Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
191/08.2TBPDL-B.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: OPOSIÇÃO À PENHORA
IMPENHORABILIDADE
SALÁRIO MÍNIMO NACIONAL
REGIÃO AUTÓNOMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Na Região Autónoma dos Açores, o limite mínimo da impenhorabilidade dos vencimentos é o valor que resulta do acréscimo regional ao salário mínimo nacional. Ou seja, a norma do art. 738/3 do CPC, e outras de teor idêntico, devem ler-se como referindo-se também ao “salário mínimo regional” se o executado viver nessa RA.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados.


Relatório:

                 
Ao executado tem vindo a ser penhorado parte do seu vencimento mensal como soldado do exército, desde Janeiro de 2017 (e não de Março de 2017, como refere a notificação de penhora feita pelo agente de execução), por valores que o deixam com um vencimento líquido inferior a 584,85€.

A 28/04/2017, o executado veio opor-se à penhora do seu vencimento na parte em que o deixe com um valor inferior àquele, pois que ele é valor do salário mínimo da Região Autónoma dos Açores, que é onde o executado reside e onde recebe a remuneração (como se vê da documentação junta). Pediu a redução do valor a penhorar, por forma a respeitar o valor do salário mínimo regional, e o reembolso dos valores que têm sido indevidamente descontados, bem como dos que resultarem a mais por cada mês de penhora efectuada.

Por despacho de 06/06/2017, esta pretensão foi indeferida liminarmente por manifestamente improcedente, depois de se invocar os arts. 732/1-c, 785/2, 738/1 e 3, todos do CPC, sublinhando, do último, a referência ao salário mínimo nacional, dizendo-se ainda o seguinte:
A previsão legal pretende proteger interesses vitais do executado, baseando-se em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana, enquanto princípio fundamental consagrado no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
Assim, tendo em conta a globalidade do rendimento, o princípio acima enunciado não sai beliscado, porquanto não ofende aquele mínimo de subsistência condigna cujo remanescente poderá ser penhorado tendo em vista a satisfação da prestação a que o credor tem direito.
Retornando ao caso concreto, verifica-se que a pretensão do executado é manifestamente improcedente, porquanto a penhora concretizada observa o legalmente previsto.
O executado vem recorrer deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro a determinar que a oposição seja admitida – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (com alguma síntese feita por este acórdão do TRL):
1–A referência a salário mínimo contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concedido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo.
2–O Decreto Legislativo Regional n.º 8/2002/A, de 10/04, em vigor na Região Autónoma dos Açores, atribui um acréscimo de 5% ao salário mínimo fixado para o continente português […], motivado pelo facto de o custo de vida nos Açores ser superior ao do continente, por força dos custos da insularidade, conforme decorre da exposição de motivos constante daquele Decreto.
3–Assim, o vulgarmente chamado, de modo impróprio, salário mínimo regional, actualmente em 584,85€, é o mínimo considerado necessário para uma existência com dignidade humana, nos Açores, que a Constituição garante.
4–Qualquer outro entendimento, designadamente o meramente literal, é claramente inconstitucional, não só por violar o princípio da dignidade da pessoa humana, por o valor indispensável para garantir o mínimo de sobrevivência digna ser superior na RAA, mas também por violar o princípio da igualdade, uma vez que com tal interpretação estar-se-á a tratar de forma igual, duas realidades distintas e, como tal, desiguais, merecendo por isso tratamento diferente, por devidamente justificado.

O exequente não contra-alegou.
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Questão que importa decidir: se o incidente devia ter sido admitido.
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Os factos que interessam à decisão desta questão são os que resultam do relatório que antecede.
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Ao contrário do decidido, a pretensão do executado não é manifestamente improcedente.

Antes pelo contrário: o art. 738/3 do CPC estabelece o limite mínimo da impenhorabilidade no salário mínimo nacional (que é de 557€ em 2017, por força do DL 86-B/2016, de 29/12), quando o executado não tenha outros rendimentos, sendo que esse salário mínimo nacional, na RAA, é acrescido de 5%, segundo decisão dos órgãos legislativos constitucionalmente competentes (nos termos dos arts. 227/1-a da CRP e do art. 31/1-c do Estatuto Político-Administrativo da Região), por se considerar que aí é superior o custo de vida.

Com efeito, do preambulo daquele DLR [alterado pelo DLR 22/2007/A, de 23/10, mas sem influência na questão] citado pelo executado, diz-se: “Em 2000 foram criados, na RAA, os regimes jurídicos da atribuição do acréscimo regional ao salário mínimo no valor de 5% […] A criação destes regimes […] visa, por um lado, atenuar a diferença do nível do custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade, e, por outro, diminuir as desigualdades resultantes do baixo valor das remunerações ou pensões auferidas por uma faixa da população residente nos Açores, traduzindo-se numa medida de justiça social.”

Conforme tem vindo a ser dito pelo Tribunal Constitucional (por exemplo, acórdão 96/2004, de 11/02/2004, publicado no DR, II série, de 04/04/2004): (…) “o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como ‘o mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo” (…)” (no mesmo sentido, o acórdão 318/1999, publicados no sítio do TC na internet; e, por último, o ac. do STJ de 02/02/2016, já citado: V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna).

Ora, o acréscimo regional representa, também, a concretização, na Região Autónoma dos Açores, do valor que se considera corresponder a esse mínimo dos mínimos, tendo em conta “a diferença do nível do custo de vida nos Açores em relação ao continente, designadamente os derivados dos custos da insularidade […].”

Pelo que o limite mínimo de impenhorabilidade de vencimentos, na RAA, é o “SMR” de 584,85€, excepto se estiver provado que o executado tem outros rendimentos, o que não é o caso (como se diz no acórdão do TRP de 23/02/2012, proc. 1218/08.3TJVNF.P1: Na falta de prova de que existem outros rendimentos ou bens, parte-se do princípio de que o executado só tem esse salário ou essa pensão.”) Neste sentido, por exemplo, no caso de que trata o ac. do TRL de 23/04/2015, proc. 3376/14.9T8FNC-A.L1-6, decidiu-se: “b) Apreender os saldos bancários de contas tituladas pelos requeridos, em valor superior ao salário mínimo regional.”

Neste sentido, veja-se a fundamentação do acórdão n.º 268/88 do TC, de 29/11/1988, (com votos de vencido mas que não têm a ver com este ponto), sobre as normas das Resoluções n.ºs 42/87, de 15/01, e 5/88, de 28 de Janeiro, do Governo Regional dos Açores, que estabeleciam “salários mínimos regionais”:
[…] com a fixação do salário mínimo nacional - o que aconteceu pela primeira vez, na ordem jurídica portuguesa, com o Decreto-Lei n.º 217/74, de 27 de Maio -, pretendeu-se assegurar aos trabalhadores das categorias inferiores dos diversos sectores da economia uma remuneração laboral que lhes consentisse, ao cabo e ao resto, um nível de vida acima do nível de sobrevivência. Vê-se assim que existe uma íntima conexão entre o montante do salário mínimo e o custo de vida, pois que quanto maiores forem os preços das mercadorias e dos serviços necessários à existência maior haverá de ser o salário mínimo.

Mais tarde, ao constitucionalizar-se tal instituto, determinou-se no artigo 60/2-a da CRP que os órgãos legislativos da República, ao fixarem o salário mínimo nacional, haveriam fatalmente de ter em conta os seguintes factores: 1) necessidades dos trabalhadores; 2) aumento do custo de vida; 3) nível de desenvolvimento das forças produtivas; 4) exigências da estabilidade económica e financeira; 5) acumulação para o desenvolvimento.

Entre esses factores não será de somenos importância o que tem a ver com o custo dos produtos e serviços indispensáveis à vida, factor este que logo de início se destacou.

Ora, esse factor, agora especificamente assinalado, difere claramente do continente para os Açores.

De facto, o trabalhador continental, porque os preços dos bens e serviços essenciais, no seu conjunto, são, no continente, inferiores aos dos Açores, tem de despender com eles menos dinheiro que o trabalhador açoriano.

E é precisamente a premência deste factor, factor da maior importância na delineação do salário mínimo, que paralelamente veio criar uma nova questão no espaço insular açoriano: a da complementação do salário mínimo nacional para que ao trabalhador ilhéu das categorias mais baixas dos sectores primário, secundário e terciário da economia seja garantido um nível de vida um patamar acima do nível de sobrevivência, ou seja, ao nível do seu homólogo do continente, esse recebedor apenas do salário mínimo nacional.”

Assim, nos Açores, o limite mínimo de impenhorabilidade tem de ser o valor resultante da soma do acréscimo salarial ao SMN, sob pena de se violar o princípio da igualdade (art. 13/1 da CRP), pois que a penhora que abrangesse o acréscimo regional representaria tirar a um residente na RAA aquilo que, aí, representa o mínimo dos mínimos, que, no continente, já seria deixado intocado.

Assim sendo, o incidente de oposição à penhora não podia ter sido liminarmente indeferido.
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Pelo exposto, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que o incidente seja admitido se não houver outras razões para o indeferimento liminar.
Custas pelo exequente.




Lisboa, 02/11/2017.



Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira


Decisão Texto Integral: