Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
165/20.5T8VFC.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL
MÁQUINA DE TRABALHO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A jurisprudência portuguesa tem admitido que acidentes causados por máquinas de trabalho sejam cobertos pelo regime da responsabilidade civil automóvel ainda que o sinistro ocorra no decurso da utilização da máquina dentro da função que lhe é específica, se, concomitantemente, o aparelho estiver a desempenhar também a sua função de circulação, numa manifestação dos riscos da atividade viária. Nesses casos estar-se-á ainda perante um acidente de viação.
II. Constitui um acidente de viação, sujeito ao regime do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel, o seguinte acontecimento:
O veículo pertencente à A. circulava numa estrada pública. A circulação nessa via estava parcialmente interrompida pelo veículo seguro na apelante (cilindro automóvel), o qual estava a ultimar trabalhos de compactação do pavimento, movimentando-se para a frente e para trás. No local não havia qualquer sinalização dos trabalhos e quando o veículo da A. se encontrava próximo do dito cilindro este recuou, aproximando-se do dito veículo, nele embatendo apesar dos sinais de alerta emitidos pelo condutor do veículo da A..
(art.º 663.º n.º 7 do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 02.10.2020 R Unipessoal, Lda, instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra T - S.A., Marco (…) e G Seguros, S.A..
A A. alegou, em síntese, que no dia 08.01.2020 ocorreu um acidente de viação na zona do (…), ilha de S. Miguel, em que foram intervenientes o veículo da A., conduzido por J, e a máquina industrial rebocável conduzida pelo 2.º R. e pertencente à 1.ª R.. O veículo da A. circulava atrás da máquina industrial rebocável e numa curva ligeiramente a subir a máquina industrial parou e em consequência o veículo do A. parou também. Nessa circunstância a máquina industrial começou a recuar e veio a embater no veículo da A., não obstante o condutor do veículo da A. ter buzinado e gritado. A A. teve danos no veículo e o mesmo foi reparado, despendendo a A. € 2.048,11. A A. incorreu também em gastos de € 3.112,19 para aluguer de um veículo para desenvolver a atividade da A.. A responsabilidade civil automóvel referente à aludida máquina havia sido transferida para a 3.ª R..
A A. terminou pedindo a condenação dos RR. no pagamento da quantia total de € 5.160,30, acrescida de juros de mora vincendos desde a citação até integral e efetivo pagamento.
2. A 1.ª e o 2.º RR. apresentaram contestação conjunta. Arguiram a sua ilegitimidade e por impugnação alegaram, em síntese, que o local estava devidamente sinalizado e que o condutor do veículo que veio a embater na máquina industrial não teve atenção e estava a conduzir sob efeito de álcool, sendo por isso o culpado pelo acidente. Requereram ainda a intervenção principal da F Seguros S.A., por para ela ter sido transferida a responsabilidade civil extracontratual emergente do exercício da atividade de construção civil de obras públicas.
3. A R. G - S.A. apresentou contestação e defendeu-se por exceção alegando que a máquina industrial não se encontrava a circular na via, mas sim a laborar e a efetuar o compactamento da camada de asfalto, pelo que a Ré deveria ser absolvida. Mais alegou que o acidente ocorreu por culpa do A. e questionou o valor dos danos reclamados.
4. Admitido o chamamento da F Seguros S.A. esta interveio alegando em síntese que a culpa do acidente se deveu ao A., que não viu a sinalética e não moderou a velocidade e veio a embater na máquina industrial. No que respeita aos danos, alegou também que o valor peticionado relativo ao aluguer de um veículo é um dano indireto e que por isso não é indemnizável ao abrigo da apólice.
5. Foi dispensada a audiência prévia e proferiu-se despacho saneador no qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade arguida pelos 1.ª e 2.º RR.. Identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
6. Realizou-se audiência final e em 18.01.2022 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, consequentemente, decido:
a) Condenar a Ré G Seguros, SA, no pagamento à Autora da quantia de € 5.160,30, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a citação até integral pagamento.
b) Absolver os demais RR., do pedido formulado pela A.
c) Condenar a Ré G Seguros, SA, nas custas do processo”.
7. A R. G Seguros, SA apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1) O acidente em causa nos autos ocorreu entre uma máquina industrial, a máquina industrial rebocável AMMANN AP 240 (cilindro) e o veículo de marca Peugeot, Partner, com matrícula (…), ligeiro de passageiros, pertença do autor.
2) A máquina no momento do acidente encontrava-se a compactar a via de asfalto no âmbito de uma empreitada de obra pública adjudicada à 1ª R. T - S.A..
