Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12473/24.1T8LSB.L1-6
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
INSTRUMENTALIDADE
INVENTÁRIO
ÓBITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: RESOLVIDO
Sumário: 1) A instrumentalidade ou dependência entre o procedimento cautelar e a ação principal de que dependa, deve ser aferida em função do que consta efectivamente de ambos os processos e não em função do que eventualmente deles poderia ou poderá vir a constar.
2) A imposição da determinação, a título cautelar, à requerida da cessação imediata do abate de pinheiros (ainda que em bem da herança) não se enquadra em qualquer das funções do processo de inventário por óbito – fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens da herança e relacionar e, eventualmente, liquidar, bens objeto da sucessão – mas a garantir que a requerida adote quanto a tais bens uma determina conduta, não se inserindo nas finalidades e funções do processo hereditário, tal como o mesmo, presentemente, se apresenta.
3) A potencialidade de o requerente poder desencadear incidente de remoção da cabeça-de-casal ou outras pretensões não viabiliza a determinação, em concreto, de algum nexo de dependência da providência cautelar requerida com o processo de inventário tal como este se apresenta.
4) Neste sentido, a determinação da adequação da conduta da requerida, a aferir em sede da providência cautelar requerida, não se insere no âmbito de qualquer incidente relacionado com a boa ou má administração do património hereditário, que, de facto, não foi deduzido, não se tendo cabimento como incidente do inventário pendente, nem dele se mostrando dependente, razão pela qual a providência requerida não tinha que lhe ser apensada.
5) Relativamente à pretensão de determinação da requerida informar o requerente sobre o valor obtido com a venda de bens da herança, para, de seguida, proceder à distribuição dos rendimentos, de harmonia com o disposto no art. 2092.º do Cód. Civil, também não afere que tal pretensão se mostre incidental do objeto do inventário deduzido, pois, de facto, nele (ou melhor, a tramitar por apenso ao mesmo, nos termos do artigo 947.º do CPC) não foi deduzida alguma pretensão do requerente no sentido da prestação de contas por banda da requerida.
6) Tais circunstâncias determinam que não se verifique relação de dependência entre o procedimento cautelar deduzido e o processo de inventário instaurado, sendo o direito que o requerente pretende ver acautelado pelo primeiro, estranho ao objeto e âmbito de discussão do processo de inventário, não podendo obter nele tutela definitiva.
7) Não se verificando uma relação de instrumentalidade e dependência entre a presente providência cautelar e o processo de inventário onde são interessados o requerente e a requerida da primeira, não deverá aquela, ser apensada a este último, não sendo caso de consideração do disposto no artigo 364.º, n.º 3, do CPC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I.
1) Em 01-04-2024, o requerente “A” veio requerer, por apenso ao processo de inventário n.º (…)49/22.5T8LSB, pendente no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X”, procedimento cautelar comum contra a requerida “B”, pedindo fossem decretadas as seguintes providências cautelares:
“i. Impor à Requerida a cessação imediata do abate de pinheiros na Herdade (…);
ii. Determinar à Requerida que informe o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos mesmos, de harmonia com o disposto no art.º 2092.º do Código Civil”, tendo indicado para a causa o valor de € 30.000,01;
2) Em 04-04-2024, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X” proferiu despacho onde se lê, nomeadamente, o seguinte:
“(…) Ora, nos termos do artigo 364º, n.º 1 do CPC, os procedimentos cautelares são dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
No caso, afigura-se que a acção principal a intentar terá como objectivo a anulação da aludida venda. Tal questão, contudo, não poderá ser apreciada em sede de inventário, nem sequer a título incidental, cabendo intentar a competente acção comum.
Assim, antes de mais, não se verificando a necessária competência por conexão com o processo de inventário, deverá o requerente pronunciar-se quanto à incompetência deste Juízo Cível para a apreciação do procedimento cautelar intentado.
Por outro lado, nos termos do artigo 304º, nº.3, al. d) do CPC, o valor do procedimento cautelar não especificado é fixado com base no valor do prejuízo que se quer evitar.
No caso, o valor do prejuízo corresponderá à diferença do valor da venda dos pinheiros a que o requerente pretende obstar considerando a proposta mais vantajosa que obteve.
Nestes termos, deverá ainda o requerente, pronunciar-se quanto ao valor atribuído à causa, bem como clarificar qual o prejuízo resultante da venda celebrada pela requerida.
Em face do exposto, notifique o requerente para, no prazo de 10 dias:
- pronunciar-se quanto à incompetência deste Juízo Cível para a apreciação do procedimento cautelar intentado;
- pronunciar-se quanto ao valor atribuído à causa, bem como clarificar qual o prejuízo resultante da venda celebrada pela requerida (…)”.
3) Por requerimento de 09-04-2024, o requerente veio pronunciar-se, dizendo, em suma, que:
- Pretendeu, com a instauração do procedimento cautelar, requerer providências que visam impor o respeito pelas regras legais aplicáveis à administração do património hereditário, visando impedir que a Requerida proceda a seu bel-prazer à prática de atos de disposição ao arrepio do disposto no art.º 2091.º, n.º 1, do Código Civil, bem como assegurar o respeito pela faculdade dos herdeiros de exigirem distribuições de rendimentos nos termos do art.º 2092.º do Código Civil;
- Uma vez derrubados todos os pinheiros, não há como anular esse contrato;
- A presente Providência, trata-se, sim, de impedir que a cabeça-de-casal execute um acto que lhe é proibido, pois que se trata de um acto de disposição;
- A cabeça de casal não pode praticar actos de disposição e, no entender do Requerente, a acção principal é o processo de inventário, assentando o procedimento cautelar em factos que constituem fundamento de remoção da Requerida das funções de cabeça de casal, nos termos do art.º 2086.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, constituindo, aliás, um preliminar da remoção do cabeça de casal, o qual se trata de um incidente do processo de inventário, nos termos do art.º 1103.º, n.º 2, do Código Civil;
- E, no tocante à distribuição de resultados, cumpre, pois, notar que, do mesmo modo que a prestação de contas por parte do cabeça de casal é dependência do inventário, nos termos do art.º 947.º do Código de Processo Civil, pela mesma ordem de razões bem se compreende que uma providência cautelar que tenha por objeto a imposição da distribuição de resultados prevista no art.º 2092.º do Código Civil constitui indubitavelmente dependência do processo de inventário;
- O procedimento cautelar ora instaurado tem por fundamento direitos cujo exercício é feito no quadro do processo de inventário;
- Relativamente ao valor da causa, o procedimento cautelar pretende prevenir danos que assumem, desde logo, uma natureza imaterial, antes se ligando ao imperativo de garantir o respeito pelos limites negativos aos poderes do cabeça de casal e uma vez que se desconhece o valor do negócio ora posto em crise, pois a Cabeça de Casal não se digna a informar o ora Requerente da quantidade de Pinheiros que foram/estão/serão abatidos, não tem como o Requerente apurar o valor concreto do seu prejuízo.
4) Por despacho de 23-04-2024, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X” veio declarar-se incompetente para tramitar a causa, remetendo-a à distribuição pelos Juízos Locais Cíveis, constando, nomeadamente, da referida decisão o seguinte:
“O requerente intentou o presente procedimento cautelar comum, por apenso ao processo de inventário, requerendo a final:
i) Que a requerida cesse de imediato o abate de pinheiros na Herdade (…);
ii) Que a requerida informe o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos mesmos, de harmonia com o disposto no art.º 2092.º do Código Civil.
