Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
305/21.7PBHRT.L1-9
Relator: ROSA MARIA CARDOSO SARAIVA
Descritores: IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
DOLO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2025
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Sumário (da responsabilidade da Relatora):
1. O crime de importunação sexual (art. 170.º do Código Penal) protege a liberdade sexual da pessoa, configurando-se como um crime de perigo concreto, exigindo que o comportamento do agente cause efectiva perturbação ou constrangimento na esfera sexual da vítima.
2. O tipo subjectivo do crime exige que o dolo abranja todos os elementos do tipo, incluindo o de “importunar outra pessoa”; é, pois, necessário que o agente actue com consciência e vontade de importunar a vítima.
3. Não basta a mera prática voluntária e consciente de actos de carácter exibicionista — é indispensável que a acusação descreva o elemento volitivo correspondente à intenção de importunar.
4. A acusação delimita o objecto do processo e deve conter todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime; a falta de descrição do dolo de importunar constitui omissão insuprível, não podendo ser corrigida em julgamento por via do art. 358.º do CPP.
5. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2015 do Supremo Tribunal de Justiça estabelece que a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime impede a condenação do arguido, por inexistência de factos integradores do ilícito típico.
6. Não se verifica contradição entre a fundamentação e a decisão da sentença que, tendo dado como provados os factos materiais, absolve o arguido por falta de descrição do dolo específico exigido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: I – Relatório:
No Juízo de competência Genérica da ..., Juiz 1, foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo (transcrição):
“VI. Dispositivo
Pelo exposto, decide-se:
a) Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material, de dois crimes de importunação sexual previstos e puníveis pelo artigo 170.º do Código Penal;.
b) Sem custas do processo, artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal.
- Declara-se extinta a medida de coação aplicada ao arguido nos presentes autos.”
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“ 3. Conclusões
1. O crime de importunação sexual não estabelece nenhuma exigência de dolo especifico, pois não refere, "quem com intenção de importunação", diferentemente do que ocorre com outros tipos penais como a burla - o dolo de engano; ou o furto - o dolo de apropriação - cfr. artigos 170, 203 e 217 do Código Penal.
2. Duvidas não restam, portanto, que o dolo exigido para este tipo penal é o dolo genérico, ou seja o conhecimento e vontade de praticar os factos.
3. Consideramos que estando descritos na acusação, em suma os atos exibicionistas e o seu contexto, e quanto ao elemento subjetivo, que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, é, com todo o devido respeito, absolutamente redundante exigir que se diga que quis importunar as vitimas.
4. Existe, pois, vicio de contradição nos fundamentos da sentença, ao dar como provados todos os factos constantes da acusação e que integram o tipo penal pelo qual vem o arguido acusado, e, afinal, absolvendo-o pela prática do aludido crime, vicio a que se refere o artigo 412.º n.º 2 al. b) do Código Penal.
A douta sentença recorrida violou a lei e os artigos 170.º e 14.º do código Penal, e como tal deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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O arguido, devidamente notificado, nada veio dizer no prazo que lhe foi concedido.
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Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando a argumentação da resposta ao recurso e acrescentando o seguinte (transcrição):
“III. A motivação de recurso fundamenta a discordância com a decisão do tribunal a quo, de forma correta e completa, pelo que com ela concordamos integralmente.
Sempre se dirá que o entendimento exposto na sentença ora recorrida, ao considerar que o elemento volitivo do dolo não se basta com uma actuação voluntária ou deliberada, extravasa, em nosso entendimento, em larga medida, o disposto e o pretendido no supramencionado acórdão de fixação de jurisprudência.
Ora, se do despacho de acusação consta, de forma clarividente, por um lado, que o arguido, apesar estar consciente que incorreria na prática de um crime, atuou de forma livre, voluntária e consciente, conclui-se, necessariamente, que o Ministério Público pretendeu descrever que o agente, ao actuar da forma descrita, ponderou na conduta suprarreferida, e desejou atingir tal desiderato, ou seja, actuou com dolo directo na execução do ilícito criminal pelo qual foi acusado.
De sublinhar que a expressão “voluntária" pode assumir uma variedade de significados, entre os quais “fazer de boa vontade e sem constrangimento.", “fazer de livre vontade", “proceder espontaneamente", “fazer determinado trabalho sem estar obrigado", “que faz porque é a sua vontade...”, “aquele que realiza um trabalho por vontade (...) que age apenas pela sua vontade vide Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, editora Verbo, pág.37801,
Assim, compulsado o teor da acusação, não se consegue perspectivar ou sequer conjecturar que a actuação do arguido, aquando da prática dos factos, não fosse outra que não agir com a intenção concretizada de praticar o ilícito pelo qual veio acusado, sendo incompreensível e/ou inexplicável entendimento ou interpretação diversa de que essa pessoa actuou com dolo directo ao assumir o comportamento descrito.
“Tudo isso, que tradicionalmente se engloba nos elementos subjectivos do crime, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude), vide acórdão de uniformização de jurisprudência 1 /2015, relator Rodrigues da Costa, publicado no Diário da República 18 SÉRIE I de 2015-01-27.
Ao invés do alegado pelo Tribunal a quo, o despacho de acusação proferido cumpre, na integra, o disposto no art.° 283.° n.° 3 do Código Processo Penal, uma vez que narra, sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
O Ministério Público na peça acusatória descreveu que o agente ao actuar da forma descrita, ponderou e desejou atingir tal desiderato, ou seja, actuou com dolo directo na execução do ilícito criminal pelo qual foi acusado, actuando, de acordo com essa pretensão, desejando atingir esse fim, o qual concretizou.
Para querer, é necessário que essa representação se converta numa atuação por parte do agente.
O direito só intervém quando esses pensamentos sejam exteriorizados em actos.
Não há dúvidas que o arguido agiu voluntariamente – ninguém o obrigou, nem foi um acto em que não controlasse a vontade.
No caso, o arguido representou a realização do facto e teve a intenção de o praticar, o que exteriorizou. O agente sabia e queria. O arguido tinha a vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
Está descrito o dolo na acusação.
IV. Pelo exposto, secundando a posição expressa na motivação de recurso, emite-se parecer no sentido de que o recurso merece provimento, e consequentemente, deve a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido.”
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Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem resposta do arguido/recorrente.
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Efectuando exame preliminar e compulsados os autos, verifica-se que é, desde já, pertinente proferir decisão sumária, com fundamento nos arts. 417.º, n.º 6, al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), do CPPenal.
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II. Apreciação sumária dos fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
Preceitua o art, 412.º, n.º 1, do CPPenal que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
É consabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou de nulidades que não se considerem sanadas, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na decorrência dos argumentos expendidos em sede de motivação.
A questão a decidir no presente recurso é a de saber se dos factos provados constam os elementos necessários ao preenchimento do tipo subjectivo do crime de importunação sexual.
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III – Da sentença recorrida (transcrição parcial):
“II - Factos Provados.
1. No dia ... de ... de 2021, pelas 20h10m, na ... na cidade ..., junto ao número 36, sendo a habitação de BB, o arguido, apercebendo-se que CC estava à janela, colocou as calças pelos joelhos e passou a masturbar-se na sua direção, comportamento no qual persistiu por cerca de cinco minutos, somente abandonando aquele local após BB ter referido por diversas vezes que iria chamar a polícia.
2. No dia ... de ... de 2022, pelas 14h30, DD encontrava-se sozinha na ..., na cidade da ..., na zona conhecida como “tufo”.
3. Subitamente surgiu o arguido, que se posicionou a cerca de 3 metros de EE, passando a masturbar-se na sua direção, comportamento no qual persistiu durante todo o tempo no qual FF recolheu os seus pertences e fugiu apressadamente do local, em lágrimas.
4. Enquanto FF percorreu o caminho entre o tufo e a areia, o arguido seguiu-a.
5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente com o propósito alcançado de exibir o seu órgão genital nas duas ocasiões diferentes a FF e a CC.
6. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. Admite-se que a sua capacidade para se determinar de acordo com a avaliação que fez quanto à ilicitude dos factos, estava diminuída.
8. O arguido nasceu em ........1969.
9. Sofre de doença cardíaca.
10. Encontra-se desempregado.
11.Beneficia do rendimento social de inserção no valor de 237,25€.
12. Reside com o irmão numa habitação social.
13. É o irmão quem suporta todas as despesas.
14. Apresenta um quadro clínico compatível com o diagnóstico de perturbação do desenvolvimento intelectual ligeira, quadro esse que condiciona não só um funcionamento intelectual global inferior ao esperado, mas também limitações no funcionamento adaptativo em várias áreas (comunicação, cuidado próprio, competências socias, regulação e controlo dos impulsos, ocupação/trabalho entre outras).
15. Não regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal.
III. Factos não provados.
Não existem.
IV. Motivação da matéria de facto
A necessidade de os tribunais fundamentarem as suas decisões decorre da própria Constituição da República Portuguesa, que no seu artigo 205.º, n.º 1 remete para a lei a determinação da forma como a fundamentação deve ser realizada. No âmbito do processo penal, são os artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2 que determinam que a sentença deve especificar de modo completo e conciso os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. O princípio da imediação, previsto no artigo 355.º do Código de Processo Penal, assume aqui um papel fulcral, exigindo o contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova, pelo que não se admite que o tribunal forme a sua convicção com base em provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. No entanto, este princípio não abrange a prova documental e outros meios de obtenção de prova, nomeadamente, os autos de exames, revistas, buscas, apreensões e escutas telefónicas, que podem ser invocados em sede de fundamentação da sentença ainda que não tenham sido formalmente examinados em audiência1. Em regra, a prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser apreciada de acordo com as regras da experiência comuns e da lógica, dos conhecimentos científicos e da livre convicção do julgador. Excecionam-se os documentos autênticos e autenticados, que gozam de força probatória plena, nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, a prova pericial, presumindo-se que o juízo técnico, científico ou artístico elaborado está subtraído à livre apreciação da entidade julgadora, conforme artigo 163.º do Código de Processo Penal e a confissão integral e sem reservas no julgamento, ao abrigo do artigo 344.º do Código de Processo Penal.
1 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.11.2008 (Relator Vasques Osório), Processo n.º 120/06.8TAVLF.C1, disponível em: www.dgsi.pt
As regras da experiência comuns e da lógica assumem um papel fundamental na prova indiciária. É através delas que o julgador estabelecerá uma ligação – presunção – precisa e direta entre os factos base, resultantes da prova direta, e o facto que se pretende provar. As presunções devem ser graves, precisas e concordantes. “São graves, quando as relações do facto desconhecido com o facto conhecido são tais, que a existência de um estabelece, por indução necessária, a existência do outro. São precisas, quando as induções, resultando do facto conhecido, tendem a estabelecer, directa e particularmente, o facto desconhecido e contestado. São concordantes, quando, tendo todas uma origem comum ou diferente, tendem, pelo conjunto e harmonia, a firmar o facto que se quer provar”2. Verificando-se “um afastamento entre a base da presunção (o facto conhecido, preciso e determinado) e o facto desconhecido (objecto de prova), de tal modo que a relação se situa apenas no simples domínio das possibilidades físicas e materiais, sem proximidade que caiba nos limites razoáveis do id quod; neste caso, o facto desconhecido não poderá considerar-se como assente. Mas, ao invés, as regras da experiência podem determinar que, segundo a normalidade das coisas, dos comportamentos e da apreciação externa comum e referencial sobre a causalidade e a sequência, um facto ou uma série de factos conhecidos não se compreende, nem por si tem relevante significado autónomo e não apresenta qualquer sentido, razão ou explicação, se não for pelas consequências normais e típicas que a experiência das coisas e da vida lhe associa; neste caso, a presunção deve ser estabelecida: os factos serão precisos e concordantes”3.
Na valoração da sua convicção formada há um princípio basilar que tem de nortear o julgador, o princípio in dúbio pro reo, corolário do princípio da presunção da inocência, constitucionalmente previsto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual o julgador tem de se pronunciar de forma favorável ao arguido se não tiver a certeza quanto aos factos decisivos para a decisão da causa. A este propósito, o juiz deve ter presente que “o julgamento sobre os factos, devendo ser um julgamento para além de toda a dúvida razoável, não pode, no limite, aspirar à dimensão absoluta de certeza da demonstração acabada das coisas próprias das leis da natureza ou da certificação cientificamente cunhada”4.
A convicção do tribunal relativamente aos factos dados como provados foi o resultado de uma apreciação crítica da prova produzida, nos seguintes termos:
Para prova dos factos referidos nos pontos 1 a 4, o Tribunal considerou, desde logo, os autos de reconhecimento pessoal (referência eletrónica n.ºs 4470285 do processo principal e 4917813 do apenso A) e o depoimento das ofendidas CC e FF, que de forma detalhada, calma e sincera, relataram o comportamento do arguido desde o momento em que este iniciou os atos de masturbação até se ausentar dos respetivos locais. GG, marido de CC, circunstanciando no espaço e no tempo o episódio no qual a sua esposa foi interveniente, explicou que o arguido se encontrava junto da sua residência quando saiu para trabalhar e descreveu o vestuário que este apresentava de forma consonante com o relatado por CC. Diga-se que o Tribunal não tem qualquer motivo para duvidar do relato oferecido pelas ofendidas, não só porque o próprio arguido não negou os factos, antes alegando não se recordar dos mesmos, como não se vislumbra qualquer motivo da parte de ambas para denunciarem factos falsos. Os factos provados em 5 a 7 referem-se ao elemento subjetivo, cuja prova, por envolver um processo psíquico, salvo se existir uma manifestação espontânea do elemento volitivo por parte do agente, exige uma análise dos elementos probatórios recolhidos de acordo com as regras da lógica e da experiência comum. Assim, considerando a conduta do arguido e o teor do relatório pericial psiquiátrico (referência eletrónica n.º 6065189), resulta provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, ciente da punibilidade da sua conduta, não obstante a sua capacidade para se determinar de acordo com a avaliação que fez sobre a ilicitude dos factos poder estar diminuída. As condições socioeconómicas do arguido (factos provados 8 a 14) foram extraídas do resultado da pesquisa realizada na base de dados da Segurança Social (referência eletrónica n.º 5637156), do teor do relatório pericial psiquiátrico e das suas declarações, nada havendo nos autos que permita colocar em causa a credibilidade das mesmas.
A ausência de antecedentes criminais foi aferida com base no teor do certificado de registo criminal junto aos autos (referência eletrónica n.º 5612416).
V. De Direito
Do crime de importunação sexual
O artigo 170.º do Código Penal pune com pena de prisão de até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, aquele que importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual. O bem jurídico protegido pela incriminação é a liberdade sexual de outra pessoa. O crime de importunação sexual, na vertente do ato exibicionista, é um crime de perigo concreto, quanto ao grau de lesão de bem jurídico, e de resultado, quanto ao modo de consumação, devendo provar-se a importunação5. Os crimes de perigo caraterizam-se por a sua atuação típica implicar agir de modo a criar perigo de lesão de determinados bens jurídicos, enquanto os crimes de dano se caraterizam por o preenchimento do tipo depender da ocorrência da lesão do bem jurídico protegido6. Podemos distinguir entre crime de perigo abstrato, concreto ou abstrato-concreto. No crime de perigo abstrato há uma presunção inilidível de que a conduta típica coloca em perigo o bem jurídico, não sendo necessário que o coloque efetivamente em perigo. Já o crime de perigo concreto pressupõe a colocação em perigo do bem jurídico. No crime de perigo abstrato-concreto, o tipo inclui apenas aquelas condutas que se revelam adequadas a criar perigo para o bem jurídico, cabendo ao tribunal fazer a prova da potencialidade da ação a causa a lesão7. Nos crimes de resultado “verifica-se um efeito sobre o objeto da ação que se distingue espácio-temporalmente da própria ação”, enquanto nos de mera atividade a sua consumação verifica-se apenas pela execução de um comportamento humano8. Quanto ao tipo objetivo, o crime de importunação sexual pressupõe (1) a existência de uma importunação, (2) através de atos de caráter exibicionista, formulação de propostas de teor sexual ou constrangimento a contacto de natureza sexual. Portanto, a importunação terá de resultar do ato exibicionista, do contacto físico ou da formulação de propostas de teor sexual. O ato exibicionista exige qualquer forma de envolvimento à distância da vítima e pressupõe atos ou gestos com significado sexual910. A ação exibicionista pressupõe que a conduta seja realizada pelo autor com o fim de se excitar ou satisfazer sexualmente, independentemente de essa excitação ou satisfação resultar da conduta descrita sem mais ou da simultânea observação da reação da vítima, impondo a terceiro a sua vontade sexual, contra a vontade (o típico exemplo é a exposição dos órgãos sexuais)11. Já a proposta de teor sexual, além de ter de resultar da formulação um convite, uma oferta ou uma sugestão a um ato de natureza sexual (não se bastando com meras palavras, gestos ou escrita de teor sexual), terá ainda de assumir alguma gravidade, sustentando-se na utilização de um tipo de linguagem ostensivamente sexual, rude, com aptidão para despertar na vítima um sentimento de invasão na sua privacidade sexual, sem ter possibilidade ou capacidade de rejeitar um comportamento que lhe é imposto por um terceiro12. O contacto de natureza sexual resultará dos contactos físicos que tenham natureza de um ato sexual, como é o caso do “apalpão” ou do “roçar/pressionar” partes do corpo do agente contra partes do corpo da vítima, bem como dos toques ou gestos efetuados em zonas erógenas do corpo, mesmo que não efetuadas com órgãos sexuais. Sem descurar a existência de alguma forma de “coação, pressão, apertou ou compressão que configure um ato que de uma forma inequívoca cerceia a liberdade sexual da vítima”, subsumível ao constrangimento13.
Quanto ao tipo subjetivo, admite qualquer modalidade do dolo (artigo 14.º do Código Penal). O dolo diz-se direto se aquele que representar um facto que preenche um tipo de crime, atual com intenção de o realizar, artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal. Se o agente representar a realização do facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta, atua com dolo necessário, artigo 14.º, n.º 2 do Código Penal. O dolo eventual implica que o agente represente como consequência possível da conduta a realização de um facto que preenche um tipo de crime, conformando-se com a sua realização no momento em que atua, artigo 14.º, n.º 3 do Código Penal. Tratando-se de ato exibicionista, o agente deve querer importunar a vítima, pelo que o elemento subjetivo exige o dolo de importunar, ainda que não uma vítima em concreto, mas uma pluralidade de pessoas14.
Atendendo à factualidade provada, estão preenchidos os elementos objetivos do tipo. Consta da matéria de facto dada como provada que o arguido, nos dias ........2021 e ........2022, se masturbou na direção de HH e EE, respetivamente, tendo a primeira de o ameaçar por diversas vezes que chamaria a polícia para que o arguido cessasse tal ato, e a segunda de fugir apressadamente do local onde se encontrava (sendo que o arguido, enquanto EE recolhia os seus pertences para ir embora, continuou com a sua conduta).
Falta, contudo, a totalidade dos aspetos que configuram os elementos subjetivos de crime, nomeadamente o dolo de importunar, por não se encontrar enunciado na acusação pública proferida pelo Ministério Público nos autos que o arguido agiu sabia (e quis) que praticava tais atos contra a vontade das vítimas. E a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa15. Encontram-se assim em falta factos integrantes do elemento subjetivo do crime, nomeadamente quanto à determinação livre. Não constando, não pode o tribunal suprir essa insuficiência como se entendeu no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.”. Como se pode ler na sua fundamentação, a acusação tem de narrar todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, ou ao tipo subjetivo e ainda, os elementos referentes ao tipo de culpa. Faltando um desses factos, os factos constantes da acusação não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais. Como tal, nunca poderiam ser integrados, nem com recurso ao artigo 358.º, nem com recurso ao artigo 359.º do Código de Processo Penal, pois estaríamos perante a transformação de uma conduta não punível numa conduta punível, e não uma imputação ao arguido de crime diverso.
Atenta a inexistência dos factos integrantes do elemento subjetivo no tipo de crime em apreço, impõe-se a absolvição do arguido.”
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IV- Do mérito do recurso:
No caso dos autos o recorrente pretende que revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que condene o arguido pela prática dos crimes por que se encontrava acusado.
Para o efeito alega que a sentença proferida pelo tribunal a quo padece do vício da contradição entre a fundamentação e a decisão, na medida em que tendo dado como provados todos os factos constantes da acusação deveria ter concluído pela condenação do arguido, uma vez que tais factos integram o tipo penal pelo qual aquele se encontrava acusado.
Na decisão objecto de recurso entendeu-se, diferentemente, que não se mostravam preenchidos todos os elementos que permitissem a condenação do arguido pela prática do crime de importunação sexual, na medida em que da acusação não constava “o dolo de importunar”, ou seja “que o arguido agiu sabia (e quis) que praticava tais atos contra a vontade das vítimas”
Estatuiu o artigo 410.º, n.º 2 do CPPenal, que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova”.
Ora, deve dizer-se que do citado inciso resulta que qualquer um dos mencionados vícios tem de decorrer da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: isto é, o vício tem de ser verificado sem que se recorra a elementos estranhos à decisão, como por exemplo declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos” (citado no Ac. RL de 15-01-2019, in www.dgsi.pt). Está-se, nestes casos, perante vícios da decisão e não do julgamento.
Nesta hipótese, como supra já se disse, o recorrente entende que se verifica o vício da contradição entre a fundamentação e a decisão, considerando que os factos dados como provados implicavam necessariamente a condenação do arguido pela prática dos crimes de importunação sexual que lhe eram imputados na acusação.
Ora, para que se esteja na presença do citado vício é necessário que se conclua que a fundamentação justificaria uma decisão em sentido oposto ao seguido, ou que se considere que a decisão não fica suficientemente esclarecida atenta a colisão existente entre os fundamentos invocados e o seu sentido.
Nas palavras de SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, in Recursos Penais, Rei dos Livros, pág. 78, terá de se tratar de uma “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente”.
No caso dos autos verifica-se que a discordância do recorrente se prende, na realidade, com uma questão de direito; isto é, determinar se para o preenchimento do crime de importunação sexual se tem de verificar o “dolo de importunar”, como defendido na sentença em recurso, ou se, pelo contrário, os factos dados como provados, designadamente no que tange ao elemento subjectivo, são suficientes para a condenação do recorrido.
Desde já se adianta que se concorda com o defendido na sentença em recurso, nos termos que, de seguida, se procurarão explicitar.
Preceitua o art. 170º do CPenal que “Quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dia, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Na doutrina e na jurisprudência há quem trilhe uma interpretação restritiva do conceito de actos exibicionistas, face à inserção da norma em análise no âmbito dos crimes sexuais.
Assim, ANABELA RODRIGUES e SÓNIA FIDALGO, in Comentário Conimbricense do CPenal, vol II, 2º ed., Coimbra Editora, pág. 818 escrevem que estão aqui unicamente em causa os actos exibicionistas que representem para a pessoa perante quem são praticados “um perigo de que se lhe siga a prática de um acto sexual que ofenda a sua liberdade de autodeterminação sexual”, sendo certo que unicamente em tais casos existirá a prática de tal crime.
As citadas autoras, na obra referida, acrescentam, ainda, que “Desta forma fica definitivamente afastado qualquer entendimento que persista em ver na incriminação da prática de actos exibicionistas a protecção da “moralidade” ou do “pudor” de outrem (…). Não é o acto em si que é passível de punição – por ter, como na maioria dos casos, um significado atentatório daqueles valores – , mas o perigo que representa de constituir uma agressão à (uma violação da) liberdade sexual da pessoa perante a qual é praticado.”
Acrescentam mais à frente que existem, assim, comportamentos exibicionistas que não se mostram criminalizados.
Com efeito, é sabido que o exibicionismo é uma parafilia medicamente caracterizada por envolver a exposição dos genitais do próprio a um estranho. Por vezes o sujeito masturba-se enquanto se expõe (ou enquanto fantasia expor-se). Se a pessoa age sob estes impulsos não há habitualmente qualquer tentativa para continuar a actividade sexual com o estranho. Nalguns casos o sujeito está ciente de um desejo de surpreender ou chocar o observador. Noutros caso o sujeito tem a fantasia sexualmente excitante de que o observador ficará sexualmente excitado (….). E se pode sempre dizer-se que a sociedade não tem que suportar estes comportamentos – que, entretanto, saliente-se, não são sequer perigosos para a liberdade sexual das pessoas –, absolutamente seguro é que não pode proteger-se deles, se e quando se entenda fazê-lo, utilizando para isso o direito penal” – cfr. obra e autores citadas páginas 818 e 819.
Na jurisprudência, há igualmente quem partilhe do citado entendimento – cfr. por todos o Ac do TRE de 07/01/2014, proferido no processo nº 59/11.5GDPTG.E1, in ECLI – considerando-se que «“Acto exibicionista” será um acto ou gesto, relacionado com o sexo, ocorrido perante a vítima.
A “importunação” implica perturbação da vítima na sua esfera sexual
Mais à frente, em tal aresto, afirma-se “Nos casos de vítima “maior”, em que já não está em causa a tutela de um desenvolvimento livre da personalidade sexual (mas apenas da liberdade sexual), o tipo sempre exigiria a prova de factos complementares, dos quais tivesse resultado que o acto exibicionista teria representado, no caso e em concreto, para a pessoa visada, um perigo de que se lhe seguisse a prática de acto sexual que ofendesse a sua liberdade sexual. Só assim se poderia considerar ter sido atingido o bem jurídico protegido por este tipo de crime, o da liberdade sexual, tipo que já não protege o desenvolvimento livre da personalidade sexual de menor de 14 anos.
O que não sucedeu.
Há, contudo, quem entenda – cfr. por todos o Ac. da RG de 23/11/2020, proferido no processo nº 1700/17.1IPBBRG.G1, in ECLI – que será desnecessário para o preenchimento do tipo que o acto exibicionista cause fundado receio da prática de acto sexual com a vítima.
No Acórdão citado explana-se, efectivamente, que “Nesta conformidade e tomando por base o bem jurídico aqui em causa, consideramos como ato exibicionista toda a ação com significado ou conotação sexual de exposição dos órgãos genitais que é imposta a outrem, por ser contra a sua vontade ou então quando a pessoa visada ainda não tem capacidade para manifestar esse consentimento, de modo a perturbar a sua liberdade sexual, no caso dos adultos, ou a violar a proteção da sexualidade e a preservação de um adequado desenvolvimento sexual, no caso dos menores de 14 anos.
Na esteira deste entendimento, afigura-se-nos que, efetivamente, é da própria natureza do ato exibicionista que o mesmo não tenha uma conduta subsequente. O agente satisfaz a sua libido com o ato em si, com a exibição dos seus órgãos genitais de forma a perturbar a vítima, envolvendo-a num contexto sexual, dessa forma atingindo o bem jurídico protegido, ou seja, a liberdade sexual da mesma, na sua dimensão negativa, enquanto liberdade de não suportar condutas que agridam ou constranjam a sua esfera sexual.
O entendimento de que toda a pessoa tem o direito de não se ver envolvida numa atividade sexual sem a sua anuência, como concretização do bem jurídico protegido nos crimes contra a liberdade sexual, permite mais facilmente apreender o sentido do crime de exibicionismo.”
Tal como defendido na decisão objecto de recurso, trata-se de um crime de perigo concreto que exige a verificação de um perigo para a liberdade sexual da vítima, constituindo assim, um crime de resultado em que é necessário, para além da prática de actos exibicionistas, que a vítima tenha sido importunada com a prática daqueles actos; isto é, que através do aludido acto tenha sido colocada em perigo a sua liberdade sexual.
Nas palavras de INÊS FERREIRA LEITE, “A tutela penal da liberdade sexual”, in RPCCriminal, ano 21, nº 1, Janeiro-Março de 2011, pp. 71-73, “Importante é que a pessoa seja importunada com o acto exibicionista ou constrangida a um contacto de natureza sexual. Assim, no primeiro caso cabem apenas aqueles actos exibicionistas que limitem a liberdade de acção da vítima impondo-lhe uma envolvência de carácter sexual, na qual esta é um participante involuntário, e nunca a mera exibição dos órgãos genitais”.
Assim, até se poderá cogitar se da acusação examinada constam os factos que se constituirão como pertinentes aos elementos objectivos que integram o tipo de ilícito analisado… Na verdade, da factualidade descrita na acusação nada consta narrado de onde decorra que os actos exibicionistas levados a cabo pelo recorrido puseram em perigo a liberdade sexual daquelas concretas vítimas, ou que tenha existido alguma actividade do arguido de onde se inferisse que o mesmo pretendia continuar actividade de cariz sexual com qualquer delas. (Aliás, no caso da vítima CC é patente, atento o local em que a mesma se encontrava – à janela da sua casa, estando o arguido na rua – que inexistiu qualquer risco para liberdade sexual desta, tanto mais que a mesma era perfeitamente livre para se afastar da janela e não olhar, sendo patente que o arguido não poderia ter adoptado, de seguida, qualquer conduta que pusesse em perigo o dito bem jurídico protegido pela norma).
Já no que tange ao elemento subjectivo do tipo de ilícito, é certo, como defende o recorrente e foi reiterado no parecer da Sra. Procuradora Geral-Ajunta, que o dolo pode verificar-se, relativamente ao tipo de ilícito em análise, em qualquer uma das suas modalidades.
Contudo, é também patente que o dolo tem, necessariamente, de se estender a todos os elementos do tipo – assim, designadamente, também relativamente ao segmento que consiste em “importunar outra pessoa” – cfr. as autoras e obra que se têm vindo a citar, páginas 821 e 822.
Ora, como referido na sentença objecto de recurso, da acusação não constava que o recorrido tivesse actuado com vontade e conhecimento de que se encontrava, com o respectivo comportamento, a importunar CC e EE.
Sendo assim, é dúvidas não restam que da acusação, diferentemente do defendido pelo recorrente, não constavam os factos necessários para permitir a condenação do arguido pela prática dos crimes que lhe eram imputados.
Por outro lado, como bem refere a sentença posta em crise, a adição dessa específica materialidade – a consciência e vontade de importunar as vítimas – tornaria penalmente ilícitos factos que, da forma como foram narrados, subjectivamente o não são. Ora, essa espécie de actividade é de impossível adopção pelo Tribunal, designadamente atenta a – correcta – orientação que emana do AUJ referido. Justamente, o Ac. 1/2015 de 27 de Janeiro.
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Em suma, conclui-se pela manifesta improcedência do recurso examinado que conduz impreterivelmente à sua rejeição.
V-DECISÃO:
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença proferida.
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Sem custas, por dela estar isento o recorrente.
Notifique.
Lisboa, 5 de Novembro de 2025
Rosa Maria Cardoso Saraiva