Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
178/09.8TTALM.L1-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO
JUSTA CAUSA
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. O trabalhador pode resolver o contrato de trabalho, sem observância de pré-aviso, e com direito a indemnização, se se verificar um comportamento que seja imputável à entidade empregadora, a título de culpa, e que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível a manutenção do vínculo laboral.
2. Após conhecimento da falta de pagamento pontual da retribuição, o trabalhador pode resolver de imediato (ou nos 30 dias subsequentes ao conhecimento da falta) o seu contrato com justa causa e reclamar o direito a uma indemnização correspondente à sua antiguidade na empresa, devendo neste caso alegar e demonstrar os pressupostos da justa causa da resolução do contrato atrás referidos.
3. Tratando-se de uma falta continuada (do pagamento da retribuição) que se mantenha por um período igual ou superior a 60 dias, o trabalhador pode resolver o contrato, com direito a indemnização, presumindo-se, neste caso, a existência de justa causa.
4. Estando apenas em falta o pagamento de uma pequena fracção respeitante a duas retribuições e tendo ficado demonstrado que essa falta de pagamento ficou a dever-se a dificuldades económico-financeiras da empresa, não procedentes de culpa sua, fica ilidida a referida presunção.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I. RELATÓRIO

            A (…)instaurou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra
            B, S.A., (…), pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 14.491,41, sendo € 11.880,00, a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa e € 2.278,63, a título de prestações salariais em dívida.
            Alegou para tanto e em síntese que foi admitido ao serviço da R. em Janeiro de 2002 e por conta, sob a direcção e fiscalização desta trabalhou até 7 de Outubro de 2008, data em que resolveu o contrato de trabalho que os vinculava, com fundamento em falta de pagamento da retribuição, por um período superior a 60 dias.
           
A Ré contestou alegando, em síntese, que o contrato esteve suspenso por iniciativa do A., pelo que, atento o período dessa suspensão, não chegou a decorrer o alegado prazo de 60 dias que permite a resolução do contrato. Além disso não houve incumprimento culposo porque houve dificuldades económicas, em 2008, que eram do conhecimento do Autor e de todos os que trabalhavam e se relacionavam com a empresa.
Deduziu reconvenção e concluiu pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

A reconvenção não foi admitida.

Saneada, instruída e julgada a causa, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou a R. a pagar ao A. as seguintes quantias:
a) Cento e cinquenta e três euros e sessenta e três cêntimos (€ 153,63), a título de retribuição, subsídio de refeição e proporcional de subsídio de Natal do trabalho prestado em Agosto de 2008;
b) Duzentos e vinte e cinco euros (€ 225,00), a título de férias vencidas e não gozadas em 2008;
c) Duzentos e noventa e cinco euros e sessenta e seis cêntimos (€ 295,66), a título de proporcionais de férias de 2009;
d) Duzentos e noventa e cinco euros e sessenta e seis cêntimos (€ 295,66), a título de proporcionais de subsídio de férias de 2009;
Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

Inconformado, o A. interpôs recurso de apelação da referida sentença, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões:
(…)

A R., na sua contra-alegação, pugnou pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.

A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu douto parecer, no qual concluiu que a sentença recorrida deve ser confirmada.

O recurso foi admitido na forma, com o efeito e no regime de subida devidos.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes:
1. Saber se a sentença enferma das nulidades que o recorrente lhe imputa:
2. Saber se o apelante resolveu com justa causa o contrato de trabalho que o vinculava à apelada e se essa justa causa lhe confere o direito à indemnização que reclama.

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
Da petição inicial
1. O A. trabalhou por conta da R, sob a sua direcção e fiscalização, desde Janeiro de 1992 a Outubro de 2008 (1).
2. Pelo menos em 2008, o A., como os outros trabalhadores da R., recebeu retribuições até com um mês e meio de atraso e fraccionadamente em duas e três prestações (2).
3. O A. protestou junto do Director da R., antes de promover a suspensão do contrato, que o recebimento das retribuições fraccionadamente e em prestações lhe causava dificuldades, designadamente junto dos estabelecimentos bancários (3 e 7).
4. A retribuição de Maio de 2008 apenas foi totalmente paga em meados de Junho (4).
5. O A. recebeu € 500,00 do vencimento de Junho de 2008, em 1 de Julho e o restante em 18 de Agosto (5).
6. A retribuição de Julho de 2008 foi paga em 2 de Setembro (€ 500,00) e em 7 de Outubro (€ 107,78) (6 petição inicial e 20 da contestação).
7. O A. enviou à R. carta através da qual procedeu à resolução do contrato a partir de 7.10.2008 invocando falta de pagamento da retribuição por um período superior a 60 dias (8).
8. A R. não pagou qualquer indemnização ou compensação ao A. pela cessação do contrato (9).
9. A R. não entregou ao A. o modelo 5044 com vista à obtenção de subsídio de desemprego, com menção de “resolução por iniciativa do trabalhador por salários em atraso”, ou de qualquer modo “com justa causa”(11).
Da contestação
10. O A. enviou à R., em 7 de Agosto de 2008, a carta cuja cópia foi junta com a contestação com documento n.º l, dita de “suspensão do contrato de trabalho”, cujo teor se dá por reproduzido (7 e 8).
11. Na sequência da carta referida supra, o A. apenas prestou trabalho em parte do mês de Agosto, e não em Setembro (9).
12. A R. não efectuou os pagamentos devidos oportunamente em razão das dificuldades económicas que atravessava (24).
13. A R. procedia ao pagamento faseado e antecipado dos subsídios de férias e de Natal, facto a que nunca foi deduzida oposição pelo A. e pelos demais colegas (29 e 30).
14. A R. atravessou dificuldades económicas e financeiras em 2008, designadamente pela dificuldade de obtenção de fundos europeus de co-financiamento, que a levaram a proceder a pagamentos fraccionados de retribuições devidas a trabalhadores, de dívidas a prestadores de actividades e até de proventos a administradores, e também a negociar a saída de trabalhadores da empresa (35, 36, 37, 38).
15. As quantias em dívida, sem prejuízo do referido em 8), foram pagas posteriormente, assim que a R. obteve meios financeiros (39).
16. Eram conhecidas, no âmbito da empresa, as dificuldades da R. (41).

II. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Nulidade da sentença
O apelante alega que a sentença recorrida é nula, uma vez que o Mmo juiz a quo decidiu em contradição com os factos dados como provados; fundamentou a sentença em dificuldades financeiras da entidade empregadora sem que exista nos autos qualquer prova documental que permita sustentar tal afirmação; conheceu de questões de que não podia conhecer, ao fundamentar a sentença na existência de justa causa objectiva, quando o que está em causa nos autos é resolução do contrato pelo trabalhador por falta de pagamento pontual da sua retribuição, que se prolongou durante vários meses.
Desde já se adiante que não assiste qualquer razão ao apelante.
Em primeiro lugar porque os factos dados como provados, ou seja, a fundamentação de facto da sentença está em perfeita consonância com a decisão nela tomada. A nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 668º do CPC que o recorrente imputa à sentença só se verificaria se existisse uma contradição intrínseca entre os fundamentos invocados pelo julgador e a decisão nela tomada. Como a decisão judicial deve constituir a consequência lógica dos fundamentos invocados pelo julgador, tal nulidade verificar-se-ia se existisse uma contradição real no raciocínio do julgador, isto é, se a fundamentação apontasse num sentido e a decisão seguisse um caminho oposto, ou diferente[1]. Ora, este vício não se verifica, de modo algum, na sentença recorrida, uma vez que, como resulta claramente da sua leitura, os factos considerados provados pelo tribunal (fundamentos de facto) e a forma como o juiz valorou juridicamente esses factos (fundamentos de direito) não só apontam para o sentido da decisão como estão em sintonia com ela. No fundo, o que a apelante invoca não é uma contradição entre os fundamentos e a decisão, mas sim a sua discordância quanto à forma como o Mmo juiz valorou juridicamente os factos dados como provados, isto é, uma discordância quanto à decisão de mérito da causa, mas isso, quando se verifica, poderá constituir um erro de julgamento e motivo de impugnação da sentença, nunca motivo para arguir a sua nulidade.
Em segundo lugar, porque as nulidades da sentença encontram-se taxativamente enunciadas nas alíneas a), b), c), d) e e) do n.º 1 do art. 668º do CPC e a alegada inexistência de prova documental em relação às dificuldades financeiras da apelada que a sentença recorrida deu como provadas não integra nenhuma dessas nulidades. O alegado erro na apreciação da prova e da decisão da matéria invocado pelo apelante em relação àquela matéria, nunca poderia, por isso, constituir motivo para arguir a nulidade da sentença, mas tão-somente motivo para, eventualmente, impugnar a decisão da matéria de facto, o que o recorrente não fez, pois nem sequer deu cumprimento aos requisitos previstos no art. 685-B, n.ºs 1 e 2 do CPC, nem pôs em causa a motivação da decisão da matéria de facto, nessa parte.
Em terceiro lugar, porque a sentença recorrida, ao contrário do que o recorrente sustenta, pronunciou-se exaustivamente sobre as duas questões que se suscitavam nesta acção, consistindo a primeira em saber se o autor resolveu com justa causa o contrato de trabalho que o vinculava à apelada e se essa justa causa lhe confere o direito à indemnização prevista no n.º 1 do art. 443º do CT, e (consistindo) a segunda em saber se o autor tem direito às prestações salariais que reclama nesta acção.
As nulidades que o apelante imputa à sentença recorrida não têm, assim, o menor cabimento.

