Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2934/19.0T8BRR.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA DESPORTIVA (SAD)
CLUBE FUNDADOR
ADMINISTRADOR
REMUNERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. São nulas por ofensa aos bons costumes as deliberações que violem princípios fundamentais ligados a interesses individuais ou inter-individuais comummente aceites por todos num determinado contexto histórico e indispensáveis na ordem jurídico-social, independentemente do ramo do direito pelo qual se perspetivem, por versarem sobre atos/comportamentos que axiologicamente são - de per si ou pela pretensão de os regular, limitar, ou explorar - rejeitados pela ordenação jurídico-social no seu todo, designadamente, atos ilícitos e factos de natureza familiar e sexual.
2. A amplitude do conceito – bons costumes - mais abrange as deliberações que violem princípios fundamentais da ordem jurídica societária enquanto realidade que se realiza e move numa dinâmica de interesses sujeitos a distintos ordenamentos que, em abstrato, podem até convergir para o resultado pretendido por todos mas que, não raras vezes, competem entre si na tentativa de cada um maximizar o seu próprio interesse, manifestando-se na violação de regras comerciais e da ética societária ou de negócios.
3. São nulas por violação de preceitos legais que não podem ser derrogados sequer por vontade unânime dos sócios as deliberações sociais contrárias a normas que assumem natureza imperativa por tutelarem interesses da ordem publica geral e/ou societária e /ou direitos societários indisponíveis e irrenunciáveis; preceitos aos quais se contrapõem as disposições legais cuja aplicação pode ser afastada pela vontade das partes quando celebram o contrato de sociedade e que, por isso, assumem natureza supletiva.
4. Na coexistência das necessidades de capital sentidas pelas Associações Desportivas para participação nas competições profissionais, com as exigências de transparência na gestão dos interesses económicos que gravitam em torno do desporto de alto rendimento, as especificidades do regime legal das Sociedades Desportivas previstas pelo Decreto Lei nº 10/2013 de 25.01 refletem as especificidade dos interesses potencialmente divergentes que o integram, visando a compatibilização ou o ponto de equilíbrio (possível) entre o interesse na prossecução do lucro dos investidores, e o interesse na obtenção de resultados desportivos dos Clubes Desportivos, com o objetivo de obstar à descaracterização institucional e à razão de ser da própria Sociedade Desportiva.
5. De entre as especificidades societárias determinadas pela distinta natureza dos interesses envolvidos nas Sociedades Desportivas destaca-se a proteção da posição do Clube Fundador nos casos de constituição da Sociedade Anónima Desportiva (SAD) Pela personalização jurídica de uma equipa que participe ou pretenda participar, em competições desportivas (cfr. art. 3º, al. c) do DL 10/2013) através, além do mais, da imposição de uma participação direta do Clube Fundador na SAD não inferior a 10% do capital social (cfr. art. 23º, nº 1 do DL) e do reconhecimento de categoria especial ou privilegiada às ações do clube (cfr. art. 10º, nº 1 do DL), às quais o legislador atribuiu direito de veto das deliberações que tenham por objeto a fusão, cisão, ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube, desde o seu emblema ao seu equipamento, e o poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração, com direito de veto das respetivas deliberações com aquele objeto (cfr. art. 23º, nº 2 do DL).
6. Independentemente da opção que se faça na discussão sobre a qualificação do ato constitutivo da relação entre a sociedade e cada um dos membros que compõem o órgão de administração, a relação jurídica que se estabelece é entre a sociedade e o administrador nomeado, e não entre este e os sócios.
7. Sem prejuízo de o membro do órgão da administração de Sociedade Anónima voluntariamente dela prescindir, o direito à remuneração emerge do seu ingresso no cargo e a correspetiva obrigação tem como sujeito passivo a sociedade em cuja estrutura essencial aquele se integra na qualidade de membro do seu órgão social, no âmbito de uma relação jurídica sinalagmática que entre ambos se estabelece, de direitos e de deveres recíprocos.
8. A deliberação de sócios de Sociedade Anónima Desportiva que atribui ao sócio Clube Fundador a obrigação de fixar e pagar a retribuição devida ao administrador daquela por esta nomeado é nula com fundamento em violação de preceitos legais não derrogáveis nem pela vontade dos sócios, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 56º do CSC:
i)  por violação da ordem publica e de preceito imperativo específicos do regime legal do tipo societário das SAD, por apta a condicionar o livre exercício do direito de designar um administrador especialmente atribuído ao Clube Fundador pelo art. 23º, nº 2 do DL 10/2013;
ii) por violação da ordem publica e de princípio do direito societário, por não se compaginar nem com a figura jurídica da sociedade enquanto sujeito autónomo de direitos e deveres distinto dos sócios que nela participam, nem com a irresponsabilidade dos acionistas pelas dívidas da sociedade;
iii) por violação de preceito imperativo do regime societário das sociedades anónimas, por introduzir forma ou modo de fixação de remunerações distinto dos legalmente previstos pelo art. 399º do CSC;
iv) por violação dos princípios da autonomia privada e da eficácia inter partes do regime geral do direito comum privado, dos quais decorre que a sociedade não pode deliberar transferir aquela obrigação para a esfera jurídica de um dos seus sócios sem o concurso de um ato de vontade deste.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
A) Clube Desportivo…, Instituição de utilidade pública desportiva, com sede…, instaurou a presente ação declarativa contra Clube Desportivo…, Futebol - SAD, com sede…, pedindo a declaração de nulidade ou, assim não se entendendo, a anulabilidade da deliberação tomada em assembleia geral de sócios da ré em 17.10.2019, de que quem nomeia os administradores é que deverá assegurar-lhes a sua retribuição, no montante que entender justo e adequado, com efeitos retroativos a janeiro de 2017, que foi aprovada com o voto favorável da acionista maioritária e o voto contra da autora.
Invocando a qualidade de acionista da ré, em fundamento do pedido mais alegou, em síntese, que aquela deliberação i) é ofensiva dos bons costumes e de preceitos legais que não podem ser derrogados nem por vontade dos sócios, e por isso, nula nos termos do art. 56º, nº 1, al. d) do CSC[1] e que, ainda que assim não se entenda, ii) é anulável com fundamento no art. 58º, nº 1, al. b) por apropriada a satisfazer o propósito de o acionista que a votou favoravelmente conseguir vantagens especiais para si em detrimento da outra acionista, iii) e com fundamento no art. 58º, nº 1, al. a). Alega que o vogal do conselho de administração da ré foi indicado pela autora na qualidade de titular de ações de categoria A, conforme previsto pelo contrato da sociedade ré, mas foi esta quem, por deliberações de 16.08.2016 e 29.05.2017 tomadas por unanimidade, o nomeou como respetivo administrador executivo, deliberou a sua remuneração e assumiu como sua responsabilidade o respetivo pagamento, que àquele pagou até maio de 2017, e emitiu recibos de vencimento referente aos meses de junho 2017 a junho 2018, que declarou à segurança social, à Autoridade Tributária e a entidades desportivas, pagando os competentes impostos, e por deliberação de 23.07.2018 tomada por maioria, o reconduziu ao cargo de administrador não executivo e reduziu a remuneração mensal, e que a deliberação objeto da impugnação apenas foi tomada como forma encontrada pela ré para se furtar ao pagamento das retribuições que o administrador nomeado sob indicação da autora reclamou através de ação que contra ela instaurou em 12.06.2019 e se mantém pendente, o que é demonstrado pela necessidade de conferir efeito retroativo à deliberação.
Juntou documentos e arrolou testemunha.
Cumprida a citação da ré, na ausência de apresentação de contestação foram declarados confessados os factos articulados pela autora, e ordenado o cumprimento do art. 567º, nº 2 do CPC e a notificação da autora para junção de documento.
B) Oferecidas alegações pelas partes nos termos do art. 567º, nº 2 do CPC, foi proferida sentença que julgou a ação procedente por provada e, em consequência, declarou a nulidade da deliberação tomada na Assembleia Geral da ré realizada em 17.10.2019.
C) Inconformada, a ré apresentou recurso requerendo a revogação da sentença recorrida.
Apresentou conclusões cujo teor, por corresponderem à reprodução ipsis verbis da narrativa contida na motivação de facto e de direito, fundamentou despacho de convite ao aperfeiçoamento através da respetiva sintetização, convite que, ainda que numa prestação processual deficitária face ao legalmente exigido pelo art. 693º, nº 1 do CPC, a recorrente respondeu reduzindo a 33 os 50 pontos/parágrafos das primitivas conclusões, com o seguinte teor:
1° O presente recurso é interposto da sentença proferida nos autos, que decidiu julgar a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência, declarou a nulidade da deliberação tomada na Assembleia Geral da Sociedade Clube Desportivo…, Futebol - SAD, realizada em 17/10/2019.
2º - No entendimento da Recorrente, a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo foi incorretamente julgada, pois se é certo que a Recorrente não apresentou Contestação, também é certo que a matéria assente e dada como provada não é suficiente para considerar que a deliberação tomada na Assembleia Geral da sociedade Clube Desportivo…, Futebol - SAD, realizada em 17/10/2019, devesse ser declarada nula ou anulada, uma vez que não é ofensiva dos bons costumes nem se enquadra no referido art. 56° do CSC.
3º Logo, o Tribunal a quo incorreu em incorreta interpretação do direito no caso em apreço, nomeadamente por violação do referido art. 56° e, subsidiariamente, do art. 58° do CSC, devendo ao invés ter declarado a ação totalmente improcedente.
4º Ora, vem a Recorrida alegar que a deliberação social tomada e aprovada em 17/10/2019 padece de nulidade, nos termos do art. 56°, alínea d) do CSC, alegando ainda que, caso assim não se entenda, sempre deverá ser anulada nos termos do art. 58°, n° 1, al. b) da referida lei - algo que não pode a Recorrente aceitar, por não corresponder à verdade, como adiante se explanará.
5º No entendimento da Recorrente, a referida deliberação efetuou-se dentro da legalidade, sendo certo que, e tal como prevê o art. 399° do CSC, a sociedade poderá sempre entender que os administradores sejam ou não remunerados e, em caso afirmativo, fixam a remuneração estabelecida.
