Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PIMENTEL MARCOS | ||
Descritores: | PRIVAÇÃO DA LIBERDADE PRISÃO PREVENTIVA LEGALIDADE OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR ERRO GROSSEIRO IN DUBIO PRO REO LEI ORDINÁRIA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/30/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | 1. Todas as situações de privação de liberdade indemnizáveis nos termos do n.º 2 do artigo 225.º do C.P. Penal, na redacção resultante da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, pressupunham a legalidade da prisão preventiva; e esta só era considera materialmente injustificada, e por isso mesmo constitutiva da obrigação de indemnizar, quando tivesse sido decretada por erro grosseiro na avaliação dos respectivos pressupostos de facto.
2. Perante uma situação de sujeição a prisão preventiva legal, aplicada a um arguido que depois vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo, competia ao autor, na respectiva acção de indemnização, demonstrar a existência de erro grosseiro. 3. No acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 185/2010, de 12.05.2010, foi decidido que, face ao disposto no artigo 27.º da CRP – e face à leitura sistémica do regime contido no seu n.º 5 –, não é inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do C.P.Penal (na redacção dada pela Lei n.º 59/98) , quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. 4. Com a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29.09, que deu nova redacção ao artigo 225.º do CPP, verificaram-se, no essencial, as seguintes alterações: - Concedeu-se o direito a indemnização não só nos casos de prisão, mas também nos casos de obrigação de permanência na habitação; - Atribuiu-se o direito a indemnização a quem for absolvido por estar comprovadamente inocente, bem como a quem tiver actuado justificadamente: “…quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente”. 5. Permite-se gora (nos termos da alínea c) do artigo 225.º) ao arguido que tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, pedir ao tribunal competente a indemnização pelos danos sofridos, quando se comprovar que não foi agente do crime ou que actuou justificadamente. 6. Mas esta disposição normativa condiciona o direito à indemnização à prova, a fazer pelo arguido, de que não cometeu o crime de que foi acusado ou que actuou justificadamente. 7. Se no acórdão absolutório (penal) se chegar à conclusão de que o arguido não praticou o crime ou que actuou justificadamente nenhuma questão se suscita quanto ao dever de indemnizar. Pelo contrário, se nesse acórdão se suscitarem dúvidas sobre se o arguido cometeu o crime e sendo absolvido apenas em obediência ao princípio “in dúbio pro reo”, e face ao teor literal da alínea c), também não há dúvidas de que a indemnização só será devida se o arguido provar (na acção de indemnização) que efectivamente não praticou o crime ou que actuou justificadamente. 8. Conforme preceituado no n.º 5 do artigo 27.º da CRP, a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado. Todavia, remete para a lei ordinária os termos em que o Estado deve indemnizar o lesado pelos danos resultantes da privação da liberdade. 9. A Constituição comete, assim, esta incumbência ao órgão que está em melhor posição para decidir sobre esta importante e difícil questão. O que significa que, ao fazê-lo, “o legislador constitucional não só atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva”(Ac TC ns 90/84 e160/95. 10. O legislador ordinário entendeu que é devida a indemnização desde que o arguido prove que não foi o agente do crime ou que actou justificadamente. É uma opção que não é contrária à Constituição, pois esta não impõe que o Estado indemnize todas as pessoas sujeitas a prisão preventiva e que depois venham a ser absolvidas em obediência ao princípio do in dubio pro reo. 11. Assim, não é inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP ao fazer depender o direito à indemnização, em resultado da prisão preventiva, da prova, a cargo do arguido, de que não cometeu o(s) crime(s) de que era acusado, ou que actuou justificadamente. 12. Todavia, nestas circunstâncias, não se pode ser muito exigente na apreciação da prova sobre a inocência do arguido, sob pena de, só em casos muito especiais se poder dar como provado que o mesmo não cometeu os crimes de que foi acusado.
(Sumário do Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa I I., residente na …, n.º …, …, … …, …, na Ucrânia, propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra o E., pedindo que o mesmo fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 39.373,00 (sendo € 28.373,00 a título de indemnização por danos patrimoniais, e € 11.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais), sendo aquela quantia acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal, desde a data da propositura da acção. Alegou para o efeito, e em síntese, ter sido constituído arguido, no dia … de … de …, no Processo de Inquérito n.º …, ficando preso preventivamente após o seu primeiro interrogatório judicial, ocorrido então, e até … de … de …, altura em que, já em sede de audiência de julgamento, foi libertado. Mais alegou ter sido a sua prisão preventiva injustificada, ao longo dos 17 meses e 22 dias em que durou, não só por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, como por se ter provado que não foi agente do crime que a determinou (ao ser absolvido por Acórdão proferido em 06 de Setembro de 2010, depositado em 22 de Setembro de 2010, e transitado em julgado em 22 de Outubro de 2010). Alegou ainda que, sendo inocente, e estando detido num país estrangeiro, viveu a injustificada privação da sua liberdade em grande solidão, deprimido, com profundas saudades da sua família, envergonhado perante a cidade onde vive (onde é estimado e considerado um cidadão bom, cumpridor, respeitador e responsável), e sem dinheiro para lhes poder telefonar ou comprar para si próprio produtos essenciais. Por fim, alegou que, mercê da sua injustificada prisão, ficou impedido de exercer as suas actividades profissionais habituais (de exploração de um estabelecimento de café na Ucrânia, e de transporte regular de passageiros de lá para Portugal, e daqui para aquele país), tendo deixado por isso de auferir a quantia de € 28.373,00. O R foi devidamente citado e contestou, pedindo a sua absolvição do pedido. Alegou para o efeito, também em síntese, não ter existido qualquer erro grosseiro na apreciação dos pressupostos que determinaram a prisão preventiva do Autor (estando nomeadamente em causa a investigação de uma rede criminosa, em cujas operações se incluía o transporte regular de pessoas e bens entre a Ucrânia e Portugal), tendo a sua absolvição radicado na mera não prova dos factos que lhe eram imputados, com fundamento no princípio in dubio pro reo. O Réu impugnou ainda a generalidade dos factos alegados pelo Autor, nomeadamente os pertinentes aos alegados danos sofridos com a sua prisão preventiva, defendendo ser ainda excessiva a indemnização pedida a título de danos não patrimoniais (nomeadamente, atentos os critérios jurisprudenciais vigentes relativos à indemnização do dano morte, que tende a variar entre €14.963,94 e € 49.879,79). 0 Autor replicou, reiterando o pedido inicial. Alegou para o efeito, em síntese, que não resulta do acórdão que o absolveu da prática de todos os crimes de que era acusado que a decisão tomada quanto a si tivesse ficado a dever-se ao princípio in dúbio pro reo. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, finda a qual o Tribunal declarou quais os factos que julgava provados e os não provados. O Autor reclamou da resposta dada ao artigo 2° da Base Instrutória, no que foi desatendido. A. e R. juntaram alegações sobre a matéria de direito, tendo o autor pedido a condenação do réu no pedido e este peticionado a sua absolvição total do pedido Inconformado, recorreu o M. Público, terminando as alegações em síntese conclusiva: 1. A douta sentença em apreço considerou, e bem, não existir facto ilícito e não merecer censura a aplicação da prisão preventiva in casu, e que não foram ofendidos os comandos constitucionais ou legais nela citados e apenas considerou que se verificavam os requisitos da al. c) do art.° 225.° n.° 1 do CPP, com fundamento na qual condenou o E.. 2. Discorda-se do entendimento de que tem aplicação ao caso sub judice o referido dispositivo legal, sendo de afastar uma interpretação do mesmo que abranja no seu campo de aplicação uma situação como a dos autos, em que na decisão absolutória não se afirma a inocência efectiva do arguido. 3. No Acórdão proferido pela ….Vara Criminal … citado, apenas se consigna que a respectiva absolvição, se deveu à insuficiência da prova produzida contra o ora recorrido e com fundamento no princípio in dubio pro reo e dele apenas se evidencia que não ficaram demonstrados em julgamento, com o necessário grau de certeza, os factos indiciados. 4. A responsabilização do Estado não pode ser levada a cabo por acto lícito, pois que a lei exige a ilicitude e a culpa no acto lesivo para que se possa aplicar o comando do referido preceito, o qual claramente não se aplica aos factos provados. 5. A entender-se de modo diverso, tratar-se-ia da aceitação de uma responsabilidade objectiva geral do Estado por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, isentos de culpa e não censuráveis, e em termos de abranger a prisão preventiva legal e considerada justificada, como exposto. 6. Sem nada conceder, a indemnização arbitrada ao Autor por danos não patrimoniais, para além de excessiva, vem ressarcir danos não tutelados pela lei, pois que os danos provados são comuns à generalidade dos cidadãos que foram sujeitos a prisão preventiva, encontrando-se o mesmo já parcialmente privado do convívio com a família, conforme factos provados e enunciados sob os pontos n.