Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9127/09.2TBCSC.L1-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Nos termos do seu art.1º, a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia em 25/10/1980, tem por objecto: assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente (al.a); fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante (al.b).
II – Segundo o acordo que vigorava entre os pais do menor quando ocorreu a deslocação deste, o direito de custódia, onde se inclui o direito de decidir sobre o lugar da residência da criança, foi atribuído apenas à mãe, que tão só se obrigou a não viajar com o filho para um país estrangeiro até ao dia 31/12/08.
III – Deste modo, tendo-se ambos deslocado para Portugal (mãe e filho), no dia 2/5/09, tal facto, só por si, não implica violação nem do acordo estabelecido entre os pais do menor, nem do direito de custódia.
IV – Consequentemente, não se está perante uma deslocação ou retenção ilícitas, nos termos do art.3º da referida Convenção, pelo que, não há que assegurar o regresso imediato da criança à Alemanha.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
No Juízo de Família e Menores, o M.ºP.º, ao abrigo do disposto nos arts.2º a 5º, 7º, 12º e 14º, da Convenção de Haia, de 25/10/80, Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, conjugadas com o Regulamento CE nº2201/2003, e na sequência de pedido formulado pela Autoridade Central Portuguesa, propôs, contra C, acção especial visando o regresso à Alemanha do menor B, nascido em 3/11/07, filho da requerida, de D, de nacionalidade alemã.
Para o efeito, alega que, no dia 13/8/2009, deu entrada na Autoridade Central Portuguesa – Direcção-geral de Inserção Social – um pedido de regresso relativo ao referido menor, remetido pela Autoridade Central Alemã – Instituto Federal de Justiça – em que é requerente o pai do menor.
Mais alega que, desse pedido e da documentação junta, resulta que os pais do menor são casados entre si, mas que se encontram separados de facto, tendo, em 11/11/08, no Tribunal Administrativo de 1ª instância de celebrado acordo, onde, além do mais, estabeleceram que a mãe exerce sozinha o direito de determinação do local de residência do filho comum, obrigando-se a mesma a entregar o passaporte do menor ao seu mandatário e deixá-lo com ele até ao dia 31/12/08, e, ainda, a não viajar com a criança para um país estrangeiro até ao dia 31/12/08.
Alega, também, que a Autoridade Central Portuguesa informou a Autoridade Central Alemã que, face àquele acordo e uma vez que a deslocação para Portugal ocorreu em 2/5/09, em seu entender, não se encontravam preenchidos os requisitos necessários para accionar a Convenção, por não existir uma deslocação ou retenção ilícitas. Mas como, entretanto, em 17/11/09, a Autoridade Central Alemã juntou carta enviada pela advogada do pai do menor, onde esta entende que o acordo não permitia à mãe a alteração do local de residência do menor sem o consentimento do pai, a Autoridade Central Portuguesa passou a considerar que os factos configuram uma retenção ilícita por parte da mãe, susceptível de ser sancionada com o regresso imediato da criança à Alemanha.
Conclui, assim, que se deve proferir, de imediato, decisão proibindo a mãe e o menor de se ausentarem do território nacional, e que se devem efectuar as diligências necessárias, a fim de se apurar se o menor se encontra em situação de retenção ilícita, ao abrigo das disposições da citada Convenção.
Foi proferido despacho inicial, determinando a proibição da mãe e do menor se ausentarem de Portugal e designando dia para audição daquela.
A mãe do menor, no entanto, não foi notificada para comparecer nesse dia, nem no outro que foi designado, tendo a PSP informado ignorar o paradeiro da mesma.
O M.ºP.º emitiu parecer no sentido de que se deve recusar a aplicação da Convenção, por decorrer de forma muito clara do acordo celebrado pelos pais do menor que é à mãe que compete exercer sozinha o direito de determinação do local de residência do menor, pelo que, não houve deslocação ilícita deste.
Seguidamente, foi proferida decisão, não determinando o regresso do menor à Alemanha, por se ter entendido que a mãe não o reteve, nem se deslocou ilicitamente com ele, e que, deste modo, não é aplicável a referida Convenção de Haia.
Inconformado, o pai do menor interpôs recurso daquela decisão.
Produzidas as alegações, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.
2.1. Na decisão recorrida considerou-se que, dos elementos juntos aos autos, se pode concluir que:
a) B, nasceu a 03-11-2007, no …, com cidadania alemã e é filho de C, , e de D, cidadão alemão.
b) Os progenitores contraíram matrimónio no dia 26 de Novembro de 2007 em …., no B… onde viveram durante algum tempo.
c) Actualmente os progenitores encontram-se separados de facto e detêm a guarda conjunta da criança nos termos dos art°s 1626° e 1627° do Código Civil Alemão.
d) Em 11 de Novembro de 2008, no Tribunal Administrativo de 1a instância, no processo referente à guarda do menor, os progenitores celebraram acordo nos seguintes termos:
- a mãe exerce sozinha o direito de determinação do local de residência para o filho comum B;
- a mãe da criança obriga-se a entregar o passaporte da criança ao seu mandatário judicial e deixá-lo com ele até ao dia 31 de Dezembro de 2008;
- a mãe obriga-se a não viajar com a criança para um país estrangeiro até ao dia 31 de Dezembro de 2008.
e) No dia 22 de Abril de 2009 a advogada da mãe envia carta ao advogado do pai informando que a progenitora e o filho comum B irão viajar para, Portugal, e permanecerão em casa da irmã, ….., tendo a deslocação ocorrido a 02 de Maio de 2009.
2.2. O recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O Tribunal indefere remetendo para o acordo celebrado, mas não pondera o contexto do mesmo, nem as declarações da mãe na acta de audiência do mesmo, nem face à Advogada do PAI.
2. Por lapso decerto alega existir "venire contra factum próprio" do Pai.
3. Da atenta leitura decorre com linear clareza estarmos face a uma retenção ilícita:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção.
4. Segundo a convenção artigo 5.°
O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência.
5. Ora, a mãe garantiu em declarações em acta ao Tribunal e à Advogada do Pai que iria regressar e não pode reter o menor em Portugal.
6. De facto ficou expressa a obrigação de o menor se manter na Alemanha 31-12-2008. (folhas 33 a 40). Nesta audiência em 11-11-2008, a mãe disse a folhas 39:
A partir de Dezembro terei um lugar na creche e um apartamento próprio. Afirmou ir ter um curso que iria durar 6 meses. Disse que se ia instalar naquele país (Alemanha). Naquela data disse que queria viajar a Portugal, mas que primeiro tinha que organizar o seu apartamento.
7. Estas declarações são feitas face a um Tribunal e na presença de um Juiz.
8. É igualmente evidente, a preocupação do Pai face à necessidade de assegurar durante a deslocação para Portugal o direito às visitas e o regresso.
9. A mãe assegurou ao Tribunal que a deslocação era provisória (ver acta de folhas 39), e à Advogada do Pai para assistir ao casamento da irmã (folhas 29-30).
10. A existir qualquer abuso de direito seria da Mãe, que assegurou o seu regresso à Alemanha e não o fez. Muito respeitosamente nunca do Pai.
Requer-se seja alterada a decisão e seja:
• Ordenado o regresso do menor à Alemanha ou em alternativa
• efectuadas as diligências solicitadas para localizar a Mãe.
2.3. A Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia em 25/10/1980, aprovada pelo Decreto do Governo nº33/83, de 11/5, e que entrou em vigor em Portugal no dia 1/12/1983, conforme Aviso publicado no D.R. nº126/84, Série I, de 31/5/84, foi estabelecida na convicção de que os interesses da criança são de primordial importância em todas as questões relativas à sua custódia, acrescentando-se, no preâmbulo daquela Convenção, que: «Desejando proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de uma mudança de domicílio ou de uma retenção ilícitas e estabelecer as formas que garantam o regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual, bem como assegurar a protecção do direito de visita».
Assim, nos termos do seu art.1º, a Convenção tem por objecto: assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente (al.a); fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante (al.b).
Por força do seu art.6º, cada Estado Contratante designará uma autoridade central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela Convenção. Em Portugal, essa autoridade é a Direcção-Geral de Inserção Social, e, na Alemanha, é o Instituto Federal de Justiça.
No caso dos autos, o pai do menor, residente na Alemanha, por entender que este tinha sido deslocado para Portugal pela mãe, em violação de um direito de custódia, participou o facto à autoridade central da residência habitual da criança, ou seja, ao Instituto Federal de Justiça (cfr. o art.8º da Convenção). Esta autoridade, por seu turno, transmitiu directamente o facto à autoridade central portuguesa, conforme determina o art.9º da Convenção, a qual, no entanto, num primeiro momento, como se refere no relatório do presente acórdão, informou a autoridade central alemã que, face ao acordo celebrado pelos pais do menor em 11/11/08, em seu entender, não se encontravam preenchidos os requisitos necessários para accionar a Convenção, situação esta que se encontra prevista no art.27º da Convenção. Contudo, algo estranhamente, pelo simples facto de a autoridade central alemã ter, entretanto, enviado à autoridade central portuguesa uma carta da advogada do pai do menor, onde esta defendia o entendimento de que o aludido acordo não permitia que a mãe alterasse o local de residência do menor sem o consentimento do pai, a autoridade central portuguesa passou a considerar que os factos configuram uma retenção ilícita por parte da mãe, susceptível de ser sancionada com o regresso imediato da criança à Alemanha.
E tendo a autoridade central portuguesa remetido o expediente recebido da autoridade central alemã ao Sr. Procurador do Tribunal de Família e Menores, para que, se assim fosse entendido, se ordenasse o regresso da criança, aquele Magistrado interpôs a presente acção, para esse efeito. Só que, não obstante nada de novo se ter apurado no decurso da mesma, já que nem sequer foi possível proceder à audição da mãe do menor, por não ter sido encontrada na morada indicada e se desconhecer o seu paradeiro, o M.ºP.º emitiu parecer no processo, defendendo a recusa da aplicação da Convenção, por, no seu entender, decorrer de forma muito clara do acordo dos pais que é à progenitora que compete exercer sozinha o direito de determinação do local de residência do menor. Posição esta que foi, igualmente, sustentada na decisão ora recorrida.
Segundo o recorrente, há que ponderar o contexto em que o acordo foi celebrado, designadamente, há que ter em conta as declarações da mãe na audiência que teve lugar no Tribunal Administrativo de 1ª instância, na Alemanha. De onde, alegadamente, resulta que o menor se manteria naquele país e que a deslocação a Portugal seria provisória.
O que resulta da matéria de facto apurada é que o menor B, que vai fazer 3 anos no dia 3/11/2010, é filho de C, e de D, os quais contraíram matrimónio no dia 26/11/2007, no B…, onde viveram durante algum tempo.
Mais resulta que os progenitores se encontram separados de facto e que, em 11/11/08, no Tribunal Administrativo de 1ª instância alemão, no processo referente à guarda do menor, celebraram acordo nos seguintes termos:
1. As partes estão de acordo que a mãe exerce sozinha o direito de determinação do local de residência para o filho comum B, nascido em 03/11/2007.
2. A mãe da criança obriga-se a entregar o passaporte da criança ao seu mandatário judicial e a deixá-lo com ele até ao dia 31 de Dezembro de 2008.
3. As partes estão de acordo que tanto o processo de medida de segurança cautelar, quanto o processo principal terminam com este acordo.
4. A mãe obriga-se a não viajar com a criança para um país estrangeiro até ao dia 31 de Dezembro de 2008.
Resulta, ainda, que, no dia 22/4/09, a advogada da mãe enviou uma carta à advogada do pai, informando que a progenitora e o filho comum B irão viajar para Portugal, e permanecerão em casa da irmã, tendo a deslocação ocorrido a 02/05/2009 (cfr. fls.30).