6º Acresce que, de acordo com o estipulado no art. 15° do DL n° 10/2013, de 25 de Janeiro de 2013, os membros executivos dos órgãos de gestão devem dedicar-se a tempo inteiro à gestão das respetivas sociedades,
7º Sendo certo que, no caso em concreto, a moção apresentada e a consequente deliberação aprovada por maioria, no dia 17/10/2019, teve origem no facto de o Sr. P…. nunca ter exercido funções de Administrador, nem ter efetuado qualquer atividade em prol da sociedade, ou zelado por esta, muito menos representando-a em qualquer atividade ou evento.
8º E, portanto, em relação com o facto de o Sr. P… poucas vezes ter comparecido nas instalações da sociedade, nunca foi conhecido ou associado em efetivo ao cargo, quer junto do público alvo ou mesmo de pessoas relacionadas diretamente com o clube, como sejam os jogadores ou treinadores.
9º Além de que, e conforme decorre do Contrato de Sociedade, mais concretamente no seu art. 12°, n° 3, o Sr. P… foi nomeado, pela Recorrida, titular das ações de categoria A, pelo que tal como foi aprovado por maioria, quem nomeia os administradores é quem deverá pagar-lhes.
10° Sucede que, no domínio das sociedades a regra é a anulabilidade, logo só ocorrem nulidades nas situações expressamente taxadas pelo Código das Sociedades Comerciais, pelo que se poderá dizer que as deliberações sociais nulas estão sujeitas ao princípio da tipicidade, encontrando-se enumerados no art. 56°, n° 1 do referido diploma legal.
11º No entendimento da Recorrente, a nulidade invocada pela Recorrida, a que se reporta à alínea d) do n° 1, do art. 56° do CSC, consagra as normas que procuram proteger interesses de terceiros, credores e do público em geral, consubstanciando-se numa nulidade resultante de vícios de conteúdo.
12° Neste sentido, terá de se ter em consideração o disposto no art. 69°, n° 3, art. 27°, n° 1 e art. 318°, todos do CSC, ou seja, enquadram-se na alínea d) do art. 56° do CSC as disposições legais relativas à constituição, reforço ou utilização da reserva legal, ou das deliberações que liberem total ou parcialmente os sócios de realizarem as suas entradas, ou aprovem a aquisição de ações próprias não liberadas ou que elegem para os órgãos sociais pessoas em situações de incompatibilidades - o que não se verifica in casu.
13º  A 1ª parte da alínea d) do art. 56° do CSC, afeta de nulidade as deliberações dos sócios cujo conteúdo ofende os bons costumes, entendendo-se estes como um conjunto de regras morais e de conduta social, generalizadamente reconhecidas em dado momento, o que tem por objeto atos imorais, que choca com a consciência social, mesmo quando considerada apenas no âmbito mais restrito da ética dos negócios.
14° Já a 2ª parte da mencionada alínea d) reporta-se a um interesse de ordem pública, respeitante ao conteúdo de deliberações que atentam contra preceitos imperativos e que visam acautelar interesses de terceiros (v.g. arts. 25°, 26°, 28°, 29°, n° 3, 32°, 33º, 218 e 295, n° 1); interesses de sócios futuros; interesses indisponíveis de quaisquer sócios (art. 246°, n° 1); bem como, interesse público stricto sensu (art. 384°, in fine).
15° Na situação sub judice, entende a Recorrente que não se vislumbra que a concreta deliberação em causa configure uma conduta passível de nulidade, nos termos do mencionado art. 56°, n° 1, al. d), como decidido pelo Tribunal a quo, pois tal com refere António Pereira de Almeida, in Sociedades Comerciais - Valores Mobiliários e Mercados, Coimbra Editora, 2008, 5a Edição, p. 202 “não basta aliás, que a deliberação ofenda uma disposição imperativa da lei para ficar ferida de nulidade — aqui, é o regime da anulabilidade, como vimos - é necessário que essa disposição seja de ordem pública ou que não possa sequer ser afastada, nem sequer por vontade unânime dos sócios. Estão neste último caso as normas que visam proteger interesses de terceiros, credores e do público em gerar.
16° Sendo que não é o que sucede no caso em apreço, aliás, tal como decorre da sentença da qual se recorre: “Os bons costumes exprimem a moral social, nas áreas referidas da atuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo os atos que a contrariem (cfr. Pinto Furtado, in Deliberação dos sócios, Almedina, p. 331-332) Acresce que, a jurisprudência tem amplificado este conceito, sendo nele integrável a ética comercial, societária, financeira ou fiscal, e, portanto, são violadores dos bons costumes os atos imorais contrários às regras sociais, as quais podem ser regras comerciais e de ética societária ou de ética dos negócios.
17° De notar que, e citando Pinto Furtado, in Deliberações dos sócios, p. 328, “nem todo o abuso de direito é suscetível de se integrar na ofensa dos bons costumes, visto que há deliberações abusivas sem atentarem contra os bons costumes, há deliberações de conteúdo ofensivo dos bons costumes que não são abusivas e há deliberações abusivas que só são contrárias aos bons costumes pelo fim e não pelo conteúdo”, cabendo, assim, ao Juiz, casuisticamente e com recurso ao prudente arbítrio, aferir se determinada deliberação é ofensiva dos bons costumes.
18° Volvendo ao caso em concreto, do regime jurídico das Sociedades Anónimas Desportivas verifica- se não existir norma específica quanto à remuneração dos administradores, pelo que são aplicáveis, nesta matéria, as normas constantes do Código das Sociedades Comerciais, conforme art. 5º do DL n° 10/2013.
19° Contudo, desde já se reitera que o Diretor Executivo visado com tal deliberação foi nomeado pelo Clube Desportivo…, para exercer o cargo de Administrador Executivo.
20° Conforme decorre dos já mencionados artigos 399° e 429° do CSC, a remuneração dos administradores, nas sociedades anónimas, é fixada em assembleia geral de acionistas, ou é da competência do conselho geral, devendo tomar-se em consideração as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade. Entende a Recorrente que na relação entre a sociedade e o administrador existe uma aproximação ao contrato de agência, em que a sociedade contrata o administrador para prestar um serviço, encontrando-se a remuneração diretamente relacionada com o contributo do administrador para a maximização do valor da sociedade.
21° Ora, a fixação e o pagamento da referida remuneração contende com normas de conteúdo fiscal e social, sendo que, para efeitos fiscais, os administradores são equiparados a trabalhadores por conta de outrem, cabendo à sociedade comunicar à Segurança Social e à Autoridade Tributária a sua admissão, sendo ainda responsável pelo pagamento das contribuições e das quotizações, bem como pelos descontos em sede de IRS e IVA dos administradores ao seu serviço.
22º No caso em questão, a nomeação deste administrador e a fixação da sua remuneração foram deliberadas em Assembleia Geral, em 18/08/2016, tal como previsto no art. 399° do CSC, e foi anualmente revista e aprovada, nas assembleias gerais realizadas em 29/05/2017 e em 23/07/2018.
23° Assim, entende a Recorrente que não está aqui em causa qualquer violação da boa-fé, da segurança e da ética fiscal e social, uma vez que inexiste qualquer contrapartida para a Recorrente, dado que o Administrador em causa nunca exerceu funções para a SAD.
24° O Tribunal a quo deveria ter presente o disposto nos Acórdãos do Supremo Tribuna de Justiça, processo n° 04A1519, bem como processo n° 99B059, que dispõem, respetivamente, que o conceito de bons costumes é um conceito indeterminado, variável consoante os tempos e lugares, sendo que nem todo o abuso de direito é suscetível de se integrar na ofensa dos bons costumes, bem como que é necessária a verificação cumulativa de determinados pressupostos objetivos (adequação da deliberação ao propósito ilegítimo dos associados) e subjetivos (intenção de obter uma vantagem especial para os sócios que votaram a deliberação ou para terceiros ou de causar prejuízos à sociedade ou aos restantes sócios) para que se configure abuso do direito de voto - o que, claramente, não sucedeu no caso em questão.
25° Acrescenta a Recorrente que decorre dos Estatutos, designadamente do seu art. 16°, que os administradores serão remunerados pelo modo estabelecido em Assembleia Geral, pelo que não considera de todo ofensivo dos bons costumes que em Assembleia Geral seja deliberado que quem nomeia os administradores é quem deverá assegurar-lhes a respetiva retribuição, no montante que entender justo e adequado, e de que tal dever teria de produzir efeitos retroativos a partir de Janeiro de 2017.
26° No entendimento da Recorrente o Tribunal a quo mal andou ao considerar, em primeiro lugar, que se encontra preenchido o disposto na alínea d), do n° 1 do art. 56° do CSC, bem como, em segundo lugar, e no que concerne à anulabilidade subsidiariamente invocada, também deveria o Tribunal ter declarado tal pedido improcedente, visto que não se encontram reunidos os pressupostos consagrados nas alíneas a) e b) do art. 58° do mesmo diploma legal.
27° E por isso, o referido art. 58°, n° 1, al. a) do CSC não é sequer aplicável ao caso em apreço, uma vez que inexiste qualquer violação por parte da Recorrente das normas integradoras do contrato de sociedade.
28° A deliberação aprovada em 17/11/2019 foi, como já se viu aprovada por maioria, apenas e só com o intuito de salvaguardar o interesse da sociedade e de todos os seus sócios, em casos em que os Administradores sendo nomeados, descurem os seus deveres, que não zelam pelos interesses da Sociedade, muito menos exercendo qualquer tipo de funções, pretendendo obter lucros por um trabalho que não desempenham.
29° Apenas pretendeu a Assembleia Geral determinar que quem nomeia se responsabiliza pelo pagamento da retribuição do seu nomeado, aliás, se assim não fosse, quem sempre teria prejuízo seria a aqui Recorrente, uma vez que não pode responsabilizar-se pelo pagamento da retribuição de alguém que não foi nomeado por si e que simplesmente descura totalmente as funções para as quais foi nomeado.
30° Assim, não existe qualquer intenção abusiva de causar qualquer prejuízo, devendo ao invés a deliberação ter sido encarada, pelo Tribunal a quo, como um incentivo para quem nomeia os seus Administradores, no sentido de ser cauteloso com tal nomeação, de modo a assegurar os próprios interesses. Portanto, não existe dolo, nem sequer dolo eventual.
31 ° Porquanto nunca foi intenção da Recorrente causar qualquer prejuízo; não devendo, nem podendo a deliberação ser considerada abusiva e, por isso, anulável, nem ofensiva dos bons costumes, e por isso nula.
32° É do entendimento da Recorrente que da prova produzida, e unicamente documental, já que nenhuma outra prova foi indicada, não é possível inferir que a deliberação objeto do presente litígio haja sido aprovada com o intuito de conseguirem vantagens especiais para si, ou para terceiros, com prejuízo da sociedade ou de outros sócios, particularmente da Recorrida.
33° Em suma, e reiterando o que anteriormente foi dito, deveria o Tribunal a quo ter considerado a ação totalmente improcedente, por padecer de fundamento legal, pelo que o Tribunal a quo fez incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso em concreto, violando por erro de interpretação e aplicação o disposto nos artigos 56° e 58° do Código das Sociedades Comerciais.
A ré apresentou contra-alegações, requerendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
II – OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos arts. 5º, nº 1 e 2, 608º, nº 2, 635º, nº 2 a 5 e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a criar soluções sobre temas de facto e/ou questões jurídicas que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado em sede de recurso a apreciação de novos pedidos e/ou de novas causas de pedir em sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes mas, conforme já referido, apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos essenciais da causa, e não estando cobertas pela força do caso julgado, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis.
Com estas premissas, considerando o teor da sentença recorrida e das conclusões enunciadas pela recorrente, o objeto do presente recurso coincide in totum com o objeto da ação, cumprindo apreciar se a deliberação de sócios objeto da presente ação de impugnação padece de vício que acarrete a sua nulidade com fundamento em ofensa dos bons costumes ou violação de preceito legal inderrogável, nos termos do art. 56º, nº 1, al. d) do CSC, ou, assim não se entendendo, se a mesma é anulável por ser apropriada a satisfazer o propósito de um dos sócios conseguir vantagens para si próprio, em prejuízo da autora ou da recorrente, nos termos do art. 58º, nº 1, al. b), ou por violar normas do contrato de sociedade, nos termos do art.58º, nº 1, al. a).
III – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
A)1. O tribunal a quo considerou e assentou factos que extraiu do alegado na petição inicial e dos documentos com esta apresentados, factos nos quais fundamentou a decisão recorrida e que não foram objeto de impugnação. Não obstante, da conjugação dos arts. 662º, nº 1 e 2 e 663º, nº 2 do CPC, que remete para o art. 607º[2], resulta que os poderes cognitivos da Relação em matéria de julgamento de facto abrangem o poder-dever de, oficiosamente, proceder a ampliação da matéria de facto necessária ou, pelo menos, pertinente à boa decisão do mérito da causa, se do processo constarem elementos que o permitam[3].
Assim, para cabal determinação ou melhor compreensão do regime legal em que se enquadram as relações societárias entre recorrente e recorrida, com repercussão nos termos da composição e nomeação do conselho de administração daquela, considerando os documentos juntos com a petição inicial (contrato de sociedade e atas de assembleia geral da ré), aditam-se novos factos aos descritos na sentença recorrida. Para mais fácil identificação das alterações introduzidas, os factos aditados constam elencados sob as als. a) e b), e os segmentos introduzidos no corpo dos factos já assentes constam a sublinhado. Mais se procede à reorganização dos factos, por critério de ordem cronológica.
A)2. FACTOS ASSENTES
a) A autora Clube Desportivo…, representada no ato por P… e J… nas qualidades de, respetivamente, Presidente da Direção e Tesoureiro da autora, H… SA, representada no ato por XC… na qualidade de respetiva administradora única, KL… (casado com XC…), XC…, e PX…, celebraram contrato para constituição de sociedade anónima desportiva com a denominação Clube Desportivo…, Futebol, SAD, com capital social e € 200.000,00 dividido em 40.000,00 ações nominativas no valor nominal unitário de €5,00, das quais 4.000,00 subscritas pela autora, 34.800,00 pela ré, e as restantes 1.200,00 pelos demais contratantes, correspondendo 400,00 ações a cada um deles.
b) Do contrato de sociedade da ré constam, entre outras, as seguintes cláusulas:
Artigo 1º
1. (…)
2. A sociedade resulta, nos termos da alínea c) do artigo 3º do Decreto-Lei nº 10/2013, de 25 de Janeiro, da personalização jurídica da equipa de futebol do Clube Desportivo…, tendo em vista a participação nas competições profissionais de futebol, sendo clube fundador, para os efeitos legais, o Clube Desportivo….
Artigo 6º
1. As acções da sociedade são de duas categorias, a categoria A e a categoria B, possuindo as acções de categoria A os privilégios consignados na lei e nos presentes  Estatutos, sendo as acções de categoria B acções ordinárias.
2. São acções de categoria A as subscritas directamente pelo Clube Desportivo… e enquanto se mantiverem na sua titularidade; são acções de categoria B as restantes.
Artigo 12º
1. A Administração da Sociedade será exercida por um Conselho de Administração composto por três administradores.
2. Os membros do Conselho de Administração terão o mandato de quatro exercícios, renovável, por uma ou mais vezes.
3. Um dos Vogais do Conselho de Administração será designado pelo acionista titular das acções de categoria A mediante simples comunicação ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral, podendo a designação respectiva ser revogada pela mesma norma e só havendo lugar a eleição se a designação de novo vogal do Conselho de Administração não for feita.
4. O Presidente do Conselho de Administração e o outro vogal serão designados pelo acionista com maior participação no capital social, nos termos previstos no número anterior.
5. (…)
6. Findo o mandato do Conselho de Administração, fica a Assembleia Geral incumbida de designar os titulares que irão, subsequentemente, desempenhar as funções de Presidente e vogais do Conselho de Administração, nos termos gerais, mantendo-se a obrigatoriedade de um dos vogais do Conselho de Administração ser designado pelo accionista titular das acções de categoria A nos termos do número 3 da presente Cláusula.
Artigo 16º
Os administradores serão remunerados pelo modo estabelecido em Assembleia Geral.
1. Do contrato de sociedade da Ré, datado de 27 de junho de 2016, mais consta a nomeação como administradores, para o quadriénio de 2016/2019, de:
a) KL…, este na qualidade de Presidente;
b) P…;
c) XC….
2. A Autora é acionista titular de 4.000 ações de categoria A da sociedade, "Clube Desportivo…, Futebol - SAD", número de pessoa coletiva 5……, com sede….
3. Em 16 de Agosto de 2016, em Assembleia Geral da ré, foi deliberado a nomeação dos administradores executivos, e respetivos vencimentos.
4. O Administrador indicado pela autora, P…, auferia, desde então, a quantia mensal e ilíquida, de €5.000,00 (cinco mil euros), catorze vezes no ano civil, valor a pagar pela ré.
5. A ré liquidou ao referido administrador as remunerações mensais até ao mês de maio de 2017 e emitiu os respetivos recibos de vencimento.
6. A ré sempre assumiu que os pagamentos efetuados aos administradores eram da sua responsabilidade, independentemente de quem os indicasse.
7. Em 29 de maio de 2017, em Assembleia Geral da ré, foi deliberada e aprovada por unanimidade a proposta da acionista maioritária para nomear e remunerar os administradores da seguinte forma: Administradores com o cargo de Gestores Executivos, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º do Decreto-Lei 10/2013 (…):
a) KL…, Presidente de Conselho de Administração (…), auferirá a quantia ilíquida e mensal de 5.000,00€ (…) catorze vezes durante o ano civil (…);
b) P…, (…), auferirá a quantia ilíquida e mensal de 5.000,00€ (…) catorze vezes durante o ano civil (…).
8. A ré emitiu os recibos de vencimento relativos ao administrador P…, no período compreendido entre junho de 2017 e junho de 2018, pelo referido montante.
9. Em 23 de julho de 2018, em Assembleia Geral da ré, foram deliberadas e aprovadas, com os votos desfavoráveis da autora e os votos favoráveis da acionista H…, SA,  as propostas por esta apresentadas, de passagem de KL… e XC… a administradores executivos, passando o actual administrador executivo P… a administrador não executivo para o período compreendido entre 23 de julho de 2018 e 30 de junho de 2019, e de redução do salário dos administradores, equiparando-os em salário, auferindo todos o Salário Mínimo Nacional com efeitos a partir da presente data, pago 14 vezes durante o ano civil.
10. A ré deixou de liquidar as quantias devidas ao administrador P…, desde junho de 2017.
11. P… intentou ação judicial contra a ré, que corre termos sob o n.º…, do Juízo Central Cível de ..., Juiz 1, na qual reclama o pagamento dos valores respeitantes ao período compreendido entre junho de 2017 e maio de 2019, no total de €50.000,54, acrescido de juros.
12. A ação deu entrada em juízo em 12 de junho de 2019, a Ré foi citada em 9 de agosto de 2019 e apresentou contestação em 26 de setembro de 2019.
13. Em 17 de outubro de 2019 teve lugar Assembleia Geral da ré, Clube Desportivo…, Futebol - SAD, número de pessoa coletiva 514028947, com sede…., com o capital social de € 200.000,00 (duzentos mil euros).
14. A assembleia foi convocada pelo Presidente da mesa da Assembleia Geral da Sociedade, no dia 30 de setembro de 2019, tendo a mesma como ordem de trabalhos a discussão e deliberação sobre a remuneração dos administradores executivos e não executivos da sociedade.
15. A Assembleia Geral foi convocada a pedido da acionista maioritária da Sociedade, H…, S.A., titular de 34.800 ações de Categoria B, em 5 de setembro de 2019.
16. Na mencionada Assembleia Geral foi apresentada uma moção pela acionista maioritária da Sociedade H…, Sport, S.A., a qual teve como objetivo a discussão e deliberação sobre a remuneração dos administradores executivos e não executivos da sociedade de modo a que fosse aprovada a fixação de que quem nomeia os administradores é que deverá assegurar-lhes a sua retribuição, no montante que entender justo e adequado, e de que deveria produzir efeitos retroativos a partir de Janeiro de 2017.
17. A referida moção foi aprovada por maioria, com os votos favoráveis da acionista maioritária da Sociedade H…, S.A., e com os votos contra da Autora.