°s 45, 46, 48 e 52 da mesma decisão. 7. Para além disso, é notório que os danos patrimoniais a que se referem os n.°s 50 a 55, inclusive, da fundamentação de facto da douta sentença em apreço também se teriam verificado, caso o ora Autor tivesse simplesmente sido sujeito a mero termo de identidade e residência, pois que, enquanto durasse a investigação, seguramente não seria autorizado a sair de Portugal e a poder continuar a sua actividade de transporte de cidadãos estrangeiros para o nosso país. 8. Os n.°s 50 e 51 da mesma peça processual são ainda pouco relevantes, uma vez que a sua presença na Ucrânia não era imprescindível, sendo notório que a sua esposa manifestamente supria, de outra forma e sem prejuízo para o negócio, as suas ausências regulares para Portugal no serviço de transporte de passageiros estrangeiros. 9. Pelo que, conforme exposto, não se verificando uma ofensa chocante e desrazoável dos direitos liberdades e garantias do Autor, a globalidade dos danos provados nem sequer são indemnizáveis e merecedores da tutela do direito, nos termos previstos nos art.°s 496.° n.° 1 e 483.° a contrario, ambos do C. Civil. 10. Assim, não se mostrando reunidos os pressupostos do direito de indemnização que conduziram à condenação do E., não podia manifestamente proceder a ação, devendo a mesma ter sido julgada improcedente e não provada e o Réu ter sido absolvido da totalidade do pedido. 11- A douta sentença recorrida retirou conclusões incorrectas dos factos provados, ofendeu por erro de interpretação e aplicou indevidamente a al. c) do n.° 1, do art.° 225.° do CPP aos factos provados e violou também as normas e princípios contidos nos art.°s 9.°, 342.° n.° 1, 483.°, 487.° e 496.° n.° 1, todos do Código Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que absolva o E. em conformidade com o exposto e ser reformada quanto a custas como requerido. 12. Apenas por mera cautela e subsidiariamente se entende dever ser decidido que a indemnização arbitrada no douto acórdão recorrido é excessiva, no que respeita aos danos não patrimoniais provados, devendo considerar-se o Autor suficientemente ressarcido por um valor não superior a 3.000 euros, atendendo à prática jurisprudencial no nosso país em casos de consequências bem mais gravosas do que as apresentadas pelo recorrido. III 1. Em primeira instância considerou-se serem as seguintes as questões que importava solucionar: Foi a prisão preventiva do Autor manifestamente ilegal? Respondendo-se negativamente, foi a prisão preventiva do Autor formalmente legal, mas radicada em erro grosseiro na apreciação do seus pressupostos de facto? Respondendo-se negativamente, foi a prisão preventiva do Autor injustificada, por se ter apurado que o mesmo não foi agente do crime ou actuou justificadamente (discutindo-se a propósito a eventual desconformidade do art. 225°, n° 1, al. c) do CPP com o art. 27°, n° 5 da C.R.P., por restringir sem justificação um direito indemnizatório mais amplo)? Considerando-se ter sido a prisão preventiva do Autor ilegal ou injustificada nos termos expostos, sofreu o mesmo com ela danos? Respondendo-se afirmativamente, qual a medida de indemnização dos mesmos?
Às duas primeiras questões foi respondido negativamente, ou seja, mais concretamente: a) A prisão preventiva do Autor não foi ilegal (nem no momento em que foi decretada, nem durante os dezassete meses e vinte e dois dias que durou). b) A prisão preventiva do Autor não foi injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (nem no momento em que foi decretada, nem durante os dezassete meses e vinte e dois dias em que durou).
Para tanto foram tecidas doutas considerações nos n.ºs 5.1.1 a 5.3.2.
2. Estava em causa nesta acção um pedido de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada a que se refere, nomeadamente, o artigo 225.º do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, que se transcreve[1]: “1. Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando: a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º; b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia; ou c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente. 2. Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade”. Como dissemos, em primeira instância foi entendido que não se verificavam os dois primeiros pressupostos [alíneas a) e b)]. O autor não interpôs recurso subordinado, pelo que não há que conhecer destas duas questões. Pelo contrário, julgou-se verificado o terceiro fundamento, e, por via disso, foi a acção julgada parcialmente procedente Da sentença final apelou apenas o MP. Por isso está somente em causa a apreciação da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º. No entanto far-se-á uma abordagem sumária das questões a que aludem as alíneas a) e b), em relação às quais, como se disse, foi feita na douta sentença uma análise desenvolvida, com abundante citação de doutrina e jurisprudência. 3. Na redacção anterior (dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto) determinava o artigo 225.º : 1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal competente indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade. 2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (…)”. O n.º 1 tratava dos casos de prisão ilegal, ou melhor, dos casos de prisão manifestamente ilegal. O n.º 2 reportava-se aos casos de prisão preventiva que, não sendo ilegal, viesse a revelar-se injustificada (ex post) por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. O regime de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada, podia ser assim caracterizado: a lei fazia depender a atribuição de uma indemnização a quem tivesse estado sujeito a prisão preventiva de um daqueles dois requisitos: ou da sua manifesta ilegalidade ou da existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que determinavam a sua aplicação. E bem se compreende que, como regra, o Estado seja obrigado a indemnizar o lesado nos casos de prisão preventiva manifestamente ilegal. É que, todos têm direito à liberdade e à segurança. E ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança, excepto nos casos previstos no n.º 3 do artigo 27.º da CRP (Cfr. também os n.º s 1 e 2 deste artigo).
Em relação à prisão manifestamente ilegal, e tendo em atenção que o objecto do recurso se encontra limitado à apreciação da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º citada, e que não tem qualquer interesse para a decisão do recurso, remete-se para o que foi dito na sentença. 4. Fora dos casos de manifesta ilegalidade, previa o n.º 2 do mesmo artigo, o dever de o Estado indemnizar quem tivesse sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, viesse a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, ou seja, fazia depender a constituição de tal direito da existência de erro grosseiro na apreciação, pelo juiz, dos pressupostos de facto que tinham determinado a sua aplicação. Portanto, todas as situações de privação de liberdade indemnizáveis nos termos do n.º 2 do artigo 225.º pressupunham a legalidade da prisão preventiva. E esta só era considera materialmente injustificada, e por isso mesmo constitutiva do dever de indemnizar, quando tivesse sido decretada com erro grosseiro na avaliação dos respectivos pressupostos de facto. Perante uma situação de sujeição a prisão preventiva legal, competiria ao autor, na respectiva acção de indemnização, demonstrar a existência de erro grosseiro. No acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 185/2010, de 12.05.2010, suscitou-se a questão de saber se se conformava com a Lei Fundamental aquele segmento normativo (art.º 225., n.º 2, na redacção da Lei 59/98) que, não se bastando com a absolvição do arguido, fazia depender o direito a indemnização, por sujeição a prisão preventiva, de ulterior prova, a produzir pelo arguido na correspondente acção de responsabilidade civil contra o Estado. Dito de outro modo, suscitava-se a questão de saber se violava ou não a Constituição a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do CPP, interpretada no sentido de se não considerar injustificada, e, portanto, constitutiva de obrigação de indemnizar, a prisão preventiva aplicada a um arguido mas que depois vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Mas a questão de constitucionalidade daquela disposição normativa já tinha sido apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 12/2005, (disponível emwww.tribunalconstitucional.pt), o qual não julgou inconstitucional a norma contida no n.º 2 do artigo 225.º do CPP «na parte em que faz depender a indemnização por prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada da existência de um erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia». Como consta da fundamentação daquele acórdão [inspirada pelo que já havia sido dito no Acórdão n.º 160/95 (www.tribunalconstitucional.pt), como na argumentação expendida no Acórdão n.º 90/84, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., 1984, pág. 267] o Tribunal percorre um caminho argumentativo marcado por três passos essenciais[2]. «Antes do mais, estabelece um firme distinguo entre duas questões: por um lado, a questão de constitucionalidade, propriamente dita, e, por outro, a questão de saber qual será o melhor Direito, ou a solução legislativa “mais justa” para o caso sob juízo. Em passo claro, contido no n.