Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2580/08.3TVLSB.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: SENTENÇA ESTRANGEIRA
FORÇA EXECUTIVA
TÍTULO EXECUTIVO
ORDEM PÚBLICA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA
DIREITO COMUNITÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- O conteúdo da lei estrangeira competente não é, em geral, só por si decisivo para fazer entrar em jogo a excepção do ordem pública internacional.
II- Serão antes as circunstâncias ou os resultados da aplicação dessa lei ao caso concreto os factores decisivos do seu afastamento por uma razão de o. p.
III- A garantia pessoal prestada pelo gerente de uma sociedade por quotas ao cumprimento das obrigações emergentes de acto de comércio da sociedade por si administrada e representada, não sendo para finalidade estranha à actividade comercial daquela, tão pouco deverá ser considerada, na ausência de outros elementos, como havendo sido prestada para finalidade que possa ser considerada estranha à actividade profissional do gerente.
IV- Em qualquer caso a demonstração da “estranheza” da finalidade da prestação de garantia, pelo Recorrente relativamente à actividade profissional deste, para efeitos do disposto no art.º 15º do Regulamento (CE) 44/2001, como no art.º 13º da precedente Convenção de Bruxelas – e atenta a natureza de excepção da incompetência do Tribunal de origem – sempre será ónus do mesmo Recorrente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível deste Tribunal da Relação

I- A B..., S.A., requereu contra C....., a declaração de executoriedade de sentença estrangeira.
Alega, para tanto, que por sentença do Tribunal de Comércio de Paris, proferida em 19 de Outubro de 2004, foi o Requerido condenado a pagar à Requerente a quantia de € 425.400,17, acrescida dos juros vincendos até integral pagamento, bem como € 4.000,00 por força do art.º 700º do Código de Processo Civil francês e as custas do processo no valor de € 109,09.
Sendo que tal sentença transitou em julgado.
Juntou, em via de transmissão electrónica de dados, certidão da referida sentença e tradução certificada, segundo o formulário uniforme constante do anexo V ao Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000.
Declarada a incompetência, em razão da forma de processo aplicável, da ...Vara Cível de Lisboa, e ordenada a remessa à distribuição junto dos Juízos Cíveis de Lisboa, foi no ...Juízo-.... Secção, proferida decisão – nos termos do art.º 41º do supracitado Regulamento – declarando «a força executória em Portugal da “Certidão de Título Executivo” emitida pelo Tribunal de Comércio de Paris no que concerne ao pagamento da quantia de € 425.400,17 (quatrocentos e vinte e cinco mil, quatrocentos euros e dezassete euros) – capital e juros apurados em 30.06.2001 –, acrescida de juros vincendos até integral pagamento, bem como ao pagamento de 4.000€ (quatro mil euros) por força do art.º 700º do Código de Processo Civil francês, e ao pagamento das custas do processo no valor de € 109,09 (cento e nove euros e nove cêntimos), autorizando assim a sua execução.».

E, notificado da declaração de executoriedade, como se prevê no art.º 42º, n.º 2, do dito Regulamento, recorreu o Requerido, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem como objecto a declaração de executoriedade da Sentença estrangeira proferida pelo .... Juízo Cível de Lisboa. Não se conformando o Recorrente com a atribuição de força executiva à aludida sentença, vem dela interpor recurso.
II. O Tribunal de Comércio de Paris julgou procedente a acção de condenação proposta pelo Recorrido unicamente contra o ora Recorrente, considerando que o mesmo, enquanto avalista e devedor solidário da sociedade AII, Lda. ("Animatógrafo"), deve responder pela totalidade dos montantes garantidos pelo Recorrente e não liquidados pela Animatógrafo, no âmbito de um contrato de mútuo bancário celebrado entre a última e o Recorrido.
III. Sucede, porém, que a Recorrido intentou a acção, inusitadamente, apenas contra o garante da obrigação, "desobrigando" o Animatógrafo das obrigações contratualmente assumidas, pelo que, consequentemente, os efeitos do caso julgado formal e material, à luz do princípio da eficácia relativa do caso julgado, abrangem apenas a Recorrente e a Recorrida.
IV. Tal significa que o Recorrente não pode, no âmbito do caso sub judice, exercer o seu direito de regresso contra a aludida sociedade, motivo pelo qual terá de intentar, caso o presente recurso não seja julgado procedente, o que por mero dever de patrocínio se equaciona, uma acção declarativa de condenação contra o Animatógrafo.
V. Não obstante, a proposição de uma acção declarativa de condenação não impedirá, por um lado, que o património do Recorrente seja executado - caso o presente Recurso não seja considerado procedente - e por outro, surge como uma solução excessivamente onerosa e escusável, na medida em que o Recorrido poderia ter intentado a acção (também ou apenas) contra o Animatógrafo, enquanto devedor principal, e/ou deveria ter intentado a acção junto dos Tribunais Portugueses, de forma a permitir que o Recorrente tivesse podido requerer a intervenção principal de terceiro.
VI. Com efeito, como ficou assente nos autos, quer o Animatógrafo, devedor principal, quer o Recorrente, enquanto garante e consequentemente devedor solidário, tinham, inclusive à luz do disposto na lei francesa, e mantêm, respectivamente, o seu domicílio e a sua sede em Portugal, facto aliás que era do conhecimento do Recorrido, que na qualidade de entidade bancária, remeteu sempre a correspondência do Recorrente para a sua residência em Lisboa.
VII. Assim, e nos termos do artigo 2° da Convenção de Bruxelas (no mesmo sentido dispõe o artigo 2° do Regulamento 44/2001), a acção deveria ter sido proposta perante os Tribunais Portugueses, não se admitindo a competência internacional dos Tribunais Franceses, nos termos dos artigos 2° e 5° n.° 1 da Convenção de Bruxelas, na medida em que nenhum dos devedores tinha ou tem domicílio em território francês, nem o lugar de cumprimento da obrigação se situava em França.
VIII. Acresce que, ao Recorrente não era sequer permitido, no âmbito da acção que seguiu termos em França, requerer a intervenção provocada principal do Animatógrafo, porquanto o artigo 6°, n.° 2 da Convenção de Bruxelas (em igual sentido dispõe o artigo 6°, n.° 2 do Regulamento 44/2001) estabelece que "o requerido com domicílio no território de um Estado Contratante pode também ser demandado:
(...)
2. Se se tratar de chamamento de um garante à acção ou de qualquer incidente de intervenção de terceiro, perante o tribunal onde foi instaurada a acção principal, salvo se esta tiver sido proposta apenas com o intuito de subtrair o terceiro à jurisdição do tribunal que seria competente nesse caso;
IX. Ora, como já se deixou alegado, os tribunais portugueses eram internacionalmente competentes para conhecer do litígio. No entanto, o Recorrido, aproveitando-se do facto de o Recorrente ter indicado, aquando da assinatura da livrança, a morada de um imóvel em Paris do qual é proprietário, intentou a acção em França alegando que o Recorrente teria domicílio em Paris.
X. Tal argumento só pode ser demonstrativo da actuação de má fé por parte do Recorrido, porquanto esta não ignorava que o Recorrente mantinha aberta, junto do Banco Recorrido, uma conta para não residentes em França, ao que acresce o facto de o Recorrido ter sempre remetido toda a correspondência bancária para a residência do Recorrente em Lisboa, como, aliás, ficou provado nos autos.
XI. Assim, parece existir uma relação entre (i) a proposição da acção apenas contra o Recorrente e (ii) a proposição da acção nos tribunais franceses.
XII. Com efeito, a proposição da acção contra o Animatógrafo junto dos Tribunais Franceses teria, de certo, sido recusada liminarmente, uma vez que o Animatógrafo não tem sede real, ou estatutária, ou sequer sucursal ou filial em território francês, o que indicia um de dois propósitos possíveis do Recorrido, a saber: (i) subtrair o litígio aos tribunais portugueses evitando, para o efeito, intentar a acção contra o Animatógrafo; (ii) subtrair o Animatógrafo da acção, intentando, para o efeito, a acção junto dos Tribunais Franceses.
XIII. Por outro lado, esta limitação subjectiva da acção ao Recorrente e consequente exclusão do Animatógrafo, consubstancia-se numa violação grave e intolerável dos direitos de defesa e de acesso aos tribunais, os quais se encontram consagrados quer na Constituição da República Portuguesa (artigo 20º), quer na Convenção Europeia de Direitos do Homem (artigo 6).
XIV. De facto, o Recorrente, como já se deixou alegado supra, viu-se impedido de exercer o seu direito de regresso contra o Animatógrafo em tempo útil, bem como o Animatógrafo viu-se impedido de fazer valer os seus direitos e apresentar a sua defesa na acção em crise.
XV. Tal violação de direitos fundamentais constitui uma evidente violação de princípios da ordem pública internacional do Estado Português, os quais deverão ser entendidos como sendo aqueles que "de tão decisivos que são, não podem ceder, nem sequer nas relações jurídico-privadas plurilocalizadas".
XVI. Dispõe ainda o artigo 35 n.° 1 do Regulamento 44/2001, que "as decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no artigo 72".
XVII. Sucede que, de acordo com o disposto no artigo 14 da Convenção de Bruxelas (artigo 16, n.° 2 do Regulamento 44/2001) " outra parte no contrato só pode intentar uma acção contra o consumidor perante os tribunais do Estado Contratante em cujo território estiver domiciliado", sendo que na relação contratual sub judice, o Recorrente é consumidor.
XVIII. Com efeito, o corpo do artigo 13 da Convenção de Bruxelas (artigo 15, n.° do Regulamento 44/2001) define como consumidor a pessoa que celebre um contrato para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional. O Recorrente, não sendo o devedor originário e principal, vem apenas servir de garante solidário ao cumprimento da obrigação assumida pelo Animatógrafo.
XIX.É evidente que, quer no âmbito das funções artísticas (produção e realização cinematográficas) que desenvolve quer no desempenho das funções administrativas (gerência da Animatógrafo), o Recorrente não tem por obrigação, nem faz parte do feixe dos seus deveres profissionais, assegurar ou garantir o cumprimento de obrigações contratuais assumidas por terceiros, motivo pelo qual perante o Recorrido o ora Recorrente surge como mero consumidor.
XX. Desta forma, os Tribunais Portugueses tinham competência internacional exclusiva para analisar e decidir a questão sub judice.
XXI. Por outro lado, ficou ainda assente na matéria de facto que (i) o Recorrente é cliente do Recorrido desde finais dos anos 60 e que (ii) em 1995, ano em que o Recorrente subscreveu a livrança, assumindo a responsabilidade solidária pelo crédito concedido ao Animatógrafo, o Recorrente encontrava-se numa situação financeira precária.
XXII. Foi ainda alegado, tendo o Recorrente conseguido fazer prova, de que à data da prática dos factos, o Banco, ora Recorrido, não podia ignorar quer a idade do Recorrente, quer os encargos extraordinários que este suportava (e suporta) atendendo à incapacidade total (100%) do seu filho.
XXIII. Resulta ainda da factualidade dada como assente que o Recorrido, conhecendo a situação económica do Recorrente, intimou-o a aceitar a subscrição de uma livrança, sob pena de cessar unilateralmente as relações que mantinha com o Recorrente e com as sociedades Animatógrafo e ACT, de quem este último era gerente. Como resultado da pressão exercida, o Recorrido logrou que o Recorrente subscrevesse uma livrança, assumindo-se devedor solidário pelo montante de 3.000.000 de francos, acrescido de juros à taxa base aplicada pelo Recorrido e majorados em 2,75%.
XXIV. Resulta do comportamento do Recorrido que o mesmo, não só explorou a situação financeira em que o Recorrente se encontrava, ultimando-o a aceitar garantir uma dívida de uma entidade terceira, sob pena de cessar as relações comerciais que as partes mantinham desde há quase 30 anos, como tal ultimato é evidentemente excessivo, atendendo à situação precária em que o Recorrente se encontrava (e encontra), sabendo ainda que se trata de uma pessoa singular, já com idade avançada e com um filho totalmente incapacitado ao seu cargo.