18. Desde o ano da sua constituição, 2016, que a Ré declara a remuneração dos administradores, comunicando às entidades oficiais, designadamente, segurança social, autoridade tributária e entidades desportivas, pagando os competentes impostos, assumindo exclusivamente essa responsabilidade.
B) DE DIREITO
1. Numa breve definição, as deliberações sociais[4] correspondem aos atos jurídicos através dos quais, e na síntese da posição dos sócios manifestadas através da emissão dos respetivos votos ou declarações, as sociedades formam a sua vontade funcional, destinada à produção de efeitos jurídicos, quer internos, quer externos à sociedade, refletindo em princípio a vontade da maioria simples dos sócios, salva a exigência legal ou estatutária de maiorias qualificadas para determinadas matérias. Nas palavras de Olavo Cunha, Uma deliberação dos sócios é uma declaração que, sendo juridicamente imputável à sociedade, é formada pela manifestação de vontade do conjunto dos titulares de participações sociais, ou seus representantes, detentor do maior numero de votos ou de um numero de votos que perfaça um certo montante mínimo (maioria qualificada).//Uma deliberação (…) consiste num negócio jurídico unilateral plural, de que resulta uma única declaração de vontade com relevância jurídica.[5] Na perspetiva do sócio, mas que àquela se reconduz, é através das deliberações que os sócios exercem o domínio sobre a sociedade (cfr. art. 259º do CSC), o que pressupõe o Poder de participar nas deliberações sociais[6] [7]que, por regra, é concretizado através da participação em assembleia, ou seja, em reunião de sócios.
Na complexidade dicotómica da relação sócio/sociedade, à qual se junta a complexidade da estrutura, funcionamento e atividade de uma sociedade, interna e externamente, as deliberações de sócios podem enfermar de vícios que afetem a sua validade, com fundamento em vícios formais ou procedimentais e/ou em vícios de conteúdo. Os vícios suscetíveis de afetar a validade das deliberações constam legalmente previstos nos arts. 56º e 58º [8] do CSC que, nesta matéria, expressam a consagração, pelo CSC, das duas formas clássicas de invalidade, a nulidade e a anulabilidade. As deliberações nulas constam taxativamente enumeradas no art. 56º do CSC e, cfr. art. 286º do CC, podem ser invocadas a todo o tempo, e declaradas oficiosamente pelo tribunal. As deliberações que violem preceitos imperativos da lei ou dos estatutos não coincidentes com os previstos pelo art. 56º do CSC, as formadas através de votos abusivos, ou sem o fornecimento prévio dos elementos mínimos de informação a(os) sócio(s), enquadram residualmente na categoria das deliberações anuláveis previstas pelo art. 58º e, cfr. art. 59º do CSC, podem ser invocadas durante um determinado e limitado período de tempo, e podem ser conhecidas pelo tribunal se arguidas por sócio com reconhecida legitimidade.
Para além do regime das invalidades, a lei prevê a mera ineficácia stricto sensu da deliberação que, mostrando-se validamente formada e sem outros vícios intrínsecos de conteúdo para além da necessidade do consentimento do ou dos sócios por elas afetados, apenas obsta a que a mesma produza os efeitos a que tende. Assim, prevê-se no art. 55º que Salvo disposição legal em contrário, as deliberações tomadas sobre assunto para o qual a lei exija o consentimento de determinado sócio são ineficazes para todos enquanto o interessado não der o seu acordo, expressa ou tacitamente. Enquadram-se nesta norma as deliberações que afetem (suprimam ou modifiquem) direitos especiais dos sócios (previstos nos termos do art 24º) e aquelas que imponham novas obrigações aos sócios (cfr. art. 86º, nº 2), as quais, por efeito da sua ineficácia relativamente a todos os sócios, permanecem como que numa situação de inexistência ou, pelo menos, de irrelevância jurídica, até que seja obtido o acordo do sócio por ela afetado.
A ação declarativa comum para impugnação de deliberação social constitui a via processual legalmente prevista para o controlo, pelos sócios, da licitude/validade das deliberações, tendo como objeto mediato[9] a destruição ou a cessação dos efeitos que as mesmas visam ou tendem a produzir (sem prejuízo dos direitos adquiridos de boa fé por terceiros com fundamento em atos praticados em execução da deliberação, cfr. art. 61º, nº 2 do CSC). 
Nestes autos tal desiderato contende com deliberação de sócios pela qual, através da sua aprovação pela acionista maioritária, a recorrente deliberou atribuir a acionistas a fixação do montante e o pagamento da remuneração devida a cada um dos administradores da recorrente; mais especificamente, atribuindo/imputando aos acionistas a obrigação de proceder ao pagamento das retribuições vencidas desde janeiro de 2017 até à data da deliberação e devidas aos administradores por cada um deles indicados, e, a partir da data da deliberação, atribuindo a cada um dos acionistas o poder de fixar o montante da remuneração devida ao administrador por ele indicado e a obrigação de proceder ao correspetivo pagamento. A autora fundamenta o requisito da ilicitude da deliberação em vícios de conteúdo, alegando que a mesma é nula por ofensiva dos bons costumes e de preceitos legais que não podem ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios, nos termos do art. 56º, nº 1, al. d), ou anulável por ser apropriada a satisfazer o propósito da acionista maioritária conseguir vantagens para si própria em prejuízo da autora, nos termos do art. 58º, nº 1, al. b), ou por violar normas do contrato de sociedade e deliberações anteriormente aprovadas, nos termos do art. 58º, nº 1, al. a). Vícios que a sentença recorrida reconheceu existirem, concluindo que a deliberação é nula por afrontar a ética e boa fé nas práticas comerciais e societárias, as normas de regularidade fiscal e social e os princípios de segurança, confiança e certeza jurídicas e, assim, ofensiva dos bons costumes; e, ainda que assim não fosse, seria anulável por abusiva, por ser manifestamente prejudicial para a autora e, nas circunstâncias em que foi tomada, por ser notório o propósito de lhe causar prejuízo ao fazer recair na esfera jurídica da autora uma dívida para com o administrador da recorrente depois de esta ter sido por ele judicialmente demandada peticionando o seu pagamento. Contrapõe a recorrente alegando que a deliberação não padece de qualquer vício porque, cfr. arts. 399º e 429º do CSC e art. 16º dos respetivos estatutos, é à assembleia geral de acionistas que compete determinar se os administradores são ou não remunerados e, sendo-o, qual remuneração; que o administrador visado com tal deliberação nunca exerceu funções como tal e, por isso, inexiste qualquer contrapartida para a recorrente; que, tendo o administrador sido nomeado pela autora nos termos do estipulado no art. 12º, nº 3 do contrato de sociedade, faz todo o sentido que quem nomeia é quem deve pagar; que a deliberação foi tomada com o intuito de salvaguardar o interesse da sociedade e dos seus sócios nos casos em que os administradores nomeados descurem os seus deveres; que não existe nem da prova produzida resulta provada intenção de conseguir vantagens, ou de causar prejuízo para a recorrente ou para a recorrida; e que não existe violação do contrato de sociedade.
2. Do exposto se constata que a invalidade que pela autora-recorrida é imputada à deliberação vem exclusivamente alicerçada em vícios de conteúdo.
2.1. Os vícios de conteúdo determinantes da nulidade da deliberação constam previstos pelas als. c) e d) do nº 1 do art. 56º, nos seguintes termos: São nulas as deliberações dos sócios: (…) c) Cujo conteúdo não esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios; d) Cujo conteúdo, directamente ou por outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.
i) Muito sinteticamente, enquadram na al. c) deliberações cujo conteúdo não está dependente da vontade do coletivo dos sócios, por ser estranho à sociedade ou à competência da assembleia de sócios e que, como tal, não tem cabimento imputar à sociedade. Dada a dimensão aberta da previsão legal, afigura-se-nos que são suscetíveis de concretizar esta causa de nulidade as deliberações sobre matéria estranha ao objeto da sociedade[10], as que interferem com direitos de terceiros[11], e as que versam sobre matéria da competência orgânica de outro órgão social [12].
ii) A al. d) abrange ofensa aos bons costumes e de preceitos legais inderrogáveis que não podem ser afastados nem por vontade unânime dos sócios, prevenindo abusos da autonomia/capacidade negocial privada, limitando-a.
Na previsão da primeira o legislador recorreu a conceito indeterminado da dogmático do direito comum, previsto sob os arts. 271º, nº 1 e 280º, nº 2 do CC que, por referência ao objeto, comina com a nulidade o negócio ou a condição negocial contrária aos bons costumes, o que sucede independentemente do consentimento do interessado lesado (cfr. art. 340º, nº 2 do CC). Como causa de nulidade de deliberações o direito societário também exige que a ofensa respeite ao objeto/conteúdo da deliberação, excluindo por isso a desconformidade que resulte da causa, da finalidade ou das consequências da deliberação. Trata-se de conceito aberto que, com apoio no elemento histórico e na doutrina, cabe concretizar casuisticamente, sem perder de vista a coerência sistemática na mutabilidade do próprio sistema, e a especificidade do ramo do direito e da realidade em que aquele se analisa. Assim, são suscetíveis de ofenderem os bons costumes as deliberações que violem princípios fundamentais ligados a interesses individuais ou inter-individuais comummente aceites por todos num determinado contexto histórico, indispensáveis na ordem jurídico-social independentemente do ramo do direito pelo qual se perspetivem por versarem sobre atos/comportamentos que axiologicamente são - de per si ou pela pretensão de os regular, limitar, ou explorar - rejeitados pela ordenação jurídico-social no seu todo (designadamente, atos ilícitos[13], e factos de natureza familiar e sexual). A amplitude do conceito mais abrange as deliberações que violem princípios fundamentais da ordem jurídica societária enquanto realidade que se realiza e move numa dinâmica de interesses sujeitos a distintos ordenamentos que, em abstrato, podem até convergir para o resultado pretendido por todos mas que, não raras vezes, competem entre si na tentativa de cada um maximizar o seu próprio interesse. Conforme surge sintetizado na sentença recorrida, a ofensa aos bons costumes pode manifestar-se na violação de regras comerciais e de ética societária ou de negócios.