º 11 dos fundamentos, o Tribunal salienta que lhe não cabe decidir quanto à segunda questão. Escolher o mais conveniente ou mais justo regime de responsabilidade civil do Estado por detenção ou prisão preventiva injustificada é – diz – tarefa do poder legislativo e não tarefa do Tribunal Constitucional; por isso, circunscreve o problema que o ocupa à questão de constitucionalidade “propriamente dita”, ou seja, à questão de saber se a Constituição impõe que, na configuração legal desse regime de responsabilidade, sejam tidos em conta os danos resultantes de prisão preventiva cuja falta de justificação só se venha a revelar ex post – desse modo abrangendo os casos em que sobre o arguido, preso preventivamente, venha a final a recair juízo absolutório. Em segundo lugar, e depois de assim circunscrever a questão que o ocupa, o Tribunal afasta, enquanto parâmetros válidos para o seu julgamento, tanto o contido no artigo 22.º da CRP quanto o contido no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Quanto ao primeiro, salienta-se, tanto a sua não invocação por parte do recorrente, quanto o facto de no mencionado artigo 22.º se proteger, em geral, um instituto (o da responsabilidade civil extracontratual do Estado) que tem especial concretização, quanto ao caso dos autos, no n.º 5 do artigo 27.º. Quanto ao segundo – o decorrente da Convenção Europeia – segue-se de perto a fundamentação, já expendida a propósito da norma contida no n.º 1 do artigo 225.º do CPP, no Acórdão n.º 160/95: dispondo o n.º 5 do artigo 5.º da Convenção que tem direito a indemnização“[q]ualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo”, em nada a disposição acrescentaria face à já contida no artigo 27.º, nº 5, da Constituição, pelo que não teria qualquer utilidade a apreciação, no caso, da eventual desconformidade entre a norma de direito interno e a norma da aludida Convenção. Por tudo isto, o Tribunal elege como exclusivo parâmetro de controlo o disposto nesse mesmo n.º 5 do artigo 27.º da CRP. Finalmente, em terceiro e último passo, o Tribunal conclui – convocando para tanto o Acórdão n.º 90/84 – que, encontrando-se sob reserva de lei o direito à indemnização aí previsto [no n.º 5 do artigo 27.º], deteria o legislador, quanto à conformação do seu exercício, uma larga margem de liberdade, só limitada pela proibição de aniquilamento do conteúdo essencial do direito, limitação essa que apenas deferiria ao Tribunal a possibilidade de controlos de evidência». Estava essencialmente em causa a interpretação do artigo 27.º, n.º 5 da CRP (mas transcrevemos também os nºs 1 e 2). 1. Todos têm direito à liberdade e à segurança. 2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. (…) (…) 5. A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer. Trata-se de uma norma especial relativamente ao princípio geral de responsabilidade civil do Estado, estabelecido no art. 22.º da Constituição, nos termos do qual o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias… Aquela norma do n.º 5 corresponde, assim, a um alargamento da responsabilidade civil do Estado a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, indo além do clássico erro judiciário (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição, 2007, pág. 485). Foi dito a propósito no acórdão do TC 185/2010: (…) «Assim, o risco que todo o indivíduo corre de, verificados certos pressupostos legais, se ver sujeito a prisão preventiva é (…) consequência, ou “contrapartida”, de uma dupla necessidade: da necessidade de proteger a liberdade dos outros; da necessidade de salvaguardar bens comunitários de segurança e de eficácia do sistema penal. «Resta saber – e essa é a especial questão que nos ocupa – por conta de quem deve correr esse risco, caso se venha ex post a concluir, por juízo absolutório, que, numa dada situação concreta, a prisão preventiva se não justificava. Deve ainda o risco correr por conta do indivíduo, que assim suporta toda a carga do sacrifício que lhe foi imposto, ou deve ele correr por conta da comunidade, sendo repartido (enquanto dever estadual de indemnizar) por todos os seus membros, na medida do benefício que do sacrifício individual retiraram? (…) Importa por isso, antes do mais, resolver a questão: introduz uma restrição excessiva, ou não proporcionada, do direito à liberdade, lesiva do disposto na parte final do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, a norma contida no n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal, que, não se satisfazendo com o juízo absolutório, faz depender o direito a indemnização por prisão preventiva materialmente injustificada da prova, a produzir na acção de responsabilidade civil contra o Estado, de ocorrência de erro grosseiro na apreciação pressupostos de facto que determinaram a imposição da medida de coacção?» E termina, sintetizando: Assim, deve concluir-se que, face ao disposto no artigo 27.º da CRP – e face à leitura sistémica do regime contido no seu n.º 5 –, não é inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do CPP, quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Foi, porém, este douto acórdão tirado com um voto de vencido, no qual se pode ler, nomeadamente[3]: «Votei a inconstitucionalidade, por violação do n.º 5 do artigo 27.º e 18.º, n.º 2 da Constituição, da interpretação normativa do n.º 2 do artigo 225.º do CPP apreciada no presente recurso, a mais das razões invocadas nas declarações de voto apostas pelos Conselheiros Fernanda Palma e Mário Torres ao acórdão n.º 12/2005 e a que adiro, nas suas linhas essenciais comuns, pelo seguinte: Importa salientar que a interpretação normativa aplicada não consiste em negar o direito a indemnização ao arguido sujeito a prisão preventiva que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo, mas, de modo mais absoluto, em negá-la ao arguido absolvido cuja inocência não fique provada. A seguinte passagem, aliás transcrita no presente acórdão, é elucidativa do entendimento professado pela decisão recorrida: “[…] no acórdão penal absolutório não ficou provado que a ora recorrente não tenha sido autora dos crimes por que foi acusada. […] O que se escreveu no dito acórdão foi que não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer deles, tenham ateado fogo ou provocado incêndio; não se escreveu que dos factos provados resulta que os arguidos, ou qualquer deles, não ateou fogo nem provocou incêndio – e só esta conclusão significaria a comprovação da efectiva inocência da ora recorrente (fls. 1224)”. Esta oneração do arguido com a prova de que “está limpo de toda a suspeição” colide com o sentido último do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição (cf. Ac. Sekanina do TEDH). O princípio da presunção de inocência é incompatível com o entendimento de que, terminado o procedimento criminal pela absolvição do arguido por não ter a acusação logrado a prova dos factos que lhe imputava, sobre o mesmo possa continuar a recair o labéu da suspeita até que prove positivamente a sua inocência. Terminado o procedimento por absolvição, para efeitos directamente decorrentes da existência desse procedimento, como é a indemnização por prisão preventiva que no seu decurso tenha sido imposta ao arguido, não pode haver duas categorias de absolvidos, os que o foram pelo funcionamento do princípio in dubio pro reo e os restantes». Também no referido acórdão do TC n.º 12/2005 foram lavrados dois votos de vencido[4]: No segundo foi dito, no essencial[5]: «Votei vencido por entender que é inconstitucional, por violação dos artigos 27.º, n.º 5, e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro (CPP), quer enquanto só prevê a concessão de indemnização pelos danos sofridos com a privação de liberdade “a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”, quer enquanto restringe a concessão da indemnização aos casos em que a privação da liberdade tiver causado ao lesado “prejuízos anómalos e de particular gravidade”, de acordo com a redacção do citado preceito anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, constituindo estas duas dimensões objecto do presente recurso, diversamente do que sucede no processo n.º 3/00, sobre que recaiu o Acórdão n.º 12/2005, desta mesma data, em que apenas estava em causa a primeira restrição. Entendo que o artigo 27.º, n.º 5, da CRP, ao proclamar que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”, não reservou ao legislador ordinário a liberdade de optar entre a concessão, ou não, de indemnização pela privação ilegal da liberdade, mas tão só a de concretizar os requisitos e condicionamentos da concessão da indemnização constitucionalmente garantida, sempre subordinado ao princípio da proporcionalidade (na tripla perspectiva de proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade) e jamais diminuindo a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP). Ora, como o demonstrou RUI MEDEIROS (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Coimbra, 1992, págs. 105 e 106), “nada, nem na mens legis, nem nos trabalhos preparatórios, permite concluir que o preceito constitucional faça depender a responsabilidade do Estado da existência de culpa”, referindo-se o artigo 27.º, n.º 5, da CRP “apenas à privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei e, por consequência, confer[indo] o direito à indemnização independentemente da culpa”, pelo que “o artigo 225.º do CPP não pode restringir a obrigação de indemnizar aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade”. (…) Não existe nenhuma razão válida para que a indemnização por privação injustificada da liberdade fique condicionada à natureza grosseira do erro cometido pelo agente do Estado, e limitada à ocorrência de prejuízos anómalos e de particular gravidade, quando essas restrições não existem na indemnização por condenação injusta (condenação que pode não ser em pena privativa de liberdade), como resulta do artigo 462.º do CPP, em execução do artigo 29.º, n.