Alega que a requerida, no exercício de funções de cabeça de casal, procedeu à venda de madeira de pinheiros que pertencem à herança, acto que não integra a administração ordinária da herança, pelo que não poderia ter sido praticado pela própria sem autorização.
Invoca ainda que a requerida não prestou contas da venda de bens da herança, nem distribuiu resultados.
Cumpre, antes de mais, apreciar da competência deste Juízo Local Cível para a presente acção.
Nos termos do artigo 364º, n.º 1 do CPC, os procedimentos cautelares são dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
No caso, afigurando-se que a acção principal a intentar teria como objectivo a anulação da aludida venda, o Tribunal notificou o requerente para se pronunciar.
O mesmo invocou que não pretende intentar qualquer acção para suspensão da venda mas antes sindicar a actuação da cabeça de casal nos termos e para os efeitos previstos no artigo 20891º e 2092º do CC.
Vejamos.
O processo de inventário visa, nos termos do artigo 1082º do CPC:
a) Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens;
b) Relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança;
c) Partilhar bens em consequência da justificação da ausência;
d) Partilhar bens comuns do casal.
Tratando-se de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, o mesmo comporta uma fase inicial (artigos 1097.º a 1103.º); uma fase de oposição e verificação do passivo (artigos 1104.º a 1108.º); a fase de Audiência prévia de interessados (artigo 1109.º); a fase de saneamento do processo e conferência de interessados (artigos 1110.º a 1117.º); um fase referente a eventual incidente de inoficiosidade e a fase destinada à elaboração do mapa de partilha e sentença homologatória.
Neste sentido, as questões inerentes à administração da herança (com excepção da substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal) não têm cabimento na tramitação do processo de inventário, podendo antes ser apreciadas no âmbito da acção de prestação de contas, ou de eventual acção em que alguma actuação concreta seja visada.
No caso, ainda que a factualidade invocada possa, em abstracto, ser fundamento de incidente de remoção da cabeça de casal, os pedidos concretamente efectuados - que a requerida cesse de imediato o abate de pinheiros na Herdade (…) e que proceda à distribuição dos rendimentos obtidos, de harmonia com o disposto no art.º 2092.º do Código Civil – não surgem como preliminares ao pedido de tal incidente, nem pretendem acautelar provisoriamente uma decisão definitiva a tomar em tal incidente.
Em face do exposto, entende-se que o presente procedimento cautelar não tem cabimento na dependência do processo de inventário, não se verificando a necessária competência por conexão.
Assim sendo, este Tribunal é incompetente para conhecer deste procedimento cautelar, sendo essa incompetência de conhecimento oficioso, devendo os autos ser remetidos à distribuição pelos Juízos Locais Cíveis, uma vez que não é possível por ora atribuir valor à acção diferente do indicado pelo requerernte (…)”.
5) Em 16-05-2024, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “Y”, a quem os autos foram distribuídos, declarou-se materialmente incompetente para tramitar e julgar a causa, em suma, com os seguintes termos:
“(…) Da incompetência material absoluta
O Requerente “A” veio intentar procedimento cautelar não especificado por apenso ao processo especial de inventário, com o n.º (…)49/22.5T8LSB, a correr termos no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X” do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, alegando, em síntese, que a Requerida “B”, na qualidade de Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de “C” procedeu ao abate dos pinheiros da Herdade (…), a qual pertence ao acervo hereditário e, posteriormente, à venda da madeira resultante de tal abate, sem o seu consentimento (e com a sua oposição) e, cumulativamente, não procedeu ao depósito dos montantes pecuniários entregues por conta do sinal, nas contas bancárias tituladas pela herança. Mais alega que a venda da madeira consubstancia um ato de disposição que não se encontra compreendido no âmbito dos poderes de administração ordinária da Cabeça de Casal, e, por essa mesma razão, não poderia ter sido celebrado qualquer contrato de compra e venda da madeira, sem o consentimento do Requerente, na qualidade de herdeiro. Refere ainda que a Cabeça de Casal não o informa das vendas que têm por objeto a madeira, que integra o acervo hereditário, nem tão pouco distribui os rendimentos entre os herdeiros, em resultado da administração da herança e, simultaneamente, que se encontra em curso o abate de diversos pinheiros da referida Herdade e que caso tal abate se perpetue será impossível proceder-se à venda da madeira, pelo melhor preço de mercado, o que prejudicará os interesses patrimoniais da herança.
Termina, requerendo que sejam decretadas as seguintes providências cautelares:
«Impor à Requerida a cessação imediata do abate de pinheiros na Herdade (…)»;
«Determinar à Requerida que informe o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos mesmos, de harmonia com o disposto no art. 2092.º do Código Civil».
Por sentença datada de 23-04-2024, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X” do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa emitiu juízo jurisdicional de incompetência, para tanto afastando a aplicação do critério previsto no art. 364.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, relativo à competência por conexão, por considerar que «(…) as questões inerentes à administração da herança (com excepção da substituição, escusa e a remoção do cabeça de casal) não têm cabimento na tramitação do processo de inventário, podendo antes ser apreciadas no âmbito da acção da prestação de contas ou de eventual acção em que alguma actuação concreta seja visada. No caso, ainda que a factualidade invocada possa, em abstracto, ser fundamento de incidente de remoção da cabeça de casal, os pedidos concretamente efectuados – que a requerida cesse de imediato o abate de pinheiros na Herdade (…) e que proceda à distribuição de rendimentos obtidos, de harmonia com o disposto no artigo 2092.º do Código Civil – não surgem como preliminares ao pedido de tal incidente, nem pretendem acautelar provisoriamente uma decisão definitiva a tomar em tal incidente.»
Nesta sequência, foi declarada a incompetência daquele Tribunal para conhecer o presente procedimento cautelar e foi ordenada a sua distribuição pelos Juízos Locais Cíveis.
Importa, assim, tomar posição quanto à competência material deste Juízo, questão de conhecimento oficioso, para a tramitação e julgamento do presente procedimento cautelar – veja-se, a este propósito, a recente decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 09-04-2024, no âmbito do processo n.º 8058/23.8T8LRS.L1-7, relatada por Carlos Castelo Branco, acessível in www.dgsi.pt, a qual se reconduz a conflito negativo de competências sobre a tramitação de procedimento cautelar assente em decisões contraditórias de “remessa” do processo com base no art. 364.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.
Apreciando.
Como é consabido, os procedimentos cautelares são instrumentais e dependentes de uma causa principal, no âmbito da qual se aprecie o direito do Requerente.
Deste modo, a competência material para a tramitação e julgamento do procedimento cautelar é aferida de acordo com a competência para a causa principal (cfr. art. 364.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).
Prescreve o n.º 2 do art. 364.º, daquele diploma legal, que caso o procedimento cautelar seja requerido preliminarmente à ação principal, o mesmo deverá ser apensado àquela, logo que instaurada. Por seu turno, impõe o art. 364.º, n.º 3, do mesmo diploma, que caso o procedimento cautelar seja requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso.
No caso ora em apreço, a questão da competência material para a tramitação e julgamento do presente procedimento cautelar relaciona-se em aquilatar se, atento o concreto conteúdo dos direitos acautelados pelas medidas requeridas, a sua apreciação encontra-se dependente de questão a ser apreciada no âmbito do processo especial de inventário ou, pelo contrário, se se encontra dependente de ação comum a instaurar.