Nas palavras de Menezes Cordeiro[14], os bons costumes [a]brangem regras de conduta familiar e sexual[15] e, ainda, códigos deontológicos próprios de certos sectores.  Mais assume o mesmo autor que A jurisprudência portuguesa, mau grado a confusão de conceitos que advém da doutrina, tem vindo mesmo, sem o assumir[16], a detectar uma «deontologia profissional» que deve presidir às deliberações sociais, sob pena de nulidade. (…). Essa deontologia impõe-se quando estejam em jogo violações grosseiras, em termos a determinar in concreto. Assinala-se que a indeterminação daqui resultante não é grave. Mostra a experiência que, na prática, os juristas põem-se facilmente e acordo quanto àquilo que se coloque fora da ética dos negócios; e isso mesmo quando seja difícil encontrar formulações explicativas. Por acórdão de 14.04.1999, citando Pinto Furtado o Supremo Tribunal da Justiça[17] considerou como classes fundamentais de ofensa dos bons costumes: a) tráfico de bens cuja comercialidade é reprovada pela moral pública (tráfico sexual, esponsais, tráfico de influência); b) exploração económica eticamente censurável pelo aproveitamento das circunstâncias para se extorquir uma prestação patrimonial indevida ou para se comercializarem bens incomerciáveis (recebimento de luvas, quota litis, remuneração para não se cometer um delito, etc.); c) sujeição do semelhante a formas de servidão. É neste quadro que terá de integrar-se uma deliberação dos sócios, para poder dizer-se inquinada de ofensa aos bons costumes e por essa via ser fulminada de nulidade". Menezes Cordeiro, cita situações de ofensa aos bons costumes jurisprudencialmente assumidos, tais como [a] deliberação de distribuir lucros por dois fundos e uma conta nova, prosseguindo há vinte e cinco anos com uma prática de não distribuir lucros aos sócios; idem quanto à deliberação unânime de vender a uma irmã de um sócio o único imóvel da sociedade por um preço muito inferior ao real; idem quanto à deliberação de vender por 210.000 c. o estabelecimento e sede da sociedade quando o sócio minoritário presente ofereceu 518.000 c., equivalentes ao valor real; idem quanto à deliberação de trespassar um estabelecimento e vender um edifício por menos de metade do seu valor real: “... não realiza o fim social, choca o senso comum de justiça e briga pois com a consciência social, mesmo quando considerada apenas no âmbito mais restrito da ética dos negócios.[18]
iii) Ainda no âmbito da al. d), a lei prevê como causa de nulidade a violação de preceitos que não podem ser derrogados, sequer por vontade unânime dos sócios. Correspondem estes aos preceitos legais que assumem natureza imperativa por tutelarem interesses da ordem publica geral ou societária, bem como direitos societários indisponíveis e irrenunciáveis, e aos quais se contrapõem as disposições legais cuja aplicação pode ser afastada pela vontade das partes, ainda que (ou sem prejuízo de) para o efeito a lei poder exigir a unanimidade de todos os interessados. Recorrendo de novo aos ensinamentos de Menezes Cordeiro, [p]odemos dizer que uma regra societária é imperativa: - quando integra a ordem pública; - quando concretize princípios injuntivos; - quando institua ou defenda posições de terceiros. A respeito de cada um dos pressupostos considerados específica que [a]lém da ordem pública geral, estará aqui em jogo a ordem pública societária, que integra, entre outros, os elementos necessários do contrato e os factos integrativos dos tipos de sociedades.; que [o]s princípios injuntivos podem ser princípios civis (…). E podem, naturalmente, ser princípios societários (…).; e que [a]s posições de terceiros não podem, por fim, ser atingidas por deliberações sociais.[19] É neste segmento de causas de nulidade que Paulo Olavo Cunha também admite a nulidade de deliberações que em si mesmo enquadram os pressupostos do abuso de direito previstos pelo art. 334º do CC, [p]or representar, nomeadamente, um venire contra factum proprium (…), que não pode, pela sua gravidade, estar sujeita simplesmente à anulabilidade, como acontece com as deliberações previstas na alínea b) do nº 1 do art. 58º.[20]
2.2. Os vícios de conteúdo determinantes da anulabilidade da deliberação pressupõem a contrariedade à lei ou ao contrato e o exercício abusivo do direito de voto, e constam previstos pelas als. a) e b) do nº 1 do art. 58º nos seguintes termos: São anuláveis as deliberações que: a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º, quer do contrato de sociedade; b) Sejam apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de conseguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos.
i) Em contraposição com o critério de nulidade previsto pelo art. 56º, nº 1, al. d), 2ª parte, na al. a) cabe a violação de disposições legais supletivas, de preceitos que está na disponibilidade das partes aplicar ou afastar quando celebram o contrato de sociedade, ou que este expressamente admita a possibilidade de serem derrogados por mera deliberação (cfr. art. 9º, nº 3 do CSC). Quando a deliberação viole normas supletivas que não foram afastadas pelo pacto social, aquela é anulável. Conforme elucida Menezes Cordeiro, A justificação para a invalidade é clara: tendo-se os sócios vinculado a determinado pacto, não podem desviar-se dele a não ser nos termos previstos nele próprio ou na lei. Salvo unanimidade, a deliberação está em falta. Todavia, não há, pela lógica societária, razões para a nulidade, uma vez que não se jogam regras injuntivas.[21] São normas que tutelam interesses particulares disponíveis e que, por isso, podem ser derrogados por unanimidade dos sócios ou pela aceitação (ou ausência de oportuna reação) do interessado por ela (abstratamente) lesado.
ii) A anulabilidade da al. b) reporta à motivação e à finalidade do exercício do voto. O vício radica não na deliberação em si mas no voto abusivo do sócio que, movendo-se por propósitos extra-sociatários, inquina de invalidade a deliberação (enquanto vontade da sociedade) quando esta não possa subsistir sem aquele voto inquinado[22]. Uma deliberação pode ser anulável se apropriada a satisfazer o propósito de um ou vários sócios conseguirem, através do exercício do respectivo direito de voto, obter determinadas vantagens para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios, ou simplesmente prejudicar aquela ou aqueles. Desta forma pretende-se sancionar, não uma discrepância entre a deliberação e uma determinada disposição legal ou estatutária, mas sim situações, que pese embora estejam formalmente conformes com tais normativos legais ou estatutários, desrespeitam a intencionalidade material que nelas esteja subjacente, contrariando o necessário equilíbrio entre o exercício dos poderes legalmente concedidos e a observância dos princípios aos mesmos subjacentes e que os justificam [23]. Tem subjacente o princípio da igualdade de tratamento dos sócios positivado no art. 24º do CSC, que não devem ficar à mercê de condutas que lesam os seus interesses e os da sociedade em contextos de conflitos de interesses entre os sócios e a sociedade e de preterição dos interesses desta.
A qualidade abusiva pressuposta pelo art. 58º, nº 1, l. b) do CSC não se basta com a desconformidade da deliberação com o interesse social, nem deve ser identificada com o instituto civilista do abuso de direito nos moldes previstos pelo art. 334º do Código Civil, pois que aquela tem pressupostos ou requisitos mais específicos, e cumulativos: de natureza subjetiva, que se concretiza na intenção, ilegítima, de, através do exercício do voto, o sócio obter vantagens especiais para si ou para terceiros em prejuízo da sociedade ou de outros sócios, ou de produzir o prejuízo da sociedade ou de outros sócios independentemente de alguma vantagem, pressupondo em qualquer caso a orientação do voto para um resultado negativo para a sociedade; e de natureza objetiva, traduzido na adequação da deliberação para satisfazer aquele propósito.
3. Feito o enquadramento dos fundamentos legais da invalidade das deliberações de sócios por vício de conteúdo invocados pela autora-recorrida, cumpre analisar da sua concretização na deliberação por ela impugnada, tendo em consideração as especificidades legais da ré-recorrente.
3.1. Considerando a denominação, objeto e termos em que foi constituída, a recorrente enquadra-se no Regime Jurídico das Sociedades Desportivas (SD) previsto pelo Decreto Lei nº 10/2013 de 25.01 (DL)  ao qual, conforme se prevê no art. 1º, nº 1, ficam sujeitos os clubes desportivos que pretendem participar em competições desportivas profissionais[24]. Diploma que reformulou o regime das Sociedades Desportivas implementado em Portugal pelo Decreto Lei nº 67/97 de 03.04 e passou a impor aos Clubes Desportivos a adoção de estrutura societária para poderem participar em competições profissionais, optando pela forma de Sociedade Anónima Desportiva (SAD), ou pela forma de Sociedade Desportiva Unipessoal por quotas (SDUQ). Na definição dada pelo art. 2º, nº 1 do DL, Para efeitos do presente decreto-lei entende-se por sociedade desportiva a pessoa coletiva de direito privado, constituída sob a forma de sociedade anónima ou de sociedade unipessoal por quotas cujo objeto consista na participação numa ou mais modalidades, em competições desportivas, na promoção e organização de espetáculos desportivos e no fomento ou desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática desportiva da modalidade ou modalidades que estas sociedades têm por objeto.
Na coexistência das necessidades de capital sentidas pelas Associações Desportivas para participação nas competições profissionais, com as exigências de transparência na gestão dos interesses económicos que gravitam em torno do desporto de alto rendimento[25], as especificidades das sociedades deste novo tipo societário refletem as especificidade dos interesses potencialmente divergentes que o integram, visando a compatibilização ou o ponto de equilíbrio (possível) entre o interesse na prossecução do lucro dos investidores, e o interesse na obtenção de resultados desportivos dos Clubes Desportivos. Com efeito, prevê o art. 26º da Lei nº 5/2007 de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto) que os Clubes Desportivos correspondem a pessoas coletivas de direito privado constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos e que têm como propósito o desenvolvimento de objetivos desportivos. Pelo art. 27º, nº 2 da citada lei remete-se para lei de definição do regime jurídico das sociedades desportivas, salvaguardando, entre outros objectivos, a defesa dos direitos dos associados do clube fundador, do interesse público e do património imobiliário, bem como o estabelecimento de um regime fiscal adequado à especificidade destas sociedades. Nessa senda, consta do Preâmbulo do DL 10/13 que As sociedades desportivas continuam a ser subsidiariamente regidas pelas regras gerais aplicáveis às sociedades comerciais, anónimas e também por quotas, e conservam naturais especificidades decorrentes das especiais exigências da atividade desportiva que constitui o seu objeto. De entre tais especificidades são de realçar as referentes (…) ao sistema especial de fidelização da sociedade ao clube desportivo fundador, através, designadamente, do reconhecimento de direitos especiais às ações tituladas pelo clube fundador (…).
