Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14219/18.4T8LSB-A.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: REGIME LEGAL DO MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO PESSOAL
RELATÓRIO PERICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: 1. O objectivo da audição pessoal prevista no art. 898º do CPC é apurar a situação concreta do beneficiário, nomeadamente a sua capacidade de entendimento e de reacção às perguntas que lhe sejam efectuadas por forma a que as medidas de acompanhamento aplicadas sejam as mais adequadas ao caso concreto.
2. Em situação de impossibilidade de se efectuar a audição pessoal do Requerido, em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar tal situação em acta, sendo efectuado o respectivo relatório pericial em conformidade com essa situação, sendo as medidas aplicadas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento apurada e demais conclusões constantes do relatório pericial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. No âmbito de processo de interdição instaurado pelo Ministério Público em 14/06/2018 e relativo a A., e na sequência da entrada em vigor do Regime Legal do Maior Acompanhado, foi designada data para a audição pessoal prevista no art. 898º, nº 1 do CPC.

2. Em momento anterior à data designada, formulou o Ministério Público dois requerimentos, um formulando um quesito complementar a atender em sede de perícia e outro a solicitar adiamento de diligência nos termos do disposto no art. 151º, nº 1 do CPC, tendo ambos os requerimentos sido indeferidos.

3. Inconformado, o Ministério Público recorre desses despachos, formulando as seguintes conclusões:
“1. O quesito complementar formulado pelo Ministério Público sobre as capacidades ou incapacidades do Beneficiário e a ser tido em conta no exame médico-legal psiquiátrico tem cabimento legal, é realizável e encontra-se no âmbito das funções do Ministério Público de acordo com o regime jurídico do Maior Acompanhado e do perito médico-legal.
2. Deveria por isso ter sido deferido e notificado ao Perito Médico e ao Acompanhante para ser apreciado no âmbito do exame pericial a realizar no IML e ficar a constar no relatório final.
3. Sendo estes autos, um processo de jurisdição voluntária com vista à aplicação de medidas de protecção ao Beneficiário, as decisões anteriormente tomadas podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração - art. 988º/1, do CPC;
4. O que aliás até nem é o caso dos autos, por que o que anteriormente se promoveu foi a adequação da petição inicial efectuada pelo MP, ao novo regime jurídico do maior acompanhado, entretanto entrado em vigor.
5. A aplicação dos artigos 151º, 7º e 8º do Cód. Processo Civil não distingue para efeitos do agendamento dos actos e diligências judiciais em que o Ministério Público deva estar presente, os representantes legais das partes, sejam os Advogados, ou seja, o representante do MP.
6. A aplicação do Estatuto do Ministério Público para invocar a não aplicação do disposto nos Arts. 151º, 7º e 8º do Cód. Processo Civil, não tem cabimento legal por força do estatuído no Código de Processo Civil, uma vez que existe norma imperativa e abstracta que regula o caso concreto.
7. Mostra-se assim violado o disposto, respectivamente, nos Artigos respectivamente, 151º, 7º, 8º, 986º, 987º, 988º, todos do Cód. Proc. Civil.
8. E, nos termos dos quais deveria a Sra. Juiz, com base no teor da promoção do Ministério Público ter deferido a realização do quesito a apreciar no exame médico-legal em psiquiatria.
9. Como deveria ter reagendado a diligência que designou em violação do disposto nos normativos supra-referidos, por considerar que o disposto nos Arts. 151º, 7º, 8º, do Código de Processo Civil não são aplicáveis ao Ministério Público.
10. Pelo que deverão serem substituídos por outros que determinem:
a. A notificação do quesito complementar ao Acompanhante e ao Perito Médico a fim do requerido ser tido em conta no exame médico-legal em psiquiatria e a realizar pelo Instituto
competente.
b. Que no agendamento dos actos e diligências judiciais a que o Ministério Público deva estar presente seja realizado com observação do disposto nos Arts. 151º, 7º, 8º, do Código de Processo Civil e que são aplicáveis ao Ministério Público”.

II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, são:
- do aditamento de quesitos no âmbito da audição pessoal a que alude o art. 898º, nº 1 do CPC;
- da não observância do disposto no art. 151º, nº 1 do CPC.

III. APRECIAÇAO DO RECURSO

Face ao teor das alegações e considerando que os factos são os que resultam do relatório, passemos a apreciar as questões suscitadas.
Nas suas alegações de recurso, insurge-se o Ministério Público com a decisão recorrida na medida em que esta não atendeu a um novo quesito relativo às incapacidades do Requerido.
Entende que o despacho recorrido relativo ao seu pedido de formulação de novo quesito “não apreciou o teor do requerido, nem apresentou fundamentação adequada”, pelo que “deverá ser considerado nulo e sem efeito válido”.
Antes de iniciar a análise de tal questão, importa relembrar que, após ter sido designada a audição pessoal do Requerido, o Ministério Público apresentou um requerimento, referindo pretender “formular um novo quesito com vista à obtenção de informação médica-pericial adequada”, promovendo que “Se notifique o Exmo. Sr. Perito Médico designado para o Exame de Perícia Médico-Legal Psiquiátrica, que apure e faça constar no relatório pericial, se o Beneficiário, tem capacidade para ser submetido a uma audição pessoal e directa pelo tribunal – Art. 898º, do Cód. PC - com vista a evitar a realização de uma actividade processual que se vislumbra ser inconsequente e inútil – Art. 130.º, do Cód. PC – ou se, pelo contrário não se justifica a realização da audição pessoal deste, sendo esta diligência inútil, servindo apenas para atestar a impossibilidade de realização dessa mesma audição”.
Há ainda que referir que tal pedido foi objecto do seguinte despacho:
“Promoção que antecede: Considerando que a audição do requerido já foi decidida por despacho datado de 06.05.2019, sendo certo que o nº 2 do art. 897º do CPC estabelece que a audição do beneficiário é obrigatória, indefere-se ao requerido na promoção que antecede.
Notifique”.
          Apreciando.
Nos termos do art. 154º, nº 1 do CPC, “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, referindo-se no seu nº 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
A violação deste dever de fundamentação leva à nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. b) do CPC, aplicável aos despachos, por remissão do art. 613º, nº 3 do mesmo diploma.
Como referem, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 188, em anotação ao citado art. 154º, “O dever de fundamentação das decisões tem consagração constitucional (art. 205º, nº 1 da CRP), apenas se dispensando no caso de decisões de mero expediente. Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respectiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso”.
In casu, constata-se que o despacho recorrido refere os motivos pelos quais indefere o peticionado, a saber: a obrigatoriedade da audição prevista na lei e ainda o facto de ter aquela ter sido já determinada, pelo que se entende que o dever de fundamentação se mostra observado, já que o despacho em apreço aprecia o pedido deduzido, improcedendo, nesta parte, a apelação.
No que se refere ao fundo da questão, ou seja, a necessidade de se atender ao aludido quesito, entende o Ministério Público que o quesito por si formulado tem cabimento legal no regime jurídico aplicável, sendo que, sendo os autos, um processo de jurisdição voluntária, podem as decisões anteriormente tomadas ser alteradas, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.
          Vejamos.
Nos termos dos arts. 987º e 898º do CPC, na redacção dada pela Lei 49/2018 de 14 de Agosto, “Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia -se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes”, devendo, sempre e em qualquer caso, proceder, à audição pessoal e directa do beneficiário, visando essa audição “averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas”.
No caso dos autos, verifica-se que o tribunal recorrido determinou a audição pessoal em causa de acordo com os preceitos citados, tendo ainda solicitado a indicação de perito médico para a audição a efectuar nos termos do citado art. 898º, nº 1.
Pretende o Ministério Público que, previamente a essa audição, seja apurada a capacidade do Requerido para ser submetido a essa audição pessoal, com fundamento na eventual impossibilidade de a mesma se realizar por incapacidade do Requerido, alicerçando a sua pretensão no art. 130º do CPC.
Não nos parece que assista razão ao Recorrente.
Com efeito, o pedido constante da promoção deduzida assume-se contra legem, tal como decorre da letra expressa do art. 897º, nº 2 do CPC quando refere que “Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário”.
Da letra da lei resulta, inequivocamente, que o objectivo do legislador é que se proceda sempre à audição pessoal, independentemente das circunstâncias concretas do caso e da dedução ou não de contestação.
Por outro lado, a elaboração de um relatório prévio quanto à possibilidade de realização da diligência não determina qualquer aceleração processual, antes pelo contrário, já que pode levar à duplicação de diligências.
Por outro lado ainda, tal pedido é ainda claramente dilatório e inútil, mormente se atendermos ao facto de a audição pessoal estar já designada, de acordo com a agenda do Tribunal e do Exmo Perito Médico, uma vez que foi designado para a mesma hora e local a audição pessoal do Requerido e a realização de exame pericial.
Com efeito, a deslocação das partes ao tribunal para a dupla diligência a efectuar assume-se como um acto eficaz de gestão processual, sendo certo que o objectivo da audição pessoal é apurar a situação concreta do beneficiário, nomeadamente a sua capacidade de entendimento e de reacção às perguntas que lhe sejam efectuadas por forma a que as medidas de acompanhamento aplicadas sejam as mais adequadas.
Assim sendo, em situação de impossibilidade de se efectuar a audição pessoal do Requerido, em virtude da sua incapacidade de entendimento, far-se-á constar tal situação em acta, sendo efectuado o respectivo relatório pericial em conformidade com essa situação e as medidas aplicadas em conformidade com a (in)capacidade de entendimento.
Refira-se que tal situação existia já no âmbito do CPC anterior a 2013, onde se previa a existência obrigatória de exame e interrogatório, resultando a solução ora preconizada quer da prática e da experiência comum, quer da lógica e do bom senso que devem pautar as decisões judiciais e as condutas de todos os intervenientes processuais, não estando a realização da diligência de audição pessoal abrangida pela proibição de actos inúteis prevista no art. 130º do CPC, como se refere nas alegações de recurso.
Saliente-se ainda que a questão suscitada em sede de novo quesito se mostra já abrangida pela letra do art. 899º, nº 1 do CPC, quando refere que o relatório pericial deve precisar “sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis”, pelo que, ainda que fosse unicamente por este motivo, não deveria o mesmo ser atendido pelo tribunal.
Carece assim de razão o Recorrente quando pretende a substituição do despacho recorrido por outro que determine “a notificação do quesito complementar ao Acompanhante e ao Perito Médico a fim do requerido ser tido em conta no exame médico-legal em psiquiatria e a realizar pelo Instituto competente”, na medida em que o exame a realizar e subsequente relatório já atenderá a tais factores.
Donde, e por a decisão recorrida se encontrar fundamentada de forma correcta e a diligência ordenada não ser nem inconsequente nem inútil, impõe-se a manutenção da mesma, sendo, nesta parte, a apelação improcedente.