Ora, salvo o devido respeito pelo entendimento já plasmado nos autos, que é muito, afigura-se-nos que o Requerente bem havia intentado o presente procedimento cautelar por apenso ao processo especial de inventário, no âmbito do qual se procede à partilha da herança aberta por óbito de “C”, a qual é composta, entre outros bens, pela Herdade (…) e, no âmbito do qual, a Requerida foi nomeada Cabeça de Casal.
Vejamos:
Relativamente à medida cautelar inerente à condenação da Requerida a informar o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos rendimentos, de harmonia com o disposto no art. 2092.º do Cód. Civil, cremos que tal pedido, s.m.o, depende da propositura da ação especial de prestação de contas, por via da qual, a Requerida seja instada a prestar contas relativas à administração da herança, na qualidade de Cabeça de Casal.
De facto, o processo especial de prestação de contas consiste justamente na ação adequada a garantir o cumprimento judicial da obrigação de prestação de contas, obrigação essa que, como é sabido, mais não é do que uma emanação da obrigação de informação que incumbe ao Cabeça de Casal. Tendo em mente que o Requerente pretende, efetivamente, que seja decretada, a título cautelar, que a Requerida preste informação sobre os concretos valores recebidos, por conta de negócios que tenham por objeto bens que pertençam ao acervo hereditário, dúvidas não há, em nossa perspetiva, que tal medida cautelar é instrumental da ação especial de prestação de contas, que venha a ser instaurada, com o objetivo de ser declarada a obrigação da Requerida prestar contas sobre a sua administração, enquanto Cabeça de Casal. Identicamente, a providência cautelar relativa à condenação da Requerida a distribuir pelos herdeiros até metade dos rendimentos que lhe caibam, depende da ação especial de prestação de contas que verse sobre as despesas e receitas efetuadas durante o período em que a Requerida exerceu o cabeçalato, sendo inequívoco que o incidente do art. 2092.º do Cód. Civil, a que alude o Requerente ao longo do requerimento inicial, é um incidente a ser tramitado no âmbito da referida ação especial de prestação de contas.
Aqui chegados, cumpre sublinhar que, de acordo com o critério de conexão previsto no art. 947.º do Cód. Proc. Civil, a ação especial de prestação de contas que venha a ser instaurada pelo Requerente contra a Requerida, na qualidade de Cabeça de Casal, correrá por apenso ao processo especial de inventário que corre termos sob o n.º (…)49/22.5T8LSB, termos em que forçosamente se conclui que as medidas cautelares requeridas no ponto ii) do requerimento inicial deverão ser apreciadas, por apenso ao referido processo de inventário, porque será este o competente para tramitar e julgar a ação (principal) de prestação de contas, ação essa de que as concretas providências requeridas no ponto ii) dependem atenta a relação de instrumentalidade existente entre ambas.
Por outro lado, a medida cautelar atinente ao decretamento da imposição à Requerida para que se abstenha de abater os pinheiros existentes na Herdade do Carvalho, bens que integram o acervo hereditário, não depende, na nossa perspetiva, da propositura de qualquer ação comum. Com efeito, a referida providência visa acautelar o direito do Requerente, na qualidade de herdeiro e, em consequência disso, enquanto proprietário em mão comum, de um bem (pinheiros) que pertence a um património coletivo (acervo hereditário). Nesta medida, e tal como esclarecido pelo Requerente, o decretamento de tal medida cautelar não depende da propositura de qualquer ação comum, que vise a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre a Cabeça de Casal e um terceiro, que tenha por objeto a madeira proveniente do abate dos pinheiros. Aliás, segundo a alegação contida no requerimento inicial, o Requerente pretende que a Cabeça de Casal se abstenha de abater os pinheiros da Herdade (…), pois considera que tal ato não se encontra compreendido nos poderes de administração ordinária de que dispõe, atento o exercício do cargo para o qual foi nomeada no âmbito do referido processo especial de inventário. Ou seja: extrai-se da alegação do Requerente que este pretende efetivamente, através do decretamento da medida cautelar ínsita no ponto i) do seu petitório, a tutela do seu direito, enquanto herdeiro, contra um outro herdeiro/Cabeça de Casal (e não contra terceiro) e, por via, disso a defesa da património hereditário, o qual, se encontra colocado em crise pela forma como a Requerida administra a herança, extravasando os poderes de administração ordinária previstos no art. 2087.º do Cód. Civil. E é precisamente essa atuação que consubstancia, no seu entender, uma administração imprudente e pouco zelosa por parte da Cabeça de Casal.
Desta forma, não pretendendo o Requerente, tal como decorre da alegação do seu requerimento inicial e dos esclarecimentos prestados no requerimento com a referência eletrónica (…)40, a anulação de quaisquer contratos de compra e venda que a Cabeça de Casal venha a celebrar com terceiro, tendo em vista a alienação da madeira, nem tão pouco, por ora, o ressarcimento dos prejuízos por si sofridos em decorrência do exercício das funções de Cabeça de Casal, não se vislumbra, salvo melhor opinião, qual a ação comum que deverá ser instaurada, e de que dependa a providência cautelar requerida. Bem pelo contrário. Resulta, em nosso entender, que a medida cautelar requerida (abstenção por parte da Cabeça de Casal de atos [de disposição] que extravasam os poderes de administração) depende do incidente de remoção de Cabeça de Casal, previsto no art. 2086.º do Cód. Civil, o qual correrá nos autos principais do processo especial de inventário. Entendimento em sentido diverso, teria o efeito perverso de provocar a caducidade da medida cautelar enunciada no ponto i), caso a mesma viesse a ser decretada, uma vez que não se alcança qual a ação comum que o Requerente haveria que propor, de que dependa o presente procedimento cautelar, uma vez que, e tal como sublinhado pelo Requerente, o que este pretende é a remoção da Requerida do cargo de Cabeça de Casal, com fundamento no exercício da administração do património de forma pouco zelosa e imprudente, pretendendo, acessoriamente, que por via disso, e tendo em vista a defesa do património hereditário, que aquela se abstenha de abater os pinheiros da Herdade (enquanto não for removida do cargo), por tal consubstanciar um exercício imprudente das suas funções– fundamento do incidente de remoção, a ser tramitado nos autos principais de inventário.
Em suma: se é o processo especial de inventário que é o competente para a apreciação do incidente de remoção de Cabeça de Casal e, bem assim, para a tramitação e julgamento da ação especial de prestação de contas, cremos, com o devido respeito por diverso entendimento, que será o materialmente competente para apreciar as medidas cautelares requeridas, as quais são dependentes e instrumentais do referido incidente e ação especial de prestação de contas (sendo aqui irrelevante saber se o requerente tem ou não direito à anulação dos contratos de compra e venda que tenham por objeto a madeira e que sejam celebrados pela Cabeça de Casal com terceiros, uma vez que como alegado pelo Requerente o mesmo não pretende a tutela de tal direito, afirmando, inclusive, que por razões de “reputação”, não intentará tal ação- cfr. artigos 16.º, 17.º, 18.º, 19.º e 20.º do requerimento com a referência eletrónica 39030440.) De facto, surge para nós claro que o Requerente pretende, através do decretamento das medidas cautelares, a tutela do seu direito à informação relativa à administração da herança levada a cabo pela Cabeça de Casal e, concomitantemente, a defesa do património hereditário, obstando à prática de atos (abate de pinheiros) por parte da Cabeça de Casal, sem o consentimento do Requerente, na qualidade de herdeiro, por tais atos se reconduzirem a verdadeiros atos de disposição, que fundamentam o incidente de remoção do exercício do cargo.