XXV. É evidente que a figura da usura, só por si, não constitui fundamento para revogar a declaração executória da sentença estrangeira. Não obstante, de acordo com os ensinamentos do Professor Baptista Machado, define-se como contrário à ordem pública internacional "a aplicação de lei estrangeira que contenha uma regulamentação (...) divergente da consagrada (...) na lex fori, quando estas disposições sejam inspiradas pelos interesses gerais da comunidade e sejam, por isso mesmo, rigorosamente imperativas. (...) será ainda necessário que as disposições da lex fori (...) sejam fundadas em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política."
XXVI. Desta forma, fundando-se a proibição de usura, pelo menos, em motivos ético-religiosos, constituindo o artigo 282 do Código Civil uma norma imperativa estatuída para protecção de interesses da comunidade, outra decisão não será aceitável, excepto a revogação da declaração de executoriedade da sentença estrangeira por violação da ordem pública internacional do Estado Português.
XXVII. A escolha dos Tribunais Franceses por parte da Recorrida foi fraudulenta. Com efeito, os Tribunais Portugueses eram competentes, por força do artigo 14 n.° 2 em conjugação com o corpo do artigo 13, ambos da Convenção de Bruxelas, para apreciar e decidir sobre a matéria em litígio, porquanto estamos no âmbito de uma relação contratual constituída entre uma entidade bancária e os seus clientes/ consumidores.
XXVIII. Se assim não se entender, o que por mera cautela se enuncia, deverá entender-se que a acção apenas poderia ter sido instaurada em Portugal, já que quer o Animatógrafo, quer o Recorrente tinham e têm domicílio em Lisboa, ao que acresce o facto de o lugar de cumprimento da obrigação não se situava em França.
XXIX. Nesta questão, entende o Professor Lima Pinheiro, citando MAYER E HEUZÉ, que "para que haja "fraude à sentença", não hasta que a acção tenha sido subtraída à competência dos tribunais locais; é necessário que tenha sido proposta em tribunais estrangeiros com o fim principal de se invocar a sentença na ordem jurídica local, porquanto não seria possível obter tal sentença nos tribunais locais. Perante as dificuldades de prova desta intenção, os autores afirmam que se a solução dada no estrangeiro é diferente daquela que teria sido dada pelo tribunal do Estado de reconhecimento e se o centro de gravidade do litígio está localizado no Estado de reconhecimento - se as partes vivem aí, ou se o réu tem os seus bens aí - a fraude é evidente.
XXX. Assim, a acção foi subtraída à competência dos tribunais portugueses. Por outro lado, se a Recorrida tivesse proposto a acção na jurisdição portuguesa, o Recorrente poderia ter exercido o seu direito de regresso na própria acção, sendo que o "centro de gravidade" do litígio se situa em Portugal, porquanto quer o devedor principal quer o garante têm domicílio em território nacional.
XXXI. Desta forma, se é certo que a fraude à sentença não vale por si só, por não se encontrar prevista nos artigo 34 e 35 do Regulamento 44/2001, não deixa de ser inequívoco que as regras de competência em matéria de contratos celebrados por consumidores visam a protecção destes últimos, enquanto partes mais frágeis na relação contratual.
XXXII. A violação das aludidas normas de protecção da parte com menor poder negocial na relação contratual deve entender-se como violação de princípios de ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que limitam de forma excessiva e desnecessária a posição do consumidor, pelo que a declaração de executoriedade deverá ser revogada nos termos do artigo 34° n.° 1 do Regulamento 44/2001.
XXXIII. Em suma, ao abrigo do disposto no artigo 45, n.° 1 do Regulamento 44/2001 ex vi artigo 35, n.° 1 em conjugação com os artigos 16, n.° 2 e 15, n.° 1, e ex vi artigo 34, n.° 1, todos do Regulamento 44/2001 (à data da entrada da acção, artigos 14, n.° 2 e corpo do artigo 13, ambos da Convenção de Bruxelas), a declaração de executoriedade da sentença estrangeira deverá ser revogada.

Foram assim violados, pela Sentença do Tribunal a quo, os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, bem como regras de competência territorial exclusiva que atribuem aos Tribunais Portugueses competência exclusiva para analisar e decidir sobre a questão sub judice.”.
Requer a revogação da declaração de executoriedade da sentença estrangeira”.

Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção do julgado.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil – são questões propostas à resolução deste Tribunal:
- se a declaração de executoriedade em causa é manifestamente contrária à ordem pública internacional do Estado Português.
- se foi desrespeitada a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses.
                                                     
Considerou-se assente, na sentença recorrida, sem impugnação a propósito, a factualidade seguinte:
“1) Por sentença do Tribunal de Comércio de Paris, proferida em 19 de Outubro de 2004, o Requerido C.... foi condenado a pagar à Requerente a quantia de € 425.400,17 (quatrocentos e vinte e cinco mil, quatrocentos euros e dezassete cêntimos) — capital e juros apurados em 30.06.2001 - , acrescida de juros vincendos até integral pagamento,
2) Bem como ao pagamento de 4.000€ (quatro mil euros) por força do artigo 700.° do Código de Processo Civil francês, e ao pagamento das custas do processo no valor de € 109,09 (cento e nove euros e nove cêntimos);
3) Valores que o Requerido o não pagou.
4) Em 21 de Outubro de 2004 o Tribunal emitiu o respectivo título executivo e o qual foi notificado à Ré em 21 de Abril de 2006.”.

Mais emergindo da documentação junta aos autos que:
- a acção em que proferida foi a sentença a que reporta o emitido título executivo foi proposta  pela aqui Recorrida em 06 de Agosto de 2001, conforme folhas 8.
- o Recorrente foi condenado nessa acção enquanto fiador da sociedade Animatógrafo..., Lda.

Vejamos.
II-1- Do manifestamente contrário à ordem pública internacional do Estado Português, da declaração de executoriedade em causa.
1. Não é questionada a aplicabilidade do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho – que substitui entre os Estados Membros da EU (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968, cfr. art.º 68º, n.º 1, do mesmo – no caso em apreço, pelo que respeita à matéria da confirmação e execução da decisão do Tribunal de Comércio de Paris.

Importará contudo recordar que o Regulamento “É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros”, como resulta do art.º 249º do Tratado C.E.
E, assim, em conformidade com o primado do direito da União, consagrado no art.º 6º do novo Tratado de Roma[1] – como também no art.º 1º-6 do Tratado para uma Constituição Europeia, in “16.12.2004 PT Jornal Oficial da União Europeia C 310/1” – nos termos definidos no art.º 8° da Constituição da República Portuguesa.
Sendo aliás que a aplicabilidade na ordem interna, das “disposições dos tratados que regem a União Europeia e (d)as normas emanadas das suas instituições” se mostra agora expressamente consagrada no n.º 4 do referido art.º 8º da Constituição da República Portuguesa, acrescentado pela Lei Constitucional n.º 1/2004.
Ora, nos termos do art.º 76º do citado Regulamento – que substitui entre os Estados-Membros, a Convenção de Bruxelas, vd. art.º 68º, n.º 1 – aquele entrou em vigor em 1 de Março de 2002.
Sendo que de acordo com o disposto no art.º 66º, n.º 1, do mesmo Diploma, “As disposições do presente regulamento só são aplicáveis às acções judiciais in tentadas e aos actos autênticos exarados posteriormente à entrada em vigor do presente regulamento.”.
Estabelecendo-se porém no n.º 2 do mesmo art.º que:
“Todavia, se as acções no Estado-Membro de origem tiverem sido intentadas antes da entrada em vigor do presente regulamento, as decisões proferidas após essa data são reconhecidas e executadas, em conformidade com o disposto no capítulo III:
a) Se as acções no Estado-Membro tiverem sido intentadas após a entrada em vigor das Convenções de Bruxelas ou de Lugano quer no Estado-Membro de origem quer no Estado-Membro requerido.
b)…”.

Tendo a acção em que proferida foi a sentença a que reporta a declaração de executoriedade sido proposta pela aqui Recorrida em 06 de Agosto de 2001, não oferece dúvidas a posterioridade de tal propositura relativamente à entrada em vigor de qualquer das sobreditas Convenções.
A primeira assinada em Bruxelas a 27 de Setembro de 1968, sendo a Convenção de Adesão de Portugal e Espanha a tal Convenção de Bruxelas aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 34/91, de 24 de Abril de 1991, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 52/91, de 30 de Outubro.
E a segunda celebrada em Lugano em 16 de Setembro de 1988, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º33/91, em 24 de Abril de 1991, e ratificada por Decreto do Presidente da República, n.º 51/91, de 30 de Outubro, in Diário da República, I Série A, n.º 250, de 30 de Outubro de 1991.
Sendo também linear que a decisão a que reporta a declaração de executoriedade assim impugnada, porque datada de 19 de Outubro de 2004, é posterior à entrada em vigor do mesmo Regulamento 44/2001.
De qualquer modo, como assinala António da Costa Neves Ribeiro,[2] em anotação ao referido art.º 66º, n.º 2, “Trata-se de uma disposição habitual, relativamente à aplicação das leis novas no tempo. A regra é a da não aplicação retroactiva (n.º 1). Todavia o regulamento pode aplicar-se retroactivamente (n.º 2), em relação a decisões emergentes de acções intentadas antes de 1 de Março de 2002 (art.º 66º), verificando-se as condições das alíneas a) ou b), ou seja, e numa formulação geral, em todas as situações em que tenham sido respeitadas as regras de competência judiciária directa, estabelecidas pelas convenções celebradas entre os Estados-Membros.”.
Assim a aplicabilidade do Regulamento dependerá de, in casu, haverem sido respeitadas as regras de competência directamente estabelecidas na precedente Convenção de Bruxelas – cuja inobservância seja determinante da recusa de reconhecimento – vigente aquando da propositura da acção respectiva.
Certo fixar-se a competência no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, “excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.”, cfr. art.º 22º da L.O.F.T.J.
Desde já se antecipando a resposta no sentido da não ocorrência de tal inobservância, sem prejuízo de adiante nos pronunciarmos sobre o que nessa sede alegado foi pelo Recorrente.
2. Podendo qualquer das partes interpor recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade, nos termos do art.º 43º, n.º 1, do Regulamento, “O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos artigos 43º ou 44º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos art.ºs 34º e 35º. Este tribunal decidirá sem demora.”.
Tendo-se assim, e designadamente, que a declaração de executoriedade será recusada ou revogada, em vista do disposto no citado art.º 34º, n.º 1, se aquela for manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido.
Tratando-se, mais precisamente, e como é pacífico, da “ordem pública internacional…”.[3]
Pretendendo o Recorrente que essa contraditoriedade ocorrerá, por um lado, na circunstância de se configurar um “violação grave e intolerável dos direitos de defesa e de acesso aos tribunais, os quais se encontram consagrados quer na Constituição da República Portuguesa (artigo 20º), quer na Convenção Europeia de Direitos do Homem (artigo 6).”.
E isto, assim, nos termos que supostamente sintetizaria nas suas conclusões III a XV.
Sendo, por outro lado, que aquela contradição também seria equacionável, enquanto a sentença estrangeira acobertaria uma situação de usura – caracterizada nas conclusões XXI a XXIV – por parte da Recorrida, cuja proibição se funda em motivos ético-religiosos, constituindo o art.º 282º do Código Civil uma norma imperativa estatuída para protecção de interesses da comunidade.
2.1. Como refere Luís de Lima Pinheiro,[4] apenas podendo “O reconhecimento, incluindo a declaração de executoriedade (…) ser recusado caso se verifique algum dos fundamentos que constam dos art.ºs 34 e 35º” do Regulamento, “Há, por assim dizer, uma presunção favorável ao reconhecimento.”.
E o Tribunal de Justiça das Comunidades (TCE)[5] tem entendido que o art.º 34º deve ser interpretado estritamente, porque “constitui um obstáculo à realização de um dos objectivos fundamentais da Convenção que visa facilitar, em toda a medida do possível, a livre circulação das decisões prevendo um processo de exequatur simples e rápido”.
Objectivo aquele de que expressamente se dá nota no considerando 6 do Regulamento: “Para alcançar o objectivo da livre circulação das decisões em matéria civil e comercial, é necessário e adequado que as regras relativas à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões sejam determinadas por um instrumento jurídico comunitário vinculativo e directamente aplicável.”.

Ferrer Correia,[6] ensina revestir a o. p. internacional a natureza de uma excepção, enquanto impede a aplicação a determinada relação da vida dos preceitos que no sistema jurídico definido pelo DIP do foro são chamados a reger as relações daquela categoria, e por isso que tal aplicação “daria em resultado o surgir de uma situação manifestamente intolerada pelas concepções ético-jurídicas reinantes na colectividade, ou lesiva dos interesses fundamentais do Estado.”
João Batista Machado,[7] assinalando que “a ordem pública é indefinível conceitualmente, como indefinível é o «estilo» ou a «alma» de uma ordem jurídica”, por isso não sendo unívoca a sua noção, “se bem que o seja a sua função”, apela no respeitante à fixação do “conteúdo da reserva ou excepção de ordem pública”, à determinação conceitual “das hipóteses em que tal excepção deve intervir”, a um critério misto completado.
De acordo com aquele “para que possa ou deva intervir a excepção de ordem pública internacional, será necessário que as disposições de direito privado da lex fori divergentes das da lei estrangeira normalmente aplicável sejam fundadas em razões de ordem económica, ética religiosa ou política.”
Advertindo no entanto aquele Autor, logo a seguir, que “Este critério, porém, não vale por uma definição: não tem senão um valor de aproximação e não pretende mais que fornecer uma orientação ao juiz. A este competirá, em face de cada caso concreto e socorrendo-se do seu senso jurídico, apurar se a aplicação da lei estrangeira considerada competente importaria na hipótese um resultado intolerável (traduzido, no plano psicológico, por uma reacção fortemente desaprovadora do seu espírito de jurista, formado no estudo do direito interno.), «quer do ponto de vista do comum sentimento ético-jurídico (‘bons costumes’), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema»”.
E “Será sempre preciso que esse direito estrangeiro comova ou abale os próprios fundamentos da ordem jurídica interna (…) que ele seja de molde a «chocar a consciência e provocar uma exclamação», para que se justifique um desvio da linha de justiça do DIP através da excepção de o. p.”.
Deste modo, “o conteúdo da lei estrangeira competente não é, em geral, só por si decisivo para fazer entrar em jogo a excepção do o. p.. Serão antes as circunstâncias ou os resultados da aplicação dessa lei ao caso concreto os factores decisivos do seu afastamento por uma razão de o. p….”.
2.2. Nessa sede de contraditoriedade da declaração de executoriedade com o. p. internacional do estado Português, e na vertente ora em análise, não colhem porém as considerações do Recorrente, vertidas para as conclusões III a XV.
Desde logo, nos termos do art.º 641º, n.º 1, do Código Civil, “O credor, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, pode demandá-lo ou juntamente com o devedor;”.
Como assinala Manuel Januário da Costa Gomes,[8] “após o vencimento da obrigação, conhecido do fiador, o credor tem livre escolha (libera electio, frei Wahl) entre devedor e fiador”, e “Se, vencida a obrigação principal, o credor procede contra o fiador, procede bem, uma vez que vencida se considera também a obrigação do fiador.”.
Uma vez demandado poderá o fiador, se assim o entender, e quando for o caso, invocar o benefício da excussão prévia, consagrado no art.º 638º, n.º 1, do Código Civil.
Sendo porém a existência do benefictum “a um tempo, alheia, exterior e posterior ao direito do credor poder exigir de um ou de outro a satisfação do crédito”.

Também nada permitindo afirmar, com apelo ao disposto no art.º 2º da Convenção de Bruxelas – efectivamente vigente aquando da propositura da acção no Tribunal de Comércio de Paris – que a acção deveria ter sido proposta perante os tribunais portugueses, “não se admitindo a competência internacional dos Tribunais Franceses (…) na medida em que nenhum dos devedores tinha ou tem domicílio em território francês”.
É certo que nos termos do referido normativo “Sem prejuízo do disposto na presente Convenção, as pessoas domiciliadas no território de um Estado Contratante devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.”.
Porém, na sentença naquela acção proferida o aqui Recorrente é referido como tendo “morada em .... Paris”, embora a residir “neste momento, na Rua ... Lisboa”.
E, como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-04-2008,[9] “II – (…) a decisão da 1.ª instância é proferida sem audiência prévia do requerido, sendo depois a este notificada (cfr. arts. 41.º e 42.º), havendo lugar ao contraditório apenas no recurso que da mesma seja interposto (art. 43.º, n.º 3). III - Daí que seja precisamente nas alegações do recurso interposto para a Relação (da decisão da 1.ª instância atinente ao pedido de declaração de executoriedade) que devem ser indicados os meios de prova para impugnação da matéria de facto.”.
Ora nenhum meio de prova foi indicado pelo Recorrente nas suas alegações de recurso.
Subsistindo assim o que nesta matéria consignado foi no acórdão do Tribunal Francês.
Relativamente ao qual o princípio a observar é o da “confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade”, cfr. considerandos 16 e 17 do Regulamento.
De resto, e como mais se dá nota naquele acórdão, o Tribunal de Comércio de Paris, por sentença, julgou carecida de fundamento a excepção de incompetência ali arguida pelo ora Recorrente.
Sendo julgada improcedente, pelo Tribunal da Relação de Paris, a reclamação apresentada pelo aqui Recorrente de tal sentença, vd. folhas 22.
E, nesta linha, resulta prejudicada a conclusão do Recorrente quanto a estar impedido de requerer a intervenção principal provocada do Animatógrafo, na acção que seguiu termos em França, por força do disposto no art.º 6º, n.º 2, 2ª parte, da Convenção de Bruxelas.
Com efeito dispõe aquele normativo:
“O requerido com domicílio no território de um Estado Contratante pode também ser demandado:
1….
2. Se se tratar de chamamento de um garante à acção ou de qualquer incidente de intervenção de terceiro, perante o tribunal onde foi instaurada a acção principal, salvo se esta tiver sido proposta apenas com o intuito de subtrair o terceiro à jurisdição do tribunal que seria competente nesse caso;”.
 Ora, para além do já referido no sentido da competência internacional dos Tribunais Franceses, nada do alegado pelo Recorrente quanto a uma tal preordenação da parte da Recorrida é matéria assente.
Nada se propôs sequer provar o Recorrente, no tocante ao “aproveitamento” da indicação na livrança da “morada de um imóvel em Paris”, nem quanto ao conhecimento, por parte da Recorrida, de que o Recorrente mantinha aberta, junto daquela, “uma conta para não residentes em França, ao que acresce o facto de o Recorrido ter sempre remetido toda a correspondência bancária para a residência do Recorrente em Lisboa”.
Assim, considerado o domicílio do Recorrente em Paris, aquando da propositura da acção respectiva, nada obstaria, nessa perspectiva, ao chamamento da devedora principal, a Animatógrafo.....
Diga-se, por fim, relativamente a este ponto – e conquanto assim apenas marginalmente – que à garantia do acesso aos tribunais, estabelecida no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, não interessa propriamente uma menor comodidade do Recorrente no que concerne à efectivação do seu eventual direito de regresso no confronto da Animatógrafo...., Lda.
Na verdade, e como refere Lebre de Freitas,[10] a acepção ampla do direito à jurisdição leva a ter por consagrado no citado normativo constitucional, “o princípio da equidade ou do direito a um processo equitativo”.
Postulando tal princípio, “por um lado, a igualdade das partes (princípio do contraditório e princípio da igualdade de armas) e, por outro, os direitos à comparência pessoal das partes em certos casos ou circunstâncias, à licitude da prova (…) e à fundamentação da decisão.”.
O princípio do contraditório é hoje entendido “como garantia da participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”. 
Desdobrando-se assim no plano da alegação, no plano da prova e no plano do direito, mostrando-se presente e bem explicitado, actualmente, no art. 3º n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Civil.
O princípio da igualdade das armas “impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses: não implicando uma identidade formal absoluta de todos os meios, que a diversidade das posições impossibilita…”.
Ora nada equacionou o recorrente, afectando tal princípio da igualdade das partes – com a compreensividade exposta – na acção que correu termos em França.
2.3. Nas conclusões XXI a XXVI ensaia o Recorrente a recondução da garantia por si prestada a uma situação de usura de banda da Recorrida.
Pretendendo extrair da fundamentação da proibição daquela – que sustenta corresponder a “motivos ético-religiosos” – a sua contraditoriedade relativamente à o. p. internacional do Estado Português.
Nos termos do, pelo Recorrente, citado art.º 282º, n.º 1, do Código Civil, “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.
Ora, desde logo, tudo quanto o Recorrente nessa sede alegou, designadamente no sentido de o Recorrente apresentar uma situação económica “precária”, e de o Recorrido dela ter conhecimento, “explorando” a situação financeira em que o Recorrente se encontrava, “pressionando intensivamente o Recorrente de forma a obter dele a subscrição de uma livrança em montante certamente superior àquele que um homem médio poderia suportar”, sendo a dita livrança “claramente desproporcionada aos bens e rendimentos do garante”, não ultrapassa as fronteiras da mera projecção, sem qualquer suporte probatório.
Pelo contrário, o que se considerou na sentença do Tribunal do Comércio de Paris foi que o Recorrente, que “constitui-se fiador através de documento particular”, não demonstrou que “a instituição bancária dispunha de informações relativas aos seus rendimentos, ao seu património ou à operação financiada”, nem, por outro lado, fez prova “de que ele próprio ignorava essas informações.”.
Sendo que “os documentos produzidos”, pelo ora Recorrente, “demonstram que os seus rendimentos em Portugal para o ano de 1995 ascendem a 37.848,79 euros e não a 16.891,79 euros”. 
E que o ora Recorrente “não demonstra que a sua situação actual o impede de honrar os seus compromissos.”.
Logo assim se alcançando o igualmente improcedente do nesta parte concluído pelo Recorrente.
Apenas mais se assinalando, por um lado, que – como referido já supra, em 2.1. – na lição de Batista Machado – que o Recorrente cita para apelar aos fundamentos ético-religiosos da proibição de usura, determinantes da exclusão da aplicação da lei estrangeira normalmente competente – “Este critério, porém, não vale por uma definição: não tem senão um valor de aproximação e não pretende mais que fornecer uma orientação ao juiz. A este competirá, em face de cada caso concreto e socorrendo-se do seu senso jurídico, apurar se a aplicação da lei estrangeira considerada competente importaria na hipótese um resultado intolerável (traduzido, no plano psicológico, por uma reacção fortemente desaprovadora do seu espírito de jurista, formado no estudo do direito interno.)”.
Ora quando a própria lex fori apenas comina a mera anulabilidade para o negócio usurário, mal se vê como poderia a declaração de executoriedade reportada a obrigação emergente de tal negócio, ainda que fundada a proibição daquele em motivos religiosos, redundar na tal comoção ou abalo dos próprios fundamentos da ordem jurídica interna.
Como ensina Menezes Cordeiro,[11] os dois grandes fundamentos para a nulidade são a falta de algum elemento essencial do negócio como, por exemplo, a vontade ou o objecto ou a “contraditoriedade à lei imperativa ou, mais latamente, ao Direito.”.
Já “a anulabilidade não traduz uma falha estrutural do negócio. Ela apenas nos diz que o interesse de uma determinada pessoa não foi suficientemente atendido, aquando da celebração do negócio.”.
Por outro lado, para que a desproporcionalidade usurária se verifique torna-se necessário, nas palavras de Luís A. Carvalho Fernandes,[12] “que entre a prestação do lesado e a contraprestação do beneficiário da declaração haja desproporção excessiva, não justificada pelas circunstâncias particulares do negócio.”.