2. Resolução do contrato de trabalho. Indemnização reclamada pelo recorrente.
Vejamos, agora, se a resolução do contrato de trabalho pelo recorrente lhe confere o direito à indemnização que reclama.
A sentença recorrida concluiu pela falta não culposa do pagamento pontual da retribuição, pela existência de justa causa objectiva para resolução do contrato de trabalho e pela absolvição da apelada do pedido de pagamento da indemnização reclamada pelo apelante.
A recorrente discorda e sustenta que a falta de pagamento pontual da retribuição se prolongou por um período superior a 60 dias sobre a data do seu vencimento e que resolução do contrato de trabalho com base nesse fundamento lhe confere o direito à referida indemnização.
Vejamos se lhe assiste razão.
Como a cessação do contrato de trabalho ocorreu em Outubro de 2008, o regime aplicável na apreciação desta questão é o previsto nos arts. 364º, n.º 2, 441º a 443º do CT de 2003 e art. 308º da Lei n.º 35/2004, de 29/07 (que regulamentou aquele Código). O recorrente, além do art. 364º, n.º 2 do CT e do art. 308º da Lei n.º 35/2004, de 29/07, invocou também o art. 3º da Lei 17/86, de 14/6 [LSA] em abono da sua tese, mas esta lei foi revogada pelo art. 21º, n.º 2 da Lei 99/2003, de 27/8, não sendo, por isso, aplicável ao caso sub judice.
Dispõe o art. 441º, n.º 1 do CT de 2003 que, ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
A declaração de resolução do contrato deve ser feita por escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam, nos trinta dias subsequentes ao conhecimento desses factos (art. 442º, n.º 1 do CT), sendo apenas atendíveis para justificar a resolução, os factos invocados nessa comunicação (art. 444º, n.º 3 do CT).
O art. 441º, n.º 2 do mesmo diploma enuncia, a título exemplificativo, alguns dos comportamentos da entidade empregadora constitutivos de justa causa de resolução do contrato e que, nos termos do art. 443º, n.º 1, conferem ao trabalhador direito a uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.
Entre esses comportamentos figuram, com pertinência para o caso em apreço, a falta culposa de pagamento pontual da retribuição (alínea a) do n.º 2 do art. 441º).
Finalmente, o n.º 4 do art. 442º, diz-nos que a justa causa deve ser apreciada nos termos do n.º 2 do art. 396º, com as necessárias adaptações. Quer isto dizer que, na apreciação da justa causa, o tribunal deve atender ao grau de lesão dos interesses do trabalhador, ao carácter das relações entre as partes e às demais circunstâncias que se mostram relevantes.
Assim, para que um trabalhador possa resolver o seu contrato de trabalho, com direito a indemnização, é necessário que a conduta da entidade empregadora – enquadre-se ou não nalguma das alíneas do n.º 2 do art. 441º do CT - configure um comportamento culposo que pela sua gravidade e consequências torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Este requisito já constava expressamente do n.º 2 do art. 101º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo DL 49.408, de 24/11/69 [LCT], para a rescisão imediata do contrato tanto pelo trabalhador como pela entidade empregadora, nos seguintes termos: “constitui, em geral, justa causa qualquer facto ou circunstância grave que torne imediata e praticamente impossível a subsistência das relações que o contrato de trabalho supõe, nomeadamente, a falta de cumprimento dos deveres previstos no art. 20º”. Posteriormente, tanto no DL 372-A/75, de 16/7, como no DL 64-A/89, de 27/2 [LCCT], como no CT de 2003 o conceito de justa causa foi definido, respectivamente, nos arts. 10º, n.º 1, 9º, n.º 1 e 396º, n.º 1 destes diplomas, com referência apenas ao despedimento decretado pela entidade empregadora, como sendo o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
A jurisprudência dominante tem entendido que é à luz deste mesmo conceito legal de justa causa que deve ser examinado o comportamento da entidade empregadora invocado pelo trabalhador para a resolução do contrato com direito a indemnização[2]. Não é, portanto, um mero conflito entre as partes, ou mesmo uma qualquer ofensa de uma à outra, que pode consubstanciar justa causa de resolução imediata do contrato de trabalho, com direito à indemnização. É necessário que esse conflito configure uma das situações legalmente integráveis no âmbito da justa causa de resolução e bem assim que ao trabalhador, dada a gravidade e consequências dessa situação, não seja exigível que continue vinculado à empresa por mais tempo[3].
Quer isto dizer que, segundo a referida jurisprudência, o trabalhador só pode resolver o contrato de trabalho, sem observância de pré-aviso, e com direito a indemnização, se se verificar um comportamento que seja imputável à entidade empregadora, a título de culpa, e que esse comportamento, pela sua gravidade e consequências, torne inexigível a manutenção do vínculo laboral.
Devemos, contudo, ter presente, na apreciação desta questão, que enquanto o empregador dispõe de sanções intermédias (conservatórias) para reagir a uma determinada infracção ou a determinado incumprimento do trabalhador, este, quando lesado nos seus direitos, por qualquer incumprimento do empregador, não tem formas de reacção alternativas à rescisão (ou executa o contrato ou rescinde). Neste contexto, pode dizer-se que o rigor com que se aprecia a justa causa invocada pelo empregador não pode ser o mesmo com que se aprecia a justa causa quando invocada pelo trabalhador.
Daí que haja quem rejeite a tese que defende que a noção legal de justa causa de despedimento por parte do empregador e a noção de justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador devem obedecer aos mesmos critérios de apreciação. Para Júlio Gomes[4], os dois conceitos de justa causa (a invocada pelo empregador e a invocada pelo trabalhador) não são absolutamente simétricos ou idênticos. E para João Leal Amado[5] a ideia de configurar a justa causa como uma categoria genérica, aplicável, nos mesmos termos, para o trabalhador e entidade empregadora era de facto acolhida pela LCT, mas foi completamente aniquilada pela Constituição; esta ao acentuar a estabilidade do emprego no que toca ao despedimento (promovido pelo empregador) e a liberdade de trabalho no que toca à rescisão (por iniciativa do trabalhador), tornou nítido que os valores em presença diferem profundamente, consoante o contrato cesse por iniciativa de uma ou de outra das partes.
Embora os dois conceitos de justa causa (a invocada pelo empregador e a invocada pelo trabalhador) não devam considerar-se absolutamente simétricos ou idênticos, embora o trabalhador não disponha das formas de reacção alternativas de que dispõe o empregador, entendemos que não basta verificar-se um incumprimento qualquer ou qualquer falta imputável ao empregador, a título de culpa, para o trabalhador poder resolver com justa causa o seu contrato de trabalho, com direito a indemnização. Para existir justa causa é necessário que se verifique uma infracção grave em si mesma ou nas suas consequências, imputável ao empregador, a título de culpa, que torne inexigível para o trabalhador a manutenção da sua relação contratual, embora o limiar da gravidade do incumprimento do empregador (na resolução do contrato) se possa situar abaixo do limiar do incumprimento do trabalhador (no despedimento com justa causa).
Convém também ter presente, na apreciação desta questão, o disposto no art. 364º, n.º 2 do CT e conjugar este preceito com o disposto no art. 441º, n.ºs 1 e 2, al. a) deste mesmo Código.
            O art. 364º, n.º 2 dispõe que “o trabalhador tem a faculdade de suspender a prestação de trabalho ou de resolver o contrato decorridos, respectivamente, quinze ou sessenta dias após o não pagamento da retribuição (...)” e o art. 441º, n.ºs 1 e 2 al. a) estabelece que ocorrendo justa causa – designadamente falta culposa de pagamento pontual da retribuição – pode o trabalhador resolver imediatamente o contrato, estabelecendo o art. 442º, n.º 1 um prazo de trinta dias para o efeito, sob pena de caducar esse direito.
Estes preceitos não são incompatíveis, pelo contrário justificam-se numa leitura conjugada.
Como afirmam Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Pedro Madeira de Brito e outros, no seu Código do Trabalho Anotado, anotação ao art. 364º, pág. 542 “A cessação imediata do contrato advém de ocorrer justa causa (n.º 1 do art. 441º), nomeadamente em caso de falta culposa de pagamento de retribuição (alínea a) do n.º 2 do art. 441º); mas a justa causa deve ser apreciada nos termos prescritos no n.º 2 do art. 396º (art. 441º, n.º 4). Ora, a lesão de interesses do trabalhador, no quadro geral da empresa, e a perturbação no relacionamento entre as partes de modo a tornar praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, normalmente não ocorre no momento seguinte ao da falta de pagamento da retribuição. Assim sendo (...) dir-se-á que a justa causa presume-se se decorrerem sessenta dias após a falta de pagamento da retribuição; antes do decurso desse período, o trabalhador terá de demonstrar que a falta de pagamento constitui justa causa de resolução do contrato, isto é, tem de provar os pressupostos da justa causa indicados.
Importa ainda contrapor os prazos de sessenta dias (previsto no n.º 2 do art. 364º) e de 30 dias (previsto no n.º 1 do art. 442º). O primeiro, como se referiu, é um prazo mínimo para presumir a existência de justa causa; o segundo é um prazo de caducidade para se exercer um direito. Atendendo ao prazo do art. 442º, n.º 1, o trabalhador pode, após o conhecimento da situação e nos trinta dias imediatos fazer valer os seus direitos; ou seja, provando a justa causa pode resolver o contrato no dia seguinte ao da violação contratual por parte do empregador.
O prazo de sessenta dias do n.º 2 do art. 364º tem em conta uma situação continuada de incumprimento, e pressupõe o exercício do direito de resolução depois do seu decurso; decorridos os sessenta dias presume-se que há justa causa e o trabalhador pode, então resolver o contrato bastando a prova do incumprimento continuado.”
Este entendimento está, aliás, em consonância com o disposto no art. 308º, n.º 1 da Lei n.º 35/2004, de 29/7, que regulamentou o Código do Trabalho de 2003, o qual estabelece que quando a falta de pagamento pontual da retribuição se prolongue por um período de 60 dias sobre a data do vencimento, o trabalhador pode resolver o contrato nos termos previstos no n.º 1 do art. 442º do CT, conferindo-lhe o n.º 3 (do art. 308º) o direito à indemnização prevista no art. 443º do CT.