Face a esta matéria de facto, entendeu-se na decisão recorrida não se vislumbrar a existência de fundamento algum para o pedido de regresso do menor à Alemanha, uma vez que não houve deslocação ilícita do mesmo, de acordo com a definição legal contida na Convenção de Haia de 25/10/1980, pelo que, não se determinou o pretendido regresso.
Vejamos.
Dir-se-á, desde já, que não podemos deixar de estar de acordo com o decidido. Na verdade, nos termos do art.3º, § 1º, als.a) e b), da referida Convenção, a deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção e este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. Acrescentando o § 2º do mesmo art.3º que o direito de custódia atrás referido pode, designadamente, resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.
Por outro lado, de harmonia com o disposto no art.5º, al.a), da citada Convenção, o «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência.
Assim sendo, a única questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a deslocação ou a retenção do menor B por parte da sua mãe é ou não ilícita, isto é, se foi ou não efectivada em violação de um direito de custódia.
Para se decidir tal questão, dúvidas não restam que há que apurar quem detinha esse direito, sendo que, para o efeito, não pode deixar de se ter em consideração o acordo que vigorava entre os pais do menor quando ocorreu a deslocação deste. Ora, o que manifestamente decorre das cláusulas de tal acordo, atrás transcritas, é que o direito de custódia, onde se inclui, como resulta expressamente da Convenção, o direito de decidir sobre o lugar da residência da criança, foi atribuído apenas à mãe. Mais decorre daquelas cláusulas, que a mãe apenas se obrigou a não viajar com a criança para um país estrangeiro até ao dia 31/12/08. O que só pode significar que, a partir daquela data, nada impedia que a mãe viajasse com o filho para outro país.
Deste modo, tendo-se ambos deslocado para Portugal no dia 2/5/09, não se vê que tal facto implique violação do acordado. Assim como também não se vê que implique violação do direito de custódia, já que este pertencia exclusivamente à mãe, como já se referiu.
A alegação feita pelo recorrente de que há que ponderar o contexto em que o acordo foi celebrado não pode proceder, pois que, segundo cremos, não compete a este Tribunal fazer uma apreciação de fundo do direito conferido à mãe do menor no referido acordo, nomeadamente, indagando sobre o sentido das cláusulas acordadas (cfr. o art.16º da Convenção). Aliás, tais cláusulas não oferecem dúvidas. E, ainda que assim não fosse, parece-nos que nunca se poderia prescindir de critérios de carácter objectivo para fixação do seu sentido e alcance. Dir-se-á, ainda, que, tendo estado presentes na audiência que teve lugar no tribunal alemão, quer os pais do menor, quer as respectivas advogadas, não se compreende por que razão não incluíram nas cláusulas do acordo a expressa obrigação de o menor se manter na Alemanha, ou de só poder sair desse país com o prévio consentimento do pai, caso fosse essa a sua vontade. Sendo certo que, o que resulta objectivamente dessas cláusulas é que, a partir do dia 31/12/08, a mãe do menor podia viajar livremente com este para outro país, isto é, independentemente do consentimento do pai, como efectivamente viajou, em 2/5/09.
A circunstância de a mãe do menor não ter sido encontrada em Portugal, designadamente, na morada que foi indicada à advogada do pai do menor, quando, em 22/4/09, esta foi informada da intenção daquela de viajar para Lisboa, e de, por isso, não ter sido possível proceder à sua audição, não altera os dados da questão. Na verdade, do que se trata é de um pedido de regresso da criança, sob a invocação de que esta foi deslocada ou retirada em violação de um direito de custódia (cfr. o art.8º da Convenção), e não de um pedido que vise a organização ou a protecção do exercício efectivo do direito de visita (cfr. o art.21º da Convenção).
Ora, como já decorre do que atrás se expendeu, entendemos que dos autos não resulta a existência de uma deslocação ou retenção ilícitas, nos termos do art.3º da Convenção. Consequentemente, não há que assegurar o regresso imediato da criança à Alemanha, como pretende o recorrente. Improcede, pois, o recurso.

3 – Decisão.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Lisboa, 20 de Abril de 2010

Roque Nogueira
Abrantes Geraldes
Tomé Gomes