Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
109016/20.3YIPRT-A.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: DESISTÊNCIA DA INSTÂNCIA
FORMALIDADES
ACEITAÇÃO PELO RÉU
EFICÁCIA
REVOGAÇÃO
APRECIAÇÃO PELO TRIBUNAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1.A desistência da instância consiste na declaração expressa da parte de querer renunciar à acção proposta, mas sem renunciar ao direito que pretendia fazer valer;

2.A desistência da instância apenas depende da aceitação do réu, se este já tiver tido intervenção no processo com oferecimento da contestação (cfr. art. 286º, nº 1 do CPC);

3.O art. 290º, nº 3 do CPC impõe ao juiz o dever de examinar se a desistência é válida, quer quanto ao seu objecto, quer quanto à qualidade da parte que nela interveio; sendo a desistência válida, é proferida sentença de homologação;

4.A desistência da instância reveste a natureza de um negócio jurídico processual, unilateral, com vista a terminar o processo e cuja eficácia só está dependente da aceitação do réu, quando seja deduzida após o oferecimento da contestação;

5.Tendo a declaração de desistência da instância formulada pela A. chegado ao conhecimento da R., que a aceitou, essa declaração é eficaz (cfr. art. 224º do CC);

6.Ao formular o desejo de se retractar, ao que a R. se opôs, a declaração de desistência da instância tornou-se irrevogável, tal como resulta do art. 230º, nº 1 do CC;

7.Tendo a R. declarado aceitar a desistência da instância e tendo declarado opor-se a que esse requerimento de desistência ficasse prejudicado, não podia o tribunal recorrido deixar de apreciar a desistência da instância, aferindo da sua validade e, homologando-a, sendo caso disso, sob pena de violação do art. 290º, nº 3 do CPC.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



I.RELATÓRIO


1.Became Actif Building, SA intentou a presente acção de condenação contra Caminho Boavista, Llc - Sucursal Em Portugal, pedindo a condenação desta a pagar-lhe € 200 000,00, acrescidos de juros, alegando ter prestado à R. serviços de acompanhamento de projectos de investimento e promoção imobiliária e consultoria para os negócios, no decurso dos anos de 2017 a 2020, sem que a R. tenha procedido ao respectivo pagamento.
2.Citada, a R. apresentou contestação, na qual invocou as excepções de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade, e impugnou a factualidade alegada pela A..
3.Foi designada data para realização de audiência prévia, tendo a A., antes da data em causa, apresentado requerimento do seguinte teor:
“BECAME ACTIF BUILDING, S.A., Autora nos autos à margem referenciados, em que é Ré CAMINHO BOAVISTA, LLC – SUCURSAL EM PORTUGAL, vem pelo presente apresentar a sua desistência da instância, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 285º, nº 2 do Código de Processo Civil, mais aproveitando para requerer seja dada sem efeito a data designada para realização de audiência prévia, por manifestamente inútil”.

4.–Notificada deste requerimento, a R. apresentou a seguinte resposta:
“CAMINHO BOAVISTA, LLC - SUCURSAL EM PORTUGAL, Ré mais bem identificada nos autos acima indicados, notificada do requerimento junto pela Autora na presente data, a fls. ____ (Ref.ª Citius 344363799), vem junto de V/Exa., nos termos do disposto no artigo 286.º, n.º 1, CPC, aceitar a desistência da instância, sendo certo que, por desistir da instância, deve a Autora ser condenada em custas, as quais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. artigos 529.º, n.º 1, e 537.º, n.º 1, CPC, e artigo 26.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro).”.