De entre as especificidades societárias determinadas pela distinta natureza dos interesses envolvidos nas sociedades desportivas destaca-se a proteção da posição do clube fundador nos casos de constituição da SAD nos termos previstos pelo art. 3º, al. c) do DL - Pela personalização jurídica de uma equipa que participe ou pretenda participar, em competições desportivas -, como urge ser o caso da recorrida, conforme consta do artigo 1º, nº 2 dos respetivos estatutos. Proteção que o legislador procurou conceder através da fidelização da sociedade ao clube desportivo que a fundou, posto que este se mantém como pessoa e realidade juridicamente distintas daquela. Proteção que, no contexto da proteção da atividade desportiva por este prosseguida, encontra fundamento na transferência, para a SAD, dos direitos de participação do Clube no quadro de competição desportiva profissional em que estava inserido, da gestão direta da participação nessa mesma competição, e da equipa (contratos de trabalho e contratos de formação desportiva) que lhe permitia essa mesma participação (cfr. art. 22º do DL). Esta transferência justifica-se pela relação invulgar que se estabelece, onde a ausência de uma posição de privilégio do clube resultaria em descaracterização institucional e na falta de motivo para a existência da própria sociedade desportiva.[26]
São manifestação da referida preocupação de fidelização (ou manutenção de relação de proximidade) a imposição de uma participação direta do clube fundador na SAD não inferior a 10% do capital social (cfr. art. 23º, nº 1 do DL), e o reconhecimento de categoria especial ou privilegiada às ações do clube (categoria A, cfr. art. 10º, nº 1 do DL), às quais o legislador atribuiu direito de veto das deliberações que tenham por objeto a fusão, cisão, ou dissolução da sociedade, a mudança da localização da sede e os símbolos do clube, desde o seu emblema ao seu equipamento. Mais atribuiu às ações tituladas pelo Clube o poder de designar pelo menos um dos membros do órgão de administração, com direito de veto das respetivas deliberações que tenham objeto idêntico ao da alínea anterior (cfr. art. 23º, nº 2 do DL). Sob a epígrafe Administração da sociedade prevê o art. 15º, nº 1 do DL que O órgão de administração da sociedade é composto por um número de membros, fixado nos estatutos, no mínimo de um ou de dois gestores executivos, consoante se trate de uma sociedade desportiva unipessoal por quotas ou de uma sociedade anónima desportiva. A imposição de um mínimo de dois gestores exclui a figura do gerente/administrador único que os arts. 278º, nº 2 e 390º, nº 2 do CSC admitem para a SQ e para a SA; e a imposição da nomeação de um dos seus administradores pelo clube fundador através da atribuição de uma participação qualificada no capital social está nas antípodas do que o art. 391º, nº 2 do CSC prevê para as SA (proibindo a atribuição do direito de designação de administradores a certas categorias de ações). Especificidades (do regime legal das SAD) que, conforme referido, não têm paralelo nos regimes geral das sociedades e específico das sociedades anónimas, e que refletem a visada proteção das linhas orientadoras do clube e da máxima proximidade entre este e a sociedade para evitar ações especulativas orientadas para a maximização do lucro (fim legítimo), mas alienadas do objetivo dos resultados desportivos (meio ilegítimo).
Do exposto manifestamente resulta que o poder do clube fundador designar um dos administradores da SAD constitui um privilégio legal exclusivamente atribuído a este acionista (e já não aos restantes) por referência à sua qualidade – de clube desportivo fundador – e para concretização do escopo legal de proteção dos interesses desportivos por ele prosseguidos e que, socialmente, satisfazem fins de natureza publica (no caso, revelada pela natureza de pessoa coletiva de utilidade pública). Logicamente mais resulta que a pretensão de desse privilégio extrair ou fazer corresponder a responsabilização do clube pelo pagamento da remuneração do administrador por ele designado, não só não encontra suporte na lei[27], como frontalmente a viola, por contrária ao princípio imperativo que informa este tipo societário, que é de proteção/tutela, e não de agravamento, da posição societária do clube fundador com o objetivo de obstar à descaracterização institucional e à razão de ser da própria sociedade desportiva. Com efeito, a transferência para o sócio Clube fundador da obrigação de pagamento da remuneração devida ao administrador da SAD por aquele nomeado é apta a condicionar o livre exercício daquele direito, pela consequência/agravamento patrimonial que dela adviria para o Clube, e o que se traduz em compressão de direito especial de sócio não consentida, no caso, não só pelo próprio sócio, mas por preceito que, por tutelar interesse de ordem publica intrínseco ao tipo legal das SAD, assume natureza imperativa e, aquele, natureza indisponível ou irrenunciável.
O que vale por dizer que a deliberação é nula com fundamento na al. d) do nº 1 do art. 56º do CSC, por violação de preceito legal do regime especial das SAD não derrogável nem pela vontade unânime dos sócios, nos termos acima expostos.
3.2. Nulidade que, ainda no âmbito da al. d), mais decorre da desconformidade da deliberação com princípios do direito societário e do direito comum aplicáveis.
Conforme consta expressamente previsto pelo art. 5º, nº1 do DL, Às sociedades desportivas são aplicáveis, subsidiariamente, as normas que regulam as sociedades anónimas e por quotas, pelo que, em tudo o que não conste previsto no regime legal das sociedades desportivas previsto pelo DL, o lugar que por excelência se imporá como o próprio para a sua regulação é o Direito Societário, enquanto específico ramo do direito privado comum centrado na sociedade e que abrange todos os domínios da vida desta em que se faça sentir a necessidade de uma regulamentação autónoma ou acrescida em face dos princípios gerais do direito civil, dos quais se afasta (apenas) na medida do exigido pela natureza especial das relações privadas que regula - as inerentes e/ou derivadas da vida societária – e para garantir uma eficácia erga omnes da atividade societária. Mas, constituindo o Direito Societário um ramo específico destacado do Direito Civil, os princípios e institutos gerais por este previstos são por aquele diretamente convocados em tudo o que não constitua uma realidade especificamente societária e que, como tal, não careça de ser especificamente regulada. Nos termos do art. 2º do CSC, o Código Civil é subsidiariamente convocado [q]uando se trate de verdadeiras lacunas no CSC, isto é: de pontos que, pelo próprio sistema subjacente ao Código, deveriam estar regulados no seu seio, sem que isso suceda[28]. Daqui decorre que, para além de o regime legal das SD consagrar o princípio da tipicidade também previsto para as sociedades comerciais, mas limitando-as às formas de SA e de SDUQ, os seus acionistas - ou a maioria dos seus acionistas - não podem regular de acordo com os seus interesses em desconformidade com as regras próprias imperativas gerais e especiais de cada tipo e os princípios do direito civil comum informadores/reguladores da autonomia privada.
Assim, não prevendo o regime legal especial das SD normas reguladoras da remuneração dos administradores deste tipo societário, cumpre convocar os princípios e as normas gerais e especiais do CSC que informam e regulam a atribuição, fixação e pagamento da remuneração dos administradores das SA, matéria cuja compreensão nos remete, antes de mais, para a contextualização institucional do cargo de administrador.
No âmbito do Título IV do CSC dedicado às Sociedades Anónimas, sob a epígrafe Designação prevê o art. 391º, nº 1 que Os administradores podem ser designados no contrato de sociedade ou eleitos pela assembleia geral ou constitutiva. Acrescenta o nº 5 que A aceitação do cargo pela pessoa designada pode ser manifestada expressa ou tacitamente. Sob a epígrafe Competência do conselho de administração prevê o art. 405º que 1 - Compete ao conselho de administração gerir as actividades da sociedade, devendo subordinar-se às deliberações dos accionistas ou às intervenções do conselho fiscal ou da comissão de auditoria apenas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o determinarem. 2 - O conselho de administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade.
Ora, é facto juridicamente notório que as sociedades comerciais, dotadas de personalidade jurídica própria, necessitam de órgãos que formem, que exteriorizem e que executem a sua vontade, um dos quais – o principal - o órgão de administração. O órgão de administração - órgão de representação orgânica ou institucional da sociedade -  constitui elemento obrigatório da estrutura orgânica de qualquer sociedade comercial, intrínseco à existência e à natureza desta. Como tal, a nomeação para o cargo de administrador, associada à aceitação pelo nomeado, produz efeitos diretos – direitos e deveres - na esfera jurídica da sociedade, e não na esfera jurídica de cada um dos sócios. Com efeito, se a qualidade de sócio nasce com a participação que tem na sociedade -, perante a qual detém um status, uma posição ou um direito subjetivo complexo integrado por poderes que se traduzem em mecanismos colocados à sua disposição na medida do necessário para a prossecução dos fins, coletivos e individuais, subjacentes à constituição da pessoa coletiva -, o ente societário, que nasce do acordo dos sócios, autonomiza-se destes como pessoa jurídica titular de relações jurídicas e direitos e deveres próprio que lhe são legalmente atribuídos para prossecução e defesa do interesse social. Independentemente da opção que se faça na discussão sobre a qualificação do ato constitutivo da relação entre a sociedade e os membros que compõem o órgão de administração[29], duvida não há que a relação jurídica que se estabelece é entre a sociedade e o administrador nomeado - composta por diferentes direitos e deveres recíprocos -, e não entre este e os sócios (ainda que aquela produza efeitos reflexos relativamente a cada um dos sócios, como por exemplo, o dever de prestação de informação aos sócios, mas que se verificam no contexto da complexa e multifacetada relação jurídica entre a sociedade e os sócios e não, diretamente, entre estes e o órgão da administração). Novamente, independentemente da qualificação da fonte ou ato constitutivo da relação de administração que por aquele se estabelece entre a sociedade e os membros do respetivo órgão de administração, esta relação é conformada por um patamar mínimo de deveres e de direitos que emergem diretamente da lei a cargo de cada uma das partes e em benefício da contraparte, mas também em benefício de terceiros ao núcleo societário (vg., art. 78º do CSC), embora sem prejuízo da possibilidade de conformação contratual dos correspetivos direitos e deveres ao abrigo da autonomia privada em tudo o que não bula com o imperativamente estatuído, designadamente, em matéria remuneratória e compensatória (na vigência da relação e na respetiva cessação).
Do exposto logo decorre a ilegitimidade, ilegalidade ou ineficácia da pretensão, por deliberação formada pela maioria de sócios, de transferir ou imputar a sócio (ou a qualquer terceiro) e sem a aceitação e contra a vontade deste, o dever de cumprir obrigação da sociedade emergente da relação de administração que estabelece com os membros que integram o respetivo órgão de administração, no caso, o dever de fixar e pagar a remuneração devida pelo cargo. Com efeito, ainda que (pelo menos parte d)o conteúdo da relação de administração seja legalmente conformado, a constituição desta surge (direta ou indiretamente) no domínio da autonomia privada, princípio contido no valor constitucional da autodeterminação pessoal que se traduz no poder das partes manifestarem/declararem a própria vontade e de, através dela, determinar a produção dos correspetivos efeitos jurídicos legais e/ou convencionais. Princípio que encontra significativa expressão no princípio da liberdade de contratar previsto pelo art. 405º do CC – no que se inclui a liberdade de celebrar contratos de sociedade desta ou daquela tipologia, ainda que de conteúdo vinculado a conformação legal para cada uma delas imperativamente prevista - e da liberdade de determinar o seu objeto, com a limitação geral que decorre do art. 280º do CC. Ora, do princípio da autonomia privada decorrem princípios básicos de direito privado, tal como o da eficácia relativa das relações jurídicas constituídas ao abrigo da autonomia privada, e o de que um sujeito não se vincula juridicamente sem o concurso de um ato da sua vontade.
Sob a epígrafe Remuneração prevê o art. 399º, nº 1 do CSC que Compete à assembleia geral de accionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade. Acrescenta o nº 2 que A remuneração pode ser certa ou consistir parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício, mas a percentagem máxima destinada aos administradores deve ser autorizada por cláusula do contrato de sociedade.
Sem prejuízo de o membro do órgão da administração da sociedade voluntariamente prescindir da remuneração pelo cargo, esta consubstancia obrigação que emerge da relação jurídico-privada que se estabelece entre a sociedade que aquele representa, e o administrador que aceita a nomeação. Com a autoridade doutrinária que lhe é reconhecida, Menezes Cordeiro refere que A administração de sociedades comerciais tem vindo a ser profissionalizada. Trata-se de um fenómeno há muito adquirido nas sociedades anónimas, paradigma de modelo societário. O primeiro direito do administrador será, assim, o direito à retribuição. Nos restantes tipos societários, o papel do administrador, ainda que de modo não tão claro, mantém-se estritamente patrimonial. A retribuição faz, assim, parte do seu conteúdo natural.[30] O que com toda a pertinência se ajusta às sociedades desportivas, pelo evidente desiderato do legislador de profissionalização dos membros da administração das sociedades desportivas, contido na imposição legal da sua dedicação a tempo inteiro à gestão da sociedade (art. 15º, nº 2 do DL) e no regime legal de impedimentos (art. 16º do DL).
Do exposto se conclui que o direito do administrador à remuneração emerge do seu ingresso no cargo e que, existindo (não tendo sido afastado por acordo das partes), a correspetiva obrigação tem como sujeito passivo a sociedade em cuja estrutura essencial aquele se integra na qualidade de membro do seu órgão social, no âmbito de uma relação jurídica sinalagmática que entre ambos se estabelece, de direitos, nomeadamente, o direito à retribuição[31], e de deveres, desde logo, os fundamentais de diligência e lealdade no interesse da sociedade previstos pelo art. 64º do CSC, que sujeitam os administradores (executivos ou não executivos) à responsabilização para com a sociedade pelos danos a esta causados, nos termos do art. 72º do CSC.
Nesta senda, para além da desconformidade com a ratio legis de preceito imperativo do regime legal das SAD, o conteúdo da deliberação – de responsabilização dos acionistas e, assim, do respetivo património, pelo cumprimento de obrigação da sociedade – põe em causa a ordem publica societária por não se compaginar com a essência da sociedade enquanto sujeito autónomo de direitos e deveres, máxime da sociedade anónima enquanto sociedade de capitais representados por títulos circuláveis,  nem com o estatuto legal de quem os detém, o acionista, que, com fundamento nessa qualidade, e conforme decorre das características legais especificamente previstas pelo art. 271º do CSC – que salvaguarda o acionista do risco de perda maior do que o valor das ações que subscreveu -, não responde com o seu património pelas dívidas sociais nem, sob pena de total descaracterização da sociedade, consente que tal irresponsabilidade seja estatutariamente afastada[32] (e muito menos socialmente deliberada).
O que vale por dizer que a deliberação é nula com fundamento na al. d) do nº 1 do art. 56º do CSC, por violação de princípio especifico do direito societário, da irresponsabilidade dos acionistas pelas dívidas da sociedade, não derrogável, nem pela vontade unânime dos sócios.
3.3. De resto, a deliberação posta em crise contraria o que os próprios estatutos da recorrente estipulam e pressupõem na matéria daquela objeto, pois que por eles se prevê que Os administradores serão remunerados pelo modo estabelecido em Assembleia Geral, ou seja, pelo modo estabelecido pelo coletivo dos sócios - e não por cada um destes -, norma estatutária cujo alcance se pressupõe conforme ao previsto pelo supra citado art. 399º do CSC - que defere à assembleia geral de acionistas ou a uma comissão por aquela nomeada a competência exclusiva para fixar as remunerações devidas aos administradores - posto que, pela sua natureza imperativa, não pode ser afastado pela vontade unânime dos sócios.  Nesse sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça e 27.03.2014[33], perfilhando posição de Coutinho de Abreu e de Inês Ermida de Sousa Guedes[34], e acórdão desta Relação de 14.01.2021[35] do qual, pela sua pertinência ao caso, se transcreve o seguinte segmento: A definição da politica de remuneração dos administradores nas sociedades anónimas é matéria exaustivamente regulamentada que se conexiona inclusive com a transparência da governance e está expressamente prevista e condicionada pela lei aplicável, Código das Sociedades Comerciais doravante (CSC) e outros diplomas  legais quer de aplicação obrigatória quer simples recomendações, não podendo, ser objeto de um regime ad hoc, casuístico por questões de conveniência ou outra. Assim sendo, a deliberação de acionistas que pretenda introduzir outras formas de fixação de remunerações no contrato de sociedade que não sejam as estatuídas legalmente, é nula nos termos do art. 56.º, 1, d), uma vez que estamos perante norma imperativa, o que se compreende visto tratar-se de uma área muito propícia a conflitos de interesses entre administradores e acionistas, conflitos que, para além de uma função de tutela, as normas imperativas visam prevenir.
3.4. Acresce que, constituindo a remuneração a fixar e a pagar ao administrador uma obrigação à qual a sociedade compete dar cumprimento, como tal, e por força dos referidos institutos gerais civis do Direito comum – da autonomia privada, da eficácia interpartes dos negócios, e da não vinculação jurídica de um sujeito a relação jurídica estabelecida naquele domínio sem o concurso de um ato da sua vontade -, a sociedade não pode pretender transferir para a esfera jurídica de qualquer um dos sócios ou de qualquer terceiro através de ato unilateral formado pela maioria dos seus sócios, à margem de um contrato de assunção de dívida, nos termos previstos pelo art. 595º, nº 1 do CC; sendo certo que, ainda que assim fosse, só seria oponível ao administrador/credor se por ele fosse ratificado, e só exoneraria a sociedade do cumprimento da remuneração se aquele assim expressamente o declarasse (cfr. art. 595º, nº 2 do CC). Com efeito, do rol dos deveres legais do sócio[36] para com a sociedade não consta o dever de fixar e pagar remuneração aos membros do respetivo órgão de administração (e, já agora, aos de qualquer outro órgão da respetiva estrutura societária). A retribuição devida aos administradores (e que se pressupõe por este aceite), ainda que corresponda a direito do qual aqueles podem dispor, corresponde a direito orgânico legalmente consagrado (art. 399º do CSC) e, no caso, consta estatutariamente previsto pela recorrente. Mantendo-se no cargo, O direito à remuneração por parte do gerente é independente da vontade dos sócios, que apenas podem fixar o “quantum” da remuneração que o gerente aceitará ou não[37].
3.5. Nestes termos, e ainda que com novos argumentos, confirma-se a qualificação do vício da deliberação operada pela sentença recorrida, como nulidade, mas já não o concreto segmento normativo em que o integrou – por ofensa aos bons costumes –, sendo certo que, no essencial, a fundamentação ali expendida para justificar e concretizar a invalidade da deliberação mais se compatibiliza com os pressupostos da nulidade por violação de preceitos (que incluem princípios gerais ou societários) não derrogáveis nem pela vontade unânime dos acionistas. Com efeito, a deliberação não respeita nem bule com princípios ou valores fundamentais individuais comummente aceites e indispensáveis ao viver em sociedade, nem com atos ou comportamentos de cariz familiar ou sexual, nem com um sentido de ética societária ou de negócios que não conste - ou para além do que conste - positivado nos preceitos legais imperativos que supra se identificaram.