Portanto, o trabalhador após conhecimento da falta de pagamento pontual da retribuição pode resolver de imediato (ou nos 30 dias subsequentes ao conhecimento da falta) o seu contrato com justa causa e reclamar o direito a uma indemnização correspondente à sua antiguidade na empresa, tendo neste caso de alegar e provar os pressupostos da justa causa atrás referidos. Tratando-se de uma falta continuada (do pagamento da retribuição) que se mantenha por um período igual ou superior a 60 dias, o trabalhador pode resolver o contrato, presumindo-se, neste caso, a existência de justa causa.
Cabe-nos, agora, verificar se o A., ora apelante, resolveu com justa causa o contrato de trabalho que o vinculava à Ré/apelada, desde Janeiro de 1992 e, na afirmativa, se essa justa causa lhe confere o direito à indemnização que o mesmo reclama nesta acção.
Na carta registada, com aviso de recepção, que remeteu à apelada, em 6/10/2008, a comunicar a resolução do contrato, nos termos dos arts. 308º da Lei 35/2004, de 2/07, e 442º do CT de 2003, o apelante invocou como fundamento da resolução a falta de pagamento pontual de parte da sua retribuição do mês de Julho de 2008 (€ 107,78), que nesse momento se prolongava por um período superior a 60 dias, sobre a data do seu vencimento, bem como a falta de pagamento das retribuições respeitantes aos meses de Agosto e Setembro de 2008.
Sucede que o Autor suspendeu o contrato de trabalho que o vinculava à apelada, em 7/08/2008 (cfr. n.º 10 da matéria de facto provada e carta junta a fls. 58 dos autos) e, em 6/10/2008, comunicou à apelada a resolução desse mesmo contrato. Ora, se o apelante suspendeu o contrato de trabalho em 7/8/2008 e lhe pôs termo em 6/10/2008, o mesmo não podia invocar, como fundamento da resolução do contrato, a falta de pagamento da retribuição de mês de Agosto, nem a falta de retribuição do mês de Setembro de 2008, na carta que enviou à apelada, em 6/1072008, a comunicar essa resolução, uma vez que, durante a suspensão do contrato, o trabalhador não mantém o direito à retribuição, mas apenas os direitos, deveres e garantias que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho. O apelante mantinha, assim, apenas o direito à retribuição vencida até ao início da suspensão do contrato e respectivos juros de mora (art. 304º, n.º 1 da Lei n.º 35/2004, de 29/07).
Quer isto dizer que o apelante não podia invocar, na referida carta, a falta de pagamento da retribuição dos meses de Agosto e Setembro de 2008 e que na apreciação da justa causa não pode ser levado em consideração e valorado esse fundamento, mas apenas a falta da parte da retribuição do mês de Julho de 2008, que se encontrava em dívida (€ 107,78) e da parte retribuição correspondente aos 7 dias de trabalho prestado no mês de Agosto de 2008.
Não estavam, portanto, em dívida retribuições mensais integrais, mas apenas uma fracção da retribuição do mês de Julho e uma fracção do mês de Agosto de 2008.
Deve também levar-se em consideração que a parte da retribuição do mês de Julho de 2008 que se encontrava em dívida, no montante de € 107,78, foi paga em 7/10/2008 e que em relação à retribuição correspondente aos 7 dias de trabalho prestado no mês de Agosto de 2008 ainda não tinham decorrido 60 dias, desde a data do seu vencimento, quando em 6/10/2008, o apelante decide, comunicar por carta, a resolução do contrato.
Há ainda que ter em linha de conta, que a apelada, durante o ano de 2008, atravessou dificuldades económicas e financeiras, determinadas designadamente pelos obstáculos que se lhe depararam na obtenção de fundos europeus de co-financiamento, dificuldades essas que eram conhecidas no seio da empresa e que a obrigaram, para se manter em actividade, a proceder a pagamentos fraccionados de retribuições devidas a trabalhadores e a prestadores de serviços e de proventos devidos a administradores, bem como a negociar a saída de trabalhadores da empresa, tendo efectuado o pagamento das quantias que se encontravam em dívida, assim que obteve meios financeiros para o efeito (n.ºs 12 e 15 da matéria de facto provada).
Resumindo e concluindo:
Não estava em causa uma falta de pagamento continuada de uma, duas ou mais retribuições mensais, mas apenas duas pequenas fracções, uma relativa à retribuição do mês de Julho de 2008 e outra relativa ao mês de Agosto de 2008;
Essa falta de pagamento parcial atingiu todos os que colaboravam com a empresa (administradores, trabalhadores, prestadores de serviços) e ficou a dever-se a uma causa a que a apelada foi alheia, que era conhecida no seio da empresa, e as quantias em dívida foram pagas assim que esta obteve os meios financeiros para o efeito.
A apelada não agiu com culpa, mostrando-se, por conseguinte, ilidida a presunção da existência de justa causa subjectiva.
Embora não exista justa causa subjectiva, existe justa causa objectiva, nos termos do art. 442º, n.º 3, alínea c) do CT de 2003, e sendo, assim, o apelante podia resolver, como resolveu, o seu contrato com a apelada, pois, naquelas condições, não podia programar adequadamente a sua vida e eventualmente satisfazer todos os seus compromissos, não lhe sendo exigível que continuasse a trabalhar para quem, embora sem culpa, lhe pagava, com atraso, parte da sua retribuição mensal.
Não existindo justa causa subjectiva, a resolução do contrato não lhe confere o direito à indemnização que reclama nesta acção, pelo que bem andou o Mmo juiz a quo ao absolver a apelada desse pedido.
Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso interposto pelo apelante, devendo manter-se integralmente a sentença recorrida.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique e registe.