5.–Na sequência deste requerimento, foi junto aos autos requerimento do seguinte teor:
“João ….., mandatário da Autora BECAME ACTIF BUILDING, S.A., vem pelo presente requerer a V. Exa. a não consideração e o desentranhamento do requerimento que antecede, com a ref. 34436379, de 12.12.2022, em que erradamente se requer a desistência da instância. A submissão do requerimento em causa deveu-se a falha de comunicação entre os representantes da Autora e o aqui signatário, sobretudo motivada pela utilização de língua estrangeira nessa comunicação, pela qual o aqui signatário desde já se penitencia.
Pelo exposto, atendendo a que não estão reunidas as condições para continuação do exercício do mesmo, vem pelo presente renunciar ao mandato em causa e requerer a V. Exa. se digne ordenar a notificação pessoal da presente renúncia à mandante, com as advertências legais e para os efeitos previstos no artigo 47º do Código de Processo Civil.
Nesse seguimento, apesar de tal não configurar motivo, por si só, para adiamento da diligência agendada para o dia de amanhã, 16.12.2022, solicita-se a V. Exa. seja a mesma dada sem efeito, para que a Autora/mandante possa constituir mandatário da sua confiança e assegurar condignamente a proteção dos seus interesses nos autos, o que, neste momento, não se afigura viável através do aqui signatário.
Não obstante, o aqui signatário encontra-se ainda a tentar contactar com o Ilustre Mandatário da Ré para estabelecimento de via negocial entre as partes, com vista à transação nos presentes autos, no sentido de permitir, pelo menos, requerer a V. Exa. A suspensão da instância por período julgado adequado, a fim de possibilitar a discussão das condições a estabelecer no acordo em causa – dando-se conhecimento a V. Exa. Do resultado desses contactos logo que possível.”.
6.–Em resposta, a R. pronunciou-se, defendendo a validade da desistência realizada e a inadmissibilidade da sua revogação.

7.–Na sequência dos vários requerimentos apresentados, foi proferido o seguinte despacho:
“Relativamente à desistência da instância requerida e aceite pela R., verificando-se que antes da sua homologação foi apresentado requerimento que configura “um verdadeiro arrependimento” de tal desistência, entende-se não ser de apreciar a mesma, considerando não escrito o requerimento de 12-12-2022”.

8.–É deste despacho que a R. recorre, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
A.–O presente recurso de apelação tem por objecto o despacho proferido oralmente pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do processo n.º 109016/20.3YIPRT, que corre termos perante o Juiz 12 do Juízo Central Cível de Lisboa, no decurso da Audiência decorrida a 16 de Dezembro de 2022, cuja acta consta de fls. ____ (Ref.ª Citius 421532636), mediante o qual o Tribunal recorrido (i) julgou lícita a revogação da desistência da instância praticada pela Autora, ora Recorrida, apesar de essa desistência já ter sido entretanto aceite pela Ré, ora Recorrente, e (ii) declarou não escrito o requerimento no qual aquela desistência havia sido praticada.

B.–Na acta, que consta dos autos a fls. ____ (Ref.ª Citius 421532636) o despacho recorrido surge transcrito nos seguintes termos:
«Relativamente à desistência da instância requerida e aceite pela R., verificando-se que antes da sua homologação foi apresentado requerimento que configura “um verdadeiro arrependimento” de tal desistência, entende-se não ser de apreciar a mesma, considerando não escrito o requerimento de 12-12-2022.»
C.–A matéria de direito em que a Recorrente e o despacho recorrido divergem reconduz-se à resposta à seguinte pergunta: uma vez requerida e expressamente aceite a desistência da instância, é lícito ao Autor revogar essa desistência enquanto a mesma não for homologada?
D.–A desistência da instância constitui um acto jurídico, negocial e processual, receptício, mediante o qual as partes, por iniciativa do autor e com expressa aceitação do réu (cf. artigo 286.º, n.º 1, CPC), subtraem o litígio à apreciação do tribunal.
E.–Por esse motivo, a desistência da instância encontra-se sujeita às regras aplicáveis à formação de negócios jurídicos, bem como as aplicáveis aos seus vícios.
F.–Nos termos do disposto no artigo 224.º, n.º 1, Código Civil, “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; (…).”
G.–In casu, a declaração de desistência da instância, realizada em 12.12.2022, chegou efetivamente ao poder da Ré/Recorrente, que a aceitou expressamente, em 14.12.2022, antes ainda da sua suposta revogação, que teve lugar a 15.12.2022.
H.–Significa isto que o negócio foi concluído e que a vontade da Autora/Recorrida não podia mais ser unilateralmente revogada (cf. artigos 224.º, n.º 1, e 230.º, n.º 1 e 2, ex vi do artigo 295.º, todos do Código Civil), no dia 14.12.2022, o que significa.
I.–É certo que a produção dos seus efeitos depende do proferimento de sentença homologatória.
J.–Todavia, esta destina-se a apreciar a validade do negócio concluído apenas quanto à disponibilidade do direito (objeto) e quanto à legitimidade das partes (sujeitos), tal como a lei expressamente determina (cf. artigo 290.º, n.º 3, CPC).
K.–Concluindo pela respectiva regularidade, apenas quanto àqueles dois aspectos, deveria o Tribunal recorrido ter homologado a desistência da instância.
L.–Sendo certo que a desistência praticada pela Autora/Recorrida (e expressamente aceite pela Ré/Recorrente) é válida, na medida em que (i) a Autora tem legitimidade para desistir da instância; (ii) a Autora fê-lo em tempo; (iii) a Ré tem legitimidade para aceitar; (iv) a Ré aceitou; (v) a Ré fê-lo em tempo; (vi) o objeto da ação não se refere a direitos indisponíveis; (vii) o meio empregado pelas partes – requerimento é formalmente suficiente; e (viii) os Mandatários têm poderes especiais (cf. Artigos 45.º, n.º 2, 277.º, alínea d), 285.º, n.º 2, 286.º, n.º 1, 289.º, n.º 1, e 290.º, n.º 1 e 3, CPC).
M.–Subsidiariamente, deverá aplicar-se, por analogia, o artigo 465.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, considerando-se a desistência da instância irrevogável a partir do momento em que a parte contrária a tenha aceitado.
N.–Por outro lado, se estivesse em causa um vício da vontade susceptível de implicar a invalidade do acto viciado, a via processual adequada seria a prevista no artigo 291.º, n.º 1 e 2, CPC: a propositura de ação autónoma com esse objeto.
O.–Se a parte vir esse vício declarado por sentença em ação autónoma, terá depois direito de impugnar a sentença homologatória do negócio viciado por meio de um recurso extraordinário de revisão, nos termos do disposto no artigo 696.º, alínea d), CPC.
P.–Por conseguinte, deve o despacho recorrido ser revogado e, em sua substituição, ser proferida homologação da desistência da instância.”.