3) No momento do acidente a Máquina cilindra encontrava-se em movimento, a recuar para compactar o piso, quando embateu no veículo do autor:
4) A 1ª R. transferiu para a 2ª Rº F Seguros S.A. a responsabilidade civil geral, no montante de €2500.000,00 (dois milhões de euros), titulada pela apólice n. (…); através da qual transferiu a sua responsabilidade extra-contratual por danos causados a terceiros decorrentes do exercício da actividade de construção civil;
5) Também transferiu, no âmbito de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, tendo a responsabilidade por danos a terceiros sido transferida para a 3º R., ora recorrente, através do contrato de seguro titulado pela apólice número (…).
6) No entanto, atenta as circunstâncias concretas do acidente o que está aqui em causa é o risco de laboração (ação que se encontra a desempenhar a máquina cilindro) no momento e não o risco de circulação;
7) Na verdade, o referido cilindro não se deslocava para nenhum lado encontrando-se a circular para a frente e para trás para compactar o pavimento;
8) Executando, assim, a obra que foi adjudicada à 1ª R. T – S.A.;
9) Pelo que a ora recorrente deve ser absolvida do pedido e a R. F Seguros, S.A., condenada no pagamento da importância em causa, por força da apólice de responsabilidade civil extra-contratual, no âmbito da actividade de obras públicas da 1ª R.
10) Ao condenar a ora recorrente e 3ª R. no pagamento da indemnização a sentença viola o disposto no Atrgs. 4 n. 4 do Decreto-Lei n. 291/2007 de 21 de Agosto.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada.
8. Os RR. T – S.A. e Marco (…) contra-alegaram, tendo rematado com as seguintes conclusões:
1. No momento do acidente, o cilindro estava a compactar o pavimento, circulando para a frente e para trás na via pública, a qual estava aberta à circulação rodoviária, acabando por embater no veículo de um 3º que por aquela via circulava;
2. No momento do acidente, o cilindro não exercia, exclusivamente, a sua função industrial de compactação do pavimento; Porquanto,
3. Além de exercer a sua função industrial - compactação do pavimento - exercia, concomitantemente, a sua função de circulação, uma vez que circulava para a frente e para trás na via pública, a qual encontrava aberta à circulação rodoviária, acabando por embater no veículo de um terceiro que por ali circulava;
4. Por conseguinte, o acidente dos autos sujeito às garantias do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel nos termos previstos no art.4º, nº1, do DL 291/2007, de 21 de agosto;
5. A exclusão das garantias do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel prevista no art.4º, nº4, do DL 291/2007, de 21 de agosto, não é aplicável ao caso, uma vez que se verifica uma sobreposição das utilizações próprias da circulação da viatura;
6. Este entendimento está em consonância com a doutrina e jurisprudência nacionais, plasmados nos Acórdãos do TRG de 10-07-2018 e de 15-02-2018, citados pela Recorrente, e com a jurisprudência do Tribunal da Justiça da União Europeia (TJUE), designadamente, o Acórdão proferido em reenvio prejudicial, no caso Vnuk, de 4/9/2014;
7. A aplicação das garantias do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel afere-se pela subsunção do caso concreto à lei nacional e às diretivas comunitárias, sendo aquela uma transposição destas;
8. Sendo, irrelevante, o conteúdo das condições, gerais ou particulares, da apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel;
9. Pelo que a douta sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância decidiu, e bem, quando considerou tratar-se de um acidente de viação e imputou à Recorrente a responsabilidade pelos danos verificados, ao abrigo do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel por ela celebrado com a T - S.A.
Os apelados terminaram pedindo que a sentença recorrida fosse mantida, improcedendo, consequentemente, o recurso interposto.
9. A interveniente F Seguros S.A. também contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
10. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Este recurso tem por objeto a seguinte questão: o sinistro objeto desta ação está coberto pelo seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre a 1.ª R. e a R. G – Seguros, S.A. ou pelo seguro de responsabilidade civil extracontratual geral celebrado entre a 1.ª R. e a interveniente F – Seguros, S.A.?
2.1. Na sentença foi dada como provada e não foi questionada pela apelante a seguinte
Matéria de facto
1. No dia 8 de janeiro de 2020, pelas quinze e cinco minutos, ocorreu um acidente de viação, na zona do (…) respetivamente, na Estrada Regional, n.º 1, 1º, freguesia de (…), concelho de Vila Franca do Campo.
2. No acidente foram intervenientes, o veículo da Autora e conduzido por J, de marca Peugeot, Partner, com matrícula (…) e a máquina industrial rebocável conduzido pelo Segundo Réu, enquanto trabalhador do Primeiro Réu, de modelo AMMANN AP 240.
