Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7995/2001-3
Relator: MÁRIO MORGADO
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/09/2005
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: DECIDIDO NÃO TOMAR CONHECIMENTO
Sumário: I – O artigo 456.º do Código de Processo Civil, que prevê a condenação por litigância de má fé, é, subsidiariamente, aplicável no processo penal, por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
II – Deve ser condenado como litigante de má fé, nos termos das disposições combinadas dos artigos 456.º, n.os 1 e 2, alínea d), do Código de Processo Civil, e 102.º do Código das Custas Judiciais, o arguido que, mediante sucessivos requerimentos, reclamações, recursos, suscita questões, sem fundamento sério, com vista a conseguir, em termos flagrantes e ostensivos, um objectivo ilegal [v.g. a prescrição do procedimento criminal], entorpecer a acção da justiça ou protelar/impedir o trânsito em julgado da decisão, assim fazendo dos meios processuais uso manifestamente reprovável.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, em conferência, na 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Em 19/4/05, o arguido JCP veio arguir a inexistência jurídica das decisões proferidas pelo relator, considerando, v.g. que “não se submeteu a concurso curricular de recrutamento ou habilitação para o exercício do cargo de juiz da Relação” (fls. 581 – 587).
Tal questão já fora anteriormente suscitada nos autos pelo arguido em 18/2/05 (fls. 554 – 558) e julgada improcedente pelo acórdão proferido em 30/3/05 (fls. 574 – 575), no qual se decidiu que “todos os signatários, nomeadamente o relator, exercem as suas funções ao abrigo do Direito vigente no Estado Português, pelo que é evidente – como já foi bastamente explicado ao arguido em vários processos – que as suas decisões não padecem de qualquer vício, v. g. a invocada inexistência”.
Consequentemente, por acórdão proferido em 18/5/05, decidiu-se não tomar (novamente) conhecimento de tal questão.
2. O incidente assim suscitado não pode dissociar-se da globalidade da conduta processual que o arguido vem adoptando nos presentes autos.
Na verdade, ele vem tentando transformar o processo num interminável “carrossel” de requerimentos/reclamações/decisões/recursos em que, circularmente, em todos os patamares de decisão do poder judicial, são suscitadas, sem qualquer fundamento real, sucessivas questões, sendo certo que [como já se escreveu no acórdão de fls. 564 – 566, proferido em 9/3/05] é legalmente inadmissível fazer dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal [v.g. a prescrição do procedimento criminal], entorpecer a acção da justiça ou protelar/impedir, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão [cfr. art.º 456.º CPC], como – em termos flagrantes e ostensivos – aqui vem ocorrendo[1].
3. Tendo invocado mais uma vez a “inexistência jurídica das decisões proferidas pelo relator”, sem qualquer fundamento real, com argumentação já contrariada por decisão anterior, o arguido fez, de forma deliberada, um uso manifestamente reprovável do processo, com o fim de entorpecer a acção da justiça e protelar o trânsito em julgado da decisão, pelo que agiu como litigante de má-fé [art.º 456.º, n.º 2, d), CPC, ex vi do art.º 4.º, CPP].
Será que a aplicação do instituto da litigância de má-fé ao processo penal – e concretamente ao arguido – consubstancia alguma «desarmonia com o processo penal»?
Temos por seguro que não.
Com efeito:
O processo penal constitui um campo privilegiado de antinomia e tensão, dada a real impossibilidade de integral harmonização das suas finalidades primárias – a saber: por um lado, a realização da justiça, a descoberta da verdade e o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime; por outro lado, a protecção dos direitos fundamentais das pessoas, maxime do arguido.
O remédio para esta conflitualidade teoricamente irredutível reside na concordância prática de todas as finalidades em conflito.
Mas “erigir qualquer uma das finalidades conflituantes em finalidade única ou mesmo absolutamente determinante da estruturação do processo coloca-o em conflito irremível com os mandamentos do Estado de Direito” (Figueiredo Dias, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do CPP, in RPCC, Ano 8, Fasc. 2º, 202).
A realização da justiça no processo não prescinde – não pode prescindir – de um mínimo de eficácia na condução do processo, pelo que, em abstracto, não se vê como possa sustentar-se qualquer incompatibilidade entre os direitos do arguido e a utilização pelo tribunal de meios efectivamente adequados a prevenir/neutralizar o uso do processo ou dos meios processuais em termos manifestamente reprováveis, com o fim de v.g. conseguir um objectivo ilegal, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Em concreto, também é evidente que inexiste perigo da mais leve beliscadura dos direitos do arguido: este já foi condenado em 1.ª e 2.ª instância e, após várias vicissitudes, já foi determinada, nos termos do art.º 720.º, CPC, a baixa dos autos à 1.ª instância para execução da pena aplicada ao arguido (encontramo-nos agora no âmbito de um mero traslado).
4. Notificado, nos termos do art.º 3.º-A, CPC, para, querendo, se pronunciar sobre esta questão, o arguido nada disse.
5. Em face do exposto, acorda-se, em condenar o arguido, como litigante de má-fé, na multa de 30 UCs [cfr. n.º 1 do citado art.º 456.º, CPC, e art.º 102.º, CCJ].
Notifique.
Lisboa, 9 de Novembro de 2005

Mário Belo Morgado
Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida
Maria da Conceição Simão GomesVencida.

[1] Na 1ª instância o processo foi julgado já em 26/4/2001 e, nesta Relação, julgando-se improcedente o recurso interposto pelo arguido, em 12/12/2001…

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 Declaração de Voto. Salvo o devido respeito pela opinião que fez vencimento, não condenaria o arguido como litigante de má-fé, com os seguintes fundamentos:
1. O instituto da má fé encontra-se regulado no art. 456.º e segs. do Código do Processo Civil.
«O princípio da cooperação constitui, a partir da reforma do CPC, um princípio fundamental e angular do processo civil, com expressão no art. 266.º do Código, no sentido de fomentar a colaboração entre os magistrados, os mandatários e as próprias partes, com vista a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Como reflexo e corolário deste princípio, obteve também expressa consagração, com a reforma, o princípio da boa fé processual (art. 266.º-A).
Por força dos citados princípios, devem, portanto, as partes, na sua actuação processual, agir de boa fé e observar os deveres de cooperação.
A má fé consiste, pois, na "utilização maliciosa e abusiva do processo»[1].
«Mas, o princípio constitucional, recolhido no art.º 20.º/1 da Constituição, em conformidade, aliás, com o art. 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, garante o acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva, não podendo a condenação por litigância de má fé ser limitativa do direito de acção, entendido como direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento e apreciação de um órgão jurisdicional, nem do direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão. E também não pode a condenação por litigância de má fé ser limitativa do direito de defesa».[2]
No Código do Processo Penal, ao invés do Código do Processo Civil, não encontramos qualquer norma que contemple a condenação como litigante de má fé, tal como se encontra prevista no art. 456.º, do CPC.
2. Em processo penal a integração de lacunas reveste um especial cuidado, atenta a natureza e a estrutura do processo penal.
Daí que o legislador, tenha consagrado, no art. 4.º, do CPP, sob a epígrafe, «Integração de lacunas», que «Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderam aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, e na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal».
Ou seja, em processo penal, na integração de lacunas haverá que percorrer um tríplice caminho: a) analogia; b) normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e c) princípios gerais do processo penal
Para a aplicação das normas de processo civil ao processo penal, o legislador impôs como condição da sua aplicabilidade que elas se harmonizem com o processo penal.
E aqui, importa ter presente que os diferentes tipos de processo são no fundo determinados pela especificidade do objecto processual e como é este quem comanda a construção geral e a regulamentação concreta próprias de cada tipo de processo.
Já em Fevereiro de 1974, o Prof. Figueiredo Dias[3] sobre o direito processual penal e o direito processual civil, escrevia:
«Prenhe de preciosos ensinamentos e sugestões para o estudo direito processual penal é a comparação entre este e o direito processual civil. De comum têm eles a circunstância de serem processos inteiramente jurisdicionalizados, em que se trata da comprovação de certos factos e da declaração das consequências jurídicas correspondentes. E daqui já se deixa compreender que, sendo o direito processual civil aquele que se encontra regulado de forma mais minuciosa, ele possa ser posto como uma espécie de lei subsidiária, relativamente ao direito processual penal (CPP, art.º 1.º § único): mas a coincidência termina praticamente aqui.