Sublinha-se, adicionalmente, que nada impede que a causa principal do procedimento cautelar seja um incidente a ser tramitado numa ação já instaurada, como aliás decorre do regime previsto no art. 364.º, n.º 1, parte final, do Cód. Proc. Civil. Refere-se ainda que, em nossa perspetiva, é igualmente inócuo, o saber se a causa principal é o processo especial de inventário, ou um incidente ou ação (prestação de contas) a processar por apenso àquele processo.
Com efeito, ainda que se entenda que a causa principal de que depende, designadamente, a medida cautelar ínsita no ponto ii) é a ação especial de prestação de contas e não o processo especial de inventário, como tal ação é tramitada por apenso ao processo de inventário, forçosamente a causa principal do presente procedimento cautelar é reconduzível ao processo de inventário, sob pena de total falta de lógica, na medida em que extrair-se-ia uma conclusão que nega as premissas: a providência é incidente de um incidente e/ou ação que corre por apenso ao processo especial de inventário, mas não é incidente do processo de inventário.
Destarte, forçosamente se conclui que o procedimento cautelar havia sido bem instaurado por apenso, sendo o presente tribunal materialmente incompetente, pelo princípio da coincidência e nos termos do art. 364.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, tendo exclusiva competência o tribunal da causa principal, que se entende ser o processo especial de inventário que corre termos sob o n.º (…)49/22.5T8LSB no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e seus respetivos incidentes (incidente de remoção de Cabeça de Casal) e ação especial de prestação de contas a tramitar por apenso ao referido inventário (…)”.
6) Por despacho de 21-05-2024, foi suscitada a resolução do conflito negativo de competência.
7) Os autos foram continuados com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que, por promoção de 04-06-2024, se pronunciou no sentido de que “entende-se assistir razão a este Tribunal ao julgar-se materialmente incompetente para a tramitação e apreciação da presente providência cautelar pelo fundamentos que invoca no seu despacho de 16/05/2024”.
*
II. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.
Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC).
Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC).
Por seu turno, o artigo 205.º, n.º 2, do CPC estabelece que, as divergências resultantes da distribuição que se suscitem entre juízes da mesma comarca sobre a designação do juiz em que o processo há de correr, são resolvidas pelo presidente do tribunal de comarca, observando-se processo semelhante ao estabelecido nos artigos 111.º e ss. do CPC.
*
III. Cumpre, antes de mais, salientar que, perante o declarado em 23-04-2024 e em 16-05-2024, uma vez que, dois tribunais declinaram competência para a tramitação do processo, estando ambas as decisões passadas em julgado, afigura-se, em consequência, existir conflito de competência que carece de ser dirimido.
*
IV. Para a resolução do presente conflito, mostram-se pertinentes os seguintes factos:
1) Nos presentes autos de procedimento cautelar, instaurados em 01-04-2024, pede o requerente (irmão da requerida), sejam decretadas as seguintes providências cautelares:
“i. Impor à Requerida a cessação imediata do abate de pinheiros na Herdade (…);
ii. Determinar à Requerida que informe o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos mesmos, de harmonia com o disposto no art.º 2092.º do Código Civil”.
2) A providência foi requerida como incidente (a apensar) ao processo de inventário n.º (…)49/22.5T8LSB, onde o requerente é interessado, pendente no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X”, no qual a ora requerida foi nomeada cabeça-de-casal, por despacho de 20-11-2023 (objeto de notificação por ofício de 26-02-2024), data em que se encontrava pendente de decisão incidente de incapacidade daquela (cfr. doc. n.º 20, junto com o requerimento inicial da providência);
3) No requerimento inicial da providência cautelar, o requerente alegou, nomeadamente, o seguinte:
“(…) 137.º A Requerida, tendo assumido a gestão das heranças dos seus falecidos pais, tem procurado vender cortiça com nove anos de crescimento.
138.º Quando o período ótimo para venda é entre os 10 e 11 anos de crescimento.
139.º O que corresponde ao período de crescimento no qual os Inventariados nos autos principais vendiam a cortiça.
140.º Sem que tivesse procurado obter o consentimento ou sequer a opinião do Requerente a esse respeito.
141.º O Requerente, no seguimento de tais vendas, solicitou à Requerida que procedesse à distribuição do produto de tais vendas.
142.º A Requerida, contudo, até à presente data, não logrou entregar ao Requerente qualquer montante correspondente aos resultados da administração da herança.
143.º Nem procedeu sequer a Requerida à prestação de quaisquer contas relativas à administração da herança.
E mais:
144.º A Requerida usa a seu bel-prazer o património hereditário, afetando-o aos seus fins pessoais.
145.º A Requerida deposita as receitas da herança em conta bancária apenas para proceder imediatamente de seguida ao seu levantamento.
Da venda dos pinheiros da Herdade  (…)
146.º O prédio rústico, denominado “Herdade (…)”, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ameixial sob os artigos (…), integra a herança aberta por morte da Exma. Senhora “C”.
147.º A Requerida, no exercício do cabecelato, procurou vender a madeira dos pinheiros existentes nessa herdade.
148.º O que implicava, desde logo, o abate dos pinheiros em causa.
149.º Procurou, pois, a Requerida potenciais compradores para o efeito (…).
150.º A Requerida enviou, a 19 de fevereiro de 2024, carta ao Requerente a informar que recebeu proposta para a realização do corte de pinheiros na Herdade  (…)”.
160.º A 23 de fevereiro de 2024, o Requerente respondeu à Requerida por carta registada com aviso de receção – cfr. carta que se junta como Documento n.º 22.
161.º Informando, desde logo, que o seu silêncio não pode ser interpretado como consentimento ou aceitação de qualquer ato praticado pela Requerida.
162.º E informou o Requerente que não podia aceitar a proposta enviada pela Requerida.
(…)
172.º A Requerida respondeu, por carta datada de 7 de março de 2024, informando ter feito uma nova consulta ao mercado e encontrado uma nova proposta, desta feita superior àquela apresentada pelo Requerente – cfr. carta que se junta como Documento n.º 23.
173.º Informou ainda a Requerida que “como estamos perante bens deterioráveis, vimos pelo presente informar que aceitamos a proposta apresentada, dando instruções para o abate de pinheiros”.
174.º A proposta então encontrada pela Requerida foi feita pela Etapa (…), Lda. a 29 de fevereiro de 2024.
175.º Contemplando o preço de 36,25 € por tonelada de pinho bravo de madeira de serra e 16,25 € por tonelada de pinho para faxina.
176.º Bem como um depósito inicial de 20.000,00 €.
177.º E pesagem na balança do Ameixial.
178.º O Requerente, crendo que seria ainda possível encontrar-se uma melhor oferta, fruto da sua larga experiência no sector, renovou os seus esforços nesse sentido, providenciando pela realização da sua própria pesquisa de mercado.
179.º Na qual fez apelo aos contactos angariados ao longo de uma vida inteira a trabalhar no sector agroflorestal.
180.º Os quais contrastam, aliás, com a total inexperiência da Requerida em negócios agroflorestais.
181.º Assim, o Requerente logrou encontrar proposta que oferecia valores superiores.