º 6, da CRP, e, mais injustificadamente ainda, quando essas restrições não existe no caso de danos patrimoniais, como sucede na indemnização por requisição ou expropriação por utilidade pública (artigo 62.º, n.º 2, da CRP) ou na intervenção e apropriação pública dos meios de produção (artigo 83.º da CRP)». E concluiu, dizendo que o Estado não deverá, nestas situações, deixar de indemnizar o lesado, nos termos dos artigos 22.º e 27.º, n.º 5, da Constituição. «Basta, para o efeito, que a privação da liberdade tenha causado danos que, segundo os critérios civilísticos gerais, mereçam ser ressarcidos. Importa, sobretudo, ter presente que a circunstância de a Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito». Trata-se, pois, duma questão discutível. Mas, e salvo o devido e merecido respeito, por esta opinião, na situação actual[6] o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP não conduz, na prática, “à negação do direito a indemnização”. Por um lado, a indemnização já não está necessariamente condicionada “à natureza grosseira do erro cometido pelo agente do Estado”. E, por outro, não se exige agora que os prejuízos sejam “anómalos e de particular gravidade”. Mas continua de pé a questão de saber quais os poderes do legislador ordinário face ao disposto na parte final do n.º 5 do artigo 27.º da CRP. IV 1. Como vimos, o artigo 225.º do CPC foi alterado pela Lei n.º 48/2007, de 29.09. «Estas alterações ampliaram notoriamente o leque de titulares do direito de indemnização, atendendo a que a obrigação de permanência na habitação é também uma privação de liberdade que pode causar prejuízos e a que, apesar de a privação de liberdade ter sido aplicada numa visão correcta do circunstancialismo no momento da aplicação, e que depois se não confirmou, é justo que o Estado assuma responsabilidade pelos prejuízos sofridos por arguido comprovadamente inocentes»[7] E constam essas alterações, no essencial, do seguinte: - Concedeu-se o direito a indemnização não só nos casos de prisão, mas também nos casos de obrigação de permanência na habitação; - Atribuiu-se o direito a indemnização a quem for absolvido por estar comprovadamente inocente, bem como a quem tiver actuado justificadamente: “…quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente”[8]. MAIA GONÇALVES em anotação ao artigo 225.º escreve[9]: «No que concerne a este dispositivo, afigura-se-nos pertinente salientar que os tribunais, em caso de absolvição por carência de provas, só em casos extremos e sem margem para dúvidas declaram que o arguido está inocente, por estar provado que não praticou os factos que integram o crime. Declaram antes, em atenção ao princípio in dubio pro reo, não se provar que os praticou; o que não significa que os não tenha praticado. E assim, em tais casos, não estará provado que o arguido não foi agente do crime; simplesmente não se fez prova bastante de que o tivesse sido, sem que no entanto, se tivesse feito prova de que o não tivesse sido. Restará ao arguido, em caos como este, intentar acção declarativa contra o Estado, visando obter declaração de inocência e consequente indemnização» Em primeira instância considerou-se, em relação ao segundo daqueles requisitos [alínea b)]: a prisão preventiva do Autor não foi injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (nem no momento em que foi decretada, nem durante os dezassete meses e vinte e dois dias em que durou. Portanto, o Estado, ora réu, não estaria obrigado a indemnizar o autor com este fundamento. Restava a aplicação da alínea c). Mas foi observado na mesma sentença: [Muito cedo, porém, se levantaram vozes críticas, pugnando pela consagração inequívoca – em lei ordinária – do direito a indemnização também nos casos de privação formalmente legal e sem erro grosseiro sobre a verificação dos seus pressupostos fácticos, mas materialmente injusta, por ser inapta a prosseguir o seu fim (isto é, de forma diferente do que foi valorado na envolvente factual considerada na decisão aplicadora da prisão preventiva, veio a concluir-se ser esta inútil e inapropriada, em função da irresponsabilidade do arguido). Reconhecia-se que, na prática judiciária, mesmo fora destes casos, a aplicação de uma medida de prisão preventiva, geradora de danos, pode perfeitamente resultar de um engano na apreciação dos seus pressupostos de facto, sem que, no entanto, esse erro preencha os requisitos legais de indemnizabilidade dos respectivos prejuízos. (…) Muita desta doutrina entendia que a Constituição conferia já este direito de indemnização independentemente de culpa, não podendo por isso o legislador limitar a responsabilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada. Assim, Luís Guilherme Catarino, por entender que se encontra constitucionalmente consagrado o direito à reparação sempre que exista uma privação de liberdade, total ou parcial, não legitimada por sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão, ou de aplicação judicial de medida de segurança, e que a lei ordinária não pode restringir a caso típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada (A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 1999, p. 355 e 380); ou Rui Medeiros, por entender que o preceito constitucional confere um direito a indemnização independentemente de culpa, não podendo a lei ordinária restringi-lo aos casos de privação ilícita e gravemente culposa da liberdade (Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, 1992, p. 105); ou ainda João Aveiro Pereira, por entender que a circunstância da Constituição deixar ao legislador ordinário a tarefa de estabelecer os termos da atribuição do direito de indemnização, por danos causados com prisão ou condenação injustas, não legitima a imposição de restrições tais que signifiquem, na prática, a negação desse direito (Responsabilidade Civil Por Actos Jurisdicionais, Coimbra Editora, 2001, p. 215)- Viria assim, na revisão do CPP de 2007, (operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agsto) a ser novamente alterada a redacção do seu art. 225°, lendo-se agora no seu no 1, al. c) que, quem «tiver sofrido ( … ) prisão preventiva (…) pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando ( … ) se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou Justificadamente» (…). (….) Veio, porém, a desenhar-se um entendimento mais exigente, defendendo que «o motivo de injustificação da privação de liberdade mencionado no artigo 225°, no 1, Alínea c) ( … ), tornando exigível a prova de que o “arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente” parece cobrir apenas os casos em que a decisão final proferida no processo penal declara a inocência do arguido ou considera que o facto não é punível por se encontrar excluída a ilicitude ou a culpa, afastando portanto as hipóteses em que o preso preventivo tenha vindo a ser absolvido por insuficiência de provas, com base na aplicação do princípio in dubio pro reo» (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Coimbra Editora, 2ª edição, Junho de 2011, p. 254». Desenharam-se assim duas correntes doutrinárias quanto à interpretação e aplicação da alínea c), que, sinteticamente, podem ser assim enunciadas: Dum lado, os que defendem uma interpretação literal do preceito, por não se dever considerar inconstitucional. Doutro lado, por se considerar que o arguido não tem que provar a sua inocência, julgam outros aquela norma inconstitucional, ao exigir que o arguido tenha de fazer prova, na acção de indemnização, de que não cometeu o crime ou que actuou justificadamente. Na sentença recorrida foi seguida esta última doutrina: «é que, importa não esquecer, que “o arguido não tem o dever de provar a sua inocência, ou sequer de colaborar com a Justiça penal, e não deve ser penalizado porque dos elementos carreados para o processo não se formou a firme convicção do juiz”». 2. Por isso foi defendida a Inconstitucionalidade da norma constante da al. c) do n.º 1 do artigo 225.º do C.P.P. quando interpretada nos termos referidos: (…) «Admitindo-se, porém, a possibilidade daquela interpretação mais restritiva do art. 225°, n° 1, al. c) do C.P.P., ter-se-á que aferir se a mesma corresponderá à consagração legislativa correcta do princípio constitucional estabelecido no art. 27°, n° 5 da C.R.P., ou pecará por excessivo minimalismo, tornando-se nesse modo inconstitucional (já que a remissão da parte final deste último preceito – nos termos que a lei estabelecer - não é sinónimo de permitir à Lei ordinária ignorar, com a assertividade de aplicabilidade directa, a responsabilidade civil por ilegal privação de liberdade constitucionalmente consagrada)». (…) E prossegue a sentença dizendo que os defensores da doutrina da não inconstitucionalidade daquela norma consideram que o legislador constitucional, reconhecendo a necessidade de conciliar exigências de sinal contrário (questionando se a detenção ou a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser justificada pelo interesse geral, ajuizando sobre a conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de um facto criminoso, ou da sua aparência), considerou que o legislador ordinário seria quem estaria especialmente habilitado e apetrechado para estabelecer os necessários compromissos resultantes da avaliação, ponderação e satisfação daquelas exigências antagónicas». E foi ainda referido na decisão sob recurso que este entendimento foi desde muito cedo perfilhado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n° 90/84, chamado a pronunciar-se sobre esta ou idêntica questão (quando ainda não se encontrava em vigor o C.P.P. de 1987). E que, posteriormente, o mesmo Tribunal Constitucional reiteraria este entendimento, desta feita já a propósito do art. 225° do C.P.P., afirmando: “trata-se aqui de situações em que a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador – dito de outro modo; em que remete para o legislador – a efectivação de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido.(…) Ao fazê-lo, o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas verdadeiramente lho reserva. Neste mesmo sentido foram citados os mais recentes acórdãos do TC n° 12/2005/T (DR, II Série, de 28 de Junho de 2005), Ac. TC n° 13/2005/T (DR, II Série, de 29 de Junho de 2005), e Ac. TC n° 185/2010 (in http:www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos). E mais foi dito que a tese da não inconstitucionalidade é claramente dominante na jurisprudência dos tribunais superiores (Ac. Do STJ, de 03.12.1998, Revista n° 864/98, da 2ª Secção; Ac. Do STJ, de 11.11.99, Revista n° 743/99, da 2ª Secção; Ac. Do STJ, de 09.12.99, Revista n° 762/99, da 1ª Secção; Ac. Do STJ, de 06.01.2000, Revista n° 1.004/99, da 7ª Secção, in CJSTJ, Ano VIII, Tomo 1, p. 23; Ac. Do STJ, de 18.03.2004, in JSTJ000; Ac. Do STJ, de 04.04.2000, Revista n° 104/00, da 6ª Secção, in JSTJ00034772; Ac. Do STJ, de 20.06.00, Revista n° 433/00, da 6’ Secção; Ac. Do STJ, de 19.09.2002, Revista n° 2.282/02, da 7ª Secção; Ac. Do STJ, de 13.05.2003, Revista 1.018/03, da 6ª Secção; Ac. Do STJ, de 27.11.2003, Revista 3.341/03, da 7ª Secção; e Ac. Do STJ, de 19.03.2009. Divergente, porém, o Ac. Do STJ, de 12.11.98, CJSTJ, Ano VI, Tomo 3, p. 112. Mas, como se disse, foi entendido de forma diferente na sentença recorrida: «Contudo, atenta nomeadamente a cada vez maior exigência de justiça ínsita no Estado de Direito, que explica as sucessivas evoluções legislativas de que se deu já nota (quer na redacção do art. 225° do C.P.P., quer na publicação do R.R.C.E.E.), sempre com apoio numa criteriosa e ampla interpretação das disposições constitucionais, nomeadamente do art. 27°, n° 5, defende-se aqui resultar do mesmo a inconstitucionalidade material de uma interpretação do art. 225°, n° 1, al. c) do C.P.P. que exija para a sua aplicação uma sentença absolutória onde fique expressamente provado que o arguido não foi o agente da prática do crime, ou que existiu para o mesmo uma causa de Justificação, desconsiderando desse modo a sentença absolutória onde simplesmente a sua inocência não tenha ficado provada, mas em que também não se tenha radicado aquele juízo absolutório no princípio in dubio pro reo». Conhecendo. 3. O n.º 5 do artigo 27.º da CRP remete para a lei ordinária os termos em que o Estado deve indemnizar o lesado pelos danos resultantes da privação da liberdade. Mas o Estado apenas pode ser responsabilizado pela privação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Como se disse, antes da Lei 48/2007, nos termos do n.º 2 do artigo 225.º, quem tivesse sofrido detenção ou prisão preventiva que, não sendo ilegal, viesse a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (…) podia requerer, perante o tribunal competente indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade (embora com redacção diferente da actual, a doutrina é a mesma). E também vimos que o TC (embora com os votos de vencimento que referimos) entendia que não era inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 225.º na parte em que exigia a verificação de “erro grosseiro” para a atribuição de indemnização por prisão preventiva. E esta era igualmente a orientação dominante do STJ. Pode ler-se, com efeito, no acórdão do STJ de 27.11.2003 (03B3341) disponível na Internet: «Prevê-se, nesse preceito, a par da detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal, isto é, de modo flagrante efectuada aquela ou ordenada e executada esta fora ou sem a presença dos requisitos ou condições em que a lei a autoriza (erro de direito na interpretação e aplicação dos pressupostos ou requisitos legais dessa medida de coacção), a prisão preventiva formalmente legal, mas, de patente modo, injustificada, por revelar-se assente em erro grosseiro na apreciação dos seus pressupostos materiais ou de facto (erro de facto, relativo aos factos invocados para fundamentar a decisão de tal determinar ou manter, por não existirem ou não corresponderem à verdade). Sujeita a actuação dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias, como qualquer actividade humana, a erro, o n. 2 do predito art. 225º dirige-se a um erro qualificado - um erro crasso, contra manifesta evidência, como assim, de todo desrazoável, e que, por conseguinte, envolverá falta ou culpa funcional (grave), que profissionais de normal capacidade ou mediana competência, actuando com o conhecimento e a diligência exigíveis, teriam a obrigação de não cometer (6). Para que, em tal hipótese, haja lugar a indemnização, exigia o n. 2 do art.225º CPP ainda que a privação da liberdade tivesse causado ao assim lesado prejuízos anómalos e de particular gravidade; mas este último requisito veio a ser suprimido pela Lei n.59/98, de 25/8, que deu nova redacção àquele n. 2. O minimalismo deste regime tem sido objecto de contrariedade doutrinária não acolhida em jurisprudência desta Secção, que cobrou apoio no entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira, "CRP Anotada", 3ª ed.,187, de que o art. 225º CPP "interpreta correctamente o sentido da norma constitucional", isto é, do art.27º, n. 5, CRP». E foi decidido que a prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida a que se siga absolvição expressamente referida ao princípio in dubio pro reo não confere direito a indemnização. Agora, nos termos da alínea c) do artigo 225.º, permite-se que o arguido que tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente. Pode, pois, invocar-se, na acção de indemnização, que o arguido não cometeu o crime de que era causado ou que actuou justificadamente (este pressuposto não vem ao caso, pelo que a ele nos referiremos apenas acidentalmente). Já não se torna necessário invocar a existência de “erro grosseiro”. Mas esta disposição normativa condiciona o direito à indemnização à prova de que o arguido não cometeu o crime ou que actuou justificadamente [embora mantendo a indemnização nos caos previstos nas alíneas a) e b)]. Daí que haja quem defenda a inconstitucionalidade da alínea c) quando interpretada neste sentido 4. Como referem JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS[10] em anotação ao n.º 5 do artigo 27.º, a «referência aos termos “que a lei estabelecer” suscitou desde sempre dificuldade relativamente a actos jurisdicionais. Numa primeira fase, ela conduziu a questionar se a Constituição não assegura, mesmo na falta de lei ordinária, o direito à indemnização que expressamente estabelecia (Acórdão n.º 90/84). A entrada em vigor do CPP de 1987, que veio estabelecer o direito à indemnização de quem tivesse sofrido ”detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal” (art.º 225.º, n.º 1) ou que “não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependa”, ressalvando o concurso do próprio lesado (art.º 225.º, n.º 2), não resolveu a questão. Apenas fez mudar de nível transformando-a na dúvida sobre a legitimidade dos limites impostos pela lei ordinária ao direito à indemnização constitucionalmente reconhecido (Acórdão n.º 160/95). De seguida referem os mesmos Autores que tanto a uma como a outra das versões da mesma questão responde o Tribunal Constitucional, em síntese, que estamos perante uma situação em que “a Constituição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador- dito de outro modo: em que remete para o legislador – a efectivação de um certo princípio, ou do direito por este reconhecido…” Aí se reconhece, contudo, que este entendimento suscita algumas reservas de parte da doutrina. Vejamos. Se no acórdão absolutório (penal) se chegar à conclusão de que o arguido não praticou o crime ou que actuou justificadamente nenhuma questão se suscita quanto ao dever de indemnizar. Pelo contrário, se nesse acórdão se suscitarem dúvidas sobre se o arguido cometeu o crime e sendo absolvido apenas em obediência ao princípio “in dúbio pro reo”, e face ao teor literal da alínea c), também não há dúvidas de que a indemnização só será devida se o arguido provar que efectivamente não praticou o crime ou que actuou justificadamente. Como é sabido, numa boa percentagem dos casos, os arguidos são absolvidos apenas por falta de provas, o que não quer dizer que estejam inocentes. Isto significa que se se concedesse indemnização a todos os arguidos presos preventivamente e que depois são absolvidos por falta de provas, teríamos o Estado a indemnizar pessoas que cometeram graves crimes, apenas porque, findo o julgamento, ficou nos juízes a dúvida sobre se aquele cidadão cometeu o crime pelo qual estivera preso preventivamente. No direito penal há que respeitar o princípio da presunção de inocência do arguido (“in dúbio pro reo”) (art.º 32.º, n.º 2, da CRP). E tantos são os casos em que o arguido é absolvido somente por obediência a este princípio. Por outro lado, muitos casos existem em que, embora os arguidos sejam também absolvidos com fundamento naquele princípio, não cometeram efectivamente o crime de que eram acusado, ou qualquer outro. E então é que se põe a questão da falada repartição do risco. No outro voto de vencido do acórdão do TC n.