Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
124/18.8T8BRR.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO
OBRIGAÇÕES
PERÍODO DE CESSÃO
PRORROGAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Deduzido pedido de exoneração do passivo restante, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, ficando o devedor, durante o período de cessão, obrigado ao cumprimento dos deveres consignados no n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, competindo depois ao fiduciário apresentar um relatório anual, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 240º.º e 241.º n.º 1 do CIRE, que vai permitindo aferir o estado da cessão ao longo do período da mesma.
II- A exoneração, ao abrigo do que dispõe o artigo 244.º e 243.º n.ºs 1, alínea a) e 3, do CIRE, é sempre recusada se o devedor se tiver recusado a fornecer quaisquer informações que comprovem o cumprimento das obrigações a que se encontra adstrito, não se exigindo, neste caso de violação do dever de informação, o prejuízo para a satisfação dos direitos dos credores, pois, muitas das vezes, tal prejuízo é difícil de aferir precisamente por força do comportamento inadimplente do devedor.
III- Interpelado pelo tribunal a informar as diligência realizadas na busca de emprego, a que não deu resposta, e interpelado pelo fiduciário e pelo tribunal a informar e comprovar nos autos os rendimentos mensais de determinado período de tempo, sem que nunca tivesse dado resposta ao pedido concreto da informação solicitada, limitando-se a juntar declarações de IRS que não têm correspondência total com o período de cessão, o insolvente violou o dever de informação imposto pelas alíneas a-) e d) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.
IV- O pedido de prorrogação do prazo de cessão, previsto na Lei n.º 9/2022 de 11/01, pode ser formulado pelo devedor, com vista a evitar a recusa da exoneração, no prazo dos 10 dias que a lei lhe concede para se pronunciar quanto à decisão final de exoneração, tal como decorre da disposição conjugada dos artigos 242.º A n.º 1 al. a) e 244.º n.º 1 do CIRE; a sua formulação em sede de recurso é, assim, extemporânea.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. Relatório:
António (….), apresentou-se à insolvência, pedindo também a exoneração do passivo restante.
No relatório do administrador (155.º do CIRE) é mencionado que o insolvente nasceu a (…), na freguesia e concelho de (..). Casou com Maria (..) em 06 de Setembro de 1980, de quem se veio a separar em 03 de Setembro de 2013.
Reside na Rua (…), em imóvel propriedade de seu filho, sendo o agregado familiar composto apenas pelo insolvente. Encontra-se desempregado desde Agosto de 2016, a receber o rendimento social de inserção em montante que não especificou nem comprovou, apesar de notificado para tal.
O processo de insolvência foi declarado encerrado em 07/06/2018, tendo sido proferido despacho liminar que fixou ao insolvente, para assegurar o seu sustento minimamente digno, o valor correspondente a um salário mínimo nacional, devendo o remanescente ser cedido ao fiduciário, iniciando-se, então, o período de cessão de rendimentos para efeitos de exoneração do passivo restante.
Em 22/07/2019, o Sr. Fiduciário juntou aos autos o relatório do 1º ano da cessão, dando conta que o insolvente informara que se encontrava desempregado, sem auferir qualquer subsídio, e que o seu único rendimento era de árbitro amador "Fundação Inatel" onde auferia 1.300 €/ano.
Foi junta cópia do email que foi enviado pelo insolvente, onde o mesmo dizia também que tinha 57 anos, e estava desempregado, o que era complicado, e que vivia com ajudas dos filhos. Informava ainda que tinha dois acordos com a segurança social, onde pagava mensalmente 56 euros de prestação dos recibos verdes, tendo ainda o montante de cerca de 500 euros pendente, onde iria solicitar o pagamento por prestações.
Foi então proferido despacho, em 22/10/2019, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 239.º, n.º 4, 241.º e 243.º do CIRE, com a notificação pessoal do insolvente e do seu mandatário para informar e comprovar quais as diligências desenvolvidas na procura de emprego.
O insolvente não recebeu a carta enviada, que não foi reclamada, e não foi dada qualquer resposta.
Em 30/06/2020, o Sr. Fiduciário juntou aos autos o relatório do 2º ano da cessão, informando que o insolvente mantém a sua condição de desempregado, não tendo auferido qualquer subsídio, e que informara manter como único rendimento o de árbitro amador no valor 1.350 €/ano.
Foi novamente proferido despacho em 18/11/2020, nos termos do anterior, com a notificação pessoal do insolvente e do seu mandatário para informar e comprovar quais as diligências desenvolvidas na procura de emprego.
Não foi dada qualquer resposta.
Em 25/07/2021, o Sr. Fiduciário juntou aos autos o relatório do 3º ano da cessão, dando conta que o insolvente não prestara qualquer informação, nem comprovara nenhum dos seus rendimentos, tendo sido notificado o seu mandatário, em 14/06/2021 e 17/06/2021, para que comprovasse a situação do insolvente sem que aquele o tivesse feito.
Foi então proferido despacho, em 20/10/2021, a conceder ao insolvente o prazo de 15 dias para juntar aos autos a informação em falta, requerida pelo Sr. Fiduciário, sob pena de o incumprimento poder ser considerado para efeito de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no artigo 243.º do CIRE.
Em resposta, em 05/11/2021, o insolvente juntou Modelo 3 do IRS de 2020, e comprovativos de contribuições da segurança social de 2017 e 2018, em face do que o Sr. Fiduciário veio aos autos dizer que a documentação junta era manifestamente insuficiente, pois o 3.º ano do período de cessão decorrera entre 07/06/2020 e 07/06/2021, pelo que deveria o mesmo ser notificado para prestar as informações a que se estava obrigado, nomeadamente comunicando as actividades a que se dedicou no referido período, enviando os comprovativos mensais de rendimento e entregando a quantia de 345,90 € correspondente ao valor do reembolso do IRS.
Em 22/12/2021, o Sr. Fiduciário reiterou que nenhuma informação adicional o insolvente prestara, tendo sido proferido despacho a determinar a notificação dos credores para, querendo, em 10 dias, virem aos autos dizer o que tivessem por conveniente.
O credor Oney veio então requerer a notificação do insolvente para vir aos autos apresentar a informação em falta e, caso tal não se verificasse, fosse considerado o comportamento reiterado do insolvente, assim requerendo a cessação antecipada, nos termos do artigo 243.º n.º 1 alínea a) do CIRE, por incumprimento das obrigações dispostas n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.
Em 03/03/2022, foi ordenada a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243.º, n.º 3 do CIRE.
O Sr. Fiduciário veio então aos autos, alegar que, pese embora consciente dos deveres que lhe incumbiam, e tendo sido notificado para informar qual a sua situação profissional e comprovar mensalmente o valor dos rendimentos auferidos, desde Junho de 2020 que o insolvente não comprovou nenhum dos seus rendimentos, nem prestou qualquer esclarecimento. Face à ausência de resposta, que considera uma violação com negligência grave dos deveres a que estava adstrito (o dever previsto na al. a) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE) prejudicando a satisfação dos créditos, requereu a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 243.º CIRE e o encerramento do processo.
O insolvente, em requerimento de 11/03/2022, veio informar a sua alteração de residência, dizendo que sempre cumpriu as suas obrigações, tanto mais que na documentação junta com o requerimento anterior explicitava que era trabalhador independente, juntando então os requeridos comprovativos de rendimentos dos anos de 2018, 2019 e 2020, e informando que presta serviços de angariação imobiliária, não auferindo, contudo, qualquer rendimento fixo, juntando contrato, datado de 30/12/2020, para tanto comprovar. Mais alegou que o montante arrogado de € 345,90 foi montante que o insolvente pagou, e não recebeu, como é indicado no requerimento do Administrador de Insolvência. Mais alega que não compreende como pode algum credor considerar que o insolvente incumpriu com as suas obrigações, sendo seu entendimento que não se encontram preenchidos os requisitos da alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE.
Por despacho de 27/04/2022, em face da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, foi ordenada a notificação do Sr. Fiduciário para, tendo em conta os esclarecimentos prestados, em 20 dias vir aos autos juntar relatório final do período da cessão de rendimentos.
O Sr. Fiduciário, em cumprimento do ordenado, veio informar que considera não estarem reunidas as condições para a elaboração de um relatório final, porquanto não dispõe de elementos suficientes por parte do insolvente, assim reiterando que existe da parte do mesmo uma violação dos deveres a que estava adstrito, nomeadamente nas als. a) e d) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE, prejudicando a satisfação dos créditos, requerendo assim a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante, nos termos das als. a) e d) do n.º 1 do artigo 243.º CIRE e o encerramento do processo.
Oney Bank opõe-se à concessão da exoneração do passivo restante e o devedor pronunciou-se no sentido dessa concessão.
Não foi entregue qualquer quantia à fidúcia.
Por despacho proferido em 29/06/2022, o tribunal recorrido recusou a exoneração do passivo restante do devedor António (….) nos termos do disposto nos artigos 244.º n.º 2 e 243.º n.º 1 al. a) do CIRE.
Não se conformando com o teor de tal despacho, dele apelou o insolvente, formulando, a final, as seguintes conclusões, que, pese embora absolutamente prolixas, aqui se reproduzem:
«1. O Tribunal a quo veio recusar, ao Insolvente ANTÓNIO (…), a concessão do benefício de exoneração do passivo restante, alegando para tanto que “a 22 de Julho de 2019, o Sr. Fiduciário juntou aos autos relatório do 1º ano da cessão, dando conta que o insolvente informou que apenas auferira € 1.300,00 anuais, tendo então sido notificado para comprovar as diligências que encetou em busca de emprego, nada tendo respondido”.
Acrescentando,
2. Surpreendentemente, que “a 30 de Junho de 2020, o Sr. Fiduciário juntou aos autos relatório do 1º ano da cessão, dando conta que o insolvente informou que apenas auferira € 1.350,00 anuais, tendo então sido notificado para comprovar as diligências que encetou em busca de emprego, nada tendo respondido”;
3. Prosseguindo o enquadramento que considera factual, refere ainda que, “a 25 de Junho de 2021, o Sr. Fiduciário juntou aos autos relatório do 3º ano da cessão, dando conta que o insolvente não prestara qualquer informação, tendo sido notificado para retificar a situação, após o que apenas juntou as declarações de IRS relativas aos anos de 2017 e 2018, após o que o Sr. Fiduciário requereu a cessação antecipada da exoneração do passivo restante”;
4. Em face disto, entende o Douto Tribunal que: “no caso em apreço, não há qualquer dúvida de que o insolvente não informou dos seus rendimentos nem de busca de trabalho”, o que no entendimento do juiz a quo corresponde, “no mínimo, com negligência grosseira pois, retirando-se os elementos subjetivos dos elementos objetivos, não se compreende a reiterada omissão do cumprimento dos seus deveres e a inconsistência das justificações apresentadas, sempre tardias e incompletas”, concluindo que “com este comportamento, prejudicou os credores, que já podiam ter recebido uma parte considerável dos seus créditos, mas que, na verdade, não sabem sequer qual a quantia em dívida”, entendendo, por isso, que se encontram “reunidos os pressupostos para a não concessão da exoneração do passivo restante” e, por isso decidindo pela recusa da exoneração do passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 244.º, n.º 2 e 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE”;
5. Sucede que, no decurso do período da cessão, o Insolvente todos os documentos que devia ter juntado, nomeadamente os comprovativos dos rendimentos relativos aos anos de 2018, 2019 e 2020, a que correspondem o luxuoso montante global de rendimentos de € 22.702,55 (Vinte e Dois Mil Setecentos e Dois Euros e Cinquenta e Cinco Cêntimos);
E,
6. Na verdade, o Insolvente não deixa de reconhecer que a certa altura se foi perdendo com o cumprimento dos prazos solicitados pelo Fiduciário, nem repudia que, nem sempre tenha existido a organização necessária da sua parte para cumprir com exatidão com os prazos que lhe foram impostos;
E isso sucedeu porque,
7. O processo em apreço causou ao Insolvente um enorme transtorno pessoal e emocional, conduzindo a um intenso quadro e período depressivo que não pode deixar de ser ponderado e valorado nem pelo fiduciário, nem tão-pouco, pelo juiz a quo.