9.–Não foram apresentadas contra-alegações.

II.–QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a única questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, é determinar se após a apresentação de um requerimento de desistência da instância aceite pelo réu, pode a parte apresentar outro, retractando-se.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos que relevam para a decisão são os que decorrem do relatório.
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IV.–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vem o presente recurso interposto do despacho que considerou não escrito o requerimento de desistência da instância formulado pela A. e aceite pela R. e determinou o prosseguimento dos autos.
Defende a R., ora apelante, que a desistência da instância se torna irrevogável com a sua aceitação, salvo acordo das partes ocorrido antes da sentença homologatória, o que não ocorreu; que, ao dar por não escrito o requerimento de desistência, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 290º, nº 3 do CPC e ainda que não existe qualquer erro de declaração nos termos do art. 291º do CPC.

Apreciando.

Saliente-se, antes de mais, que a instância se inicia com a propositura da acção, sendo que esta se considera proposta, intentada ou pendente logo que a respectiva petição se considere apresentada nos termos dos nºs 1 e 6 do art. 144º, cfr. resulta do art. 259º, nº 1 do CPC.
Como se pode ler no Ac. TRP de 18-12-2018, proc. 1950/16.8T8MAI-A.P1, relator Alexandra Pelayo, citado pela apelante, “A instância é a relação jurídica processual e inicia-se com a propositura da acção (cfr. art. 259º nº 1 do C.P.C.). “Com a proposição da acção constitui-se a instância (art. 259º-1), como relação jurídica entre o autor (solicitante da providência jurisdicional) e o tribunal (a quem a solicitação é dirigida). O ato de proposição produz efeitos em face do réu, com a citação (art. 259-2), ato mediante o qual a relação jurídica se converte de bilateral em triangular e se torna em principio estável (art. 260). O termo instância traduz, a partir daqui, a ideia de relação, por natureza dinâmica, existente entre cada uma das partes e o tribunal, bem como entre as próprias partes na pendência da causa, isto é até que ocorra alguma das causas de extinção previstas no art. 277º)”, nas expressivas palavas de Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, pg 160.”.
Dispõe o art. 277º do CPC que a instância se extingue com o julgamento; com o compromisso arbitral; com a deserção; através de desistência, confissão ou transacção e ainda quando se verifique a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide.
Concretizando o art. 277º, al. d), preceitua o art. 283º, nº 1 do CPC que o autor pode, em qualquer altura, desistir de todo o pedido ou de parte dele, como o réu pode confessar todo ou parte do pedido, referindo-se o nº 2 à possibilidade de as partes, em qualquer estado da instância, transigirem sobre o objecto da causa.
Isto é, ao iniciar a instância, o autor mantém disponibilidade sobre a mesma, podendo desistir do pedido ou da instância.
No que se refere em particular à desistência da instância ensina-nos o Prof. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, Coimbra Editora, 1946, pág. 466 e 477, que “a desistência da instância é o acto pelo qual o autor faz cessar o processo que instaurara, sem que com isso entenda renunciar ao direito que pretendia fazer valer. O autor renuncia à instância promovida, ao processo que provocou; não renuncia à acção proposta, ou melhor, ao direito substancial que se arrogou contra o réu”.