º 13/2005[11] foi salientado que a questão que o Tribunal Constitucional, como intérprete dos valores constitucionais, cabe dilucidar é a de saber se os danos pelo risco de uma inutilidade da prisão preventiva revelada ex post não devem ser suportados pelo Estado em vez de onerarem, exclusivamente, o arguido. É que, “tal questão não é apenas atinente ao regime dos pressupostos da prisão preventiva e à sua legitimidade, mas antes um problema de justiça no relacionamento entre o Estado e os cidadãos, função de justiça que cabe ao Estado assegurar”. Estamos, sem dúvida, como se refere neste voto de vencido, perante um problema de ponderação de valores em que se questiona em que medida e com que consequências é que a privação da liberdade (em prisão preventiva) de quem veio a ser absolvido é justificada pelo interesse geral em realizar a justiça e prevenir a criminalidade. Ou seja: será legítimo exigir-se, em absoluto e sem condições, a cada cidadão o sacrifício da sua liberdade em nome da necessidade de realizar a justiça penal, quando tal cidadão venha a ser absolvido? A esta interrogação responde-se no mesmo voto de vencido: “Ora, à colocação da questão neste ponto extremo terá que se responder negativamente, isto é, pela não exigência, sem limites, de um tal dever, pelo menos em todos os casos em que a pessoa em questão não tenha dado causa a uma suspeita sobre si própria, mas surja como vítima de uma inexorável lógica investigatória.”. Parece-nos não haver qualquer dúvida de que não pode ser outra a resposta a dar a tal questão, tendo em consideração a sua formulação. E mais foi dito: “Com efeito, se a Constituição admite em certos casos a sobreposição do interesse público ao individual, também tal princípio tem como geral contrapartida a ressarcibilidade da lesão dos interesses e direitos individuais. Assim acontece, de modo muito claro, na expropriação por utilidade pública (artigo 22º, nº 2, da Constituição) e se revela, igualmente, no âmbito da responsabilidade por actos lícitos das entidades públicas (artigo 62º, nº 2, e 22º, respectivamente, da Constituição). Tal princípio de reparação das lesões dos direitos individuais sacrificados num conflito de interesses em que o agente sacrificado não provocou a situação de conflito terá de valer inteiramente, por igualdade ou maioria de razão, quando o interesse sacrificado é o direito à liberdade”. Não podemos estar mais de acordo. Com efeito, não poderá aceitar-se um sistema de responsabilidade civil pela prisão preventiva, revelada injustificada ex post, devido à absolvição do arguido, que se baseie apenas na legalidade ex ante da sua aplicação em face dos elementos então disponíveis. Todavia, como se vem dizendo, não é isso o que agora está em causa, pelo menos a partir da actual redacção do artigo 225.º do CPP. Mas uma coisa é certa: a alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º concede ao lesado o direito à indemnização, o que parece ser ignorado pelos defensores da tese da inconstitucionalidade. O problema só se põe agora quanto ao ónus da prova na acção de indemnização. É evidente que o arguido inocente deve ser indemnizado. Mas também é óbvio que o culpado (embora absolvido) não o deve ser. É certo que não se afigura muito razoável que o arguido tenha de provar, na acção de indemnização, que não cometeu o crime. Até porque nem sempre é fácil fazê-lo. Mas também seria pouco razoável que o Estado fosse condenado a indemnizar todos os arguidos presos preventivamente e que depois fossem absolvidos apenas em obediência àquele princípio. Também no domínio da responsabilidade civil por acto ilícito é, em princípio, necessário que o lesado prove a culpa do autor da lesão (art.s 483.º e 487.º do CC). Mas não se pode dizer, salvo melhor opinião, que o legislador ordinário retirou aos arguidos o direito à indemnização reconhecida na Constituição. O n.º 5 do artigo 27.º remete para a lei ordinária os termos em que o Estado se constitui no dever de indemnizar. E a Constituição não fornece qualquer critério orientador sobre os pressupostos dessa indemnização. E não parece que essa orientação possa ser retirada de qualquer outra disposição constitucional ou de direito internacional. Como bem refere MAIA GONÇALVES, o disposto sobre a indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada resulta de Convenções a que Portugal aderiu, designadamente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, que, no seu art. 5.º, n.º 5, confere direito a qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às que nesse artigo se estabelecem, e que a nossa lei interna perfilhou[12]. Todavia, esta nada acrescenta em relação ao artigo 27.º, n.º 5, onde, expressamente (e com muita clareza) se consagra o dever de indemnizar. Por outro lado, nos termos do artigo 22.º da CRP «o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem». Este artigo configura, assim, o princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos. Todavia, como se conclui no acórdão do STJ de 02.12.2013, a jurisprudência largamente dominante “tem acentuado que não é de aceitar a imputação ao Estado, por força do art. 22.º da CRP, de uma responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger, para além do clássico erro judiciário, a legítima administração da justiça, em sede de detenção e/ou de prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida”. Também, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da CRP “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam entidades públicas e privadas”. Em anotação a esta disposição normativa escrevem Gomes Canotilho/Vital Moreira[13]: «O facto de a Constituição remeter para a lei a regulamentação da indemnização não tolhe a aplicabilidade directa e imediata (Cfr. art.º 18.º-1) deste preceito, devendo os órgãos aplicadores do direito dar-lhe eficácia, mesmo na falta de Lei (Cfr. AcsTC n.º 90/89 e 160/95). Na falta de lei específica deverá aplicar-se o DL n.º 48051, de 21-11-1967, com as devidas adaptações»[14]. Todavia, daqui resulta apenas que o Estado tem o dever de indemnizar. Mas, repete-se, em relação à prisão preventiva o dever de indemnizar consta agora expressamente do n.º 5 do artigo 27.º, ou seja: “legem habemus”. O legislador ordinário entendeu que é devida a indemnização desde que o arguido prove que não foi o agente do crime ou que actou justificadamente. É uma opção que, salvo o devido respeito, não é contrária à Constituição. Esta não impõe que o Estado indemnize todas as pessoas sujeitas a prisão preventiva e que depois venham a ser absolvidas em obediência ao princípio do in dubio pro reo. É certo que o dever de indemnizar resulta directamente da Constituição. Mas é também esta que determina que essa indemnização é devida nos termos que forem estabelecidos pela lei ordinária. Todavia, defende-se, e bem, que o legislador não poderia fazer depender o direito à indemnização de requisitos de tal maneira exigentes que tornassem tal direito praticamente inacessível, o que sucederia, certamente, na primitiva redacção do preceito. Mas, salvo melhor opinião, tal não acontece com a actual redacção do artigo 225.º. A Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão que está em melhor posição para decidir sobre esta importante e difícil questão. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador constitucional não só atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva”(Ac. TC ns 90/84 e160/95). A Constituição reserva, pois, ao legislador ordinário a tipificação dos casos em que é dever do Estado indemnizar um cidadão que sofreu prisão preventiva fora dos casos previstos na lei. Naturalmente que o legislador ordinário poderia ter tomado a posição de conceder a indenização desde que o sujeito a prisão preventiva viesse a ser absolvido. Mas não o fez. Com efeito, fez depender esse direito da prova, a fazer pelo lesado, de que não cometeu o crime ou que actuou justificadamente. Assim, se por um lado, se manteve o dever de indemnizar consagrado na Constituição, por outro fez-se impender sobre o arguido o ónus de provar que não cometeu o crime ou que agiu justificadamente. Estabeleceu-se aqui um equilíbrio entre o dever de indemnizar, por um lado, e o ónus do arguido fazer aquela prova, por outro. Mas, nos citados acórdãos do TC não foi julgado inconstitucional o n.º 2 do artigo 225.º com o fundamento de o ónus da prova impender sobre o arguido[15]. Foi mesmo decidido que não era inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 225.º do CPP, quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada a prisão preventiva aplicada a um arguido que depois viesse a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo. Mais recentemente, o STJ, no citado acórdão de 02.12.2013, embora não se pronunciando expressamente sobre a questão da constitucionalidade, decidiu, “em conformidade com a posição amplamente maioritária do Tribunal”: do art. 225.º do CPP, na versão operada pela Lei n.º 48/2007, emerge que a pessoa que sofreu detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação tem direito a indemnização pelos danos sofridos nos seguintes casos: 1.º - ilegalidade da privação da liberdade, nos termos dos arts. 220.º, n.º 1, e 222.º, n.º 2, do CPP; 2.º - erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto da privação de liberdade; 3.º - comprovação de que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente. Portanto, não consideramos inconstitucional a norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP por fazer depender o direito à indemnização, em virtude da prisão preventiva, da prova, a cargo do arguido, de que este não cometeu o(s) crime(s) de que era acusado, ou que actuou justificadamente. V Parece-nos, contudo que, no caso sub judice, se pode dar como assente, para efeitos de indemnização, que o ora autor não cometeu qualquer dos crimes de que era acusado e que justificasse a prisão preventiva. 1. Alega o MP que no acórdão proferido pela …Vara Criminal de Lisboa apenas se consigna que a respectiva absolvição se deveu à insuficiência da prova produzida contra o ora recorrido e com fundamento no principio in dubio pro reo e dele apenas se evidencia que não ficaram demonstrados em julgamento, com o necessário grau de certeza, os factos indiciados. 2. Os factos com maior interesse para o conhecimento destra questão sãos constantes dos nºs: 15, 16, 19, 27, 32 e 39 dos factos provados. O autor esteve sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde o seu primeiro interrogatório judicial de arguido detido, em 22 de Novembro de 2008, e veio a ser restituído à liberdade já em sede de audiência de julgamento, em 14 de Maio de 2010, acabando por ser absolvido de todos os crimes de que era acusado, por acórdão de 06 de Setembro de 2010, transitado em julgado em 22 de Outubro de 2010. Com efeito, ficou nomeadamente por provar que «o arguido I. fosse outro dos motoristas que trabalhava para o grupo», e que «procedesse ao transporte de diversos bens de proveniência ilícita fornecidos pelo arguido V., bem como os passageiros angariados pelo grupo e respectiva documentação». Tal não significa necessariamente que não tivesse cometido todos ou alguns desses crimes. Parece-nos, contudo, resultar de todo o exposto que, salvo melhor opinião, a absolvição do ora autor não se fundamentou somente, nem sobretudo, no aludido princípio do in dubio pro reo. Com efeito, como resulta dos factos n.s 16 e 17, o ora autor foi acusado de ter transportado ilegalmente as pessoas aí referidas, pelo que teria praticado os crimes que aí lhe eram imputados. E era também acusado de pertencer ao aludido grupo…, sendo um dos seus motoristas. E mais se referia na acusação que “todos os motoristas do grupo transportam mercadorias de proveniência ilícita e algumas perigosas, tais como combustível, óleo, pneus, baterias de automóveis, cobre, electrodomésticos, material informático, material de construção civil”. A verdade é que não se provou que os arguidos referidos no n.º 39 da matéria assente [da qual faz parte o ora autor] faziam parte daquele grupo e que partilhavam entre si os lucros resultantes dessa actividade e que, nomeadamente, o ora autor tivesse introduzido no espaço europeu Scengen cidadãos que transportava do leste europeu; que aqueles arguidos soubessem que os indivíduos que contactavam, que angariavam e que transportavam, não tinham a sua situação documental regularizada em Portugal. Mas o acórdão não se limita a dizer que não se provaram os factos imputados ao arguido. Pelo contrário, como resulta do n.º 40 relativo à fundamentação da sua absolvição, pois aí se afirmou: - Antes de mais convém referir que o Ministério Público, através do Exmo Sr. Procurador da República, nas suas alegações finais pediu a absolvição — do crime de associação criminosa e dos demais ilícitos — dos arguidos…. I., ….reduzindo a associação criminosa a um núcleo mais restrito de onze arguidos … A absolvição daqueles primeiros seis arguidos foi, aliás, consensual. Não obstante nalgumas conversações telefónicas alguns deles terem mantido com os seus interlocutores ….tal não significa que esses arguidos fizessem parte do grupo dos arguidos MK. e YM. e menos ainda que, no que diz respeito aos transportes de passageiros e mercadorias, estivessem a transportar passageiros ilegais ou soubessem que transportavam passageiros ilegais. - Sobre os passageiros transportados no dia … de … de … na sua carrinha que foi interceptada pelos inspectores do SEF em…, disse que estavam todos legais, facto que se veio a confirmar no decurso do Julgamento designadamente através do depoimento do inspector LP, conjugado com os depoimentos da mãe de R (um dos passageiros cuja situação não estava ainda devidamente esclarecida) e de um agente da PSP, amigo da mãe do menor R (testemunhas IP e MP) que esclareceram que o menor tinha um visto Schengen que foi renovado por duas vezes pelo SEF de… — a este propósito confrontar ainda ofício do SEF de fls…. no qual se confirma que o visto foi renovado — uma vez que veio a Portugal apenas para passar as férias de Verão com a mãe mas que estava previsto regressar — como efectivamente regressou — à Ucrânia. Outras testemunhas de defesa – passageiros transportados pelo I. como MH. disseram que tinham feito viagens com o arguido e que tinham autorização de residência. O inspector LP disse que conheceram o arguido I. tardiamente. Destacou a vigilância na … e o seguimento efectuado por inspectores do SEF até à fronteira de … . - Por aqui se vê, sem necessidade de grandes considerações, que não existe o menor indício –por total ausência de prova – de que qualquer um destes seis arguidos tenha aderido ao grupo a que nos temos vindo a referir. A prova produzida também não permite imputar-lhes a prática de outros factos tais como, a introdução em Portugal de forma intencional dos chamados passageiros ilegais – e veja-se que no único caso descrito na acusação em que o SEF interceptou o arguido I. os passageiros transportados na carrinha do arguido encontravam-se em situação regular e legal – a participação no fabrico e viciação de documentos para venda a cidadãos de nacionalidade ucraniana indocumentados e o transporte de mercadorias de proveniência ilícita conhecendo essa proveniência. Portanto, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, parece-nos que o ora autor foi absolvido por não haver quaisquer indícios de ter cometido qualquer dos crimes por que foi acusado, nomeadamente, ter aderido ao aludido grupo e ter transportado passageiros sabendo que os mesmos eram ilegais. Em relação aos passageiros transportados no … na sua carrinha, que foi interceptada pelos inspectores do SEF em …, disse, quando foi interrogdo, que estavam todos legais, facto que posteriormente se veio a confirmar. E esta foi também a posição assumida na sentença recorrida: «Dir-se-á, face ao exposto, que se a absolvição do Autor se deveu expressamente à “inexistência do menor indício” da prática dos crimes de que era acusado, ficou comprovadamente demonstrado não ter sido ele agente dos mesmos, não radicando o juízo absolutório que o beneficiou da falência de qualquer prova em contrário, julgada porém insuficiente para a sua condenação, e por isso beneficiando aquele do princípio in dubio pro reo. Por outras palavras, não resulta do Acórdão absolutório proferido quanto ao Autor, que em sede de audiência de julgamento tenham sido produzidas contra ele quaisquer provas, que criassem no julgador um qualquer princípio de convicção sobre a prática dos crimes que lhe eram imputados, convicção essa porém inferior ao standard de prova exigido para a sua condenação, que só por isso não ocorreu. (…) Logo, repete-se, e face ao texto do Acórdão absolutório, tem-se por comprovado que o Autor não foi agente dos crimes que lhe eram imputados…». O MP defende que dos factos apurados não se pode afirmar que sejam idóneos a declarar como nunca verificados os anteriores “fortes indícios” da prática, pelo autor, e em associação criminosa, dos crimes pelos quais foi julgado, tendo sido absolvido com fundamento no princípio in dúbio pro reo, como resulta claramente do acórdão proferido pela 4ª vara criminal. “Pelo que, face ao texto do acórdão absolutório, não se pode ter como comprovado que o Autor não foi o autor dos crimes que lhe eram imputados, isto é, que tenha sido provada de forma positiva a sua inocência…” Não vemos, porém, qualquer razão para discordar do decidido em 1ª instância, pelas razões supra referidas. O MP também defende, relativamente à interpretação a dar à alínea c) do n.º 1 do artigo 225.º do CPP: “a lei é clara e só tem aplicação quando o arguido seja absolvido por comprovadamente se ter concluído que não foi agente do crime (nomeadamente, por se ter provado que foi outra pessoa quem praticou os factos que lhe eram imputados, ou que o arguido não se encontrava no local, tal como afirmado pelas autoridades policiais, no dia e hora indicados, etç)”. Parece-nos, contudo, que, nestas circunstâncias, não se pode ser muito exigente na apreciação da prova, sob pena de, só em casos muito especiais se poder dar como provado que o arguido não cometeu os crimes de que era acusado. De qualquer forma, e conforme referido, não podemos concordar com o EMMP ao afirmar que “a absolvição do ora autor apenas evidencia que não ficaram demonstrados na audiência final, com o necessário grau de certeza, os factos indicados e sobre os quais fora já possível formular um sério juízo de probabilidade”. VI Vejamos agora a questão relativa aos danos. Os princípios gerais, em matéria de responsabilidade civil, constam do artigos 483º e seguintes do C. Civil. Determina o artigo 483.º, relativo à responsabilidade civil por actos ilícitos: «1- aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. 2- Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei» São, assim, requisitos da responsabilidade civil extracontratual: a) O facto; b) A ilicitude; c) A culpa; d) O dano; e) O nexo de causalidade entre o facto e o dano. Aqui apenas seria discutível o dever de indemnizar, sendo certo que essa questão já foi apreciada e decidida afirmativamente. Torna-se agora necessário averiguar qual o montante dos danos patrimoniais e dos não patrimoniais. Mas em relação a estes põe-se mesmo a questão de saber se são indemnizáveis. Em 1ª instância foi feita uma análise detalhada sobre o dever de indemnizar e os critérios a adoptar para a determinação dos danos patrimoniais e dos danos não patrimoniais. Foi referido nomeadamente: «Concretizando, verifica-se que, durante os dezassete meses e vinte e dois dias em que durou a sua prisão preventiva, o Autor ficou impedido de ajudar a sua Mulher na exploração de um minimercado e de um café que possuem na Ucrânia, bem como de se dedicar ao transportes de passageiros daquele país para Portugal, e daqui para a Ucrânia, vendo com isso diminuídos os seus rendimentos e os da sua família (factos enunciados sob os números 49, 50, 51, 52, 53, 54 e 55). Mais se verifica que, mercê da mesma prisão preventiva, sentiu grande vergonha pelo facto de poderem pensar que era culpado, sendo até então estimado e considerado com um bom cidadão, respeitador, responsável e cumpridor (factos enunciados sob os números 47 e 48); e ficou privado do convívio com a sua Mulher e os seus dois Filhos, afectando aos telefonemas que lhes fazia a maior parte do dinheiro que recebida dos amigos e da Embaixada da Ucrânia, neste último caso de € 50,00 por mês (factos enunciados sob os números 45 e 46). Fica, assim, certificada a verificação quer de danos não patrimoniais, quer de danos patrimoniais, registados pelo Autor em virtude da prévia prisão preventiva, considerando-se serem os segundos suficientemente graves para merecerem aqui reparação. Considera-se ainda que, atenta a ordem normal das coisas, a dita prisão preventiva foi apta a desencadear o posterior resultado, já que o facto de uma pessoa se encontrar confinada a um Estabelecimento Prisional impede-a naturalmente de exercer a sua actividade profissional habitual, com isso diminuindo os seus rendimentos, sendo ainda a prisão vista pela generalidade dos cidadãos cumpridores como um facto vergonhoso, e que implica o afastamento da família, fonte privilegiada de afectos (nomeadamente, estando em causa o exercício de funções conjugais e parentais). Deverá, assim, julgar-se em conformidade, considerando estar o Réu obrigado a indemnizar o Autor pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais por ele sofridos, em consequência do facto ilícito que aqui é imputado ao Estado». Em relação aos danos patrimoniais foi esclarecido que «logrou o Autor provar, não só a efectiva verificação dos que reclamara – correspondentes à diminuição do rendimento do seu estabelecimento de minimercado e café, como ainda à perda da remuneração que auferia pelo transporte de passageiros entre a Ucrânia e Portugal, e vice-versa -, como ainda parte do seu montante – fixado em de € 27.0000,00 (factos enunciados sob os números 10, 32, e 49 a 55). Considerou-se, para este efeito, um período de 18 meses (fazendo equivaler ao derradeiro mês os últimos vinte e dois dias em que o Autor esteve preso); uma perda mensal de rendimento do estabelecimento comercial do Autor de € 500,00 (logo, globalmente de € 9.000,00); e uma perda mensal de rendimento dos transportes que efectuava de € 1.000,00 (logo, globalmente de € 18.000,00)». É efectivamente esta a situação que resulta dos factos provados. Por outro lado, o montante dos danos patrimoniais não é posto em causa neste recurso pelo MP, razão pela qual é de manter. Em relação aos danos não patrimoniais reclamou o Autor a quantia de € 11.000,00, nela considerando o afastamento da mulher e dos dois filhos durante dezassete meses e vinte e dois dias, e a grande vergonha pelo facto de se poder pensar que era culpado, sendo na sua cidade estimado e considerado com um bom cidadão, respeitador, responsável e cumpridor (factos enunciados sob os números 45 a 48). Quanto aos danos não patrimoniais pronuncia-se o MP, nomeadamente nas conclusões 6 a 10 e 12, dizendo que deve improceder o pedido ou que, se assim não for entendido, que a condenação não deve ser superior a 3.000 euros. Todavia, não cremos que lhe assista razão quando alega que a indemnização arbitrada ao Autor por danos não patrimoniais vem ressarcir danos não tutelados pela lei, “pois que os danos provados são comuns à generalidade dos cidadãos que foram sujeitos a prisão preventiva, encontrando-se o mesmo já parcialmente privado do convívio com a família, conforme factos provados e enunciados sob os pontos n.°s 45, 46, 48 e 52 da mesma decisão”. Não é pelo facto de qualquer cidadão poder sofrer prisão preventiva que o autor deixaria de ter sofrido danos não patrimoniais. Também não nos parece ter razão o MP quando afirma que os danos a que se referem os n.°s 50 a 55, inclusive, da fundamentação de facto da douta sentença em apreço também se teriam verificado, caso o ora Autor tivesse simplesmente sido sujeito a mero termo de identidade e residência, pois que, enquanto durasse a investigação, seguramente não seria autorizado a sair de Portugal e a poder continuar a sua actividade de transporte de cidadãos estrangeiros para o nosso país. A verdade é que esteve preso. E como se considerou que o ora autor não praticou os crimes de que foi acusado, deve ser indemnizado pelos danos sofridos. Nos termos do artigo 496º do C. Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal, tendo em conta as circunstâncias referidas no artigo 494º, ou seja, grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem. Mesmo no domínio da responsabilidade extrajudicial discutiu-se na doutrina a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais. E isto porque havia quem defendesse que eles são insusceptíveis de reparação pecuniária, não havendo dinheiro capaz de reparar uma dor, uma injúria, a perda de um órgão importante do corpo humano ou a sua deformação. Além disso seria muito difícil, senão impossível, avaliar o valor desses danos. Trata-se, contudo, de questão que, segundo cremos, está completamente ultrapassada, pois não tem qualquer razão de ser. Procura-se, assim, com a indemnização pelos danos não patrimoniais, atenuar as consequências que para o lesado advêm da conduta do lesante. Ou como se defendeu no acórdão do STJ de 16.04.91[16], o artigo 496º do CC fixou-se definitivamente não numa concepção materialista da vida, mas num critério que consiste que se conceda ao ofendido uma quantia em dinheiro considerada adequada a proporcionar-lhe alegria ou satisfação que de algum modo contrabalancem as dores, desilusões, desgostos ou outros sofrimentos que o ofensor lhe tenha provocado. Por isso deve entender-se que com a avaliação de tais danos se pretende mais compensar do que indemnizar o mal causado pela lesão sofrida. Nesta linha de pensamento escrevia o Prof. Vaz Serra na RLJ ano 113º-104: “a situação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto que não é um equivalente do dano, um valor que reponha a coisa no estado anterior à lesão, tratando-se então de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente”. Ou, como escreve Inocêncio Galvão Telles in “Direito das Obrigações”, pag. 297: “na impossibilidade de reparar directamente os danos pela sua natureza não patrimonial, procura-se repará-los indirectamente através de uma soma em dinheiro susceptível de proporcionar satisfações porventura de ordem espiritual, que representem um lenitivo, contrabalançando até certo ponto os males causados”. Tem-se entendido, e com razão, que é muito difícil, senão impossível, calcular o montante exacto da compensação devida pelos danos morais. Como dissemos, não se trata propriamente de indemnizar a vítima, mas antes de a tentar compensar, atenuando-se um mal já consumado. É que o dinheiro pode proporcionar à pessoa lesada satisfações não só de carácter económico, mas também de carácter espiritual e até mesmo moral, que possa atenuar a dor e o sofrimento. Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral” Vol. I, pág.. 502 diz que “a indemnização” por danos morais reveste uma natureza acentuadamente mista: “por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado não lhe é estranha a ideia de reparar ou castigar, no plano civilístico e com meios próprios do direito privado, a conduta do agente”. É que se trata de prejuízos que não atingem em si o património, não o fazendo diminuir nem frustrando o seu acréscimo. O património não é afectado: nem passa a valer menos nem deixa de valer mais. Há a ofensa de bens de carácter imaterial – desprovidos de conteúdo económico, insusceptíveis verdadeiramente de avaliação em dinheiro, tal como a integridade física, a saúde, a honra e a reputação[17]. Como vimos, a nossa lei aceita a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, mas apenas daqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito: o dano há-de ser de tal maneira grave que justifique a concessão ao lesado duma satisfação de ordem pecuniária (compensação), nos termos referidos. Ou, como se refere no citado acórdão do STJ de 15.06.93 (BMJ 428- 535), que revistam gravidade objectiva e acentuada, de modo a justificarem uma compensação de ordem pecuniária. “Só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral” (ac. STJ de 26.06.91- BMJ 408-538). Não há qualquer dúvida de que os danos sofridos pelo autor, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, em montante a fixar equitativamente pelo tribunal. Foi fixada a quantia pedida pelo autor, ou seja, 11.000 euros. Relativamente aos danos não patrimoniais não é possível a reposição ou reconstituição natural, nem válida a teoria da diferença, havendo sim que atender ao disposto nos arts. 496°, n° 1 e n° 4 e 494°, ambos do C.C.. Este estabelece: «o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494°», isto é, o «grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado, e as demais circunstâncias do caso» sem esquecer os padrões adoptados pela Jurisprudência e a flutuação da moeda. Aqui apenas releva a privação da liberdade e os factos referidos supra. Dos factos alegados em sede de danos morais, no essencial apenas não ficou provado o n.º 4: …passando [o autor] a maior parte do tempo muito deprimido e com dificuldades em dormir, sofrendo de profundas saudades. Assim, parece-nos mais adequado fixar a indemnização por danos não patrimoniais em €10.000,00 ** Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, e, em consequência, altera-se a sentença recorrida, fixando-se a indemnização por danos não patrimoniais em €10.000,00 Custas na proporção do vencido em ambas as instâncias Lisboa, 30.09.2014. José David Pimentel Marcos Manuel Tomé Soares Gomes Maria do Rosário Morgado. [1] Esta disposição normativa aplica-se a partir de 15.09.2007. |