Sendo certo que,
8. O Insolvente em novembro de 2021, enviou uma carta ao Fiduciário contando a sua história, referindo nomeadamente que se encontrava, finalmente, a trabalhar por meio de recibos verdes e à comissão, sem qualquer estabilidade, ou perspetivas de futuro, com todo o risco profissional do seu lado, juntando para tal todos os comprovativos desses factos, mormente, a declaração de rendimentos e o mapa de descontos do Instituto da Segurança Social;
Sucede que,
9. Para o Fiduciário, as explicações expedidas na carta enviada, bem como a documentação com ela junta representativos de um pedaço cru de vida e de dor, não foram tidas como suficientes, nem estas nem o requerimento com a referência n.º 41598891, de 11 de março, onde expõe as razões pelas quais nem sempre cumpriu com os prazos indicados, reiterando ao longo desse requerimento como cumpriu com todas as suas obrigações para com a Lei e o Direito;
10. No fundo, o Insolvente cumpriu, não uma, mas duas ou mais vezes com todas as suas obrigações, juntando toda a documentação necessária para o cumprimento das obrigações decorrentes do procedimento de exoneração do passivo restante;
Assim,
11. É de todo inusitada a decisão do competente despacho de recusa de exoneração do passivo restante, uma vez que, não se pode afirmar sem que seja por claro desconhecimento do processo que se desconhece qual a atividade exercida pelo Insolvente, uma vez que sempre ficou claro que, quando este deixou a situação de desemprego que o atormentou e perseguiu durante muito tempo, este passou a ser trabalhador independente com tudo o que de bom e mau isso representa;
12. Prova proibida, de igual modo, pelo artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa, sendo inconstitucional qualquer interpretação que contrarie este comando Constitucional;
Assim,
13. É, absolutamente, incompreensível como pode o juiz a quo, considerar que a conduta do Insolvente ao longo do processo, pode ser considerada “no mínimo, com negligência grosseira pois, retirando-se os elementos subjetivos dos elementos objetivos, não se compreende a reiterada omissão do cumprimento dos seus deveres e a inconsistência das justificações apresentadas, sempre tardias e incompletas”;
14. Incompreensível, também, porque sempre que o Direito deixa de atentar nas circunstâncias do caso concreto, de pessoas que fazem do Direito e da Lei um organismo vive que se recria a todo o momento, mas também como instrumento de regulação da vida das pessoas, passando a fronteira para o preenchimento acrítico de um conjunto de fórmulas quase matemáticas e mecânicas, desligadas das pessoas conduz a um caminho perigoso de desligamento da realidade fático-normativa;
Sendo certo que,
15. Os rendimentos do Insolvente no período de 2018, 2019 e 2020, ascendem ao luxuoso e faustoso montante global de € 22.702,55 (Vinte e Dois Mil Setecentos e Dois Euros e Cinquenta e Cinco Cêntimos) nos três anos;
16. Não se trata de uma gravação numa caixa postal, não se podendo sustentar que o arguido pretendesse que o ouvissem, o mesmo que tenha feito as referidas chamadas, uma vez que não resulta de mais nenhuma prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento;
17. Quer isto dizer que, dificilmente foi pelo Insolvente, em algum mês, o indexante de rendimentos correspondentes a um salário mínimo nacional, motivo pelo qual não se consegue compreender o motivo pelo qual, o juiz a quo conclui dizendo que, “com este comportamento, prejudicou os credores, que já podiam ter recebido uma parte considerável dos seus créditos, mas que, na verdade, não sabem sequer qual a quantia em dívida”;
18. Mas mesmo que assim não fosse, e se, por algum motivo, hipótese que apenas academicamente se coloca, não tivessem possibilidades de descortinar quais os montantes que deviam ser restituídos à massa e aqueles que, devendo ser restituídos à massa, não o foram, essa é uma responsabilidade que apenas ao Sr. Fiduciário diz respeito e, como tal, qualquer incumprimento que decorra ou falta de informação que exista, em virtude da junção documental do Insolvente, apenas a este pode ser assacada, sendo certo que, também para isso existem mecanismos legais bastantes que não passam, cremos nós, pelo despacho de recusa de concessão da exoneração do passivo restante;
19. Importa salientar que o artigo 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE, estabelece que: “antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o dever tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência”;
Assim,
20. Para que se verifique o preenchimento deste requisito é necessária a existência de uma conduta que seja tida como dolosa ou ferida de grave negligência que redunde na violação das condutas que se lhe encontram impostas pelo artigo 239.º do CIRE prejudicando a satisfação dos créditos insolvênciais;
Sendo certo que,
21. A exiguidade dos rendimentos auferidos no período não permite considerar que, em algum momento, isso aconteceu;
Ora,
22. Como já decidiu o Tribunal da Relação, “como deflui do transcrito inciso, nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração releva como causa de recusa do benefício: a lei é terminante em exigir, por um lado, que se trate de uma prevaricação dolosa ou com negligência grave e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, a satisfação dos credores da insolvência. No que tange ao primeiro dos enunciados requisitos considera-se que o insolvente atua com dolo quando representa um facto que preenche a tipicidade dos deveres a que está adstrito durante o período da cessão, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o insolvente atua dolosamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não diretamente, a violação de um daqueles deveres e, por isso, mesmo que não possua a consciência de que a sua conduta é contrária ao direito. O dolo é intenção – mas não é necessariamente intenção com conhecimento da antijuridicidade da conduta. No que respeita à negligência, exige-se a grave negligência, ou seja, uma atuação com elevado grau de imprudência, intolerável e anormal, merecedora de um especial grau de reprovação.
Exige-se outrossim que a violação, com dolo ou grave negligência, da obrigação que vincula o insolvente provoque um concreto resultado: a afectação da satisfação dos créditos sobre a insolvência” (Ac. do TRP de 14-07-2020, Proc. n.º 6127/10.3TBVFR.P2 (MIGUEL BALDAIA DE MORAIS));
23. É que, e ainda com suporte no mesmo aresto, “a recusa da exoneração do passivo restante com fundamento na violação pelo insolvente, durante o período da cessão, de qualquer obrigação a que esteja vinculado, exige, cumulativamente, uma conduta dolosa ou gravemente negligente desse devedor, um prejuízo para satisfação dos credores da insolvência e bem assim um nexo causal entre aquela conduta e esse dano” (Ac. do TRP de 14-07-2020, Proc. n.º 6127/10.3TBVFR.P2 (MIGUEL BALDAIA DE MORAIS));
24. E esse pequeno e, porventura, fulcral detalhe corresponde o ponto que no caso em apreço não se verificou como foi assaz demonstrado; Mais,
25. E também com apoio no Tribunal da Relação, não nos podemos esquecer que, “a decisão de recusa, pelo juiz, da exoneração do passivo restante pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: a) violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido de exoneração; b) que essa violação decorra de uma actuação dolosa ou com grave negligência do insolvente; c) verificação de um nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação dos créditos sobre a insolvência (artigos 243° e 244°, n.° 2 do CIRE)” (Ac. do TRL de 08-02-2018, Proc. n.º 5038/11.0TCLRS.L1 (MANUEL RODRIGUES));
Ora,
26. É por isso, que não colhem as justificações do juiz a quo quando entende que o Insolvente não informou dos seus rendimentos nem, tão-pouco, dos seus rendimentos;
Assim como,
27. Não colhe considerar que pode ter existido negligência grosseira da parte do Insolvente, uma vez que a fundamentação expedida é no mínimo circunstancial e no máximo rebuscada;
28. Nem, tão-pouco colhe que, mercê desse putativo incumprimento, os seus credores, poderiam ter recebido uma parte considerável dos seus créditos coisa que, de facto não lembra a ninguém, sobretudo quando os rendimentos auferidos pelo Insolvente no período não ultrapassam os € 22.702,55 (Vinte e Dois Mil Setecentos e Dois Euros e Cinquenta e Cinco Cêntimos);
Sendo certo que,
29. Quando chamado a pronunciar-se sobre o deferimento ou indeferimento da pretensão de cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, o juiz a quo proferiu o Despacho de 27-04-2022, com a referência n.º 415079608, em que se limita a referir que: “tendo em conta a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, de 11/01, notifique o Sr. Fiduciário para – nomeadamente tendo em conta os esclarecimentos agora prestados –, em 20 dias vir aos autos juntar relatório final do período da cessão de rendimentos”;
Por isso,
30. Não pode deixar de se questionar como volvidos apenas um par de meses, tomar uma posição assente na recusa de exoneração do passivo restante sem contraditar nenhum dos argumentos expedidos pelo Insolvente, nem tão-pouco proporcionar uma decisão que assegure a melhor aplicação do Direito ao caso concreto; Mais,
31. Não pode deixar de se entender que, a apresentação da documentação completa e inteligível, acrescida de todos os comprovativos de descontos para o Instituto da Segurança Social e o seu contrato de Prestação de serviços, salvo melhor entendimento, são concernentes com a não ocultação de rendimentos ou proveitos, bem como um comportamento de lisura em que permitiu aos credores terem uma informação completa sobre os rendimentos que auferiu no período;
Acrescendo que,
32. É um poder ao dispor do fiduciário, requerer nos termos do disposto no artigo 242.º-A, n.º 1, al. d) do CIRE a prorrogação do período da cessão;
É que,
33. O referido clausulado legal estatui que “o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência” (Sublinhados nossos);
34. Devia ter sido concedida ao Insolvente, assumindo, o inexplicável raciocínio do despacho que ora se coloca em crise, a certeza de qualquer tipo de incumprimento por parte deste, devia ter-lhe sido concedida a oportunidade de cumprir com as suas obrigações e garantir a satisfação dos créditos decorrentes da insolvência, sendo essa aquela que melhor acautelava os interesses dos credores e, bem-assim, a única que respeita o princípio da proibição do excesso na sua vertente de proporcionalidade em sentido estrito;
Aliás,
35. Qualquer interpretação do artigo 242.º-A do CIRE que seja diverso daquele que permita a consideração da norma enquanto uma oportunidade anterior à recusa da concessão do benefício de exoneração do passivo restante, é um entendimento que se encontra em clara violação do princípio constitucional da proibição do excesso na sua vertente de proporcionalidade em sentido, inconstitucionalidade material que, desde já e para os devidos efeitos legais, se alega;
Assim,
36. Et pour cause, era obrigação do fiduciário, com a fiscalização, a proposta de prorrogação do período da cessão e garantia de satisfação dos credores da Insolvência. Se não o fez, e haver algum incumprimento é ao fiduciário que deve ser assacado e não ao Insolvente;
37. A aplicação do Direito não pode ser mecânica e desligada de todos os princípios humanos mais básicos, mas também de todos os princípios jurídicos que, assentes na dignidade da pessoa humana, a colocam no centro de aplicabilidade do Direito, o processo de insolvência singular é, para além de tudo o resto, uma oportunidade de recomeçar de novo e, em cumprimento das obrigações, deixar para trás períodos menos conseguidos da vida de cada um.
V – DO PEDIDO:
Nestes termos, nos mais de direito, e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve:
a) Ser Revogado o Despacho de 29-06-2022, com a Referência n.º 416878613, por este se encontrar em clara contradição com os factos e com o Direito ao caso aplicável, nomeadamente pela não verificação dos requisitos constantes do artigo 243.º, n.º 1, al. a) do CIRE;
b) Ser em alternativa, concedido o benefício de exoneração do passivo restante ao Insolvente nos termos do disposto nos artigos 235.º e seguintes do CIRE; e, hipótese meramente académica que apenas por cautela e dever de patrocínio se levanta,
CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA,
c) Ser prorrogado o período da cessão nos termos do disposto no artigo 242.º-A do CIRE».
Não foram apresentadas contra-alegações nos autos.
O recurso foi admitido, após o que os autos subiram a este Tribunal da Relação, onde foram colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
II. Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, como decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões essenciais que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em aferir se estão preenchidos os pressupostos legais que permitia a recusa definitiva da exoneração do passivo restante do insolvente, conforme foi concluído na decisão recorrida, ou se, pelo contrário, inexiste fundamento legal que o permita, conforme defende o recorrente, devendo assim ser-lhe concedida a exoneração, ou, caso assim não se entenda, aferir se é possível ser prorrogado o período da cessão, nos termos do disposto no artigo 242.º-A do CIRE.
*
III. Fundamentação de facto:
Atentos os elementos que constam dos autos, encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido. 
*
IV. Do mérito do recurso:
Em conclusões recursivas, defende o insolvente, em suma, a ausência de dolo ou de qualquer negligência grave que pudesse sustentar a recusa da exoneração. Reconhecendo que nem sempre deu resposta pronta ao que lhe foi solicitado, o que justifica pelo enorme transtorno pessoal e emocional, e por um intenso quadro e período depressivo que todo o processo lhe causou, alega, contudo, que sempre cumpriu o que lhe foi determinado, dando conta da sua situação nos autos e juntando a documentação que lhe foi sendo solicitada.
Diz, em síntese, que em Novembro de 2021, numa carta que enviou ao fiduciário, contou a sua história, referindo que se encontrava, finalmente, a trabalhar por meio de recibos verdes e à comissão, sem qualquer estabilidade, ou perspectivas de futuro, juntando para tal os comprovativos desses factos, mormente, a declaração de rendimentos e o mapa de descontos do Instituto da Segurança Social, tendo igualmente, no requerimento de 11 de Março de 2022 que endereçou aos autos, enviado a documentação comprovativa da sua situação, de onde resulta que nos três anos de período de cessão, 2018 a 2020, os seus rendimentos ascenderam ao montante global de € 22.702,55.
Donde, conclui, dificilmente foi atingido em algum mês um rendimento correspondente a um salário mínimo nacional, mas, mesmo que por algum motivo alguma dificuldade existisse em descortinar quais os montantes que deviam ser restituídos à massa e aqueles que, devendo ser restituídos, não o foram, essa seria uma responsabilidade do Sr. Fiduciário que não lhe pode ser imputada.
Não obstante, termina a dizer, a exiguidade dos rendimentos auferidos e a apresentação da documentação completa e inteligível, acrescida de todos os comprovativos de descontos para o Instituto da Segurança Social e o seu contrato de prestação de serviços, não são concernentes com uma ocultação de rendimentos ou proveitos, pautando-se assim o seu comportamento por lisura, permitindo aos credores terem uma informação completa sobre os rendimentos que auferiu.
Vejamos então, sem esquecer que a decisão recorrida veio a recusar a concessão da exoneração do passivo restante por violação da obrigação prevista na alínea a), do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, ou seja, violação dolosa com grave negligência das obrigações impostas pelo aludido artigo 239.º, n.º 4, alíneas a) e b) do mesmo código.
Para sustentar tal decisão diz-se que «Ora, no caso em apreço, não há qualquer dúvida de que o insolvente não informou dos seus rendimentos nem de busca de trabalho.
E fê-lo, no mínimo, com negligência grosseira pois, retirando-se os elementos subjetivos dos elementos objetivos, não se compreende a reiterada omissão do cumprimento dos seus deveres e a inconsistência das justificações apresentadas, sempre tardias e incompletas.
Com este comportamento, prejudicou os credores, que já podiam ter recebido uma parte considerável dos seus créditos, mas que, na verdade, não sabem sequer qual a quantia em dívida.
Estão assim reunidos os pressupostos para a não concessão da exoneração do passivo restante».
Apreciando.
O instituto da exoneração do passivo restante encontra-se previsto nos artigos 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), e, como escreve Catarina Serra (na obra “O Novo Regime Português da Insolvência - Uma Introdução”, págs. 73 e 74) tem como objectivo «a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua atividade económica».
Resulta também da exposição de motivos que consta do diploma preambular do diploma que aprovou o CIRE (Dec. Lei nº 53/2004 de 18/03) que “o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica” - ponto 45.
Deduzido o pedido de exoneração do passivo restante, cumpre então verificar se não existe motivo para o seu indeferimento liminar, à luz do artigo 238.º do CIRE, e, admitido o mesmo, uma eventual recusa de exoneração após o período de cessão, de acordo com o n.º 2 do artigo 244.º do CIRE, dar-se-á depois pelos mesmos fundamentos, e com subordinação aos mesmos requisitos, da cessação antecipada do procedimento de exoneração, tal como este se encontra regulado no artigo 243.º do CIRE.
Neste enquadramento, e ao que ao caso agora interessa, o juiz deve recusar a exoneração (não se tratando assim de um qualquer poder discricionário), quando, como preceitua o aludido 243.º n.º 1, na sua alínea a) «(…) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência» (sublinhado nosso).
Neste contexto, e em primeiro lugar, cumpre então verificar se, na verdade, foi ou não incumprida pelo insolvente, ao longo do período de cessão, alguma obrigação que sobre si impendesse.
Por referência ao normativo citado, consagra o artigo 239.º, n.º 4, do CIRE, que: «Durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o Tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores» (sublinhado nosso).
Dos autos, quanto a nós, estão em causa as obrigações mencionadas nas alíneas a) e d), acima sublinhadas (e não b), como consignado na decisão recorrida, o que de seguida se fundamenta) do aludido normativo.
Vejamos porquê.
No último ano de cessão (período de 09/06/2020 a 09/06/2021, em face da entrada em vigor da Lei 9/2022), o insolvente nada informou, de forma imediata, por si, sem necessidade de interpelação para esse efeito, como é próprio de um bom cumpridor, sobre os seus rendimentos. Foi o seu mandatário então notificado, em 14/06/2021 e 17/06/2021, para que comprovasse a situação do insolvente sem que aquele o tivesse feito.
Foi depois proferido despacho a conceder ao insolvente o prazo de 15 dias para juntar a informação em falta, requerida pelo Sr. Fiduciário, tendo o insolvente, em resposta, juntado o Modelo 3 do IRS de 2020, e comprovativos de contribuições para a segurança social de 2017 e 2018, em face do que o Sr. Fiduciário veio aos autos dizer que a documentação junta era manifestamente insuficiente, pois o 3.º ano do período de cessão decorrera entre 07/06/2020 e 07/06/2021, pelo que deveria o mesmo ser notificado para prestar as informações a que se estava obrigado, nomeadamente, comunicando as actividades a que se dedicou no referido período, enviando os comprovativos mensais de rendimento e entregando a quantia de 345,90 € correspondente ao valor do reembolso do IRS.
Em 22/12/2021, o Sr. Fiduciário reiterou que nenhuma informação adicional o insolvente prestara e, mais tarde, no silêncio do insolvente, veio requerer a cessação antecipada do benefício de exoneração do passivo restante, nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 243.º CIRE e o encerramento do processo.
Só então o insolvente veio aos autos informar a sua alteração de residência, dizendo que sempre cumpriu as suas obrigações, juntando comprovativos de rendimentos dos anos de 2018, 2019 e 2020, e informando que presta serviços de angariação imobiliária, não auferindo, contudo, qualquer rendimento fixo, juntando contrato, datado de 30/12/2020, para o comprovar. Mais alegou que o montante arrogado de € 345,90 foi montante que o insolvente pagou, e não recebeu, como se retira dos documentos juntos.
O Sr. Fiduciário novamente considerou que os documentos não eram suficientes, por não incidirem sobre os meses em falta, Julho de 2020 a Junho de 2021, dizendo ainda que as declarações de IRS de 2018 a 2020 não permitem aferir do rendimento mensal para os anos de cessão (que não anos civis).
Em resumo, e como vemos, no que concerne à obrigação de informar o Tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos no prazo em que isso lhe seja requisitado, o insolvente cumpriu tarde a sua obrigação e cumpriu-a de forma insuficiente.
Como efeito, e por um lado, para além da junção tardia da documentação em causa - no que concerne ao último ano de cessão, pois que essa o insolvente foi expressamente notificado para juntar (despacho de 20/10/2021) - verifica-se, desde logo, que a mesma não permite aferir da totalidade do rendimento relativamente ao 3.º ano de cessão, que compreende os meses de Julho de 2020 a Junho de 2021, e embora o Sr. Fiduciário salientasse nos autos a necessidade do insolvente informar as actividades a que se dedicou no referido período, enviando os comprovativos mensais de rendimento, aquele não o fez. Note-se que das declarações de IRS que o insolvente acabou por juntar resulta apenas que o mesmo é trabalhador independente e que no ano 2018 os rendimentos obtidos e declarados atingiram o valor de 569,89 euros, no ano de 2019, o valor de 10.171,92 euros e no ano de 2020, o valor de 11.969,98 euros.
No que concerne à obrigação de exercer uma profissão remunerada e de procurar diligentemente tal profissão, na verdade, não sabemos se o insolvente por tanto diligenciou, o que sabemos, obrigação que não cumpriu, é que durante os três anos do período de cessão, ainda que expressamente notificado para o efeito, nunca informou o tribunal e o fiduciário sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego (al. c). E para tanto foi notificado em 22/10/2019 e 18/11/2020.
Com efeito, nada referiu nos autos sobre as diligências por si encetadas na busca de um emprego, limitando-se, já em Março de 2022 (nenhuma carta foi junta, como faz referência, dirigida ao fiduciário em Novembro de 2021), a informar que presta serviços de angariação imobiliária, não auferindo, contudo, qualquer rendimento fixo, juntando contrato datado de 30/12/2020.
Aqui chegados, cumpre agora perguntar se as violações ocorridas poderão ser qualificadas de conduta culposa, por gravemente negligente, que seja de moldes a permitir a recusa da exoneração do passivo restante, como concluído na decisão recorrida.
Não tendo havido cessação antecipada do procedimento de exoneração, como acabou por não ocorrer nos autos, incumbe então ao juiz, decorrido o período de cessão, proferir despacho, decidindo, em definitivo, pela concessão ou não da exoneração do passivo restante, após ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência (n.º 1 do artigo 244.º do CIRE).
Tendo o credor Oney e o fiduciário tomado posição no sentido de ser recusada ao insolvente a pretendida exoneração, a estes compete, pois, a prova dos factos integrativos dos fundamentos dessa recusa.
Vejamos então.
Em primeiro lugar, e desde logo, o próprio insolvente admite uma atitude negligente no comportamento por si assumido, ao aceitar que nem sempre deu resposta pronta ao que lhe foi solicitado; não obstante, e ainda assim, considera que não agiu de forma grave, pois que acabou por cumprir com as suas obrigações.
Não é verdade que assim seja e não podemos esquecer que, traduzindo-se o instituto da exoneração do passivo restante, como vimos, num benefício concedido aos insolventes, impõe-se que estes, como contrapartida e de boa fé, observem um determinado número de condutas e deveres, tipificados na lei, tal como resulta do artigo 239.º do CIRE.
E o devedor está obrigado a cumprir de forma proficiente as obrigações que decorrem da lei, nomeadamente as do já mencionado artigo 239.º n.º 4 do CIRE.
Alegando que esteve no desemprego impunha-se, por um lado, que assumisse uma postura activa na procura de trabalho remunerado, por forma a poder cumprir as suas obrigações, dando naturalmente conta ao tribunal das diligências que fez nesse sentido. Nunca esclareceu o tribunal o que fez na busca de um emprego, se se inscreveu num centro de emprego, se respondeu a alguns anúncios, se foi a alguma entrevista. Nada. Tal postura passiva e tal omissão no dever de informar, pese embora não tenha sido sancionada com a cessação antecipada do procedimento, não impede que, findo este, tal postura seja considerada no comportamento global a ter em conta para a decisão a proferir.
Tanto mais que, e como salientou o Sr. Fiduciário nos autos, o insolvente informara que nos dois primeiros anos de cessão - Junho de 2018 a Junho de 2020 - mantivera a sua condição de desempregado, não tendo auferido qualquer subsídio, e que o seu único rendimento era de árbitro amador, auferindo 1.350 €/ano, o que, em bom rigor, não tem correspondência com as declarações de IRS que posteriormente juntou aos autos.
Em bom rigor, diz que é trabalhador independente, mas não sabemos em que área desenvolve a sua actividade, pois que não o disse, limitando-se, só em Março de 2022, a juntar um contrato de prestação de serviços outorgado em Dezembro de 2020.
Para além disso, tendo o Sr. Fiduciário, mais que uma vez, alertado nos autos que não podia elaborar relatório final por falta de documentação suficiente, desde logo referente ao 3.º ano do período de cessão, insistiu o insolvente que toda a documentação foi junta. Não foi e tem necessariamente que o saber. O último ano de cessão vai de Junho de 2020 a Junho de 2021, logo a mera declaração de IRS referente ao ano de 2020 não é suficiente. E os seis meses de 2021? Nada auferiu? Ao invés de explicar o motivo pelo qual não juntara a documentação junta – dos seus rendimentos mensais - eventualmente, aproveitando o momento para prestar as informações em causa e documentá-las, optou por não o fazer, insistindo que cumpriu com tudo a que estava obrigado.
É, pois, evidente a insuficiência da documentação junta para comprovação dos rendimentos auferidos. O insolvente não juntou aos autos nenhum documento comprovativo dos rendimentos auferidos de Janeiro a Junho de 2021, e o período de cessão ocorreu entre Junho de 2018 a Junho 2021 (não bastando assim a declaração de IRS de 2020).
Acresce que, cumpre notar, o valor da retribuição mínima mensal garantida foi fixada, no ano de 2018, em 580,00 euros (DL 156/2017 de 28/12), em 2019, 600,00 euros (DL 117/2018 de 27/12), em 2020 em 635,00 euros (DL 167/2019 de 21/11) e em 2021, em 665,00 euros (DL 109-A/2020 de 31/12), o que, em face dos valores declarados para efeitos de IRS, se indicia das declarações juntas que o insolvente teria de ter entregue valores à fidúcia, que não entregou (veja-se, a título de exemplo, auferiu no ano de 2019, o valor de 10.171,92 euros, o que declarou e em recurso afirmou ter ganho, o que implica um rendimento mensal, na falta de outros elementos que o insolvente optou por não juntar, de 847,66 euros, num ano em que o salário mínimo atingia o valor de 600,00 euros).
Argumenta o Recorrente que dificilmente, em algum mês, atingiu o indexante de rendimentos correspondentes a um salário mínimo nacional, o que, dos documentos juntos não se afigura correcto, mas que, ainda que assim fosse, e se por algum motivo os credores não tivessem possibilidades de descortinar quais os montantes que deviam ser restituídos à massa e aqueles que, devendo ser restituídos à massa, não o foram, essa é uma responsabilidade que apenas ao Sr. Fiduciário diz respeito. Esquece-se, por um lado, que não é fiduciário que tem de o interpelar a entregar à fidúcia o montante que excede um salário mínimo nacional como lhe havia sido fixado, pois que era sua obrigação faze-lo, mensalmente e forma espontânea, como decorre da lei e é próprio de um bom cumpridor. A falta de informação sobre os seus rendimentos mensais, reitera-se, que, de resto, foi interpelado a documentar, implicaria que o fiduciário, e os credores, desconhecessem qual o valor que o mesmo auferia mensalmente e que valor estaria obrigado a entrega à fidúcia.
Por outro lado, diz o insolvente que é necessária a existência de uma conduta que seja tida como dolosa ou ferida de grave negligência que prejudique a satisfação dos créditos insolvências, o que nos autos, considerando a exiguidade dos rendimentos auferidos, não aconteceu.
Olvida o insolvente que o n.º 3 do artigo 243.º do CIRE que prescreve, na sua 2ª parte, que “a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.”
Enquanto a violação dos demais deveres previstos impostas pelo artigo 239.º, n.º 4, apenas é fundamento de cessação antecipada do procedimento e/ou de recusa da exoneração se, como vimos, o comportamento do devedor for praticado com dolo ou negligência grave e, cumulativamente, acarretar prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, a violação do dever de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado, gera a consequência expressamente prevista na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º.
Nos autos, o devedor foi interpelado, pelo fiduciário e pelo tribunal, para prestar informações sobre as diligências encetadas na busca de emprego e sobre o seu rendimento (mensal e mão anual), inclusivamente através do seu mandatário, e não deu resposta a esses concretos pedidos de informação que lhe foram solicitados.
Neste enquadramento, a violação de tal obrigação de informação, implica necessariamente a recusa, não se exigindo, neste caso, o prejuízo para a satisfação dos direitos dos credores (ver, neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 10/05/2021, relatado por Mendes Coelho, assim sumariado «I – Como decorre da segunda parte do nº3 do art. 243º do CIRE, a exoneração do passivo restante é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações; II – Na situação ali prevista, não se exige que a omissão de prestação de informações determine prejuízo para a satisfação dos direitos dos credores, constituindo a recusa de exoneração uma sanção para o devedor inadimplente»).
A circunstância de não ter ocorrido revogação antecipada da exoneração não permitia que o devedor confiasse ou tivesse como expetável que a sua atuação não seria censurada a final e que beneficiaria da concessão da exoneração.
Em conclusão, a postura do insolvente impediu os credores, o fiduciário e o tribunal de verificar, no concreto, se ficaram por entregar valores à fidúcia e é esse comportamento que se censura, que não é diligente, que não é de um bom pai de família, como alude o n.º 2 do artigo 487.º do CC. Todas as dúvidas que ressaltam dos autos, ao nível dos rendimentos auferidos, apenas existem por força da violação do dever de informação que incidia sobre o insolvente, obrigação que não cumpriu devidamente, escudando-se em afirmações genéricas, assim se impondo concluir que o insolvente que não demonstrou uma conduta recta exigível para efeitos de exoneração do passivo restante, havendo como tal que se confirmar o sentido da decisão recorrida, que recusou a exoneração. Veja-se, neste sentido, o acórdão desta Relação de Lisboa, de 23/02/2020, relatado por Vera Antunes, e disponível na dgsi, assim sumariado: «I- Para o preenchimento da previsão do art.º 243º, n.º 1, a) do CIRE é necessário, para além da violação dos deveres aí previstos por parte do insolvente, que se verifique em concreto um prejuízo para os credores da insolvência e da omissão de informações resulta que não se pode avaliar da existência desse prejuízo. II - Mas já o mesmo não se pode dizer quanto à previsão do art.º 243º, n.º 3, parte final do CIRE, que se julga consistir na previsão pelo julgador das consequências aplicáveis a casos como o dos autos, em que há omissão de informação, sem que seja possível enquadrar a mesma nas previsões anteriores, precisamente por não ser possível apurar do concreto prejuízo para os credores. III - A não ser assim, resultaria que a omissão de informações por parte dos insolventes redundaria num benefício para os mesmos – bastava nada dizer ou informar (sendo este um ónus que a Lei impõe a seu cargo, como contrapartida do benefício que supõe a exoneração do passivo restante) e, já agora, nenhum rendimento entregar, para que não se pudesse concluir pela verificação de todos os requisitos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, uma vez que não seria possível averiguar do concreto prejuízo para os credores»).
Finalmente, e a título subsidiário, diz ainda o insolvente que é um poder ao dispor do fiduciário, requerer, nos termos do disposto no artigo 242.º-A, n.º 1, al. d) do CIRE, a prorrogação do período da cessão, o que aquele poderia ter feito, podendo assim ter sido concedida ao Insolvente, no pressuposto de um qualquer tipo de incumprimento por parte deste, a oportunidade de cumprir com as suas obrigações e garantir a satisfação dos créditos decorrentes da insolvência, sendo essa aquela que melhor acautelava os interesses dos credores e, bem-assim, a única que respeitava o princípio da proibição do excesso na sua vertente de proporcionalidade em sentido estrito. Por essa razão, termina pedindo, no caso de não lhe ser concedida de imediato a exoneração, a prorrogação do período da cessão.
Vejamos pois.
Como é consabido, a Lei n.º 9/2022, tida em conta nos autos, passou a estabelecer um período de cessão mais curto (três anos) e a possibilidade de prorrogação desse período por igual tempo, ou seja, um prazo máximo de cessão de seis anos e por uma única vez (artigo 242.º-A, aditado).
A legitimidade para deduzir o pedido de prorrogação é facultada a qualquer interveniente processual (devedor, credor, administrador da insolvência e fiduciário), pelo que, nenhum sentido faz como pretende o insolvente, podendo ele próprio pedir a prorrogação, obrigar o fiduciário a fazê-lo, ou, retirar quaisquer consequências legais por este não o ter feito.
O pedido de prorrogação, tal como resulta da nova lei, pode ser formulado em caso de violação pelo devedor de alguma das obrigações impostas pelo artigo 239.º, com prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, com vista a evitar a recusa da exoneração, seja a título de recusa antecipada (artigo 243.º), seja no âmbito de uma decisão final (artigo 244.º). Sendo perspectivado, como no presente caso, em alternativa à recusa definitiva, o devedor deve fazê-lo no prazo dos 10 dias que a lei lhe concede para se pronunciar quanto à decisão final de exoneração (ver, neste sentido, Acórdão deste tribunal e secção, proferido em 06/12/2022, relatado por Isabel Fonseca, no proc. 35/13.3TBPVC.L1).
A sua formulação em sede de recurso é, assim, extemporânea, pelo que se impõe a improcedência de tal pretensão em sede recursiva.
Improcede, pois, a apelação.
*
V. Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a presente apelação, assim confirmando o despacho recorrido, ainda que não totalmente com a mesma fundamentação.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
Registe e notifique.

Lisboa, 15/12/2022
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Nuno de Magalhães Teixeira