Assim, a desistência da instância consiste na declaração expressa da parte de querer renunciar à acção proposta, mas sem renunciar ao direito que pretendia fazer valer. Por esse motivo, a desistência da instância faz cessar o processo, sem extinguir o direito do autor e não obsta a que este possa propor nova acção com o mesmo objecto (cfr. art. 279º, nº 1 do CPC).
Por outro, apenas depende da aceitação do réu, se este já tiver tido intervenção no processo com oferecimento da contestação (cfr. art. 286º, nº 1 do CPC).

Tal como nos explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 333, “A desistência de instância produz apenas efeitos relativos, ao nível da extinção da instância, sem obstar a que o autor intente outra ação com o mesmo objeto e contra o mesmo sujeito, embora não lhe possam aproveitar os efeitos produzidos pela instauração da primeira ou pela citação do réu no campo da caducidade e da prescrição, atento o disposto no art.º 372º, n.º 1, do CC. O mesmo se diga quanto aos demais efeitos civis a que se reporta o art.º 279°, n.º 2, do CPC”.
Estabelece o art. 290º, nº 1 do CPC que a desistência se pode fazer por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo.
Apresentada essa desistência, deve o juiz examinar se, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a desistência é válida, e, no caso afirmativo, assim o declarar por sentença, homologando a mesma, cfr. art. 290º, nº 3 do CPC.
Isto é, o art. 290º, nº 3 impõe ao juiz o dever de examinar se a desistência é válida ou enferma de algum vício de invalidade, quer quanto ao seu objecto, natureza disponível ou indisponível, quer quanto à qualidade da parte que nela interveio, nomeadamente os poderes do desistente. Sendo a desistência válida, é proferida sentença, a qual é “uma sentença de pura homologação do acto da parte ou das partes. O juiz não conhece do mérito da causa, não se pronuncia sobre a relação substancial em litígio, limita-se a verificar a validade do acto praticado pelo autor” (Prof. Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 534).
Apresentam os presentes autos a particularidade de, após ter sido apresentada a desistência da instância e a mesma ter sido aceite pela R., ter sido junto requerimento subscrito pelo Ilustre Mandatário da A., requerendo a não consideração e o desentranhamento do requerimento de desistência da instância, o qual se deveu a falha de comunicação com a parte.
A questão que se coloca é, assim, se, após a apresentação de um requerimento de desistência da instância aceite pelo réu, pode a parte apresentar outro em sua substituição, voltando atrás na sua intenção.
Confrontado com aquele requerimento, entendeu o tribunal recorrido que o mesmo “configura “um verdadeiro arrependimento” de tal desistência”, tendo considerado como não escrito o requerimento onde a A. desiste da instância.
Não se pode aceitar esta solução.
Desde logo, e como bem refere a apelante e como já se expôs, a desistência da instância reveste a natureza de um negócio jurídico processual, unilateral, com vista a terminar o processo e cuja eficácia só está dependente da aceitação do réu, quando seja deduzida após o oferecimento da contestação, “permitindo a lei a sua ocorrência em qualquer altura do processo, mesmo até ao trânsito em julgado da decisão final ainda que a mesma tenha sido favorável ao demandante/desistente (cfr. art.º283ºnº1 do CPC)” (Ac. TRE de 28-09-2017, proc. 785/15.0T8PTM.E1, relator Maria João Sousa e Faro – citado pela apelante).

Ora, sendo um negócio jurídico, a desistência da instância encontra-se sujeita às regras aplicáveis à formação de negócios jurídicos.
Nos termos do art. 224º, º 1 do CC, “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”, dispondo o nº 2 que “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida” e o nº 3 que “A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida é ineficaz”.

No caso dos autos, a declaração da A. no sentido de desistir da instância chegou ao conhecimento da R., tendo de se considerar eficaz a declaração em apreço, nos termos e para os efeitos do art. 224º do CC.

Dispõe o art. 230º, nº 1 que “Salvo declaração em contrário, a proposta de contrato é irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário ou de ser dele conhecida”, mais constando do nº 2 deste preceito que “Se, porém, ao mesmo tempo que a proposta, ou antes dela, o destinatário receber a retractação do proponente ou tiver por outro meio conhecimento dela, fica a proposta sem efeito”.