3. O condutor do veículo propriedade da Autora conduzia na Estrada Regional entre Vila Franca e Furnas, no sentido poente-nascente, na zona do (…), atrás da máquina industrial rebocável, conduzida pelo segundo réu.
4. Por consequente, numa curva ligeiramente a subir, a viatura conduzida pelo primeiro réu parou, obrigando o condutor do veículo da altura a parar, igualmente o seu veículo.
5. Ato continuo, e sem que nada o fizesse prever, a máquina industrial começou a recuar e embateu no veículo da autora.
6. Apesar do condutor do veículo da altura ter buzinado, gritado e gesticulado, no sentido de alertar o segundo réu para a sua presença e evitar o embate em causa.
7. No local do acidente não havia qualquer sinalética, nem física, nem humana.
8. O condutor do veículo da A. conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,05 g/l.
9. Como causa direta do acidente, a autora ficou com o seu veículo paralisado, desde o dia 8 de janeiro até 14 de abril de 2020.
10. O proprietário do veículo, neste caso o gerente da autora e seus trabalhadores, ficaram impossibilitados de usufruir de todas as vantagens e utilidades que o uso do veículo lhes proporcionava.
11. Tendo em consideração que a autora tem como objeto social comércio por grosso de produtos alimentares e outros não especificados necessita do seu veículo para fazer a distribuição das mercadorias.
12. A autora incorreu em custos de cerca de € 3.112,19 no aluguer de uma viatura.
13. Para além disso a autora sofreu danos materiais no seu veículo respetivamente: Para-choques dianteiro, capot, farol dianteiro direito e guarda-lama dianteiro direito.
14. A autora com a reparação do veículo despendeu cerca de € 2.048,11.
15. O 2.º R. trabalha como condutor manobrador de pesados, por conta e no interesse da 1.ª R..
16. Aquando do acidente o 2º R. conduzia a máquina industrial rebocável AMMANN AP 240 (cilindro) enquanto trabalhador da 1ª R., por conta e no interesse desta, na execução da empreitada supra descrita e estava a compactar a camada de desgaste que havia sido colocada em meia faixa do pavimento da estrada no sentido poente / nascente.
17. Essa compactação, de acordo com as regras de arte, consiste em passar com o cilindro várias vezes sobre o pavimento, para a frente e para trás (em modo de recuo);
18. A 3ª ré segura a máquina industrial rebocável, no âmbito de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, tendo a responsabilidade por danos a terceiros sido transferida para a ré através do contrato de seguro titulado pela apólice número 0004720701.
19. O objeto da empreitada consistiu na reposição da camada de desgaste em betão betuminoso em vários troços da E.R. nº1-1º na zona entre Vila Franca e Furnas e no interior da freguesia de Água D´Alto.
20. No troço entre Vila Franca e Furnas, que é o que importa para o caso, os trabalhos consistiram especificamente no seguinte:
- Aplicação de uma camada de desgaste (última camada do pavimento betuminoso da estrada) com espessura de 0,04m, sobre o atual pavimento, numa área aproximada de 2.650m2
-Fresagem (remoção da camada de desgaste antiga) e reposição da camada de desgaste, numa espessura de 0,04m, numa área aproximada de 1800m2
21. Essa intervenção foi realizada em pequenos troços, a indicar pelo Dono de Obra, que variam entre 50 e 100 metros de extensão;
22. Foram intervencionados, pelo menos, 12 troços, na Estrada Regional Vila Franca / Furnas;
23. O Dono de Obra exigiu que os trabalhos fossem executados com a estrada em serviço e que fossem realizados em meia faixa;
24. O Dono de Obra também exigiu que o condicionamento da circulação do trânsito na estrada regional fosse sinalizado de acordo com as normas de sinalização temporária;
25. No início e no fim da obra, no lado direito da faixa de rodagem atento o sentido de marcha dos veículos, havia, respetivamente, uma placa indicativa do início das obras e outra do fim das obras;
26. Além disso, cerca de 50 metros antes de cada um dos troços a intervencionar foi colocado o sinal de “outros perigos” e o sinal de “proibição de exceder a velocidade máxima de 30km”;
27. Para além da sinalização referida sempre que cada um dos troços era intervencionado eram colocados no início de cada um deles, mesmo antes do início do troço, os seguintes sinais: - Trabalhos na via - Passagem estrita - Sentido obrigatório com a indicação para seguir pela faixa da esquerda - Indicação de sinalização luminosa - Semáforo
28. No troço onde se deu o acidente a sinalização referida em 24 tinha acabado de ser retirada para ser colocada no troço a intervencionar a seguir, pois os trabalhos no torço em questão estavam a terminar uma vez que o cilindro é a última máquina a laborar num trabalho de pavimentação e, no caso, estava a realizar a sua última passagem para passar para o troço seguinte.
29. Entre a R. T – S.A. e a Interveniente F Seguros S.A. foi celebrado um contrato de seguro, do Ramo Responsabilidade Civil Geral, titulado pela apólice n.º (…), através do qual a 1.ª R. transferiu a sua responsabilidade civil extracontratual por danos causados a terceiros decorrentes do exercício da sua atividade de construção civil;
30. O contrato de seguro celebrado ”garante a responsabilidade extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado, no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice’’
31. O capital garantido é de € 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil euros), por sinistro e período seguro;
32. Tendo ficado estabelecida uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis limitada ao mínimo de € 500,00 (quinhentos euros), a cargo da tomadora do seguro;
2.2. O Direito
O regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel está contido no Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8, o qual transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.5, que altera as Directivas n.os 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
Delimitando a obrigação de seguro, o art.º 4.º do Dec.-Lei n.º 291/2007 dispõe o seguinte:
Obrigação de seguro
1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.
2 - A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminhos de ferro, com excepção, seja dos carros eléctricos circulando sobre carris, seja da responsabilidade por acidentes ocorridos na intersecção dos carris com a via pública, e, bem assim, das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula.
3 - Os veículos ao serviço dos sistemas de Metro são equiparados aos veículos de caminhos de ferro para os efeitos do número anterior.
4 - A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais”.
As máquinas industriais consideradas veículos a motor são assim definidas no Código da Estrada:
Art.º 109.º
Outros veículos a motor
1 - Veículo sobre carris é aquele que, independentemente do sistema de propulsão, se desloca sobre carris.
2 - Máquina industrial é o veículo com motor de propulsão, de dois ou mais eixos, destinado à execução de obras ou trabalhos industriais e que só eventualmente transita na via pública, sendo pesado ou ligeiro consoante o seu peso bruto exceda ou não 3500 kg”.
O “cilindro” seguro na apelante é um veículo automóvel, que se move propulsionado pelo seu próprio motor. Tem por função a realização de trabalhos de construção civil, em particular a compactação de pavimentos, nomeadamente estradas.
É, pois, uma máquina que além da participação em trabalhos de construção ou de reparação de estradas, pode, concomitantemente, circular na via pública, interferindo com a circulação automóvel.
Foi certamente por isso que a 1.ª R. celebrou um contrato de seguro não só para se proteger da eventual responsabilização emergente da utilização do cilindro enquanto máquina de trabalho (contrato que outorgou com a F Seguros, S.A.), mas também celebrou (com a G Seguros, S.A., ora apelante) um contrato de responsabilidade civil automóvel atinente ao cilindro.
A inclusão dos sinistros que envolvem este tipo de veículos no regime da responsabilidade civil automóvel ou a não aplicação deste regime dependerão das circunstâncias em concreto.
A responsabilidade civil automóvel tem sido alvo da atenção das instituições comunitárias, como decorre da publicação das sucessivas diretivas cuja aplicação o Dec.-Lei n.º 291/2007 visou, acima identificadas.
O espírito dessas diretivas deve ser tido em consideração, na determinação do âmbito de aplicação do regime de proteção das vítimas de acidentes ocorridos na circulação rodoviária.
No caso particular das máquinas de trabalho há que levar em consideração a jurisprudência firmada, em sede de reenvio prejudicial, pelo TJUE, no processo C-162/13, caso Vnuk, acórdão de 04.9.2014.