Insurge-se ainda o Ministério Público com o despacho que não procedeu à alteração da data designada para a audição pessoal do Requerido e que foi precedido de requerimento nesse sentido.
Antes de analisar a questão em apreço, importa referir que consta do auto de audição realizado no dia em apreço e consultado através do sistema Citius, que o Ilustre Magistrado do Ministério Público subscritor do requerimento em apreço esteve presente na diligência e que a audição do Requerido não se realizou em virtude de este não ter comparecido e ainda que foi designada nova data, “obtida com a disponibilidade de agenda da Sra. Perita médica, do Magistrado do Ministério Público e da Il. Patrona” (cfr. despacho proferido em acta).
Consequentemente, entende-se que a questão trazida a recurso se mostra prejudicada pelo estado dos autos, porquanto a não realização da diligência de audição esvaziou de sentido a eventual não observância do disposto no art. 151º do CPC.
A finalizar, há que mencionar que, no requerimento de interposição de recurso, o Ministério Público alega a violação do princípio do contraditório, sem que, todavia, tenha transposto para as alegações de recurso qualquer conclusão nesse sentido.
Ainda assim, sempre se dirá que o despacho em apreço não viola o princípio do contraditório por ter indeferido a promoção em causa sem que a contraparte se tenha pronunciado.
Senão, vejamos.
Nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Este princípio assume-se como consequência do princípio do dispositivo, ínsito no art. 3º, nº 1 do CPC, e visa a protecção do exercício de acção e de defesa, permitindo a discussão entre as partes quanto a uma determinada questão e antes da tomada de decisão pelo juiz.
Consequência deste princípio é a proibição de decisões-surpresa, por estas se entendendo aquelas que são tomadas sem que as partes tenham podido acautelar a sua posição ou discutir a solução jurídica preconizada na decisão.
Face à importância do princípio do contraditório, a sua violação constitui nulidade, nos termos e para os efeitos do art. 195º do CPC.
No caso dos autos, constata-se que o despacho recorrido foi proferido sem que tenha decorrido o prazo para o Ilustre Patrono do Requerido se pronunciar, situação que se mostra justificada face à data designada para a diligência e à data do requerimento apresentado, sendo certo que a não realização da diligência tambem esvaziou de sentido a eventual nulidade existente.

Concluindo, entende-se que a decisão recorrida não merece qualquer censura, sendo improcedentes as conclusões do apelante.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por o Ministério Público delas estar isento, cfr. art. 4º, nº 1, al. a) do RCP.
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Lisboa, 10 de Setembro de 2019

Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro