Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
472/21.0Y5LSB.L1-5
Relator: PAULO BARRETO
Descritores: LEI TEMPORÁRIA
LEIS COVID
SUSPENSÃO DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
PROCEDIMENTO CONTRAORDENACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - Os prazos de prescrição visam sancionar lapsos de tempo consideráveis e injustificados sem andamento do processo, não sendo de todo exigível que os visados estejam, por tempo irrazoável, sob procedimento administrativo ou criminal ou à espera do cumprimento de uma contraordenação ou pena. Há um tempo razoável para fazer justiça, consagração de um processo justo e equitativo, previsto no art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e no art.º 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
II – A especialíssima legislação – Leis n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e n.º 4-B/2021, de 01.02, -  foi implementada num período particularmente severo da pandemia, que obrigou as pessoas a permanecer em casa, em confinamento, sendo muito apertadas as excepções em que dela podiam sair. As pessoas estiveram impedidas de se deslocar aos tribunais e aos serviços administrativos, excepto em situações de manifesta urgência.
III - Esta situação sanitária de extrema excepcionalidade justifica que a suspensão dos prazos de prescrição que vigoraram desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril) se aplique a todos os processos, mesmo os já pendentes à data do início do confinamento e relativos a factos anteriores. Se as pessoas não se podem deslocar aos tribunais e serviços, não é possível realizar diligências probatórias, instruir, cumprir e fazer tramitar processo físicos. Por isso, desde que os processos estejam pendentes, são aplicáveis tais prazos de suspensão da prescrição. (Sumariado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório
No Juiz 1 do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferida sentença a julgar improcedente o recurso interposto por DG e, em consequência, manter integralmente a decisão administrativa proferida pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que o condenou no pagamento de uma coima e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 60.º n.º 1 e 65.º, alínea a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro, e artigos 138.º e 146.º, alínea o), ambos do Código da Estrada.
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Inconformado, DG  interpôs recurso, concluindo do seguinte modo:
“ A. Da Prescrição:
1. Atento o prazo decorrido, desde a prática da alegada ínfração rodoviária, entende o Recorrente que ocorreu a prescrição dos presentes autos contraordenacionais, ao abrigo do artigo 188° do Código da Estrada, e conforme decisões da ANSR e Jurisprudência invocada (AC. STJ, Proc. nº 1615/08 – lª Secção);
2. O Recorrente defende que o prazo de 2 anos para efeito de prescrição consagrado no artigo 188°, nº 1 do CE é perentório e autónomo;
3. Assim, sendo este normativo não será passível de remissão;
4. De facto, o nº 2 deste artigo 188° do CE, esse sim, remete expressamente para o RGCO;
5. Deste modo, à contagem do "prazo da prescrição" previsto no n° 1 do artigo 188° do CE não se aplica o RGCO, pelo que, o prazo da prescrição nas transgressões rodoviárias é o ali previsto, ou seja, 2 anos;
6. A alegada infração sub judice ocorreu há mais de 2 anos;
7. A este prazo de 2 anos, acresce o prazo da suspensão da prescrição, que será no máximo de 6 meses;
8. Assim, com a aplicação subsidiária do RGCO, relativamente à "suspensão" e "interrupção" da prescrição, o prazo da prescrição, in casu, será de 2 anos e 6 meses (já contando o prazo máximo de 6 meses de suspensão da prescrição);
9. Considerando a data da alegada infração - 25 de Novembro de 2018 - os presentes autos prescreveram no passado dia 25 de Maio de 2021, decorridos que foram mais de 2 anos e 6 meses, o que aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
B. Da Nulidade:
10. Sem prejuízo do exposto sempre se dirá que os presentes autos encontram-se feridos de nulidade, na medida em que, violam, claramente, os artigos 50° e 58°, do RGCO;
11. Este artigo impõe que as decisões condenatórias que aplicam as coimas ou sanções acessórias, deverão conter diversos elementos e informações, concretas, e objetivas, da alegada infração, o que não sucede nos presentes autos;
12. A acusação peca por excesso de defeito de omissão pois:
- Não indica qual o sentido de marcha do veículo.
- Não indica se virou à direita.
- Não indica se virou à esquerda.
- Não indica se o Arguido transpôs a linha longitudinal contínua e voltou à via.
- Não indica se efetuou uma ultrapassagem.
_ Concluindo, não indica, em concreto nem, em que circunstâncias, terá sido efectuada a alegada manobra ilícita;
13. Sabemos, sim, que não houve qualquer acidente, nem sequer perigo, ou embaraço para o demais trânsito rodoviário, ou pedonal aliás, é a única coisa que o Arguido consegue saber ... ;
14. Este vazio de conhecimento, i.e., omissão dos factos, e provas, provoca uma nulidade insuprível, nos presentes autos, o que, desde já, aqui se invoca, para todos os devidos e consequências legais.
C. Das Normas Jurídicas Violadas -Artigo 412.º do CPP:
a) Atento o exposto, e, sempre com o devido e máximo respeito, somos do parecer que houve violação de diversas normas jurídicas,
b) Concretamente, existiu uma violação ao artigo 188° do CE, pois deveria ter sido considerado que ocorreu a prescrição nos presentes autos em virtude de ter decorrido mais de 2 anos desde a prática da alegada infração rodoviária;
c) Os presentes autos enfermam ainda de nulidade por clara violação aos artigos 50° e 58° do RGCO, como também, do artigo 32°. n.º 10 da CRP”.
O Ministério Público veio apresentar resposta, sem oferecer conclusões, mas pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP.
Proferido despacho liminar e dispensados os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II – A) Factos Provados
1. No dia 25 de novembro de 2018, pelas 09:15 horas, na Avenida Brasília, em frente ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, DG , conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, transpôs a linha longitudinal contínua (M1) separadora de sentidos de trânsito existente no local.
2. Ao agir da forma descrita o recorrente não atuou com o cuidado a que estava legalmente obrigado e que se lhe impunha.
3. O recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima que lhe foi aplicada no âmbito dos presentes autos.
4. O recorrente não tem averbada no seu Registo Individual de Condutor a prática de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave.
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Inexistem factos não provados.
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III - Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
São os seguintes os fundamentos do recurso: (i) da prescrição; (ii) da nulidade por violação dos artigos 50° e 58°, do RGCO.
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IV – Fundamentação
(da prescrição)
A data da contraordenação é a de 25.11.2018.
O art.º 188.º, n.º 1, do Código da Estrada, determina que o procedimento por contraordenação rodoviária extingue-se por efeito da prescrição logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos.
O n.º 2 do mesmo artigo determina que a prescrição do procedimento por contraordenação rodoviária interrompe-se também com a notificação ao arguido da decisão condenatória, o que ocorreu no dia 14 de Agosto de 2019.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição – art.º 121.º, n.º 2, do Código Penal, aplicável por força dos artigos 32.º do Decreto-Lei n.º n.º 433/82, de 27.10 (RJIMOS) e 188.º, n.º 2, primeira parte, do Código da Estrada.
A lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, que introduziu medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, veio, no seu art.º 7.º, n.ºs 3 e 4, versão primitiva, determinar que a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional.
Também a lei n.º 4-B/2021, de 01.02, no seu art.º 6.º-B, n.ºs 3 e 4, veio outrossim determinar que são igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1, regime que prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
Tais prazos de suspensão da prescrição vigoraram desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 e de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021 (cfr. art.ºs 6.º-A, 7.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, e 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril).
Os prazos de prescrição visam sancionar lapsos de tempo consideráveis e injustificados sem andamento do processo, não sendo de todo exigível que os visados estejam, por tempo irrazoável, sob procedimento administrativo ou criminal ou à espera do cumprimento de uma contraordenação ou pena. Há um tempo razoável para fazer justiça, consagração de um processo justo e equitativo, previsto no art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e no art.º 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Todavia, esta especialíssima legislação foi implementada num período particularmente severo da pandemia, que obrigou as pessoas a permanecer em casa, em confinamento, sendo muito restritas as excepções em que dela podiam sair. As pessoas estiveram impedidas de se deslocar aos tribunais e aos serviços administrativos, excepto em situações de manifesta urgência.
Esta situação sanitária de extrema excepcionalidade também justifica que a suspensão dos prazos de prescrição se aplique a todos os processos, mesmo os já pendentes à data do início do confinamento e relativos a factos anteriores. Se as pessoas não se podem deslocar aos tribunais e serviços, não é possível realizar diligências probatórias, instruir, cumprir e fazer tramitar processo físicos. Por isso, desde que os processos estejam pendentes, é aplicável o prazo de suspensão da prescrição.
Como se refere no AC. da Relação de Lisboa, de 16.03.2021, processo n.º 309/20..7YUSTR.L1-PICRS, há que ter em conta as seguintes circunstância:
“ 1.- O quadro motivador da norma questionada é de excepção constitucional, ou seja, de parentesis na tutela dos direitos, liberdades e garantias;
2.- A vigência do dispositivo é transitória;
3.- O mecanismo excepcional funciona por reforço do poder público;
4.- Tal mecanismo é instrumental fazendo corresponder a uma situação de ruptura e anormalidade uma solução orientada para a consecução da sua cessação;
5.- Tem expressão em diversas normas constitucionais e numa lei aglutinadora de soluções;
6.- A suspensão de direitos não é incondicional e irrestrita devendo, entre outros, respeitar, desde a declaração à execução, o princípio da proporcionalidade e da necessidade estrita, tudo nos termos do estabelecido no n.º 4 do já invocado art. 19.º da Lei Fundamental;
7.- A baliza instrumental corresponde ao «pronto restabelecimento da normalidade constitucional» – ibidem;
8.- A medida de suspensão dos prazos de prescrição tem relação umbilical com a crise sanitária sendo proporcionada à enormidade e carácter inusitado dos efeitos da pandemia;
9.- O n.º 1 do artigo 27.º-A do RGCO contém, a propósito da suspensão, enunciado não taxativo, ao ressalvar os casos previstos na lei;
10.- A dispersão normativa assim admitida não agride os princípios da legalidade e sua derivada tipicidade que requerem enunciado, verbalização precisa, mas não exigem concentração das fórmulas ou carácter coevo do enunciado podendo, pois, a norma constar de um diploma autónomo e ser posterior;
11.- O Decreto-Lei que aprovou o RGCO (n.º 433/82) não tem, sequer, superior grau hierárquico face à Lei n.º 1-A/2020 e poderia até, numa perspectiva de hierarquia de leis, ser por ele revogado;
12.- Não estamos perante retroactividade directa ou de primeiro grau, no sentido de aplicação de regra nova a contexto passado mas face a aplicação de preceito a quadro temporal futuro relativo a realidade contemporânea – a pendência processual;
13.- Não há arbitrariedade, surpresa, desproporção ou um gorar de expectactivas, logo não há inconstitucionalidade;
14.- O princípio da confiança não reclama que se materialize a possibilidade de serem conhecidas todas as causas de suspensão do prazo de prescrição no momento da consumação;
15.- Se assim não fosse, estaria retirado ao Estado a possibilidade de reagir em emergência perante situação física portadora de particular gravidade e, obviamente, imprevisível no momento dessa consumação;
16.- O carácter inusitado do facto genésico da medida que impossibilitou temporariamente o exercício da acção punitiva impõe uma reanálise dos quadros teóricos.
Assim é. Particularmente, quanto a este último ponto, é crucial ter presente que tese oposta representaria a total artificialização, manietação e secundarização da acção legislativa e da possibilidade de exercer a actividade política e de governação. Pois se o legislador não pudesse responder de emergência a uma situação de grave risco colectivo que, sem paralelo, ponha em causa toda a sociedade e as suas estruturas básicas de sustentação, então teríamos que concluir que estaríamos a levar a tutela de direitos ao estertor, ao domínio da impossibilidade, por se preferir a extinção da sociedade que tutela o direito à sua suspensão temporal e constitucionalmente enquadrada.
Ficaríamos, por exemplo, sem poder responder à pandemia com potencial de extinção da espécie, ao sismo de dimensões bíblicas ou à imaginada deriva da «jangada de pedra».

Salvo o respeito devido, não parece ter sentido o maximalismo analítico que coloque a recusa da sujeição a uma coima acima da resposta colectiva a uma pandemia, que se aproveite da inoperabilidade ou do desmantelamento do sistema punitivo para evitar a punição do ilícito efectivamente cometido. Não se divisam argumentos que abalem o ora dito e o já consignado anteriormente por este órgão jurisdicional. A inexistência de uma verdadeira retroactividade e o carácter específico da jurisdição de mera ordenação social afastam limitarmente que se possa equacionar uma violação do disposto no n.º 4 do 29.º da CRP. Não há desconformidade, antes coerência, ante o disposto no art. 18.º da Constituição da República Portuguesa, particularmente no seu n.º 2. Foram tutelados outros interesses juridico-constitucionais. Não se ultrapassou a necessidade estrita por estes gerada. Não há excesso nem desproporção na definição do tempo da suspensão do prazo prescricional (oitenta e seis dias), antes clara colagem aos factos da crise e resposta directa aos mesmos. Encontramo-nos face-a-face com calamidade pública, logo diante do preenchimento da previsão constante do n.º 2 do art. 19.º da Lei Fundamental.
Há eficácia pontual e focada. Não se afastam princípios, antes se assume uma medida muito concreta e muito orientada para objectivos e para a resposta a específicos condicionantes”.
Vejamos neste sentido os seguintes argumentos do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 660/2021, em tribunalconstitucional.pt:
“ Não poderemos olvidar que a regra geral consistiu na sustação e suspensão de todos os processos processuais e o prosseguimento apenas daqueles que contendessem com direitos, liberdades e garantias, desde que fossem asseguradas todas as regras sanitárias, ficando a sua realização dependente de condições físicas e estruturais (como, por exemplo, a dimensão das salas de audiências ou de realização de diligências, a existência de sistemas de ventilação e arejamento de divisões em tribunais, a lotação máxima de pessoas nos edifícios, etc.).
Esta perspetiva ampla das medidas em que se insere a causa de suspensão da prescrição permite-nos concluir que foram razões excecionais de ordem sanitária que conduziram, em primeira linha, à suspensão da atividade judiciária, mediante a suspensão do andamento dos processos. Tratou-se de uma medida implementada em benefício de todos os intervenientes processuais, sem distinção, incluindo os próprios arguidos.
Como consequência dessa paralisação forçada do andamento generalizado dos processos, o legislador determinou a suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos criminais, na medida em que a inatividade do aparelho judiciário, globalmente considerado, projetava-se, não só sobre todos os intervenientes processuais, mas também sobre o próprio Estado, na veste de prossecutor da ação penal, que se viu, em virtude da mesma situação excecional, obrigado a suster tal desiderato.
Na verdade, a causa de suspensão da prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, deve ser lida como uma decorrência necessária da paralisação da atividade dos tribunais portugueses e da sustação do rito processual, quase generalizado, durante o período de 9 de março a 3 de junho de 2020, dos processos de grande parte das jurisdições.
Naturalmente, a sua consagração não radicou em nenhum objetivo de política criminal, i.e., não houve uma alteração de ponderação de valores pelo legislador, no âmbito processual penal, que tenha presidido à implementação de uma nova causa de suspensão da prescrição. O legislador não pretendeu com esta norma “prolongar” a sua atividade de prossecutor da ação penal, nem reparar uma situação de “inércia pretérita” do Estado (Acórdão n.º 500/2021), repondo um período de tempo em seu benefício.
Esta causa de suspensão da prescrição distancia-se, com esta nuance, dos restantes casos sobre os quais a jurisprudência do Tribunal se debruçou, ostentando uma finalidade e um contexto muitíssimo excecionais (cfr. ponto 2.2.4. supra).
A razão de ser desta causa de suspensão derivou, única e exclusivamente, da situação de emergência sanitária e que originou o estancamento da atividade judiciária, por um determinado período.
Tal premissa conduz-nos à conclusão de que as finalidades subjacentes ao próprio regime da prescrição, que ditam a sujeição desta causa de suspensão ao princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, não se verificam, porquanto não presidiu à sua consagração uma finalidade de política criminal que reclame o freio do princípio da legalidade, como defesa do cidadão perante o ius puniendi do Estado: pelas razões descritas, nem está em causa reverter sobre o arguido as consequências da inércia pretérita do Estado, nem uma violação do princípio da confiança, já que o evento era imprevisível, para além do arguido, para qualquer outro sujeito processual e para o próprio Estado titular da ação penal, não sendo a situação de pandemia, pela sua imprevisibilidade, apta a constituir um quadro de referência sobre o qual se possa falar de “confiança” (essencialmente no mesmo sentido, v. o já citado Acórdão n.º 500/2021).
Acresce que nos parece evidente que a intenção do legislador era a aplicação desta causa de suspensão da prescrição a processos em curso, aquando da sua entrada em vigor, isto é, a factos cometidos antes dessa data, por serem esses mesmos procedimentos que sofreram uma “torção” na sua tramitação com a sustação da respetiva tramitação. Como tem sido evidenciado pela jurisprudência constitucional acima elencada, para além de não existir um direito subjetivo à prescrição do procedimento criminal, é também legítimo que o legislador contemple causas de suspensão em diplomas especiais, desde que sejam suficientemente precisas e emitidas pela Assembleia da República, o que se verifica neste caso (cfr. Acórdão n.º 449/2002).
Assim, consideramos que a aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto – aliás, encontra-se fora do respetivo âmbito de proteção (v., de novo, o Acórdão n.º 500/2021).
Quer isto dizer que, na linha de pensamento de GIAN LUIGI GATTA, quando o prazo de prescrição não tenha ainda atingido o seu fim, ao determinar o prolongamento – como no caos da suspensão motivada pela pandemia –, a lei superveniente não torna punível um facto não punível: ela limita-se a conceder ao Estado, por qualquer motivo, neste caso por força de uma emergência sanitária, mais tempo para apurar os factos e a responsabilidade criminal. O direito de defesa não resulta, de modo algum, comprometido e o Estado não abusa do poder punitivo, nem frustra aquela exigência de previsibilidade das consequências da violação da norma penal: como mostra a própria disciplina da prescrição do crime (…) o momento em que se cumpre a prescrição é, na verdade, variável e em boa medida imprevisível antes da prática do facto, quando o agente nem sequer sabe se alguma vez será alvo de um procedimento criminal (cfr. “Lockdown da justiça penal, suspensão da prescrição do crime e princípio da irretroatividade: um curto-circuito”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Separata, Ano 30, n.º 20, maio-agosto 2020, Gestlegal, pág. 312 e 313).
A solução preconizada legitima, por isso, a aplicação da suspensão da prescrição em razão do quadro de exceção sanitária e assegura o efeito útil das medidas implementadas para fazer face à emergência sanitária experienciada, que é a respetiva aplicabilidade aos procedimentos interrompidos pelo “lockdown” da justiça, em particular da justiça criminal (cfr. GATTA, GIAN LUIGI, Ob. Cit., pág. 313)”.
Jurisprudência do Tribunal Constitucional, também seguida nos acórdãos 500/2021 e 798/2021, que conclui, relativamente à suspensão da prescrição de contraordenações, não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, interpretado no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais em que estejam em causa alegados factos ilícitos imputados ao arguido praticados antes da data da sua entrada em vigor, que nessa data se encontrem pendentes.
Aqui chegados, e aplicando a suspensão dos prazos de prescrição durante o tempo supra referido (desde 9 de março de 2020 até 3 de junho de 2020 de 22 de janeiro e 6 de abril de 2021), há que ter em conta o seguinte:
- desde 14/08/2019 (data da última interrupção) e descontando o tempo dos três prazos de suspensão da prescrição (dois da legislação Covid e um aquando da notificação do despacho (no tribunal a quo) que recebeu o recurso da decisão administrativa (em 07.10.2021), ainda não decorreram dois anos;
- por outro lado, ainda não está atingido o prazo máximo de interrupção de prescrição (3 anos), acrescido do limite máximo de 6 meses de suspensão pela notificação do despacho de recebimento do recurso da decisão administrativa e dos dois períodos de suspensão da legislação Covid, que não se incluem naquele prazo máximo de suspensão. A contraordenação é de 25.11.2018, pelo que o prazo máximo só se atingirá em 03.11.2022 (3 anos+6m+2m e 24 d+2m e 15d).
Improcede, assim, a invocada prescrição.
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(da nulidade por violação dos artigos 50° e 58°, do RGCO)
Sustenta o recorrente que:
12. A acusação peca por excesso de defeito de omissão pois:
- Não indica qual o sentido de marcha do veículo.
- Não indica se virou à direita.
- Não indica se virou à esquerda.
- Não indica se o Arguido transpôs a linha longitudinal contínua e voltou à via.
- Não indica se efetuou uma ultrapassagem.
_ Concluindo, não indica, em concreto nem, em que circunstâncias, terá sido efectuada a alegada manobra ilícita;
13. Sabemos, sim, que não houve qualquer acidente, nem sequer perigo, ou embaraço para o demais trânsito rodoviário, ou pedonal aliás, é a única coisa que o Arguido consegue saber ... ;
14. Este vazio de conhecimento, i.e., omissão dos factos, e provas, provoca uma nulidade insuprível, nos presentes autos, o que, desde já, aqui se invoca, para todos os devidos e consequências legais.
Ora, determina o n.º 1, do art.º 58.º, do RJIMOS, que:
1 - A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) A identificação dos arguidos;
b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) A coima e as sanções acessórias.
Assim, para além das als. a), c) e d), que o recorrente não contesta, resulta ainda o seguinte na factualidade apurada provados da decisão recorrida:
1. No dia 25 de novembro de 2018, pelas 09:15 horas, na Avenida Brasília, em frente ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, DG , conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, transpôs a linha longitudinal contínua (M1) separadora de sentidos de trânsito existente no local.
2. Ao agir da forma descrita o recorrente não atuou com o cuidado a que estava legalmente obrigado e que se lhe impunha.
3. O recorrente procedeu ao pagamento voluntário da coima que lhe foi aplicada no âmbito dos presentes autos.
4. O recorrente não tem averbada no seu Registo Individual de Condutor a prática de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave.
Por conseguinte, importa ter em conta que o recorrente foi condenado por ter cometido a contraordenação prevista nos arts. 60.º, n.º 1, º, e 65.º, al. a), ambos do Regulamento de Sinalização de Trânsito, aprovado pelo Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro, que determinam o seguinte:
- “As marcas longitudinais, referidas no presente artigo, são linhas apostas na faixa de rodagem, separando sentidos ou vias de trânsito e com os significados seguintes: M1 - linha contínua: significa para o condutor proibição de a pisar ou transpor e, bem assim, o dever de transitar à sua direita, quando aquela fizer a separação de sentidos de trânsito;(…)”; e
- “ Quem infringir as prescrições impostas pelas marcas rodoviárias é sancionado: (…) Com coima de (euro) 120 a (euro) 600, quando se trate das marcas M1, M3 quando a linha mais próxima do condutor for contínua e M7, desde que façam a separação de sentidos de trânsito;(…)”.
Resulta, pois, manifesto, que para as contraordenações em causa, é despiciendo saber qual o sentido de marcha do veículo, se virou à direita ou à esquerda, se o arguido transpôs a linha longitudinal contínua e voltou à via ou se efetuou uma ultrapassagem.
Decisivo é saber que, no dia 25 de novembro de 2018, pelas 09:15 horas, na Avenida Brasília, em frente ao Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, DG , conduzindo o veículo ligeiro de passageiros de matrícula …, transpôs a linha longitudinal contínua (M1) separadora de sentidos de trânsito existente no local, e que, ao agir da forma descrita, não atuou com o cuidado a que estava legalmente obrigado e que se lhe impunha.
Factos que constam da decisão recorrida.
Não se vislumbra, assim, qualquer nulidade.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, declarando-o totalmente improcedente.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UCs.

Lisboa, 05 de Abril de 2022
Paulo Barreto

Declaração de voto de Maria Filomena Onório Gil, presidente da 5ª Secção:
Voto a favor da decisão do Exm.º Sr Juiz relator, acompanhando os seus fundamentos, e essencialmente por, embora consciente das posições jurisprudenciais acerca desta matéria e não pretendendo formar uma linha jurisprudencial própria acerca da essência desta questão, se me afigurar que a posição que considera admissível a aplicação de uma causa de suspensão como a que aqui se nos depara, a prevista no art.º  7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, se mostra aceitável e estar de acordo com a tendência gradualmente dominante na jurisprudência nacional e europeia, sendo absolutamente congruente com o mais amplo critério seguido na jurisprudência do TEDH e do TJUE, e com posições no mesmo sentido tomadas pelo Tribunal Constitucional, neste domínio de direito de mera ordenação social.
Este Tribunal, assim como a jurisprudência dominante, embora não aceite esta aplicação a processos criminais, dados os valores fundamentais tutelados pelo Direito Criminal, vem interpretando a norma no sentido de que a suspensão da prescrição aí prevista é aplicável aos processos contraordenacionais, em que estejam em causa factos ilícitos imputados ao arguido, praticados antes da data da sua entrada em vigor, e que nessa data se encontrem pendentes, e não se encontra abrangida, nem pela letra, nem pela ratio da proibição da retroatividade in pejus a que a Constituição, no seu arrigo 29.°, n.°s 1, 3 e 4, sujeita a aplicação das leis que definem as acções e omissões puníveis e fixam as penas correspondentes.
Neste sentido, vejam-se os acórdãos citados no acórdão que faz vencimento, e oriundos do Tribunal Constitucional, mas também os proferidos na secção da PICRS deste Tribunal da Relação de Lisboa, todos respeitantes a matéria contraordenacional: 164/10.0YUSTR.L1, 124/18.8YUSTR.L2, 178/20.7 YUSTR.L1 e 309/20.7 YUSTR.L1.
Também em sentido idêntico, o acórdão deste Tribunal, relatado por João Carrola, no processo n.º Processo 344/18.5ECLSB.L1 publicado em 8/3/2022, sendo esse o sentido para que tendencialmente propende a maioria da jurisprudência desta secção, após discussão mantida sobre o assunto nas últimas sessões.
                                                                                                     Maria Filomena Onório Gil

Alda Tomé Casimiro vota vencido nos termos que se segue:
Consideraria já ter ocorrido a prescrição…
É verdade que nos termos das Leis 1-A/2020, de 19 de Março, e 4-B/2021, de 01.02, se definiu que a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-COV-2 e da doença COVID-19 constitui causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, mais se referindo que tal prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional.
É inquestionável que estas determinações daquelas leis, porquanto respeitam a prescrição, são estatuições de lei processual penal material (cfr. Taipa de Carvalho, in Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, pág. 213), ou, quando muito, lei em que existe uma concepção mista de âmbito substancial/material e processual (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 700), em relação às quais deve ser sempre aplicado o princípio da maior favorabilidade para o arguido.
Ainda que as Leis 1-A/2020 e 4-B/2021 sejam leis temporárias, na medida em que tiveram em vista vigorar durante um período determinado e excepcional, o que se discute é se o ali disposto se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, em face do disposto no nº 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa que proíbe a aplicação retroactiva de leis penais mais gravosas para os arguidos – e aqui cabe dizer que entendemos estarem abrangidas leis penais in lato sensu, ou seja, também, leis contraordenacionais.
Ora independentemente de estarmos perante uma lei temporária, defendo que essa lei não pode afectar os prazos de natureza substantiva ou material em curso, designadamente, os prazos de prescrição do procedimento criminal/contraordenacional e da pena, alargando-os (repare-se ainda que o nº 6 do art. 19º da Constituição da República Portuguesa expressamente consagra que a “declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar (...)a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos (...)”.
Pelo que entendo que a previsão das Leis em causa, com referência a prazos de prescrição, só pode vigorar para o futuro, ou seja, para factos praticados durante a sua vigência.

Alda Tomé Casimiro