182.º Sendo a mesma feita pela Irmãos (…), Lda.
183.º O Requerente comunicou à Requerida, por carta registada com aviso de receção datada de 11 de março de 2024, recusar a proposta oferecida pela Etapa Gloriosa – cfr. carta que se junta como Documento n.º 24.
184.º Apresentando então a contraproposta que logrou encontrar junto da Irmãos Frias, Lda.
185.º Proposta essa que tinha os preços de 42,10 € por tonelada de pinho bravo de madeira de serra e de 16,75 € por tonelada de pinho para faxina.
186.º Acrescidos do IVA à taxa legal em vigor.
187.º Contemplando ainda a pesagem na balança pública do Ameixial.
188.º E um depósito inicial de 30.000,00 €.
189.º Mau grado o facto da oferta remetida pelo Requerente superar largamente qualquer das ofertas anteriores para a compra da madeira dos pinheiros, a Requerida não respondeu à oferta.
190.º A Requerida não mais informou o Requerente sobre o sucedido com os pinheiros.
191.º Vindo o Requerente a saber que a Requerida vendeu a madeira para a realização de paletes.
192.º Quando os pinheiros em causa têm 42 anos.
193.º E, por esse motivo, a sua madeira é mais apropriada para carpintaria, soalhos e mobiliário.
194.º O Requerente, quando realizou a sua pesquisa de mercado, teve tal fator em consideração.
195.º Disto decorrendo o valor mais alto que conseguiu receber como oferta.
196.º Porquanto a madeira para carpintaria tem um valor comercial mais alto do que a madeira para paletes.
197.º Algo que não foi, naturalmente, tido em consideração pela Requerida uma vez que a mesma não domina os meandros do negócio agroflorestal.
198.º O Requerente teve, a fim de se inteirar do estado dos negócios relativos ao pinhal da Herdade do Carvalho, que se deslocar pessoalmente ao local a 26 de março de 2024.
(…) 200.º Detetou o Requerente que já se encontram equipas no terreno a proceder ao corte dos pinheiros e à sua segmentação em toros de 2,5 metro – cfr. documento que se junta como Documento n.º 25.
(…) 208.º A Requerida, sem ter obtido o consentimento do Requerente para a venda da madeira, logrou, contudo, proceder com o abate dos pinheiros e venda da madeira ao arrepio do facto de o Requerente ter encontrado uma melhor oferta.
209.º Prejudicando, deste modo e de forma significativa, os rendimentos da herança.
210.º Até à presente data, não foram creditadas nas contas da herança da Exma. Senhora “C” – as contas número (…)71 e (…)33 domiciliadas na CCAM da Costa Azul – quaisquer montantes correspondentes ao sinal pago pelo comprador da madeira – cfr. extratos bancários que se juntam como Documentos n.os 29 e 30.
211.º O que demonstra que a Requerida pretende locupletar-se com tais fundos.
Do Direito
212.º Estatui o art.º 362.º, n.º 1, do CPC que:
 “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
213.º Decorrendo, pois, do art.º 365.º, n.º 1, do CPC que deve o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justificar o receio da lesão.
214.º Existem, pois, dois pressupostos essenciais, assentes na doutrina e na jurisprudência, para o decretamento de uma providência cautelar: o fumus boni iuris e o periculum in mora.
215.º Pressupostos esses que se encontram, como efeito, verificados, como oportunamente se verá infra.
Da necessidade de autorização para a venda da madeira
216.º Decorre do exposto supra que a Herdade (…) integrou, pelo decesso de …, a sucessão aberta por sua morte, nos termos do art.º 2025.º, n.º 1, do Código Civil (doravante, “CC”).
217.º Encontrando-se, por isso, sujeita ao poder de administração do cabeça de casal, nos termos do art.º 2087.º, n.º 1, do CC.
218.º Poder esse que se limita à prática de atos de administração ordinária. Ora,
219.º A venda da madeira consubstancia, com efeito, porquanto implica o abate dos pinheiros, um verdadeiro ato de disposição.
220.º E, não se verificando nenhuma das situações excecionais nas quais o cabeça de casal está legitimado a dispor, sozinho, de bens que integram o relictum, o poder de disposição sobre tal bem carece de ser exercido, nos termos do art.º 2091.º, n.º 1, do CC, por todos os herdeiros.
221.º Certo é, pois, que a Requerida remeteu, por duas vezes, propostas de contrato dirigidas ao Requerente com vista à alienação da madeira.
222.º Às quais o Requerente respondeu, em ambos os casos – e até dentro do quinquídio previsto no art.º 228.º, n.º 1, alínea c), do CC –, que havia logrado encontrar propostas melhores.
223.º E claro é, pois, que o Requerente não aceitou qualquer proposta, porquanto, nos termos do art.º 232.º do CC, o contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo.
224.º E, mesmo que se considere que houve in casu aceitação com modificações, a mesma é considerada como rejeição da proposta, nos termos do art.º 233.º do CC.
225.º Inexistindo, desde logo, acordo quanto ao preço de venda, elemento esse essencial num contrato de compra e venda, nos termos do art.º 874.º do CC.
226.º Não se podendo, por este motivo, considerar como juridicamente perfeito qualquer pretenso contrato de compra e venda.
227.º Na medida em que o Requerente, recebendo as propostas remetidas pela Requerida, não as aceitou.
228.º É inadmissível que a Requerida abuse dos poderes que incumbem ao cabeça de casal e pratique atos de disposição de bens que integram o relictum sem o consentimento e até, como sucede no caso vertente, contra a vontade do Requerido.
229.º E, pior, a Requerida, ao avançar com uma venda em condições piores àquelas que o Requerente logrou encontrar, está a prejudicar de forma manifesta os rendimentos da herança, prosseguindo um interesse pessoal na administração da mesma em detrimento do interesse – objetivo – de ambos os herdeiros.
230.º A Requerida encontra-se investida, enquanto cabeça de casal, no dever de administrar com prudência e zelo a herança, o que decorre, a fortiori, do disposto no art.º 2086.º, n.º 1, alínea b), do CC.
231.º O que implica, por conseguinte, que deva a Requerida diligenciar, no caso vertente, no sentido de encontrar as melhores ofertas possíveis para a venda da madeira.
232.º O que, como visto, não sucedeu. E mais:
233.º A Requerida, tendo recebido informações sobre a existência de oferta melhor, recusou-se, em todo o caso, a escolher tal potencial comprador que havia sido aceite pelo Requerente.
234.º Optando, em alternativa, por vender a madeira por um valor mais baixo que não havia obtido a aceitação do Requerente.
235.º A Requerida, não tendo qualquer experiência no sector agroflorestal salvo na elaboração da contabilidade, devia, ao menos, ter indagado de qual seria o melhor uso a dar à madeira desses pinheiros.
236.º Podendo até, nesta sede, recorrer à larga experiência do Requerente.
237.º Preferiu, contudo, prosseguir a via do unilateralismo por si já seguida desde o início e realizou, pois, mais um mau negócio para a herança.
238.º O que demonstra, com efeito, a incompetência da Requerida para o exercício do cabecelato, o que corresponde a fundamento de remoção do cabeça de casal, nos termos do art.º 2086.º, n.º 1, alínea d), do CC.
Da não distribuição dos rendimentos da herança
239.º Dispõe o art.º 2092.º do CC o seguinte: “Qualquer dos herdeiros ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir que o cabeça-decasal distribua por todos até metade dos rendimentos que lhes caibam, salvo se forem necessários, mesmo nessa parte, para satisfação de encargos da administração”.
240.º Disto decorre que qualquer herdeiro tem o direito a provocar uma distribuição de resultados decorrentes da administração da herança.
241.º O que corresponde, aliás, a direito que foi, por várias vezes, exercido pelo Requerente.
242.º Sem que a Requerida informe sequer do montante obtido com a venda de bens.
243.º Ou muito menos encetando qualquer ato de prestação de contas.
244.º O que é, aliás, manifestamente conveniente aos propósitos da Requerida de se apropriar de todo o património dos seus falecidos pais.
Do periculum in mora
245.º Verifica-se, pois, que o abate dos pinheiros se encontra já em curso.
246.º E que os mesmos tem já mais de 40 anos de idade.
247.º Sendo, com efeito, certo que as delongas no recurso aos meios processuais comuns iriam implicar inelutavelmente que a totalidade dos pinheiros tivesse já sido cortada aquando da prolação de uma decisão de mérito.
248.ºO que implica, pois, que, uma vez abatidos os pinheiros, será já impossível proceder-se a uma venda em condições mais vantajosas tal como preconizada pelo Requerente. E mais:
249.º Com o abate dos pinheiros com vista à venda da sua madeira pelo preço determinado pela Requerida compromete-se quatro décadas de trabalho no desenvolvimento do pinhal da Herdade (…).
250.º Dano esse que é irreversível no curto e médio prazo.
251.º Claro é, pois, que existe um evidente periculum in mora que justifica o recurso à tutela cautelar quanto a este ponto, devendo o Digníssimo Tribunal proibir a Requerida de continuar com o abate dos pinheiros.
252.º O qual existe outrossim quanto à distribuição de resultados prevista no art.º 2092.º do CC.
253.º Porquanto a Requerida, sonegando-se de forma reiterada à prestação de contas e à distribuição de resultados, procurando, pelo contrário, ser opaca com o Requerente, encontra-se, com efeito, a dissipar património.
254.º O qual será praticamente impossível de recuperar.
255.º A Requerida tem, aliás, agido com um claro animus nocendi contra o Requerente.
256.º O que leva à formação de um fundado receio de que o efetivo exercício do direito à distribuição de resultados seja frustrado com o decurso do tempo.
257.º Claro é, pois, que o Digníssimo Tribunal deferir a tutela cautelar de tal direito,
impondo à Requerida que informe dos valores dos bens das heranças a cuja alienação procedeu e que distribua, de seguida, o resultado das vendas (…)”.
4) Em 04-04-2024, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “X” proferiu despacho onde se lê, nomeadamente, o seguinte:
“(…) Ora, nos termos do artigo 364º, n.º1 do CPC, os procedimentos cautelares são dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
No caso, afigura-se que a acção principal a intentar terá como objectivo a anulação da aludida venda. Tal questão, contudo, não poderá ser apreciada em sede de inventário, nem sequer a título incidental, cabendo intentar a competente acção comum.
Assim, antes de mais, não se verificando a necessária competência por conexão com o processo de inventário, deverá o requerente pronunciar-se quanto à incompetência deste Juízo Cível para a apreciação do procedimento cautelar intentado.
Por outro lado, nos termos do artigo 304º, nº.3, al. d) do CPC, o valor do procedimento cautelar não especificado é fixado com base no valor do prejuízo que se quer evitar.
No caso, o valor do prejuízo corresponderá à diferença do valor da venda dos pinheiros a que o requerente pretende obstar considerando a proposta mais vantajosa que obteve.
Nestes termos, deverá ainda o requerente, pronunciar-se quanto ao valor atribuído à causa, bem como clarificar qual o prejuízo resultante da venda celebrada pela requerida.
Em face do exposto, notifique o requerente para, no prazo de 10 dias:
- pronunciar-se quanto à incompetência deste Juízo Cível para a apreciação do procedimento cautelar intentado;
- pronunciar-se quanto ao valor atribuído à causa, bem como clarificar qual o prejuízo resultante da venda celebrada pela requerida (…)”.
5) Por requerimento de 09-04-2024, o requerente veio pronunciar-se, dizendo, em suma, que:
- Pretendeu, com a instauração do procedimento cautelar, requerer providências que visam impor o respeito pelas regras legais aplicáveis à administração do património hereditário, visando impedir que a Requerida proceda a seu bel-prazer à prática de atos de disposição ao arrepio do disposto no art.º 2091.º, n.º 1, do Código Civil, bem como assegurar o respeito pela faculdade dos herdeiros de exigirem distribuições de rendimentos nos termos do art.º 2092.º do Código Civil;
- Uma vez derrubados todos os pinheiros, não há como anular esse contrato;
- A presente Providência, trata-se, sim, de impedir que a cabeça-de-casal execute um acto que lhe é proibido, pois que se trata de um acto de disposição;
- A cabeça de casal não pode praticar actos de disposição e, no entender do Requerente, a acção principal é o processo de inventário, assentando o procedimento cautelar em factos que constituem fundamento de remoção da Requerida das funções de cabeça de casal, nos termos do art.º 2086.º, n.º 1, alínea d), do Código Civil, constituindo, aliás, um preliminar da remoção do cabeça de casal, o qual se trata de um incidente do processo de inventário, nos termos do art.º 1103.º, n.º 2, do Código Civil;
- E, no tocante à distribuição de resultados, cumpre, pois, notar que, do mesmo modo que a prestação de contas por parte do cabeça de casal é dependência do inventário, nos termos do art.º 947.º do Código de Processo Civil, pela mesma ordem de razões bem se compreende que uma providência cautelar que tenha por objeto a imposição da distribuição de resultados prevista no art.º 2092.º do Código Civil constitui indubitavelmente dependência do processo de inventário;
- O procedimento cautelar ora instaurado tem por fundamento direitos cujo exercício é feito no quadro do processo de inventário;
- Relativamente ao valor da causa, o procedimento cautelar pretende prevenir danos que assumem, desde logo, uma natureza imaterial, antes se ligando ao imperativo de garantir o respeito pelos limites negativos aos poderes do cabeça de casal e uma vez que se desconhece o valor do negócio ora posto em crise, pois a Cabeça de Casal não se digna a informar o ora Requerente da quantidade de Pinheiros que foram/estão/serão abatidos, não tem como o Requerente apurar o valor concreto do seu prejuízo.
*
V. Conhecendo.
Está em questão saber se o presente procedimento cautelar comum deve, ou não, ser objeto de apensação ao processo de inventário já instaurado.
“Os procedimentos cautelares representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni iuris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora). Constituem meios jurisdicionalizados, expeditos e eficazes que permitem assegurar os resultados práticos da ação, evitar prejuízos graves ou antecipar a realização do direito” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, 2022, p. 457).
Assim, requerida que seja uma providência cautelar comum, “o julgador terá de efectuar o seguinte percurso: 1) Identificar o direito que o requerente da providência pretende acautelar; 2) Determinar se a demora - inevitável - na resolução definitiva do litígio comporta algum perigo para o direito do requerente; 3) Em caso de resposta afirmativa, determinar se esse perigo, a concretizar-se, é de caracterizar, em relação ao direito, como lesão grave e de difícil reparação” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-07-2019, P.º 1234/18.7T8CVL.C1, rel. EMÍDIO SANTOS).
Os procedimentos cautelares apresentam, em regra, um caráter instrumental e dependente (ou subordinado) relativamente à ação destinada a tutelar, em definitivo, o direito invocado pelo requerente (cfr., Marco Filipe Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 3.ª ed., 2017, p. 117).
Assim, exceto se for decretada a inversão do contencioso (cfr. artigo 369.º do CPC), os procedimentos cautelares estão na dependência de uma ação (declarativa ou executiva), em que o autor pretende fazer valer o seu direito ou interesse tulelado.
Nesse sentido, sobre a relação entre “o procedimento cautelar e a ação principal”, dispõem os n.ºs. 1 a 3 do artigo 364.º do CPC que:
“1 - Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
2 - Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
3 - Requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância (…)”.
“O carácter instrumental do procedimento cautelar (face à ação principal de que depende) significa que este é um instrumento ao serviço da ação judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respetiva decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2020, Pº 5977/14.6T8VNF-C.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES).
Ou seja: Atenta a sua natureza instrumental relativamente ao processo principal, os procedimentos cautelares não se propõem realizar, de forma direta e principal, o direito material, mas apenas conseguir que o processo principal atinja o seu objetivo, qual seja, o de regular, de forma eficaz e definitiva, o litígio (cfr., Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, 2ª ed., Almedina, p. 203).
Corolário da função instrumental dos procedimentos cautelares é, pois, a dependência dos mesmos relativamente à ação principal de que dependam, pelo que, em princípio, existe uma relação de interconexão ou de dependência entre o procedimento cautelar e a ação principal, que se estende aos próprios efeitos (sendo que, conforme decorre do disposto no artigo 373.º do CPC, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca, nos casos em que não seja obtido um resultado favorável no processo principal, na falta de propositura da ação principal, na improcedência desta ou devido à própria extinção do direito que se pretendia fazer valer).
O nascimento, a vida e a morte da providência cautelar estão, pois, dependentes do processo do qual são preliminar/incidente, na medida em que é nele que encontram a razão da sua existência, refletindo-se nelas as vicissitudes da tutela a encontrar no “processo-mãe” e, também, como consequência da sua função instrumental, as providências cautelares são meramente provisórias, tendo uma duração, apesar de incerta, limitada no tempo (cfr., João Cura Mariano, A Providência Cautelar de Arbitramento de Reparação Provisória, 2ª ed., Almedina, p. 24 e ss.).
Assim, à tutela provisória ou transitória, por natureza, há-de corresponder uma tutela definitiva do direito de que o requerente se arroga, sendo, pois, em face da respetiva contraposição que se alcança a relação de instrumentalidade entre ambos os meios processuais.
Assim, dependência e provisoriedade são caraterísticas imperativas da função instrumental da providência cautelar.
Os requisitos da instrumentalidade são subjetivos e objetivos. Subjetivamente, exige-se que exista identidade de parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. Objetivamente, exige-se, em primeiro lugar, que a ação principal tenha por fundamento o direito acautelado.
“Ou seja, através da acção principal deve procurar-se tutela para o mesmo direito que se pretendeu preservar via cautelar” (assim, Rita Lynce de Faria; A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003, p. 97).
Importa ainda sublinhar que, a apensação a que alude o artigo 364.º do CPC “constitui uma apensação vinculada, no sentido de que não depende de qualquer requerimento ou critério de oportunidade, mas que resulta de a lei só conferir competência ao juiz que for titular da causa principal, quando esta já se encontra pendente.
“Portanto, constatada a pendência da causa que regula a tutela definitiva do direito, impõe-se ao juiz da providência que com aquela coincida, que a remeta ao primeiro para apensação.
De resto, tal apensação só pode ser recusada pelo magistrado da lide definitiva com fundamento na não verificação da correspondência entre a tutela definitiva do direito e a que se pretende com a da providência cautelar” (assim, decisão da Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-05-2020, Pº 622/19.6T8BRG-C.G1, consultada em: https://www.trg.pt/gallery/622%2019.6T8BRG-C.G1-Embarg%20Obra-Reivindic-%2028-5-2020.pdf).
*
VI. No caso, a presente providência cautelar comum ou não especificada foi requerida quando já pendia entre as partes o processo de inventário n.º º (…)49/22.5T8LSB, onde requerente e requerida são interessados.
Todavia, o Juiz “X” e o Juiz “Y” do Juízo Local Cível de Lisboa divergem sobre se a providência cautelar é instrumental (dependente) daquela ação.
Assim, o Juiz “X” considera que, as questões inerentes à administração da herança (com excepção da substituição, a escusa e a remoção do cabeça de casal) não têm cabimento na tramitação do processo de inventário, podendo antes ser apreciadas no âmbito da acção de prestação de contas, ou de eventual acção em que alguma actuação concreta seja visada e, se é certo que, ainda que a factualidade invocada possa, em abstracto, ser fundamento de incidente de remoção da cabeça de casal, os pedidos concretamente efectuados - que a requerida cesse de imediato o abate de pinheiros na Herdade (…) e que proceda à distribuição dos rendimentos obtidos, de harmonia com o disposto no art.º 2092.º do Código Civil – não surgem como preliminares ao pedido de tal incidente, nem pretendem acautelar provisoriamente uma decisão definitiva a tomar em tal incidente, concluindo que a mesma não tem cabimento na dependência do inventário.
Entendimento oposto tem o Juiz “Y”, considerando que a medida cautelar no sentido da determinação da Requerida a informar o Requerente do valor obtido com a venda de bens da herança e, de seguida, proceder à distribuição dos rendimentos, de harmonia com o disposto no art. 2092.º do Cód. Civil, depende da propositura da ação especial de prestação de contas, por via da qual, a Requerida seja instada a prestar contas relativas à administração da herança, na qualidade de Cabeça de Casal (a correr por apenso ao inventário, nos termos do disposto no artigo 947.º do CPC) e que a medida cautelar de imposição à requerida para se abster de abater os pinheiros existentes na Herdade (…), bens que integram o acervo hereditário, não depende da propositura de qualquer ação comum, visando o requerente a tutela do seu direito, enquanto herdeiro, contra um outro herdeiro/Cabeça de Casal (e não contra terceiro) e, por via, disso a defesa da património hereditário, o qual, se encontra colocado em crise pela forma como a Requerida administra a herança, extravasando os poderes de administração ordinária previstos no art. 2087.º do Cód. Civil.
O pressuposto processual da competência afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-04-2024, Pº 10009/19.5T8LSB-H.L1-1, rel. NUNO TEIXEIRA).
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 19) a dependência do procedimento cautelar em relação à ação principal expressa-se através da identidade entre o direito – ou interesse – acautelado e aquele que se faz valer na ação e implica, além da identidade das partes (em regra) que a causa de pedir do procedimento e da ação coincidam, ao menos em parte, não coincidindo normalmente o pedido de um e de outra.
Ou seja, conforme se explicitou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2021 (Pº 632/21.3T8FNC-B.L1-7, rel. MICAELA SOUSA): “Entre a providência cautelar e a acção principal deve existir uma relação que permita afirmar que o direito acautelado será provavelmente reconhecido na acção definitiva, ou seja, entre as duas acções deve existir uma relação de dependência de tal modo que na acção principal se venha a tutelar o mesmo direito, a específica pretensão, que se quis salvaguardar por via cautelar. A relação de instrumentalidade ou de dependência deve ser aferida em função do que consta efectivamente de ambos os processos e não em função do que eventualmente deles poderia ou poderá vir a constar(em semelhante sentido, vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-06-2023, Pº 2542/22.8T8VIS-A.C1, rel. SÍLVIA PIRES).
No mesmo sentido, referiu-se no Ac. do TRP de 20-04-2006 (Pº 0630374, rel. ATAÍDE DAS NEVES) que “o processo cautelar pressupõe necessariamente um outro processo (principal ou definitivo) já pendente ou que vai ser instaurado, surgindo para servir o fim deste último, sendo a relação entre aquele e este de “instrumentalidade” ou “instrumentalidade hipotética”, o que significa que a providência cautelar é emitida na pressuposição ou na previsão da hipótese de vir a ser favorável ao autor a decisão a proferir no processo principal. No procedimento cautelar e na acção (a propor ou já proposta) conexa não tem que haver coincidência de pedidos, mas sim das partes e das causas de pedir”.
Pedro Caetano Nunes explicita os termos da conjugação entre os objetos da ação principal e da providência cautelar, referindo (Providências Cautelares - Mestrado em Direito Forense e Arbitragem – 2018/2019, p. 15, texto consultado em: https://ae.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2019/10/Sebenta-provide%CC%82ncias-cautelares.pdf) que:
“(…) A propósito da instrumentalidade, fizemos uma comparação entre o objeto processual da ação definitiva e da cautelar: falou-se da dupla instrumentalidade. A propósito da dependência, o objeto do procedimento cautelar é relativo à ação definitiva.
Isto é, na ação definitiva, o objeto do processo é a relação material controvertida (causa de pedir e pedido).
No procedimento cautelar o objeto engloba esta relação material controvertida, mas vai para além dela. Temos um objeto duplo:
- o fumus boni iuris (objeto de direito substantivo - relação material controvertida, tal como na ação declarativa);
- o periculum in mora (objeto de natureza processual que consiste no perigo da demora);
Do ponto de vista prático, o objeto do procedimento cautelar é objeto da ação principal, mais o que se acrescenta do periculum in mora (…)”
A ação principal supõe, pois, uma conexão, ainda que parcial, com o pedido e a causa de pedir objeto do procedimento cautelar (assim, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-02-2021, Pº 2709/20.3T8PRD.P1, rel. PAULO DUARTE TEIXEIRA, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-11-2022, Pº 10130/22.2T8LSB-A.L1-1, rel. FÁTIMA REIS SILVA).
Conforme se sintetizou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-05-2023 (Pº 412/22.9T8PMS-C.C1, rel. LUÍS CRAVO):
“I – As providências cautelares estão dependentes de uma ação pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que será favorável ao requerente a decisão a proferir na respetiva ação principal.
II – Os efeitos de qualquer providência cautelar estão dependentes do resultado que for ou vier a ser conseguido na ação definitiva e caducam se essa ação não for instaurada, se a mesma for julgada improcedente ou, ainda, se o direito que se pretende tutelar se extinguir [art. 373º do n.C.P.Civil].
III – A identidade entre o direito acautelado e o que se pretende fazer valer no processo definitivo impõe, pelo menos, que o facto que serve de fundamento àquele integre a causa de pedir da ação principal, embora se não pressuponha uma total identidade dos direitos a tutelar”.
O processo de inventário cumpre, entre outras, as funções enunciadas no artigo 1082.º do CPC:
“O processo de inventário cumpre, entre outras, as seguintes funções:
a) Fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha de bens;
b) Relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e servir de base à eventual liquidação da herança, sempre que não haja que realizar a partilha da herança;
c) Partilhar bens em consequência da justificação da ausência;
d) Partilhar bens comuns do casal”.
A instrumentalidade ou dependência entre o procedimento cautelar e a ação principal de que dependa, deve ser aferida em função do que consta efectivamente de ambos os processos e não em função do que eventualmente deles poderia ou poderá vir a constar: “A relação de instrumentalidade ou de dependência entre ambas as ações deverá verificar-se ou ser aferida em função do que delas consta efetivamente e não em função do que, eventual ou “virtualmente”, delas poderia ou poderá, futuramente, vir (ou não) a ocorrer” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-04-2016, Pº 393/14.2TTMTS-A.P1, rel. PAULA LEAL DE CARVALHO).
A imposição da determinação, a título cautelar, à requerida da cessação imediata do abate de pinheiros (ainda que em bem da herança) não se enquadra em qualquer das funções do processo de inventário por óbito – fazer cessar a comunhão hereditária e proceder à partilha dos bens da herança e relacionar e, eventualmente, liquidar, bens objeto da sucessão – mas a garantir que a requerida adote quanto a tais bens uma determina conduta, não se inserindo nas finalidades e funções do processo hereditário, tal como o mesmo, presentemente, se apresenta.
A potencialidade de o requerente poder desencadear incidente de remoção da cabeça-de-casal ou outras pretensões não viabiliza a determinação, em concreto, de algum nexo de dependência da providência cautelar requerida com o processo de inventário tal como este se apresenta.
Neste sentido, a determinação da adequação da conduta da requerida, a aferir em sede da providência cautelar requerida, não se insere no âmbito de qualquer incidente relacionado com a boa ou má administração do património hereditário, que, de facto, não foi deduzido, não se tendo cabimento como incidente do inventário pendente, nem dele se mostrando dependente, razão pela qual a providência requerida não tinha que lhe ser apensada.
Relativamente à pretensão de determinação da requerida informar o requerente sobre o valor obtido com a venda de bens da herança, para, de seguida, proceder à distribuição dos rendimentos, de harmonia com o disposto no art. 2092.º do Cód. Civil, também não afere que tal pretensão se mostre incidental do objeto do inventário deduzido, pois, de facto, nele (ou melhor, a tramitar por apenso ao mesmo, nos termos do artigo 947.º do CPC) não foi deduzida alguma pretensão do requerente no sentido da prestação de contas por banda da requerida.
Tais circunstâncias determinam que não se verifique relação de dependência entre o procedimento cautelar deduzido e o processo de inventário instaurado, sendo o direito que o requerente pretende ver acautelado pelo primeiro, estranho ao objeto e âmbito de discussão do processo de inventário, não podendo obter nele tutela definitiva.
Assim, a presente providência – embora requerida em momento temporal em que já pendia, entre requerente e requerida, processo de inventário onde aqueles são interessados - não se inscreve no mesmo objeto de tutela pretendida no mencionado processo de inventário, devendo, como foi, ter autónoma tramitação.
Ou seja: Não se verificando uma relação de instrumentalidade e dependência entre a presente providência cautelar e o processo de inventário onde são interessados o requerente e a requerida da primeira, não deverá aquela, ser apensada a este último, não sendo caso de consideração do disposto no artigo 364.º, n.º 3, do CPC.
Assim, a competência para a apreciação da presente providência cautelar radica no Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “Y”, a quem os autos foram distribuídos, onde deverá prosseguir os seus termos.
*
VII. Pelo exposto, decido este conflito, declarando competente para a tramitação do presente procedimento cautelar, o Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “Y”.
Notifique, nos termos do disposto no nº. 3 do artigo 113.º do CPC.
Sem custas.
Baixem os autos.

Lisboa, 07-06-2024,
Carlos Castelo Branco.
(Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho 2577/2024, de 16-02-2024, pub. D.R., 2.ª Série, n.º 51/2024, de 12 de março).