Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4667/2006-6
Relator: PEREIRA RODRIGUES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - No caso de venda de veículo com reserva de propriedade, tal reserva tanto se pode destinar a garantir ao vendedor o preço de compra do veículo como a assegurar perante um terceiro as prestações decorrentes de um contrato de mútuo, celebrado entre este e o comprador do veículo, para financiamento do custo do mesmo veículo. Num caso como noutro estamos em face de obrigações contraídas por efeito da aquisição do veículo e que podem facultar a estipulação da reserva da propriedade.
II - E o não cumprimento das obrigações que determinaram a constituição da reserva da propriedade facultam ao titular de tal reserva que requeira em juízo a imediata apreensão do veículo
III - Assim, verificando-se que um veículo automóvel foi vendido mediante o pagamento de determinadas quantias, a liquidar nos termos de um contrato de financiamento celebrado entre o comprador e a entidade financiadora e que foi constituída reserva de propriedade a favor da entidade financiadora com vista a garantir o pagamento daquelas quantias, o não cumprimento do contrato de mútuo por parte do comprador, faculta ao financiador que requeira a apreensão do veículo, por ocorrer uma situação de incumprimento das obrigações que estiveram na origem da reserva da propriedade.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I. OBJECTO DO RECURSO.

No Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, a Instituição Financeira de Crédito A. propôs contra B. os presentes autos de procedimento cautelar de apreensão de veículo, pedindo a apreensão do veículo automóvel de marca "Fiat", modelo "Seicento", com a matrícula …., a abrigo do disposto no art.° 15° do D.L. n° 54/75, de 12 de Fevereiro.

Sobre o requerimento veio a recair douto despacho liminar a indeferir a pretensão da requerente, com a seguinte fundamentação:

“A requerente limita-se a alegar que o contrato foi resolvido por carta datada de 24 de Novembro de 2005, demandando o requerido na qualidade de instituição de crédito que financiou a aquisição do veículo cuja apreensão requer e alega como fundamento o incumprimento do contrato de financiamento. Dos documentos juntos aos autos, designadamente da certidão de ónus e encargos junta aos autos a fls. 9 consta a inscrição da reserva de propriedade do veículo cuja apreensão se requer a favor do Banco ..

A requerente não alega, pois, quaisquer factos atinentes ao contrato de alienação celebrado com o requerido, uma vez que a causa de pedir é somente contrato de financiamento, ou quaisquer factos passíveis de consubstanciar o termos da celebração do contrato de compra e venda entre o requerido e vendedor e, nesse caso, os termos da cessão da posição contratual ou cessão de créditos entre vendedor e requerente/financiadora, não decorrendo dos termos do contrato as condições em que o alienante do veículo "transferiu" para a financiadora a reserva de propriedade, estabelecida como condição suspensiva do contrato de compra e venda.

Acresce que dependendo a eficácia da providência da posterior propositura da acção principal para decretamento da resolução do contrato de compra e venda, não pode deixar de se entender que à requerente, como mutuante, não lhe assiste tal direito, uma vez que do incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo apenas lhe assiste o direito de resolver o contrato de mútuo e dessa resolução apenas lhe advém o direito de exigir ao mutuário o capital não reembolsado e eventual indemnização pelo incumprimento do contrato”.

Inconformada com a decisão, veio a A. interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando doutas alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:

(…)

Não houve contra-alegação.

Admitido o recurso na forma, com o efeito e no regime de subida devidos, subiram os autos a este Tribunal da Relação, sendo que nada obstando ao conhecimento do agravo, cumpre decidir.

A questão a resolver é a de saber

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II. FUNDAMENTOS DE FACTO.

Os factos a tomar em consideração para conhecimento do agravo são os que decorrem do relatório acima inscrito.

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III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Conforme decorre do estabelecido nos art.s 1317º/a), 408º/1 e 409/1 do CC nos contratos de alienação de coisa determinada, a transmissão do direito real opera-se, por regra, por “mero efeito do contrato”. Porém, esta regra é meramente supletiva, na medida em que as partes podem afastá-la, designadamente mediante uma estipulação de ”reserva de propriedade”, também denominada de “pacto de reserva de domínio” (pactum reservati dominii), segundo a qual o alienante pode reservar para si (ou até para terceiro) a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento (1).
Trata-se de uma cláusula com particular incidência e importância nas vendas a prestações, nomeadamente de veículos automóveis. Pela cláusula em apreço procura-se assegurar, ao alienante da coisa, a propriedade sobre a mesma, para a hipótese de o adquirente daquela não cumprir com as obrigações assumidas, considerando-se o negócio celebrado mediante condição suspensiva (2) da integral satisfação daquelas.
No caso de venda de veículo com reserva de propriedade, tal reserva tanto se pode destinar a garantir ao vendedor o preço de compra do veículo como a assegurar perante um terceiro as prestações decorrentes de um contrato de mútuo, celebrado entre este e o comprador do veículo, para financiamento do custo do mesmo veículo. Num caso como noutro estamos em face de obrigações contraídas por efeito da aquisição do veículo e que podem facultar a estipulação da reserva da propriedade.
E o não cumprimento das obrigações que determinaram a constituição da reserva da propriedade facultam ao titular de tal reserva que requeira em juízo a imediata apreensão do veículo. Com efeito, nos termos do art. 15º/1 do DL 54/75, de 12/2 “não cumpridas as obrigações que originaram a reserva da propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos”. E conforme art. 16º/1 do mesmo diploma, “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Assim, verificando-se que um veículo automóvel foi vendido mediante o pagamento de determinadas quantias, a liquidar nos termos de um contrato de financiamento celebrado entre o comprador e a entidade financiadora e que foi constituída reserva de propriedade a favor da entidade financiadora com vista a garantir o pagamento daquelas quantias, o não cumprimento do contrato de mútuo por parte do comprador, faculta ao financiador que requeira a apreensão do veículo, por ocorrer uma situação de incumprimento das obrigações que estiveram na origem da reserva da propriedade.
Com efeito, para ser decretada a providência é suficiente que a reserva da propriedade do veículo esteja inscrita a favor do requerente e que não tenham sido cumpridas as obrigações que originaram aquela reserva. Tanto mais quanto se encontrem reunidos na mesma esfera jurídica o direito de crédito e o direito à reserva de propriedade.
Note-se que não é necessário que se tenha verificado o incumprimento do próprio contrato de compra e venda, uma vez que tais exigências não resultam do regime instituído pelo DL 54/75, de 12/2. Isto até porque o vendedor, em princípio, recebeu entretanto da entidade financiadora o preço da venda do veículo e já não é titular de um direito de crédito sobre o comprador.
Saliente-se também que a reserva da propriedade, por nada o impedir, pode legalmente ser constituída para garantir um crédito de terceiro, tanto mais quanto esse crédito tenha a sua fonte num contrato relacionado com o da compra e venda do veículo automóvel, como se verifica com o contrato de mútuo celebrado com intuito de financiar o primeiro contrato. E as normas acima descritas, tanto servem para garantir o pagamento das quantias acordadas como preço da compra do veículo automóvel como para assegurar o cumprimento de outras obrigações assumidas pelo comprador, como sejam as resultantes de um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, destinado precisamente à aquisição do mesmo veículo.
É compreensível que a entidade que facilita o crédito para a aquisição de veículo automóvel queira assegurar o seu crédito, lançando mão da garantia da reserva da propriedade por ser um meio expedito para poder garantir o seu crédito.
Daí que seja aceitável que num contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo, para financiamento da compra de um veículo, se estabeleça uma cláusula de reserva da propriedade desse veículo, a favor do financiador, ainda que este não intervenha no contrato de compra e venda do veículo.
Se assim acontecer, o financiador da compra do veículo que não veja o seu crédito satisfeito nos termos acordados no contrato de mútuo, por ter interesse directo em demandar, tem direito a requerer em juízo a apreensão do veículo ao abrigo das disposições legais acima citadas.
É que tendo a reserva da propriedade sido constituída, por cláusula contratual firmada pelas partes, com vista à garantia do crédito do mutuante e sendo legítima tal constituição, tanto assim que a Conservatória vinculada ao princípio da legalidade elaborou o registo, terá aquele, consequentemente, de ter direito a accionar tal garantia, sob pena de esta ser inútil.
O accionamento da reserva de propriedade pode, pois, ter lugar em consequência do incumprimento do contrato de financiamento, no âmbito do qual foi constituída, intervindo como promotor daquele accionamento o prestador do financiamento, que a elegeu para garantia do seu crédito.

A causa de pedir da presente providência mostra-se, assim, suficientemente alegada na petição, pois que consiste ela no contrato de financiamento incumprido e na constituição da reserva da propriedade do veículo a favor do financiador, não sendo relevantes os termos do contrato de alienação do veículo porque em causa não está um eventual incumprimento deste contrato.

Daí que se entenda que a douta fundamentação aduzida no despacho sindicado, com o devido respeito, não é de aplicar no caso vertente em que não está em discussão o incumprimento do contrato de compra e venda do veículo, mas sim o do contrato de financiamento daquele.

Procedem, no essencial, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.

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IV. DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao agravo e revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra a ordenar o prosseguimento da providência.

Custas pela agravante nos termos do art. 453º/1 do CPC.

Lisboa, 22 de Junho de 2006.

FERNANDO PEREIRA RODRIGUES

FERNANDA ISABEL PEREIRA

OLINDO GERALDES




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1.-Vd. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I, 3ª ed., pg. 248 e ss. e Oliveira Ascensão, in Direito civil REAIS, 5ª ed., pg. 312.

2.-suspende-se o efeito translativo da propriedade até ao cumprimento total das obrigações da outra parte.. Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, in CC anotado, I, pg. 271.