A propósito de um acidente que envolveu um trator com reboque durante uma operação de acondicionamento de fardos de feno num celeiro de uma quinta, o TJUE afirmou o seguinte:
- o facto de um trator, eventualmente com reboque, poder, em determinadas circunstâncias, ser utilizado como máquina agrícola não afeta a constatação de que um veículo desse tipo se enquadra no conceito de «veículo» que figura no artigo 1.°, n.° 1, da Primeira Diretiva (Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24.4.1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade);
- decorre das exigências tanto de aplicação uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição de direito da União que não contenha nenhuma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e alcance devem normalmente ser interpretados de modo autónomo e uniforme em toda a União Europeia, tendo em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra;
- nenhuma das diretivas relativas ao seguro obrigatório contém uma definição do que deve entender‑se pelos conceitos de «acidente», de «sinistro», de «circulação» ou ainda de «utilização de veículos», na aceção destas diretivas;
- contudo, esses conceitos devem ser entendidos à luz do duplo objetivo de proteção das vítimas de acidentes causados por um veículo automóvel e da liberalização da circulação das pessoas e bens na perspetiva da concretização do mercado interno prosseguido por essas diretivas;
- atendendo, nomeadamente, ao objetivo de proteção prosseguido pela Primeira a Terceira Diretivas, não se pode considerar que o legislador da União tenha pretendido excluir da proteção conferida por estas diretivas as pessoas lesadas por um acidente causado por um veículo quando da sua utilização, desde que esta tenha sido efetuada em conformidade com a função habitual desse mesmo veículo;
- o artigo 3.°, n.° 1, da Primeira Diretiva deve ser interpretado no sentido de que o conceito de «circulação de veículos» nele previsto abrange qualquer utilização de um veículo em conformidade com a função habitual desse veículo. Pode assim ser abrangida pelo referido conceito a manobra de um trator com reboque no terreiro de uma quinta para colocar esse reboque num celeiro, como aconteceu no processo principal, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.
A jurisprudência portuguesa, onde se incluem os dois acórdãos citados pela apelante (acórdão da Relação de Guimarães, de 15.02.2018, processo 534/14.8TBPTL.G1 e acórdão da Relação de Guimarães, de 10.7.2018, processo 6229/16.2T8GMR.G1) tem admitido que acidentes causados por máquinas de trabalho sejam cobertos pelo regime da responsabilidade civil automóvel ainda que o sinistro ocorra no decurso da utilização da máquina dentro da função que lhe é específica, se, concomitantemente, o aparelho estiver a desempenhar também a sua função de circulação, numa manifestação dos riscos da atividade viária. Nesses casos estar-se-á ainda perante um acidente de viação.
Assim, a Relação de Guimarães considerou ser acidente de viação um acidente causado por uma retroescavadora que se encontrava a abrir uma vala num caminho municipal (citado acórdão de 15.02.2018).
O Supremo Tribunal de Justiça considerou ser acidente rodoviário o atropelamento mortal de um peão por uma máquina que procedia a trabalhos de nivelamento na sequência do alargamento de um caminho municipal, andando num movimento de vaivém para a frente e para trás (acórdão de 23.11.2006, processo 06B3445).
A Relação de Coimbra considerou ser acidente de viação o atropelamento de uma pessoa por uma empilhadora que efetuava uma manobra de marcha-atrás no exterior de um armazém (acórdão de 10.3.2015, processo 1533/12.1TBGRD.C1).
Mas a Relação de Guimarães considerou que não era um acidente de viação o atropelamento de um trabalhador de uma obra por uma retroescavadora que procedia ao carregamento e despejo de terras dentro do recinto do estaleiro dessa obra (acórdão de 10.7.2018, processo 6229/16.2T8GMR.G1).
O STJ também excluiu do conceito de acidente de viação o caso de uma pessoa que parou para conversar com o condutor de um trator agrícola, tendo-se aproximado de uma máquina trituradora que estava acoplada ao trator, sendo por ela “sugada”, encontrando-se o trator imobilizado (acórdão de 17.12.2015, processo 312/11.8TBRGR.L1.S1).
Revertamos ao caso destes autos.
O veículo pertencente à A. circulava numa estrada pública. A circulação nessa via estava parcialmente interrompida pelo veículo seguro na apelante, o qual estava a ultimar trabalhos de compactação do pavimento, movimentando-se para a frente e para trás. No local não havia qualquer sinalização dos trabalhos e quando o veículo da A. se encontrava próximo do dito cilindro este recuou, aproximando-se do dito veículo, nele embatendo apesar dos sinais de alerta emitidos pelo condutor do veículo da A..
À luz do acima exposto, cremos ser evidente (com todo o respeito por opinião contrária) que a situação descrita é enquadrável no conceito de acidente de viação. Pese embora o veículo da 1.ª R. estivesse em plena laboração, fazia-o na via pública, interferindo com a normal utilização da estrada pelos outros veículos, movimentando-se como veículo autopropulsionado que é, contribuindo para o risco de sinistralidade automóvel cujos efeitos nefastos o regime de responsabilidade civil automóvel visa contrariar.
Entendemos, pois, que o tribunal a quo ajuizou bem quando imputou à R. Generali, na qualidade de seguradora da responsabilidade civil automóvel da 1.ª R. emergente da utilização do cilindro, a obrigação de indemnização dos danos sofridos pela A. em consequência do sinistro dos autos.
A apelação é, assim, improcedente.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 12.5.2022
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva