Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MARIA JOSÉ MOURO | ||
| Descritores: | CONVENÇÃO ARBITRAL CONHECIMENTO OFICIOSO PROVIDÊNCIA CAUTELAR | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 04/20/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | DECISÃO REVOGADA | ||
| Sumário: | I - Mesmo que as partes hajam validamente estipulado o recurso à arbitragem (por compromisso arbitral ou cláusula compromissória), a excepção da violação de tal convenção deverá ser deduzida pelo R. para que o tribunal dela possa conhecer. II – Se o juiz conheceu da excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário cometeu a nulidade prevista no nº 1 – d) do art. 668, exercendo actividade exorbitante ou excessiva. III - O julgamento daquela excepção não é, nem comporta, o julgamento da competência do tribunal judicial. IV – De qualquer modo, o procedimento cautelar de arresto está, necessariamente, fora do âmbito da jurisdição arbitral. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa: * I - «C…» intentou o presente procedimento cautelar (arresto) contra «D…». Alegou a requerente, em resumo: A requerente celebrou com a requerida contrato-promessa de compra e venda de acções e de cessão de suprimentos, figurando a requerente como promitente-vendedora e a requerida como promitente-compradora; na sequência de factos a que alude, a requerente exerceu o seu direito de resolução do contrato, podendo exigir da requerida, nos termos do contrato celebrado, uma indemnização no valor de € 316.666,67; a requerida não pagou nem se propõe pagar-lhe essa dívida; frustrada que foi uma tentativa de conciliação, de acordo com o nº2 da cl.ª 14ª do contrato celebrado, a requerente iniciou uma acção arbitral, nos termos da mesma cláusula; a requerente receia que desapareça a garantia patrimonial do seu crédito. Pediu a requerente que, sem precedência de audiência da requerida, seja decretado o arresto dos saldos e valores depositados na conta bancária nº 016480200188 do BIC, Balcão da Av. João Crisóstomo, em Lisboa, bem como do prédio urbano sito na Rua de São Bento, nºs 52 a 60, em Lisboa. Foi proferido despacho liminar que decretou a excepção de violação de convenção de arbitragem, declarando a incompetência absoluta do Tribunal e absolvendo a requerida da instância. Desse despacho agravou a requerente, concluindo por esta forma as respectivas alegações: ………………… * II - Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação - arts. 684, nº 3, 690, nº 1, e 749 do CPC – as questões que essencialmente se colocam são as seguintes: - se o despacho recorrido é nulo por ter conhecido de questão que lhe estava vedado conhecer, uma vez que a excepção de preterição de tribunal arbitral voluntário não é de conhecimento oficioso do tribunal; - se, de qualquer modo, o procedimento cautelar de arresto está necessariamente fora do âmbito da jurisdição arbitral, pelo que ao tribunal de 1ª instância sempre caberia o processamento e decisão do presente procedimento cautelar. * III - Com interesse, há que salientar os seguintes factos: A – A requerente intentou contra a requerida o presente procedimento cautelar de arresto, fundamentando-se, designadamente, na celebração do denominado contrato-promessa de compra e venda de acções e de cessão de suprimentos, documentado a fls. 16 a 33, acordo aquele em que figura a requerente como promitente-vendedora e a requerida como promitente-compradora. B - É o seguinte o teor da cláusula 14ª do mencionado contrato: “1º - O presente Contrato é exclusivamente regulado pela lei Portuguesa. 2º - Qualquer disputa, conflito ou litígio entre as Partes relativamente à aplicação, interpretação ou execução do presente Contrato será dirimido entre um representante de cada uma das Partes que reunirão nos quinze dias seguintes a serem notificados para esse efeito. 3º - Se não for encontrada uma solução após a reunião referida no número 2 da presente Cláusula, a questão será resolvida pelo recurso à constituição de um tribunal arbitral, de acordo com a Lei 31/86, de 29 de Agosto. 4º - A arbitragem decorrerá em Lisboa.” * IV – 1 - De acordo com o nº 1 do art. 1 da Lei 31/86, de 29-8, desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis, pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros. Foi isso que sucedeu no caso dos autos em que, mediante convenção de arbitragem expressa na clª 14ª do contrato entre ambas celebrado, requerente e requerida estabeleceram que a questão – não previamente solucionada em reunião entre representantes de ambas as partes – reconduzível a uma qualquer disputa, conflito ou litígio entre elas, relativamente à aplicação, interpretação ou execução do mesmo contrato seria resolvida pelo recurso à constituição de um tribunal arbitral. Estamos perante uma cláusula compromissória, uma vez que a referida convenção tem por objecto litígios eventuais emergentes daquela específica relação jurídica contratual (ver o nº 2 do aludido art. 1 da Lei 31/86). Em qualquer das suas modalidades a convenção de arbitragem é um negócio jurídico que gera, para ambas as partes, o direito potestativo de submeter à decisão por árbitros um litígio compreendido no seu objecto e que vincula ambas as partes à sujeição correlativa de ver um litígio que caiba no seu objecto ser cometido a árbitros. Simultaneamente, a convenção de arbitragem constitui ambas as partes no ónus de, querendo ver decidido litígio que se compreenda no seu objecto preferirem a jurisdição arbitral à jurisdição pública (1). Os tribunais arbitrais são tribunais não estaduais, compostos por juízes não profissionais (art. 209, nº 2 da Constituição), podendo ser necessários ou voluntários. Enquanto os primeiros são impostos pela lei para o julgamento de determinadas questões (arts. 1525 a 1528 do CPC), os segundos são instituídos pela vontade das partes, através da supra mencionada convenção de arbitragem. * IV – 2 - De acordo com a alínea j) do art. 494 do CPC a preterição de tribunal arbitral necessário ou a violação de convenção de arbitragem constitui uma excepção dilatória. Para que a introdução de um determinado feito em juízo constitua violação da convenção de arbitragem (ou preterição do tribunal arbitral voluntário) basta que se verifique a existência (meramente factual) de uma convenção de arbitragem susceptível de aplicação àquele litígio. Por outro lado, consoante decorre do art. 495 do mesmo Código, embora em termos gerais o tribunal deva conhecer oficiosamente de todas as excepções dilatórias, tal não sucede no que respeita à incompetência relativa (nos casos não abrangidos pelo art. 110) bem como no que respeita à preterição do tribunal arbitral voluntário. Efectivamente, a regra do conhecimento oficioso das excepções dilatórias tem aquelas duas excepções. Para que a excepção a que agora nos reportamos seja apreciada e proceda tem o R. o ónus de a alegar e provar que existe uma convenção de arbitragem susceptível de ser aplicada ao litígio definido pelo A.. Portanto, mesmo que as partes hajam validamente estipulado o recurso à arbitragem (por compromisso arbitral ou cláusula compromissória), a excepção deverá ser deduzida pelo R. para que o tribunal dela possa conhecer. * IV – 3 – Embora, por vezes, haja a tendência de ver a preterição de tribunal arbitral voluntário como uma questão de competência, não é exactamente assim. «Para que se tratasse de uma questão de competência, seria necessário que se discutissem as parcelas de jurisdição de diferentes tribunais titulares da função jurisdicional do Estado. E não é disso que se trata. O que se discute está ainda a montante da questão da competência: discute-se se o litígio introduzido em juízo pode ser submetido à jurisdição pública ou se, pelo contrário, não está (ainda) em condições de ser apreciado por um tribunal judicial. No regime da LAV, a convenção de arbitragem subtrai efectivamente do domínio da função jurisdicional pública qualquer litígio a que ela seja susceptível de ser aplicada. A preterição do tribunal arbitral voluntário, ou violação de convenção de arbitragem, nada tem a ver com a incompetência do tribunal judicial para conhecer do mérito. Tem a ver exclusivamente com a própria jurisdição. Isto é, a lei admite que as partes, através da convenção de arbitragem, renunciem ao princípio do juiz natural» (2). Enquanto o poder do tribunal público resulta da soberania, o poder do árbitro resulta da vontade das partes no litígio e justifica-se na autonomia privada; ao admitir a convenção de arbitragem e ao reconhecer-lhe o efeito de subtrair o litígio abrangido por ela da jurisdição pública, a lei estabelece um desvio à regra ou ao princípio do juiz natural. O julgamento da excepção não é, nem comporta, o julgamento da competência do tribunal judicial. * IV – 4 - O nº 1 – d) do art. 668 do CPC, dispõe ser nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Tal aplica-se, até onde seja possível, aos próprios despachos – nº 3 do art. 666 do mesmo Código. Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes, é nula a sentença em que o faça (3). Se o juiz conheceu de questão que nenhuma das partes lhe submeteu, procedendo assim apesar de nem a lei processual nem a lei substantiva lhe permitirem o poder de apreciação oficiosa, cometeu aquela nulidade, exercendo actividade exorbitante ou excessiva (4). No caso dos autos o Exº Juiz de 1ª instância conheceu da excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário, sem que a mesma fosse invocada, excepção essa que não era de conhecimento oficioso. Logo, cometeu aquela nulidade, exercendo actividade exorbitante ou excessiva. O despacho recorrido é, assim, nulo, nos termos do nº 1 – d) do art. 668 e do nº 3 do art. 666, ambos do CPC. * IV – 5 - Sem prejuízo do acima apreciado entende-se conveniente adiantar algumas considerações sobre o compromisso arbitral firmado entre as partes abranger – ou não – o presente procedimento cautelar de arresto. As expressões usadas pelas partes na redacção da cláusula compromissória prefiguram-se como muito abrangentes, parecendo que toda a espécie de litígio, disputa ou conflito, se não resolvida por acordo das partes, haveria de ser submetida a tribunal arbitral, fosse qual fosse a natureza do processo. Não podemos esquecer, contudo, que as partes não podem sujeitar à convenção de arbitragem todos e quaisquer litígios. Desde logo ficam excluídos, como resulta do nº 1 do art. 1 da lei 31/86, os litígios que digam respeito a direitos indisponíveis. Por outro lado, o tribunal arbitral, desprovido de jus imperii, não tem competência para a execução das suas próprias decisões, consoante resulta do art. 30 da referida lei, nem para outra acção executiva, fundada em decisão de tribunal judicial ou em qualquer outro título. No que concerne aos procedimentos cautelares os mesmos não têm, propriamente, como objectivo resolver litígios, sendo a sua função a de acautelar o direito. Além disso, os procedimentos cautelares têm natureza urgente, o que não se concilia facilmente com a demora referente à constituição de um tribunal arbitral, constituição essa que em termos práticos seria difícil de compaginar com um procedimento cautelar (como o arresto dos autos) em que para não pôr em risco o fim ou a eficácia da providência não tem lugar o contraditório prévio do requerido (art. 408 do CPC). Acresce que visando o procedimento cautelar a adopção de providências conservatórias ou antecipatórias, tal pressupõe a existência de um verdadeiro jus imperii por parte do tribunal que as decreta, jus imperii que os tribunais arbitrais não têm. Saliente-se que no que ao procedimento cautelar de arresto diz respeito, este consiste «numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora» em tudo o que não estiver preceituado especificamente quanto ao procedimento de arresto – art. 406 do CPC – quando, como vimos, aos tribunais arbitrais não é atribuída competência para as acções executivas. Em consonância, resulta do art. 622 do CC que os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras próprias da penhora e que ao arresto são extensivos, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora. Refere, a propósito, Paula Costa e Silva (5): «…pode uma apreensão jurídica de bens, cujo efeito substantivo se traduz na inoponibilidade de actos dispositivos ao requerente da providência, ser decretada por tribunais arbitrais? Poderia responder-se imediatamente, com base numa argumentação formal, que não. Quando a lei identifica o arresto como uma apreensão judicial, a decretação da medida estaria reservada aos tribunais judiciais. Mas enquanto argumento formal, vale o que vale. Determinante é saber se o decretamento de uma apreensão de bens constitui um acto de exercício de poderes de autoridade. E, aqui, a resposta é positiva. A restrição de faculdades fundamentais, integradas na situação jurídica do titular dos bens arrestados, por acto heterónomo, consubstancia o exercício de um poder de autoridade, sendo, por isso, possível qualificar, tanto o arresto, quanto a penhora, enquanto actos de exercício de poderes soberanos. Se o decretamento do arresto, só por si, implica o exercício de poderes de autoridade, perguntar-se-á se pode admitir-se que esta providência seja ordenada por tribunais arbitrais… …Na verdade, o exercício de poderes de autoridade por sujeitos de direito privado no âmbito da acção executiva não só se fundam em norma habilitante, como, ainda, é acompanhado de uma responsabilidade do Estado pelos actos praticados por estes seus auxiliares. Ora, isto não sucede quanto à realização da Justiça através dos tribunais arbitrais. Aí, o Estado dá-nos, inclusivamente, uma indicação muito forte quanto à não transferência de poderes de autoridade para os juízes arbitrais. Veja-se, neste sentido, o que sucede em sede de competência para a execução das decisões arbitrais. Veja-se, neste sentido, o que sucede em sede de competência para a execução das decisões arbitrais: esta foi retirada ao tribunal arbitral». E, mais, adiante (pag. 234): «…não pode aceitar-se que a parte deva esperar pela constituição de um tribunal arbitral para, só depois, sujeitar ao seu julgamento um pedido cautelar. A urgência das providências cautelares não é compatível com este compasso de espera». Tendo em consideração o que acaba de ser referido, entende-se que mesmo que não ocorresse a nulidade acima assinalada, sempre teríamos de concluir que o procedimento cautelar de arresto estaria necessariamente fora do âmbito da jurisdição arbitral. * V - Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, revogando o despacho recorrido e ordenando o prosseguimento dos autos (sem prejuízo da eventual apreciação de outras questões que sejam de considerar no momento do despacho liminar). Sem custas. * Lisboa, 20 de Abril de 2006 ____________________________________ Maria José Mouro ____________________________________ Neto Neves ___________________________________ Manuel Capelo _____________________ (1).-Ver João Luís Lopes dos Reis, «A Excepção da preterição do Tribunal Arbitral», ROA 58, pags. 1119-1120. (2).-João Luís Lopes dos Reis, obra e local citados, pags. 1126-1127. (3).-Ver Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, «Código de Processo Civil Anotado», II vol., pag. 670. (4).-Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, pag. 52. (5).-«A Arbitrabilidade de Medidas Cautelares», ROA, ano 2003, nº 63, vols. I e II, pag. 221. |