Assim, enquanto o processo civil tem como causa uma relação de direito privado e pertence aos sujeitos desta, quer no seu se quer no seu como, o processo penal deriva juridicamente de um crime, tende à aplicação de uma pena, pertencente à sociedade – que a exerce ela própria («acção popular») ou delega o seu exercício em magistrados especializados – e só pode ser exercida contra pessoas singulares, tidas como autoras ou comparticipantes da infracção».
Por outro lado – e isto tem a maior importância – enquanto a relação de direito privado não postula necessariamente uma decisão judiciária para a sua realização concreta (antes esta tem lugar, na generalidade dos casos, independentemente do recurso ao processo), a submissão de um criminoso a reacções criminais só pode dar-se, dentro do Estado, pela via de um processo e da consequente decisão judiciária. Nulla poena sine processu: o processo penal é necessário pressuposto de realização e complemento do direito penal.
«Acresce que o direito civil confere aos particulares interessados a faculdade de fazerem valer no processo as suas pretensões ou de, pelo contrário, renunciarem a elas – na medida, pelo menos, em que tal faculdade não lese um interesse público preponderante –, daqui derivando uma quase total disponibilidade do objecto do processo, fortemente limitadora dos poderes do tribunal. Uma tal disponibilidade contrariaria decisivamente a função do processo penal de esclarecer os crimes e punir os criminosos; por isso neste processo o objecto é praticamente indisponível pelos sujeitos processuais, pois que se trata de dar realização a um interesse da comunidade e do próprio Estado. Assim se afirma correntemente, e no essencial com boa razão que ao processo civil cabe uma natureza privatística, e ao processo penal, pelo contrário, uma natureza e uma estrutura publicistas.
  Correspondendo à diferenciação referida dos objectos processuais erguem-se, entre o processo civil e o penal, diferenças marcadas na estrutura e nos princípios fundamentais».
  E, sobre a interpretação do § único do art. 1.º, do CPP de 1929, correspondente ao actual art. 4.º, do CPP, discordando da doutrina que não estende ao direito processual penal a garantia do princípio da legalidade que se encontra consagrado no direito penal substantivo, defendia o Prof. Figueiredo Dias,[4] «quanto à pretensa instrumentalidade do processo ela só se deixa afirmar no plano funcional e não prejudica a sua plena autonomia teleológica: também o processo penal tem os seus fins próprios a realizar. Constituindo o princípio da legalidade, por outro lado, a mais sólida garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado, não se vê por que não haja ele de estender-se, na medida imposta pelo seu conteúdo de sentido, ao processo penal, cuja regulamentação pode a todo o momento pôr em grave risco a liberdade das pessoas. (...) Isto não significa que o recuso á analogia – como a qualquer outra fonte integrativa que desta tecnicamente se distinga – fique, contra o disposto no § único do art.º 1.º, do CPP, completamente vedado em direito processual penal, mas só que ele fique vedado na medida imposta pelo conteúdo de sentido do princípio da legalidade e, portanto, sempre que o recurso venha a traduzir-se num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos «processuais» do arguido (desfavorecimento do arguido, analogia «in malam partem»).
Por outra via se tem logrado a mesma conclusão: fazendo-se notar que toda a norma que restrinja o conteúdo ou o livre exercício de direitos subjectivos é uma norma excepcional e, por conseguinte (CC art.º 11.º), não comporta analogia (...).
Se o caso interpretado não tem outro análogo directamente regulado na lei processual penal, manda o § único do art.º 1.º do CPP recorrer ás regras do processo civil que se harmonizem com o processo penal. Confere-se assim às normas legais do processo civil o estatuto de direito subsidiário, todavia sob condição de se demonstrar a sua harmonia, no caso com os princípios do processo penal».
Que o recurso a estes princípios, como fonte de integração, seja obrigatoriamente antecedido pelo recurso ás normas do processo civil é uma concessão explicável à maior certeza e segurança que estas (já legalmente formuladas) oferecem perante aqueles (necessariamente abstractos). Que, por outro lado, se requeira a harmonia entre as normas do processo civil e os princípios do processo penal é exigência que bem se aceita perante as diferenças estruturais e funcionais que vimos intercedem entre os dois tipos de processo. Compreende-se pois (e a nossa jurisprudência bem se tem dado conta disso) que todo o cuidado não seja demais antes que se confira a uma norma de processo civil função integrante de uma lacuna do direito processual penal».
No mesmo sentido se pronunciou Cavaleiro Ferreira,[5] (...) «só quando não exista preceito positivo da lei processual penal que possa ser aplicado a casos análogos, essa possibilidade resulta da legitimidade da analogia derivada dos princípios gerais do processo penal, como essa mesma legitimidade tem de ser verificada para aplicação de preceitos da lei processual civil. Somente que nesta última hipótese há que estar precavido contra ilusória semelhança. O conhecimento dos princípios fundamentais que sustentam o travejamento do processo penal, (...), será de utilidade para evitar o desvirtuamento do processo penal pela aplicação inconsiderada a casos omissos de normas de processo civil que a natureza do processo penal repele».
3. É aqui que reside a minha discordância com a tese que obteve vencimento, relativamente à aplicação do art.º 456.º, al. d), do CPC – a «desarmonia com o processo penal», pelas razões que a seguir se expõem:
  3.1. A Constituição da República Portuguesa consagra como princípio e garantia fundamental de todo e qualquer cidadão, que o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso (art.º 32.º, n.º 1, da CRP); que em quaisquer processos sancionatórios são assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa (n.º 10 do art.º 32.º).
  Em conformidade com este preceito constitucional o legislador do CPP de 1987 definiu de forma rigorosa o estatuto processual do arguido, conferindo-lhe, em especial, os direitos e deveres que se encontram elencados no art.º 61.º, n.º 1, do CPP.
  Aos direitos, genérica e especialmente, enumerados no art.º 61.º do CPP, assistem ainda ao arguido outros direitos que se encontram previstos em diversas normas do CPP, como, v. g. , o arguido, ainda que em liberdade, pode apresentar exposições, memoriais e requerimentos em qualquer fase do processo, desde que se contenham dentro do objecto do processo ou tenham por finalidade a salvaguarda dos seus direitos fundamentais (art.º 98.º, n.º 1, do CPP).
  3.2. Por outro lado, a Lei Fundamental consagra no art.º 32.º, n.º 2, o princípio da presunção de inocência.
Em conformidade com este preceito constitucional, (art.º 32º, n.º 2, da CRP), o arguido goza do direito ao silêncio, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações, para o que deve ser informado antes do interrogatório (arts. 141.º, n.º 4, 143.º, n.º 2, 144.º, n.º 1, e 343.º, n.º 1, do CPP), sendo que o silêncio do arguido não pode ser interpretado como presunção de culpa; ele presume-se inocente.
“A lei não estabelece qualquer sanção para o arguido, que, prestando declarações sobre os factos que lhe forem imputados falte à verdade. Não se trata de um direito de mentir, mas simplesmente da não punição da mentira”[6]
Com efeito, se o arguido se negar a prestar declarações ou a responder, seja qual for a fase do processo o seu silêncio não poderá ser valorado como meio de prova pois está legitimado como exercício de um direito de defesa que em nada o poderá desfavorecer (art. 343.º, n.º 1 e 345.º, n.º 1, do CPP).
  «Decorre do princípio da presunção de inocência que o arguido que este não é um mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele, devendo frisar-se que daqui decorre – e em ligação com o princípio da preservação da dignidade pessoal – que a utilização do arguido como meio de prova é sempre limitada pelo integral respeito pela sua decisão de vontade; ou seja, o arguido, em matéria de prova, não pode ser obrigado a colaborar com o tribunal, além de que a sua confissão (por si, já um acto espontâneo de colaboração) se acha rodeado de especiais cuidados.
  E, se é certo que o princípio da presunção de inocência do arguido opera decisivamente sobre a questão da prova, não é menos verdade que esse princípio tem outra significativa incidência no processo penal (entre outras, menos significativas): impõe que o arguido seja titular de um estatuto, e receba um tratamento, próprios de alguém que é considerado inocente e, que, portanto, está no uso do seu jus libertatis – pelo menos, até onde o exercício do jus puniendi do Estado o não restringir.
  Significa isto que, estando o arguido, no curso de um processo penal, mergulhado num estado de dúvida, numa ordem jurídica assente na dignidade da pessoa humana e em princípios de liberdade e democracia, a presunção de inocência do arguido em processo penal terá também por função impor que a contenção, a suspensão e a negação dos direitos do arguidos (seja “dentro” do processo, seja “fora” dele) sejam o mais limitadas possível (quantitativa e qualitativamente) e que assumam um carácter transitório e reversível, de modo a assegurar que, uma vez alcançada uma decisão no sentido da inocência do arguido, aquelas contenções, suspensão e negação sofridas pelo arguido ao longo do processo se possam considerar “suportáveis”»[7]
  Assim sendo, não posso deixar de concluir que, tal como se encontra regulado o instituto da má fé nos arts. 456.º e segs. do Código do Processo Civil, é incompatível com o processo penal.[8]
  Tal realidade resulta, desde logo, pelo estatuto do arguido, definido pelo catálogo de direitos e deveres processuais do arguido penal, [art.º 61-º, do CPP], e por outro lado, comparando com as normas da parte cível, [v. g., arts. 264.º, 266.º, 266.º-A e 456.º, do Código do Processo Civil]: não se harmonizam: porquanto o arguido não tem o dever de falar, não está a obrigado a falar com verdade, salvo o caso das perguntas feitas, por entidade competente, sobre a sua identidade e, quando a lei o impuser, sobre os seus antecedentes, a mentira nem sequer é punida, o que também não lhe confere um direito a mentir.
  Do exposto, concluo que, não contendo o Código do Processo Penal norma expressa relativa à má fé, encontra-se vedado o recurso ao Código do Processo Civil, perante a desarmonia de princípios neste particular, não havendo fundamento para sustentar o entendimento de que há lacuna (art.º 4.º, do Código do Processo Penal).[9]
  Por outro lado, a jurisprudência vem referindo que a remissão do art.º 129.º, do Código do Processo Penal para a lei civil no que respeita à indemnização apenas é feita quanto aos pressupostos e montantes, mas não quanto a questões processuais que são reguladas pelo Código do Processo Penal.[10]
Em suma, a condenação do arguido em processo penal como litigante de má-fé, por aplicação do art.º 456.º, do CPC, ex vi, do art.º 4.º, do CPP, constitui, salvo o devido respeito, uma violação ao direito de defesa do arguido, como garantia constitucional (art.º 32.º, n.º 1, da CRP), ao direito de acesso aos tribunais no sentido de que não pode ser limitativa do direito de defesa (art. 20.º, n.º 4, da CRP), bem como uma violação ao princípio da proporcionalidade, inserto no art. 18.º, da CRP, segundo o qual ao direito de defesa, enquanto direito fundamental, só lhe podem ser estabelecidas restrições para proteger outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger. Tais princípios vinculam o legislador na definição dessas medidas e o aplicador (designadamente o juiz) delas.
  Por todo o exposto, não condenaria o arguido JCP como litigante de má fé.

Maria da Conceiçao Simão Gomes

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[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 356.
[2] Ac da RL de 27MAI04, Apelação nº 3304/04 – 6ª Secção, Relatora, Desembargadora Fátima Galante
[3] Direito processual Penal, Coimbra Editora, Vol I, pág, 55 a 57
[4] Ob cit., pág. 96-98
[5] In Curso de Processo Penal, Vol I, pág.61-62
[6] Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, I, págs.450 e segs, Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal, pág. 175, e Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, I, pág. 152; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Ed. Verbo, Vol. I, pág. 277.
[7] Rui Patrício, “O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português», Lisboa, 2000, pág. 94 -95
[8] Neste sentido, vide Ac da RL de 12OUT05, in Rec. nº 4040/05, desta 3ª Secção, em que foi Relator o Exm.º Desembargador António Clemente Lima, e  Ac. da RP de 28SET05, in Processo 5645-04
[9] Ac. do STJ de 26FEV02, in CJ Acs. do STJ, X, Tomo II, pág.227.
[10] Ac do STJ de 06JAN88, BNJ 373, 264, e Ac. do STJ de 09JUL97, CJ Acs. do STJ, ano V, pág. 260.