Desinteressando assim a pretensa desproporção entre a garantia prestada e os “bens ou rendimentos do garante”.
II-2- Da pretendida violação das regras de “competência territorial exclusiva”.
1. De acordo com o art.º 35º, n.º 1, do Regulamento, “As decisões não serão igualmente reconhecidas se tiver sido desrespeitado o disposto nas secções 3, 4 e 6 do capítulo II ou no caso previsto no art.º 72º.
Tratando-se na Secção 4 – art.ºs 15º a 17º - da “Competência em matéria de contratos celebrados por consumidores”.
Dispondo-se no art.º 15º:
“1. Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional, a seguir denominada "o consumidor", a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.o e no ponto 5 do artigo 5.o:
a) Quando se trate de venda, a prestações, de bens móveis corpóreos; ou
b) Quando se trate de empréstimo a prestações ou de outra operação de crédito relacionados com o financiamento da venda de tais bens; ou
c) Em todos os outros casos, quando o contrato tenha sido concluído com uma pessoa que tem actividade comercial ou profissional no Estado-Membro do domicílio do consumidor ou dirige essa actividade, por quaisquer meios, a esse Estado-Membro ou a vários Estados incluindo esse Estado-Membro, e o dito contrato seja abrangido por essa actividade.
2. O co-contratante do consumidor que, não tendo domicílio no território de um Estado-Membro, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado-Membro será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração daqueles, como tendo domicílio no território desse Estado.
3. O disposto na presente secção não se aplica ao contrato de transporte, com excepção do contrato de fornecimento de uma combinação de viagem e alojamento por um preço global.”.
2. Desde que, porém, se trata da aplicação do Regulamento (CE) n.º 44/2001, a acção intentada no domínio de vigência da Convenção de Bruxelas, temos, na sequência do que se deixou dito supra, que importará definir a competência internacional, no caso em apreço, em vista do disposto nas secções 3, 4 e 5 do Título II, da referida Convenção (mas cfr. o lugar paralelo, na Convenção, do sobredito art.º 35º, a saber, o art.º 28º), assim fonte de normas de direito uniforme, que afastam a aplicação das normas internas sobre competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros (cfr. art.ºs 7º, n.º 2, 65º e 65º-A, do Código de Processo Civil). 
Estabelecendo-se, no art.º 13º (secção 3) daquela:
 “1. Em matéria de contrato celebrado por uma pessoa para finalidade que possa ser considerada estranha à sua actividade comercial ou profissional, a seguir denominada «o consumidor», a competência será determinada pela presente secção, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º e no ponto 5 do artigo 5.º:
a) Quando se trate de empréstimo a prestações, de bens móveis corpóreos;
b) Quando se trate de empréstimo a prestações ou de outra operação de crédito relacionados com o financiamento da venda de tais bens;
c) Relativamente a qualquer outro contrato que tenha por objecto a prestação de serviços ou o fornecimento de bens móveis corpóreos se:
a) A celebração do contrato tiver sido precedida no Estado do domicílio do consumidor de uma proposta que lhe tenha sido especialmente dirigida ou de anúncio publicitário; e
b) o consumidor tiver praticado nesse Estado os actos necessários para a celebração do contrato.
O co-contratante do consumidor que, não tendo domicílio no território de um Estado Contratante, possua sucursal, agência ou qualquer outro estabelecimento num Estado Contratante será considerado, quanto aos litígios relativos à exploração daqueles, como tendo domicílio no território desse Estado.
O disposto na presente secção não se aplica ao contrato de transporte.”.
E, no art.º 14ª:
“O consumidor pode intentar uma acção contra a outra parte no contrato, quer perante os tribunais do Estado Contratante em cujo território estiver domiciliada essa parte, quer perante os tribunais do Estado Contratante em cujo território estiver domiciliado o consumidor.
A outra parte no contrato só pode intentar uma acção contra o consumidor perante os tribunais do Estado Contratante em cujo território estiver domiciliado o consumidor.
Estas disposições não prejudicam o direito de formular um pedido reconvencional perante o tribunal em que tiver sido instaurada a acção principal, nos termos da presente secção.”.
3. Sustentando o Recorrente, e como visto já, que enquanto garante da obrigação assumida pelo Animatógrafo..., Lda., surge como mero consumidor…posto o que deveria ter sido demandado no Tribunal do seu domicílio.
Simplesmente, recorda-se, o aqui Recorrente é referido na sentença do Tribunal de Comércio de Paris – sem que tal haja sido perturbado por quaisquer elementos de prova de sinal adverso – como tendo “morada em .... Paris”, embora a residir “neste momento, na Rua ... Lisboa”.
Acresce, o que, na circunstância, mais uma vez apenas marginalmente se assinala, que nem se aceitaria surgir o Recorrente, enquanto garante do cumprimento das obrigações assumidas pelo Animatógrafo..., como “mero consumidor”.
Provado está, na sobredita sentença, que a instituição de crédito recorrida “autorizou a abertura de um crédito em conta corrente em nome da sociedade Animatógrafo...” (Lda.).
E que o “dirigente dessa sociedade, o Senhor C... constitui-se fiador através de documento particular com data de 14 de Agosto de 1995, para um valor limitado a 3 milhões de francos franceses, com juros à taxa de base do B.... acrescidos de 2,75% para comissões e diversos.”.
O contrato de abertura de crédito caracteriza-se como sendo aquele “pelo qual um banco se vincula a ter à disposição da outra parte uma quantia de dinheiro por certo período de tempo ou por tempo indeterminado, obrigando-se esta ao reembolso das importâncias levantadas e pagamento de juros acordados na data do vencimento.”.[13]
Tratando-se de um contrato consensual, por oposição a contrato real quoad constitutionem.
Podendo ser simples ou em conta-corrente.
No primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser usado uma vez; no segundo, o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta-corrente com o banqueiro.
A abertura de crédito diz-se ainda garantida, quando seja acompanhada duma garantia, pessoal ou real, e a descoberto, na hipótese inversa.
Como mais refere António Menezes Cordeiro,[14] “A garantia – caso tenha sido acordada – é, muitas vezes, de ordem pessoal; na prática bancária portuguesa em que as aberturas de crédito operam a favor de sociedades, recorre-se a livranças subscritas pela própria sociedade e avalizadas pelos seus sócios mais significativos, Fala-se então, na gíria bancária, em conta-corrente caucionada.”.
Ninguém pretenderá que a Animatógrafo...., Lda., celebrou o aludido contrato de abertura de crédito em conta-corrente com a aqui Recorrida para finalidade estranha à sua actividade comercial ou profissional.
Nem o alegado pelo Recorrente vai num tal sentido.
Trata-se a Animatógrafo... de uma sociedade comercial por quotas, tendo por objecto a prática de actos de comércio – vd. art.º 1º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais – e devendo considerar-se actos de comércio todos os contratos e obrigações daquela, que não forem de natureza exclusivamente civil – como assim é o caso – se o contrário do próprio acto não resultar – o que não ocorre, cfr. art.º 2º do Código Comercial.
Mas também a garantia pessoal prestada pelo “dirigente” de uma sociedade por quotas – na terminologia nacional, o gerente daquela, cfr. art.º 252º, do Código das Sociedades Comerciais – ao cumprimento das obrigações emergentes de acto de comércio da sociedade por si administrada e representada, não sendo para finalidade estranha à actividade comercial daquela, tão pouco deverá ser considerada, na ausência de outros elementos, como havendo sido prestada para finalidade que possa ser considerada estranha à actividade profissional do gerente.
Sendo certo que nas atribuições de administração e representação da sociedade comercial por quotas não se inclui a prestação de garantias pessoais pelo gerente daquela, ponto também é, como se nos afigura meridiano, que a prestação dessa garantia teve lugar por parte do Recorrente, que não de outra qualquer pessoa, precisamente em função dessa qualidade daquele garante e tendo em vista a concessão de crédito à sociedade pelo mesmo administrada e representada.
Em qualquer caso a demonstração da “estranheza” da finalidade da prestação de garantia, pelo Recorrente, relativamente à actividade profissional deste – e atenta a natureza de excepção da incompetência do Tribunal Francês –sempre seria ónus, dest’arte não actuado, do mesmo Recorrente, cfr. art.º 342º, n.º 2, do Código Civil.
4. Naturalmente, o que se vem de expender, seja no sentido da não contraditoriedade à o. p. internacional Portuguesa, seja no da não verificação da previsão do art.º 13º da Convenção de Bruxelas, em matéria de contratos celebrados pelos consumidores, prejudica o enquadramento que de uma tal situação pretendeu a Recorrente fazer, numa estratégia “cruzada”, sob a epígrafe “Da fraude à sentença”, em sede de “violação de princípios de ordem pública internacional do Estado Português”, cfr. conclusões XXVII a XXXI, e n.ºs 46 a 54 do corpo das alegações.
*
Improcedem assim totalmente as conclusões do Recorrente.
*
Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 713º, do Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, como segue:
I- O conteúdo da lei estrangeira competente não é, em geral, só por si decisivo para fazer entrar em jogo a excepção do ordem pública internacional. II- Serão antes as circunstâncias ou os resultados da aplicação dessa lei ao caso concreto os factores decisivos do seu afastamento por uma razão de o. p. III- A garantia pessoal prestada pelo gerente de uma sociedade por quotas ao cumprimento das obrigações emergentes de acto de comércio da sociedade por si administrada e representada, não sendo para finalidade estranha à actividade comercial daquela, tão pouco deverá ser considerada, na ausência de outros elementos, como havendo sido prestada para finalidade que possa ser considerada estranha à actividade profissional do gerente. III- Em qualquer caso a demonstração da “estranheza” da finalidade da prestação de garantia, pelo Recorrente  relativamente à actividade profissional deste, para efeitos do disposto no art.º 15º do Regulamento (CE) 44/2001, como no art.º 13º da precedente Convenção de Bruxelas – e atenta a natureza de excepção da incompetência do Tribunal de origem – sempre será ónus do mesmo Recorrente.
III- Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente, cfr. art.º 446º, n.ºs 1 e2, do Código de Processo Civil.
Lisboa, 2009-09-17
(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)
(Neto Neves)

[1] Cfr. a propósito Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, Coimbra Editora 2005. págs. 93-94.
[2] In “Processo Civil da União Europeia”, Coimbra Editora, págs. 141, 142, sendo nosso o sublinhado.
[3] Vd. a propósito Luís de Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado”, Vol. III, Almedina, 2002, págs. 293 e 296. E, em geral, com referência ao art.º 22º, n.º 1, do Código Civil, João Batista Machado, in “Lições de Direito Internacional Privado”, Atlântida Editora, SARL, Coimbra, 1974, págs. 253 e seguintes.
[4] In op. cit., pág. 292.
[5] Cfr. TCE 2/6/1994, no caso Solo Kleinmotoren [Colectânea de Jurisprudência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de primeira Instância das Comunidades Europeias (CTCE), 1994, I-02237], n.º 20, confirmado por TCE 28/3/2000, no caso Krombach [CTCE (2000) I-01935], n.º 21, e 11/5/2000, no caso Renault [CTCE (2000) I-02973], n.º 26.
[6] In “Lições de Direito Internacional Privado”, Universidade de Coimbra, 1973, págs. 559-560.
[7] In op. cit., págs. 259-265.
[8] In “Estudos de Direitos das Garantias”, Vol. I, Almedina, 2004, págs. 29-30.
[9] Proc. 08A568, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[10] In “Introdução ao Processo Civil”, Coimbra Editora, 1996, págs. 95 e seguintes.
[11] In “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 1999, Almedina, págs. 569-570.
[12] In “Teoria Geral do Direito Civil”, II, 3ª Ed., UCP, 2001, pág. 194.
[13] Assim, João Calvão da Silva, in “Direito Bancário”, Almedina, 2001, pág. 365.
[14] In “Manual de Direito Bancário”, 2ª ed., 2001, Almedina, págs. 583-587.