Tão pouco se adere à qualificação da deliberação como abusiva com fundamento no art. 58º, nº 1, al. b) do CSC, por falharem os requisitos específicos – objetivo e subjetivo - em que esta se decompõe, nos termos supra analisados. Desde logo porque não bule com o principio da igualdade de tratamento dos sócios na medida em que o determinado pela deliberação seria aplicável a qualquer acionista; além de que, estando confirmada a ausência de pagamento das remunerações vencidas desde junho de 2017 ao administrador indicado pela autora, dos autos não existem elementos que permitam concluir que essas remunerações foram pagas aos demais, pelo que sequer é possível concluir que os efeitos do segmento da deliberação que estipula a retroatividade dos seus efeitos a partir de janeiro de 2017 visavam atingir (requisito subjetivo) ou atingiam (requisito objetivo, de adequação da deliberação ao fim visado) apenas a autora. Por outro lado, ainda que seja óbvia a motivação da deliberação em causa, tomada em assembleia convocada a pedido da acionista maioritária da recorrente – para obstar à procedência da ação de condenação que contra esta foi instaurada pelo administrador indicado pela autora -, desta mera afirmação resulta que o interesse da sociedade não resultaria por ela imediata ou diretamente prejudicado; ao invés, reduziria o passivo a seu cargo, pelo que sequer pode afirmar-se que o voto da acionista que votou favoravelmente a deliberação por ela proposta foi motivado por propósitos extra-sociais, e que o seu teor interessa exclusivamente a determinado sócio e não ao coletivo dos sócios. Com efeito, os fins da deliberação são sociais – pois contendem com a questão da remuneração devida aos administradores da recorrente e do seu pagamento - mas, conforme supra analisados, são contrários ao direito (especial e geral) que os regula. O que afasta a qualificação do vício como de anulabilidade com fundamento em deliberação abusiva ou formada pelo voto abusivo da acionista maioritária.
A ser anulável, seria por violação de preceitos legais, conforme referido, da ratio legis do art. 23º, nº 2, al. b) do DL 10/2003 e, em termos gerais, da que analogicamente subjaz às regras especiais de eleição previstas pelo art. 392º do CSC, bem como dos arts. 86º, nº 1 e 2 e 399º, nº 1 do CSC; no essencial, por surpreender os demais acionistas com deliberação maioritária que alteraria ‘as regras do jogo’ estabelecidas pelo pacto e que, para o efeito, no mínimo demandaria o consentimento da acionista titular do direito especial por aquela primeira norma tutelado, no caso, da autora. Anulabilidade que sempre e só se verificaria se as normas contidas nos arts. 23º, nº 2 do DL e 399º do CSC detivessem natureza supletiva, passíveis de ser derrogadas pela vontade unânime dos sócios, o que, conforme se justificou, não sucede, integrando por isso o critério de nulidade por violação de preceito legal previsto pelo art. 56º, nº 1, al. d).
Com o que se confirma a nulidade da deliberação declarada pela sentença recorrida.

VI - DECISÃO:
Por todo o exposto, os Juízes desta secção acordam em julgar o recurso improcedente, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
Vencida em ambas as instâncias, as custas da ação e do recurso são a cargo da ré/recorrente, cfr. art. 527º, nº 1 do CPC.
                                   
Lisboa, 13.04.2021
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Fernando Barroso Cabanelas

[1] Diploma a que reportam as normas que nesta peça são indicadas se outro não for indicado.
[2] Conforme defende Abrantes Geraldes, Com efeito, nos termos do art. 663º, nº 2, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre os quais se insere o art. 607º, nº 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença (que agora integra também a decisão sobre os “temas de prova”) os factos admitidos por acordo e os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (ob. cit. p. 234).
[3] Nesse sentido, Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 250: Trata-se de uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma objectiva omissão de factos relevantes.; e acórdão desta Relação de 21.10.2014 proferido no processo nº 700/13.5TVLSB.L1-1: Se nos autos existir prova documental que imponha decisão diversa, é possível, ao abrigo do estatuído no n.º 1 do art.º 662º do CPC 2013, ao Tribunal da Relação alterar a decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto ainda que tal não tenha sido peticionado pelo recorrente.(disponível na página da dgsi).
[4] Ou, mais rigorosamente, e conforme terminologia proposta por Olavo Cunha, deliberações dos sócios (in Deliberações Sociais, Formação e Impugnação, Almedina, maio 2020, pp. 7, 8, 20 e 21).
[5] Ob. cit. p. 20.
[6] Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2ª ed., p. 112 e ss.
[7] Salvas as exceções e limitações legais exclusivamente previstas para a sociedade anónima, cfr. arts. 324º, nº 1, al. a) (ações próprias) e 384º, nº 2 (limitação do número de votos) do CSC.
[8] Para além do regime especial de invalidade das deliberações de aprovação dos documentos de prestação de contas da sociedade previsto pelo art. 69º do CSC.
[9] O pedido divide-se em imediato e mediato, ou seja, entre a pretensão de determinada tutela jurisdicional que no plano processual surge expressada pelo pedido e caracteriza a ação, e a finalidade da ação, correspondente ao efeito prático por aquele visado produzir na realidade do pedaço de vida a que o litígio reporta, para cuja garantia surge adequado aquele pedido e que em sede de provimento da ação deverá prevalecer sobre este.
[10] Nesse sentido, Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, ed. 2007, Vol. I, p. 723.
[11]  Nesse sentido, Raúl Ventura, cit. por Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 721, nota 2031.
[12] Nesse sentido, Paulo Olavo Cunha, Deliberações Sociais, Formação e Impugnação, p. 232 -234. Em sentido divergente, qualificando o vício de incompetência orgânica como causa de mera ineficácia,  Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 722.
[13] Nesse sentido, Paulo Olavo Cunha, Deliberações Sociais, p. 234-235.
[14] Ob. cit., p. 726.
[15] Distinguindo e ressalvando nesta matéria os atos que revelem conexão com o objeto, legal, da sociedade, cfr. nota 2049.
[16] Em abono do papel jurisprudencial - de realização continua do Direito - em nota de rodapé (n. 2050) acrescenta que Essa tarefa [de conceptualização] cabe, de resto, à doutrina; a jurisprudência tem, a seu cargo, algo de mais transcendente: a decisão justa.
[17] Processo nº 99B059 consultado na página da dgsi.
[18] Ob. cit. p. 727.
[19] Ob. cit., p. 729. No mesmo sentido, Paulo Olavo Cunha, ob. cit., p. 235.
[20] Ob. cit., p. 236. No mesmo sentido, Menezes Cordeiro, CSC Anotado, 2009, p. 228, pontos 17 a 19.
[21] Ob. cit., p. 737.
[22] Vd. Pedro Pais de Vasconcelos, A participação Social nas Sociedades Comerciais, Almedina, 2ª ed., p. 113.
[23] Acórdão do TRL de 26.05.209, proc. 7517/2008-7, disponível na página da BDJUR. 
[24] Forma societária que a lei admite seja adotada por qualquer entidade desportiva, ainda que não pretendam participar em competições desportivas profissionais, cfr. prevê o nº 3 do art. 1º daquele diploma.
[25] Preâmbulo do DL 10/13.
[26] Diogo Monteiro Rodrigues, O Regime Jurídico das Sociedades Desportivas, Lisboa 21.10.2018, ponto 4.3. Disponível em Graduacao_Reg%20jur%C3%ADdico%20das%20Soc%20Desportivas_Diogo%20M%20Rodrigues_2019.pdf
[27] Designadamente, na situação paralela das Regras especiais de eleição previstas pelo art. 392º do CSC como forma de proteção das minorias e de transparência na gestão do interesse (coletivo) da sociedade, regras que têm como fonte a autonomia privada (nºs 1, 6 e 9) ou que são impostas pela lei (nºs 8 e 11), e que precisamente contemplam a eleição, pela assembleia geral, de administradores propostos por acionistas minoritários ou pelo Estado ou entidade a ele equiparada, sem que se questione a homogeneidade do regime da relação jurídica de administração entre a sociedade e cada um dos membros da administração (sem prejuízo das diferenças determinadas pela natureza executiva e não executiva de uns e de outros) independentemente dos termos em que cada um foi nomeado, designadamente, no que respeita ao sujeito passivo da obrigação de fixar e pagar as respetivas remunerações, que se mantém indistintamente na esfera jurídica da sociedade (sem possibilidade de esta unilateralmente a transferir para a esfera jurídica do Estado ou do grupo de acionistas minoritários relativamente ao administrador nomeado sob a respetiva proposta).
[28] Menezes Cordeiro, ob. cit., Vol. I, p. 212.
[29] Na qual, no essencial, se identificam três teses: monista ou do ato unilateral – a relação de administração resulta exclusivamente da deliberação de nomeação do administrador, independentemente da aceitação deste, que seria mera condição de eficácia da nomeação; contratual – a relação de administração funda-se num contrato (típico ou sui generis) que se forma com a deliberação de nomeação, que corresponde a uma proposta, e com a aceitação da proposta/do cargo pelo nomeado; dualista ou mista – a relação de administração resulta de uma união de negócios, o negócio unilateral da deliberação de nomeação do administrador, e o contrato entre a sociedade e o administrador nomeado. Na esteira de Raul Ventura, alinhamos com esta ultima tese, também defendida por Paulo Olavo Cunha (in Direito das Sociedades Comerciais, 6ª ed., p. 790-791), essencialmente pelo facto de o ingresso do Administrador no leque de direitos e deveres legais inerentes ao cargo não ocorrer antes de uma declaração de aceitação da nomeação da sua parte e que, como tal, se nos afigura constitutiva da relação jurídica de administração que, assim sendo, se caracteriza pela bilateralidade e contratualidade, ainda que com um estatuto específico que emerge diretamente da lei. 
[30] Manual de Direito das Sociedades, Vol. I, 2ª ed., p. 880 e 882.
[31] Sem prejuízo, porém, de as partes da relação de administração – a sociedade, por um lado, e o administrador por outro – acordarem na não remuneração do cargo posto tratar-se esta de matéria jurídico-privada abrangida pelo princípio da autonomia e liberdade contratuais.
[32] Com o que não se confunde a obrigação de realização de prestações acessórias prevista pelo art. 287º do CSC.
[33] Processo nº 9836/09.6TBMAI.P1.S1, disponível na página da dgsi.
[34] In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Códigos do IDET, 3.º vol., Almedina, 2011, pág. 353, e A Remuneração dos Administradores, Perspectiva a partir da crise de 2008, Almedina, 2011, p. 27.
[35] Processo nº 598/18.7T8LSB.L1, disponível na página da dgsi.
[36] Dever de contribuir para a formação e conservação do capital social e dever de quinhoar nas perdas (art. 20º do CSC), e dever de lealdade por referência ao interesse social.
[37] Acórdão da RL de 12.06.1997, in Colectânea de Jurisprudência, Sociedades Comerciais, Jurisprudência 1997-2008.