Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
546/2008-7
Relator: DINA MONTEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACIDENTE DE TRABALHO
MORTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/26/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: 1. O pedido de indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a morte de um familiar ocorrida no âmbito de um acidente de trabalho, por inobservância das regras de segurança no trabalho, deve ser deduzido contra o empregador, com base na responsabilidade subjectiva do mesmo.
2. O Tribunal Cível é o competente para conhecer deste pedido de indemnização sempre que o requerente não tenha a qualidade de beneficiário legal estabelecida pelos arts. 18º/2 e 20º da Lei 100/97, de 13.Setembro.
(DM)
Decisão Texto Integral:       Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



            I. RELATÓRIO

A…, SA, Ré na acção declarativa de condenação, com processo ordinário, instaurada por C…  no Tribunal Cível de Lisboa, na sua contestação excepcionou a incompetência do Tribunal em razão da matéria, por entender ser competente o Tribunal do Trabalho, nos termos dos artigos 78°/d), e 85°/c), ambos da Lei 3/99, de 13.01, atenta a causa de pedir invocada na acção, no caso, um acidente de trabalho.

O A. replicou sustentando que a acção instaurada destina-se à indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos com a morte de seu pai sendo, assim, baseada na responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do artigo 483° do CC, e não na legislação especial sobre acidentes de trabalho, já que não possui a qualidade do sinistrado nem foi reconhecido como beneficiário legal no processo por acidente de trabalho que correu termos no Tribunal da Barreiro, sob o n° 3523/05.11 1LSB.

            O Sr. Juiz de 1ª Instância proferiu decisão em que julgou procedente a excepção de incompetência material do Tribunal Cível de Lisboa e, nessa conformidade, reconheceu como competente para conhecimento do pedido formulado pelo A. o Tribunal de Trabalho, absolvendo os RR. da instância.

            Inconformado, o A. interpôs recurso desta decisão no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

1. O presente recurso, admitido como de agravo, visa impugnar a decisão do Tribunal a quo que se pronunciou pela sua incompetência material para apreciar o pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

2. Tal decisão julgou procedente, em sede de despacho liminar, a excepção dilatória de incompetência material invocada por um dos RR., absolvendo-os da instância, nos termos dos arts. 105°, n°2, 288°, n°1, al. a), 493°, n°2 e 494°, n°1, al. c).

3. Se bem entende o recorrente, porque nos termos da alínea c), do art. 85° da Lei n° 3/99, de 13/01, compete aos tribunais de trabalho, em matéria cível, conhecer das questões emergentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.

4. Sendo que a tal não obsta o disposto no art. 18° da Lei 100/97, de 13/09, i.e., o n°2 destina-se a alargar a responsabilidade da entidade patronal prevista no n°1 do mesmo artigo.

5. Determinando ainda a decisão que não faria sentido "estilhaçar" a competência para apreciação dos danos emergentes de acidentes de trabalho, atribuindo-os a dois tribunais distintos: ao do trabalho para apreciação dos danos patrimoniais e ao cível para a questão dos danos não patrimoniais.

6. Ora, se assim não é de facto, não entende o Recorrente a decisão anterior do Tribunal do Trabalho relativamente ao processo n° 324/06.3TTBRR, no qual o A. intentou contra a R. A… - M…, S.A., uma acção de responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, por danos não patrimoniais.

7. Com efeito, entendeu a douta decisão que estávamos perante uma acção baseada na responsabilidade civil por factos ilícitos" afirmando ainda que "o Tribunal do Trabalho é competente para as acções emergentes de acidentes de trabalho. Tais acções são as que se fundam na legislação vigente sobre acidentes de trabalho, que estabelece por norma uma responsabilidade objectiva e que confere determinados direitos a sinistrados ou beneficiários, expressamente indicados pelo legislador,"

8. Prosseguindo no sentido de que "a acção intentada não busca o seu enquadramento jurídico na legislação especial sobre acidentes de trabalho. É uma acção típica de responsabilidade civil. O Tribunal do Trabalho pode conhecer de pedidos de indemnização por danos não patrimoniais, mas quando esses pedidos são formulados, no âmbito do processo especial de acidente de trabalho, pelo próprio sinistrado ou pelo beneficiário legal (cfr. AC. RC, de 16/6/1992. CJ, 1992, 38, p. 125). O autor, porém, não possui nem a qualidade de sinistrado, nem foi reconhecido como beneficiário no processo especial de acidente de trabalho, que correu termos."

9. Terminando: "a pretensão deduzida integra-se pois, no âmbito da competência material dos tribunais cíveis. 0 Tribunal do Trabalho do Barreiro, mostra-se pois incompetente, em termos materiais, para conhecer da presente acção."

10. Assim, apesar da responsabilidade civil ser emergente de acidente de trabalho, a mesma não busca o seu enquadramento jurídico na legislação especial sobre acidentes de trabalho.

11. É uma acção típica de responsabilidade civil por factos ilícitos, onde o A. vem, legitimamente, pedir a condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais, nos termos do disposto no art. 483° do C.C.

12. No mesmo sentido, se pronunciou o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, no Proc. n° 436/02, de 11/11/2002 que refere que: "O Tribunal do Trabalho é incompetente para conhecer da questão dos danos morais reclamados pelos recorridos (...). As questões emergentes de acidente de trabalho serão apenas aquelas que advenham objectivamente do sinistro e já não as que respeitem à consciência e à responsabilidade subjectiva que possa ser imputada à entidade patronal – al. c do art. 85° da Lei n° 3/99."

13. Gravoso será se atentarmos ao facto de que o A. já tinha intentado acção com a mesma pretensão no Tribunal de competência especializada em razão da matéria – o Tribunal de Trabalho do Barreiro – o qual se julgou incompetente materialmente como, aliás, transcrevemos nos pontos 7 a 9.

14. Mais, a não ser dado provimento ao presente recurso, nos termos do disposto no art. 32° da Lei n° 100/97, de 13/09, o direito de acção do A. para fazer valer a sua pretensão há muito terá caducado, uma vez que esse mesmo direito (relativamente às prestações fixadas naquela lei) caducam no prazo de um ano a contar da morte do sinistrado.

15. Ora, o sinistrado, pai do A. faleceu em 05/08/2005, o que significa que, a admitir-se que o tribunal onde o A. intentou primeiramente a acção seria realmente o competente em razão da matéria, este direito já caducou há mais de um ano.

16. E tal facto não se deveu a negligência do A., que cuidou de intentar acção naquele tribunal em tempo.

17. A decisão recorrida vai, portanto, causar prejuízo irreparável para o A., o que não se coaduna com o princípio de tutela jurisdicional efectiva, nem com os princípios de Estado de Direito Democrático, tutelados constitucionalmente pelo art. 2° da Lei Fundamental, nomeadamente no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.

18. Estará ainda a mesma em contradição com o dever de não lesar os seus cidadãos no que concerne à garantia de acesso à justiça e de efectivação dos seus direitos, corolário também do principio de "non liquet",

19. o que vem a acontecer quando a decisão do segundo tribunal também se declara materialmente incompetente para conhecer do litígio.

20. Pelas razões supra expostas, pela gravidade da violação das regras de competência em razão da matéria, pela forma como a situação em litígio foi colocada, fundamentando o A. a sua pretensão nos termos do disposto no art. 483° do C.C., e sem deixar de ter em conta toda a situação anterior à propositura da acção no tribunal a quo,
21. Sob pena do A. não mais poder fazer valer o direito que lhe assiste, nomeadamente o de ser ressarcido pela morte de seu pai, em virtude da caducidade já ocorrida,

22. e ainda de, ao não ser ao presente recurso de agravo dado provimento, estarmos perante uma situação de "non liquet", deve ao presente recurso ser dado provimento.

            Conclui, assim, pela anulação da decisão proferida e pela sua substituição por outra que considere o Tribunal Cível de Lisboa o competente para conhecimento do pedido formulado na acção.

            O Sr. Juiz de 1ª Instância sustentou a decisão.

            Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.




            II. FACTOS PROVADOS

1. No dia 05 de Agosto de 2005 faleceu o pai do A. no decurso de um acidente de trabalho sendo então a Ré A…, SA a entidade patronal daquele.

2. Correu termos pelo Tribunal de Trabalho, com o nº 3523/05.1TTLSB, acção de acidente de trabalho em que foi reconhecido como acidente de trabalho aquele que vitimou o pai do A., bem como o nexo causal entre o mesmo e as lesões provocadas tendo a Ré A…, SA, na tentativa de conciliação, aceitado pagar à companheira do sinistrado as quantias devidas a título de subsídio de morte, subsídio de funeral e pensão anual.

3. Em tal acção conclui-se que o acidente ocorreu por falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

4. Nessa acção (referida em 2) a companheira do falecido sinistrado foi considerada como beneficiária legal.

5. No dia 24 de Julho de 2006 o A. instaurou acção de responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, contra A… – M… SA, no Tribunal de Trabalho do Barreiro, que correu termos com o nº 324/06.3TTBRR.

6. No âmbito dessa acção o A. formulou o pedido de condenação da Ré Andais, SA a pagar-lhe a importância de € 25.000,00 acrescida de juros de mora desde a citação, a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte do seu pai, que foi trabalhador daquela.

7. Nesta acção foi proferida decisão que julgou o Tribunal de Trabalho incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção, decisão essa que transitou em julgado.

8. O A. instaurou no Tribunal Cível de Lisboa acção de responsabilidade civil contra a Ré A…, SA, peticionando indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos com a morte do seu pai, ocorrida no âmbito de um acidente de trabalho, acção essa em que foi proferida decisão que julgou aquele Tribunal materialmente incompetente para conhecimento da acção.

9. O Tribunal Cível de Lisboa declarou-se materialmente incompetente para conhecer da presente acção, absolvendo as RR. da instância.




III. FUNDAMENTAÇÃO

            O presente recurso prende-se tão só com a questão da competência material do Tribunal que deve julgar a acção proposta pelo A. em que é peticionada uma indemnização por danos não patrimoniais decorrentes da morte do seu pai, ocorrida no âmbito de um acidente de trabalho.

            A qualificação do acidente como de trabalho não está em causa, assim como também não está em discussão a qualificação do facto que determinou o acidente de trabalho – inobservância das regras de segurança no trabalho.

            E é a dor sofrida pelo A., com a morte do sinistrado, em decorrência do acidente, que constitui fundamento para que aquele, na qualidade de filho, peça a condenação da entidade patronal no pagamento de uma indemnização por tais danos não patrimoniais, pedido esse baseado na responsabilidade subjectiva do empregador.

            Temos, assim, como assente que o pedido e a causa de pedir estão identificados, sendo certo que são estes os elementos que norteiam o destino da acção para efeitos de apuramento da competência material.

            Dispõe o art. 85º/c da Lei 3/99, de 13.Janeiro, que:

            “Compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível:

            […] das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais”.

            Tendo em atenção as diversas disposições reguladoras do Código do Trabalho e dos Acidentes de Trabalho, bem como a data em que ocorreu o acidente – 05.Agosto.2005 – ao mesmo aplicam-se as disposições decorrentes da Lei 100/97, de 13.Setembro (uma vez que a Lei 99/2003, de 27.Agosto, por falta do respectivo Regulamento referente aos Acidentes de Trabalho, não se encontra ainda em vigor).

            Desde logo dispõe o art. 18º da citada Lei 100/97 que:

            “1. Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes:

            a) […]
            b) […]
            c) […]

            2. O disposto no número anterior não prejudica a responsabilidade por danos morais nos termos da lei geral nem a responsabilidade criminal em que a entidade empregadora, ou o seu representante, tenha incorrido.

            3.[…]”.

Este artigo 18º reporta-se, assim, às situações em que o acidente de trabalho é causado por responsabilidade subjectiva do empregador, situação que é aquela que se verifica no presente caso, em que o acidente foi causado por inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.

A discordância entre a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e o A. centra-se no âmbito de aplicação deste art. 18º/2.

Entende o Tribunal recorrido que com este artigo o legislador pretendeu alargar a responsabilidade da entidade patronal, restringindo-a à apreciação do Tribunal de Trabalho. O A., embora concordando com o alargamento de tal responsabilidade da entidade patronal, defende que a respectiva apreciação deve ser efectuada no âmbito de uma acção cível, atenta a sua ausência de qualidade de beneficiário, estabelecida no âmbito do diploma que regula os acidentes de trabalho.

Analisando a questão.

É certo que se prevê, no âmbito de competência do Tribunal de Trabalho, a fixação de uma indemnização devida aos familiares do sinistrado, a ser exercida nas acções de trabalho.

            No entanto, nos termos e para os efeitos do direito laboral, e mais concretamente dos acidentes de trabalho, é necessário apurar se o A. é tido como beneficiário conforme decorre dos arts. 1º e 20º da citada Lei 100/97.

O art. 1º acima referido tem a seguinte redacção:

            “1. Os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais, nos termos previstos na presente lei e demais legislação regulamentar.

            2. […]”.

            O art. 20º/1 do citado diploma indica taxativamente quem são os beneficiários legais com direito a reparação decorrente de um acidente de trabalho, em caso de morte. E ali encontram-se contemplados, desde logo na respectiva alínea c) do art. 20º/1, os filhos do sinistrado desde que à data do acidente tenham as idades e condições ali mencionadas.

            A competência do Tribunal de Trabalho é, assim, desde logo definida com base, por um lado, na ocorrência de um acidente de trabalho, por outro, na qualidade de beneficiário legal.

            É indiscutível que o art. 18º/2 da Lei 100/97 vem alargar o âmbito da competência do Tribunal de Trabalho à apreciação dos danos não patrimoniais decorrentes de um acidente de trabalho. Este alargamento, porém, tem como pressuposto a verificação da qualidade de beneficiário legal, por parte do requerente de tal pedido de indemnização, situação que não se verifica nos presentes autos.

            Com efeito, o ora recorrente não foi reconhecido como beneficiário legal no âmbito da acção especial de acidente de trabalho, ou seja, não se enquadrava nas circunstâncias elencadas no art. 20º/1/c da Lei 100/97. Como tal, não tendo tal qualidade, também não poderia beneficiar da aplicação do art. 18º desse mesmo diploma legal.

            Diga-se, aliás, que em ambas as acções instauradas com vista ao arbitramento de uma indemnização por danos não patrimoniais, quer no Tribunal de Trabalho (cuja cópia da petição inicial está juta aos autos), quer no Tribunal Cível, o A. nunca invocou a sua qualidade de beneficiário legal para efeitos de aplicação da Lei de Acidentes de Trabalho, limitando-se a invocar os danos morais sofridos com a morte do seu pai, sinistrado numa acção de acidentes de trabalho. Ou seja, tudo se passa no quadro de uma acção em que é pedido o ressarcimento de danos morais decorrentes de um acidente de trabalho, causado por culpa da entidade empregadora, como poderia ter ocorrido no âmbito de um qualquer outro evento que tivesse, na sua causa, uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos.

            Concluindo, o A., na qualidade de filho do sinistrado, pode peticionar o ressarcimento dos danos morais sofridos com a morte do pai, direito esse a exercer no âmbito de uma acção a instaurar no Tribunal Cível, atenta a ausência da sua qualidade de beneficiário legal, fixada pela Lei dos Acidentes de Trabalho.



           
            IV. DECISÃO

            Face ao exposto, dando-se provimento ao Agravo, revoga-se a decisão em apreciação que deve ser substituída por outra que considere o Tribunal Cível de Lisboa o competente para conhecer da presente acção, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos.

            Sem custas.



           Lisboa, 26 Fevereiro de 2008



                                                           Dina Maria Monteiro

                                                           Luís Espírito Santo

                                                           Isabel Salgado