Lisboa, 2  de Março de 2011

Ferreira Marques
Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
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[1] Cfr. Cfr. Acs. do STJ de 21/10/1988, BMJ 380º, 444; de 28/10/1993, BMJ 430º, 443; de 9/12/1993, BMJ 432º, 342; de 13/2/1997, BMJ 464º, 525.
[2] Cfr. Acs. da RC, de 19/11/85, CJ, 1985, 5º, pág. 71; de 24/1/1991, CJ, 1991, 1º, pág. 120; de 23/3/1991, BMJ 405º, pág. 540; de 2/11/1995, CJ, 1995, 5º, pág. 81; Acs. do STJ, de 11/3/1999, CJ/STJ/1999, 1º, pág. 300; de 26/5/1999, CJ/STJ/1999, 2º, pág. 291; de 23.9.1999, CJ/STJ/1999, 3º, pág. 245
[3] Cfr. Jorge Leite e Coutinho de Almeida, Colectânea de Leis do Trabalho, 1985, pág. 272; Acs. do STJ, de 7/1/83, de 29/9/93, de 12/1/94, de 13/4/94 e de 3/5/95, BMJ 323º, 266; CJ/STJ/1993, Tomo I, pág. 220; AD 385º, 96; 389º, 601; CJ/STJ/1994, Tomo I, pág. 295 e BMJ 447º, 271.
[4] “Da Rescisão do Contrato de Trabalho por Iniciativa do Trabalhador”, V Congresso Nacional de Direito do Trabalho – Memórias, Coimbra, 2003, pág. 148).
[5] Vidé Salários em Atraso – Rescisão e Suspensão do Contrato – Revista do Ministério Público, n.º 51, 1992, pág. 161.
Decisão Texto Integral: