.”
Inconformado, o sinistrado interpôs recurso de apelação da referida decisão, no qual formulou as seguintes conclusões:
1ª) - A Mma juíza a quo proferiu decisão aceitando sem mais o referido auto de Junta médica, sem que tal adesão total fosse sequer devidamente fundamentada;
2ª) - A falta de fundamentação é causa de nulidade da sentença, nos termos do art. 668º, n.º 1, al. b) do CPC;
3ª) - O recorrente requereu a realização de junta médica, na qual se fixou uma IPP de 10%
4ª) - O ora recorrente nasceu no ano de 1953, tem agora 52 anos;
5ª) - Desde o acidente o recorrente nunca mais trabalhou ou exerceu funções de qualquer tipo, sofrendo graves limitações;
6ª) - A referida Junta Médica não respeitou as regras gerais impostas pela lei;
7ª) - Deverá o recorrente ver acrescida ao coeficiente de incapacidade previsto na Tabela a bonificação de 1,5;
8ª) - A não contabilização desta bonificação violou o ponto 5 alínea a) das Instruções Gerais do DL 341/93, de 30 de Agosto (TNI);
9ª) - Entende o recorrente que na avaliação da sua incapacidade não foram ponderados todos os pontos aplicáveis constantes da TNI;
10ª) - O auto de Junta Médica não foi conclusivo ou sequer devidamente fundamentado nas respostas aos quesitos propostos;
11ª) - Não foram ponderados critérios de razoabilidade e justiça tendo em atenção a idade do sinistrado as suas habilitações literárias e o mercado de emprego em que se encontra inserido;
12ª) - Formulou a Mma juíza a quo a sua convicção quanto aos factos através de auto de Junta médica que enferma de falhas graves, não apreciando em sede de decisão os restantes documentos, mais convincentes, juntos aos autos;
13ª) - Foi assim violado o art. 296º, n.º 1, al. b) do Código de Trabalho, não contando para a fixação da incapacidade e de pensão a atribuída a diminuição da capacidade de ganho do sinistrado, ora recorrente;
14ª) - Face ao exposto deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a douta sentença proferida.
A seguradora, na sua contra-alegação, pugnou pela confirmação da sentença recorrida e pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Fundamentação

A 1ª questão que se suscita neste recurso é a de saber se a sentença recorrida enferma dos vícios que o apelante lhe imputa.
Alega o recorrente que a Mma juíza a quo proferiu decisão aceitando sem mais o auto de junta médica, sem que tal adesão total se mostre minimamente fundamentada. Tal falta de fundamentação constitui causa de nulidade da sentença, nos termos do art. 668º, n.º 1, al. b) do CPC.
Vejamos se tem razão.
Compulsados os autos, verifica-se que o processo transitou da fase conciliatória para a fase contenciosa com uma questão controvertida: saber se o sinistrado está ou não afectado com uma IPP superior a 10%.
O facto essencial a apurar nessa fase do processo consistia, portanto, em saber qual o coeficiente de incapacidade do sinistrado, em consequência das lesões sofridas no acidente ocorrido em 18/10/2001. Como se trata de uma questão eminentemente técnica, os exames, os relatórios e os laudos periciais constituem os meios de prova por excelência para determinar esse coeficiente de desvalorização.
Sobre essa matéria, além do laudo da junta médica, existem nos autos vários exames e vários pareceres médicos. No entanto, a Mma juíza a quo, estribou-se exclusivamente no laudo dos peritos do tribunal e da seguradora, que intervieram na junta médica e fixou em 10% a IPP do sinistrado, a partir da data da alta, não tendo atribuído qualquer relevância ao parecer do perito do sinistrado que interveio nessa junta (cfr. fls. 199 v.º), ao parecer do especialista de neurocirurgia junto a fls. 72 dos autos, ao exame médico efectuado pelo perito do tribunal na fase conciliatória dos autos (cfr. fls. 89 e 90), nem aos relatórios médicos apresentados pelo sinistrado com o seu requerimento de junta médica (fls. 104 a 106), nos quais se atribuiu ao sinistrado um coeficiente de incapacidade muito superior ao proposto por aqueles dois peritos.
A discrepância entre o parecer dos primeiros e os pareceres dos segundos é enorme. Enquanto os dois primeiros (os peritos da seguradora e do tribunal) propõem, sem qualquer fundamentação, uma IPP de 10%, os outros cinco médicos propõem todos uma IPP duas ou três vezes superior. E não obstante esta enorme discrepância, a Mma juíza baseou-se exclusivamente no laudo subscrito por aqueles dois peritos e fixou em 10% a IPP do sinistrado, a partir da data da alta, sem especificar as razões que a levaram a fundamentar-se exclusivamente naquele laudo e a desprezar todos os demais exames e pareceres juntos aos autos nos quais se sustenta que o sinistrado está afectado de uma incapacidade muito superior àquela. A Mma juíza não fez qualquer análise crítica das provas produzidas no processo, nem declarou por que razão deu apenas credibilidade ao laudo subscrito pelo perito da seguradora e pelo perito do tribunal e não deu qualquer credibilidade aos demais exames e pareceres médicos juntos aos autos.
É certo que as asserções e conclusões dos peritos não vinculam o julgador. O princípio da livre apreciação das provas ou da prova livre tem aqui perfeito cabimento. O juiz deve exercer sobre todas as provas produzidas a sua actividade crítica, e mover-se, na sua apreciação, com inteira liberdade e sem outros limites que não sejam os que lhe são impostos pela sua convicção íntima ou pelo seu próprio juízo. Nada obsta, pois, a que o julgador se desvie dos pareceres de alguns peritos e até dos pareceres da maioria dos peritos que foram chamados a pronunciar-se sobre a situação clínica do sinistrado e opte por um parecer de apenas dois peritos. Apenas se exige, nesses casos, que o juiz deixe consignada nos autos a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o fez (arts. 653º, n.º 2 e 655º do CPC) e que seja convincente nessa motivação. Exige-se, sobretudo, que a Mma juíza esclareça, neste caso, as razões que a levaram a basear a sua convicção num parecer que não se encontra fundamentado (art. 586º, n.º 1 do CPC) e a desprezar todos os demais pareceres (que se mostram minimamente fundamentados). Exige-se que explique por que razão, perante tamanha discrepância, não solicitou a realização de exames e pareceres complementares (art. 139º, n.º 5 do CPT); por que razão a sua convicção se manteve inabalável naquele parecer, não sentindo necessidade de o mandar fundamentar (art. 586º, n.º 1 do CPC) nem de verificar se se mostravam (ou não) preenchidos os requisitos previstos no ponto 5, alínea a) das Instruções Gerais do DL 341/93, de 30/8.
A transparência das decisões judiciais, o cumprimento do dever de fundamentação de todas as decisões que afectem os interessados e o dever de obediência à lei (art. 653º, n.º 2 do CPC) impõem um maior esforço na racionalização do processo de formação da convicção. Não basta que exista seriedade na forma como o tribunal decide a matéria de facto; é necessário que o desempenho sério da actividade jurisdicional transpareça inequivocamente da forma pela qual se exprimem as decisões. A forma não substitui nem suplanta a substância, mas a afirmação da segurança com que o tribunal emite a decisão e o poder de persuasão que dela deve emanar impõem que (esta) se revista de determinada forma legalmente prevista para conquistar ou expressar a autoridade.
Nos termos do art. 712º, n.º 5 do CPC, se a decisão proferida sobre algum facto essencial não se mostrar devidamente fundamentada, pode a Relação determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância a fim de ser suprida essa falta de fundamentação.
O processo deve, portanto, baixar à 1ª instância a fim de ser proferida nova decisão sobre o coeficiente de incapacidade do sinistrado, devidamente fundamentada. Nessa decisão, a Mma juíza deve analisar criticamente as provas produzidas a respeito desta matéria e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção nos termos acima referidos.
Além da referida omissão, verifica-se ainda que a Mma juíza não especificou na sentença os fundamentos de facto e os fundamentos de direito que justificam a sua decisão, não tendo respeitado o disposto nos arts. 205º, n.º 1 da CRP, 158º e 659º, n.º 2 do CPC.
Os destinatários da decisão têm o direito de conhecer os fundamentos de facto e os fundamentos de direito que estiveram na base da decisão, sendo nessa fundamentação que deve ser encontrada a sua legitimação. Numa altura em que tanto se discute a legitimação do poder judicial, esta tendência que se vem verificando para o aligeiramento das decisões judiciais não contribui para a acreditação dos tribunais e para a legitimação das suas decisões.
Impõe-se, portanto, suprir esse vício.
É certo que nenhuma das partes arguiu esta omissão e é certo também que a não especificação dos fundamentos de facto e dos fundamentos de direito de uma sentença constitui uma nulidade que não é de conhecimento oficioso, isto é, uma nulidade que só pode ser conhecida se for arguida por alguma partes. Contudo, se a Relação, nos termos do art. 712º, n.º 4 do CPC, pode anular a decisão proferida pela 1ª instância, sempre que a considere deficiente, obscura ou contraditória sobre determinado ponto ou determinados pontos da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação dessa matéria, por maioria de razão deverá dispor desse poder de anulação quando o juiz a quo conheça do mérito da causa, sem enunciar previamente os fundamentos de facto e os fundamentos de direito da sua decisão.
É que com total ausência de fundamentação, não pode este tribunal de recurso sindicar ou exercer o poder censório não só quanto à própria matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável.
Os conflitos de interesses entre as partes e as relações materiais controvertidas traduzem-se em factos. O direito aplica-se aos factos alegados e provados.
Ora, faltando os fundamentos de facto e de direito da sentença, falta um dos pressupostos necessários ao julgamento do recurso, pelo que não nos é possível conhecer se, no caso em apreço, foi bem ou mal aplicado o direito correspondente.
Impõe-se, assim, a anulação oficiosa da sentença e a devolução do processo à 1ª instância, a fim de ser proferida nova sentença na qual deverá constar a discriminação de todos os factos ou elementos de facto provados com interesse para a decisão da causa, bem como a especificação dos fundamentos de direito.
Fica, consequentemente, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

3. Decisão

Em conformidade com os fundamentos expostos acordam os juízes desta Secção em anular oficiosamente a sentença recorrida e devolver o processo à 1ª instância, a fim de ser proferida decisão sobre a incapacidade do sinistrado, devidamente fundamentada, e a seguir nova sentença com a especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Custas pela apelada.

Lisboa, 10 de Maio de 2006

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