Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
333/07-2
Relator: ANA PAULA BOULAROT
Descritores: PROVA PLENA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
NEGÓCIO FORMAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O normativo inserto no artigo 376º do CCivil, prescreve que um documento particular cuja autoria seja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu Autor e, os factos nelas compreendidos consideram-se provados na medida em que forem contrários aos seus interesses (isto sem prejuízo de uma eventual arguição de falsidade, que no caso não foi suscitada).
(APB)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA


I L, intentou acção declarativa com processo sumária contra X SEGUROS, S.A., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 9. 227, 76, acrescida dos juros à taxa legal desde a citação da Ré, quantia essa proveniente do dispêndio por si efectuado com o arrendamento de uma habitação temporária por força de um sinistro ocorrido na sua habitação que a privou do seu uso, ocupação essa coberta pelo seguro multiriscos habitação havido com a Ré.

A final veio a acção a ser julgada improcedente, tendo a Autora em sede de recurso de Apelação apresentado as seguintes conclusões:
- Apelante e Apelada celebraram um contrato de seguro – Seguro Multiriscos Habitação protecção Total do Lar Plus - titulado pela apólice n.°…, Cobertura Classic, sendo o local de risco o edifício sito na …., n.° 1, Lisboa, e que aquando da derrocada, foi a Apelada obrigada, tendo em conta as circunstâncias, a arrendar um imóvel, com o qual despendeu a quantia de € 9.227,76.

- Fê-lo, mas não sem antes se certificar junto dos funcionários da Apelada, se a sua apólice cobria tais despesas, ao que lhe foi dito, não só que a sua apólice abrangia as referidas despesas, bem como, que para o reembolso de tal montante, bastaria a apresentação de comprovativo de ocupação desse imóvel.
- Desta forma, a Apelante agiu em conformidade com os esclarecimentos que lhe foram prestados, bem como com a convicção que desde sempre formou, de que a sua apólice abrangeria também as despesas tidas com a privação temporária de utilização do seu imóvel/segurado na decorrência de qualquer dos riscos cobertos.
- Para surpresa da Apelada, foi-lhe negado o reembolso da referida quantia, alegando para tanto que opção escolhida pela Apelante - Cobertura Classic - não contempla a garantia "privação temporária de uso do local arrendado ou ocupado, não obstante ter sido dito à Apelante que as referidas despesas estavam cobertas pela apólice do contrato de seguro que assinou.
- Mais, a Apelada fez ainda menção ao art.°3° das Condições Gerais, que juntou na sua contestação, quando sabia bem que a Apelante nunca teve conhecimento dessas mesmas Condições Gerais, nunca as compreendeu e nunca as quis, portanto, se é certo que Apelada assinou o contrato, é certo também, que o fez sem que lhe comunicassem todas as cláusulas do mesmo, estando desta forma, mal informada e tendo formado uma convicção errada, convicção ou erro esse, que não lhe pode ser imputados tendo em conta que a mesma tomou as providencias necessárias para se assegurar de que tinha compreendido bem o contrato que assinara.
- Nesta conformidade, estamos perante uma manifesta violação dos deveres de comunicação previstos no art.° 5.° e do dever de informação contemplado no art.° 6° do citado diploma legal, na medida em que se funda numa necessidade de aclaração, pressupõe, portanto, uma comunicação não adequada e efectiva de cláusulas contratuais gerais (tal como se verificou in casu), o que não permitiu a compreensão do seu alcance, decisivo para a formação de uma vontade inequívoca e esclarecida de contratar.

- Para a violação de tais deveres a solução é a exclusão do contrato de tais cláusulas que nunca foram dadas a conhecer cabalmente à aderente, cfr. art.° 8°, no entanto, e tendo em conta que o que se discute aqui é precisamente a inexistência das referidas cláusulas do contrato de seguro celebrado, ao contrário do que julgava a Apelante e do que lhe foi dito, e por consequência ter a mesma formado a sua convicção na existência dessas mesma cláusulas, que tutelavam os seus interesses, a consequência, obviamente não pode ser a sua exclusão. A solução passará necessariamente por outra via.


- Deparamo-nos, assim, com o que se pode chamar de cláusula abusiva, sendo certo que a lei portuguesa não define directamente cláusula abusiva, residualmente dela se pode retirar a seguinte definição: aquela cláusula que confira de modo directo ou indirecto a quem as predisponha, a faculdade exclusiva de interpretar qualquer cláusula do contrato, bem como aquelas que limitem ou de qualquer modo alterem obrigações assumidas na contratação directamente por quem as predisponha ou pelo seu representante, foi o que efectivamente sucedeu.

- Face a esta conjuntura, a solução passará, então, pela atribuição ao contrato de seguro assinado, o sentido dado pela aderente, ora Apelante, e que é o da Seguradora, Apelada, cobrir integralmente as despesas tidas pela privação temporária da utilização do imóvel/objecto segurado, protegendo, desta forma, as expectativas geradas à Apelante.

- Termos em que deverá ser condenada a Apelada, no pagamento da quantia de € 9.227,76, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, à ora Apelante.

Nas contra alegações a Apelada pugnou pela manutenção do julgado.



II A sentença sob recurso deu como assentes os seguintes factos:



- A Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro – Seguro Multiriscos Habitação Protecção Total do LAR-PLUS, titulado pela Apólice n.°…, cobertura CLASSIC, sendo o local de risco o edifício sito na Travessa Cabral, n.° 1, Lisboa, conforme documento junto a fls. 23 a 54 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


- A Cobertura CLASSIC garante o ressarcimento dos prejuízos em consequência directa de: incêndio, queda de raios e explosão; tempestades; inundações; demolição e remoção de escombros; aluimentos de terras, queda de aeronaves; responsabilidade civil extracontratual; danos por águas; furto ou roubo; queda acidental de vidros fixos; quebra ou queda de antenas e derrame acidental de óleo.


- A Cobertura PLUS garante o ressarcimento dos prejuízos em consequência directa de: incêndio, queda de raios e explosão; tempestades; inundações; demolição e remoção de escombros; aluimentos de terras, queda de aeronaves; responsabilidade civil extracontratual; danos por águas; furto ou roubo; queda acidental de vidros fixos; quebra ou queda de antenas e derrame acidental de óleo; greves tumultos e alterações da ordem pública; actos de terrorismo, vandalismo, maliciosos ou sabotagem; privação temporária de uso do local arrendado ou ocupado; riscos pessoais domésticos e assistência doméstica.
- Em Junho de 2000, o imóvel segurado, apresentava riscos de inundação (manchas de humidade e escorrimento de água), tendo ocorrido uma derrocada em 23.11.2000.
- Nesta sequência, entre 1.07.2000 e 21.12.2000, por virtude da privação temporária do seu imóvel, a Autora arrendou outro imóvel, despendendo a quantia de Euros 9.227,76, referente às rendas pagas, conforme documento junto a fls. 7 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
- A Autora interpelou a Ré para proceder ao pagamento da quantia referida, o que esta não fez.
- A Autora não subscreveu a cobertura do recheio da casa objecto do contrato de seguro.
- Na proposta de seguro que subscreveu, a Autora declarou, além do mais, que tomou conhecimento das condições gerais e especiais deste contrato de seguro, ao qual me proponho aderir, conforme documento junto a fls. 25 e 26 cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Vejamos.

Entre a Apelante e a Apelada foi celebrado um contrato de seguro denominado Multiriscos Habitação Protecção Total do Lar – Plus, tendo optado pela cobertura Classic.

Conforme resulta do artigo 3º das condições gerais a Cobertura CLASSIC garante o ressarcimento dos prejuízos em consequência directa de: incêndio, queda de raios e explosão; tempestades; inundações; demolição e remoção de escombros; aluimentos de terras, queda de aeronaves; responsabilidade civil extracontratual; danos por águas; furto ou roubo; queda acidental de vidros fixos; quebra ou queda de antenas e derrame acidental de óleo, não estando aí previsto o ressarcimento pela privação temporária do uso do local arrendado ou ocupado.

O pomo da discórdia nos presentes autos, advém da circunstância de a Apelante, na sua tese, defender que nunca teve conhecimento das condições gerais do contrato e não obstante tenha assinado o contrato, fê-lo sem que lhe tenham sido comunicadas todas as cláusulas do mesmo.

Todavia, veja-se que a fls 25 e 26 consta a proposta de seguro assinada pela Apelante na qual esta declarou expressis verbis «(…) Declaro ter tomado conhecimento das Condições Gerais e Especiais deste contrato de seguro, ao qual me proponho aderir, comprometendo-me, no caso de a proposta ser aceite, a pagar o prémio correspondente na data em que é devido.(…).

Ora, não pode a Apelante numa altura declarar que teve conhecimento e noutra vir invocar a falta de conhecimento, sendo certo que não foram alegados quaisquer outros factos de onde se possa concluir que aquela declaração de vontade tenha sido obtida pela Apelada através de coacção física ou moral ou, quiçá, com o aproveitamento de alguma fragilidade da Apelante, por forma a existir algum vicio do seu consentimento.

De harmonia com o normativo inserto no artigo 376º do CCivil, aquele documento faz prova plena quanto às declarações atribuídas à Apelante e os factos nelas compreendidos, consideram-se provados na medida em que forem contrários aos seus interesses (isto sem prejuízo de uma eventual arguição de falsidade, que no caso não foi suscitada).

Daqui resulta, com mediana clareza, que as conclusões claudicam quanto a este particular.

No que tange ao estarmos perante uma eventual cláusula abusiva, também naufragam as conclusões da Apelante.

Se não.

Nos termos do artigo 8º, alíneas a) e b) do DL 446/85 de 25 de Outubro, na redacção introduzida pelo DL 220/95 de 31 de Agosto, consideram-se excluídas dos contratos singulares as cláusulas não comunicadas e/ou comunicadas com violação do dever de informação, desde que se pressuponha o seu não conhecimento efectivo.

Explicita o artigo 9º do mesmo diploma, no seu nº 1 que «Nos casos previstos no artigo anterior os contratos singulares mantêm-se, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos.», predispondo o seu nº2 que «Os referidos contratos são, todavia, nulos quando, não obstante a utilização dos elementos indicados no número anterior, ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa fé.».

Se seguíssemos à risca a tese da Apelante, de que não lhe teriam sido comunicadas as cláusulas do contrato de seguro que celebrou com a Apelada, teríamos necessariamente de concluir pela nulidade do mesmo, o que conduziria a um vazio contratual, com a restituição de tudo o que foi prestado (neste conspectu, adiante-se, que a ora Apelante teria de devolver o montante indemnizatório que lhe foi atribuído pelos estragos provenientes do sinistro e, mutatis mutandis, a Apelada, por seu turno, devolveria os prémios de seguro que lhe foram satisfeitos por aquela, cumprindo-se assim o preceituado no artigo 289º, nº1 do CCivil).

Mas, o que não se compreende ou mal se compreende, é que a Apelante queira a declaração de nulidade de uma cláusula que prevê especificamente a cobertura do sinistro ocorrido na sua habitação – a cláusula 3ª danos por água – e na parte em que tal cláusula não prevê a cobertura da privação temporária de uso do local arrendado ou ocupado, não porque tenha sido efectuada alguma interpretação abusiva da mesma por banda da Apelada, mas porque tal cláusula nunca previu o ressarcimento daquele dano.

A Apelante subscreveu a apólice de seguro Cobertura Classic, a qual, segundo as condições gerais por si igualmente subscritas, são claras precisas e concisas e sendo o contrato de seguro um negócio formal como dispõe o artigo 426º do CComercial, tendo em atenção a regra substantiva que rege a interpretação dos negócios formais, contida no artigo 238, nº1, do CCivil, não pode «...a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.».

Por outra banda, a Apelante não logrou provar que de algum modo a Apelada se haja comprometido a satisfazer-lhe as quantias despendidas com o arrendamento provisório de outra casa, nomeadamente através do Dr J e/ou o gestor de conta (matéria alegada no artigo 6º da Petição Inicial).

A sentença sob recurso não merece, assim, qualquer censura.

III Destarte, julga-se improcedente a Apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2007

(Ana Paula Boularot)

(Lúcia de Sousa)

(Luciano Farinha Alves)