Da análise dos autos, dúvidas não restam que aquela declaração da A. chegou ao conhecimento da R. e, por conseguinte, se tem por eficaz, antes de a A. ter formulado o seu desejo de se retractar, pelo que a mesma se tornou irrevogável, face à oposição da R. a essa pretensão, tal como resulta do citado art. 230º, nº 1.

A esta conclusão não obsta o facto de não ter sido proferida decisão homologatória, já que, como já se referiu, essa sentença se limitar a apreciar a validade da desistência, não entrando na apreciação do mérito da causa.

Por outro lado, os motivos invocados para a A. se retractar quanto à sua intenção de desistir da instância não permitem a aplicação do disposto no art. 291º do CPC, na medida em que a A. apenas alega um erro na transmissão da declaração subsumível ao disposto no art. 250º do CC, e que apenas determina a sua anulabilidade.

Ora, não obstante o art. 291º do CPC possibilitar a apreciação da nulidade no processo ainda pendente antes da homologação, já não permite essa apreciação quando apenas esteja em causa a anulabilidade, caso em que tem de ser intentada acção para o efeito. Neste sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. I, pág. 590.

Donde, não pode o requerimento apresentado ser apreciado com base neste preceito.
Assim, e tal como se pode ler no Ac. Ac. TRP de 18-12-2018 supra citado, e com o qual se concorda inteiramente, “O processo realiza-se por meio de uma sequência ordenada de actos e desenvolvimento harmónico e célere da relação processual e este entendimento poderá pôr em causa o princípio da aquisição processual, segundo o qual “os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis á parte contrária (enunciado de Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pg. 385). São expressões deste princípio, desde logo o art. 413º do CPC., âmbito dos meios de produção da prova, onde este princípio tem caracter absoluto.
E também poderia afectar a estabilidade processual, podendo protelar e comprometer a eficiência e celeridade processuais, bem como o princípio da segurança das relações jurídicas.
Porém, no caso em apreço, não estamos perante a prática de actos processuais preclusivos ou de actos processuais sujeitos a prazos, mas sim perante a prática de um acto resultante do funcionamento da autonomia privada da parte e da “disponibilidade da instância” que é reconhecida ao autor, na qualidade de seu impulsionador, que se traduz na possibilidade que aquele tem de poder pôr termo à causa que impulsionou ou de pôr termo ao direito que pretendia ver reconhecido.
Assim sendo, desde que salvaguardadas as legítimas expectativas da contraparte, destinatária da declaração de desistência, afigura-se-nos que nada impedirá que o autor se retrate.
Tal acontecerá se a declaração de desistência não chegou sequer ao conhecimento da parte contrária e tal poderá ainda acontecer, a nosso ver, no circunstancialismo do art. 465º do CPC, que apesar de estabelecer no seu número um o princípio da irretratabilidade da confissão, permite que as confissões expressas de factos feitas nos articulados possam ser retiradas, se a parte contrária não as tiver aceitado especificadamente.
Afigura-se-nos ser possível a aplicação do regime processual previsto nos arts. 46º e 465º do CPC, permitindo uma aplicação analógica.
Destes normativos decorre que as afirmações e confissões expressas de factos, feitas pelo mandatário nos articulados, vinculam a parte, salvo se forem rectificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente.
A lei permite a retirada de afirmações expressas nos articulados, (que não a retirada do próprio articulado, note-se), de molde a substituí-lo por outro ou a considerar-se como não tendo sido apresentado”.
Revertendo estas considerações ao caso dos autos, verifica-se que o pedido da A. no sentido de se retractar é posterior à notificação da desistência da instância à R. e ainda posterior à sua aceitação, sendo certo que a R. se opôs à pretensão de se desconsiderar a desistência da instância.
Ou seja, tendo a R. declarado aceitar a desistência da instância e, posteriormente, que se opunha a que esse requerimento de desistência da instância ficasse prejudicado, opondo-se ao prosseguimento dos autos, não podia o tribunal recorrido deixar de apreciar a desistência da instância, aferindo da sua validade e, homologando-a, sendo caso disso.
Não o tendo feito, violou o disposto no art. 290º, nº 3 do CPC, o que determina a procedência da apelação, com a consequente revogação do despacho recorrido.
As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade da apelada, cfr. art. 527º do CPC.
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V.–DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que aprecie o requerimento de desistência da instância deduzido pela A..
Custas pela apelada, cfr. art. 527º do CPC.

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Lisboa, 26 de Setembro de 2023


Ana Rodrigues da Silva
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes