Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1935/2007-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: FORO CONVENCIONAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I- A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril ao consagrar o domicílio do devedor como “ critério relevante para aferição do tribunal competente” insere-se no declarado objectivo de descongestionamento dos tribunais na sequência do Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais conforme Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30 de Maio, o que expressamente se salienta na Resolução do Conselho de Ministros nº 122/2006 de 7 de Setembro de 2006, DR. Iª Série, nº185 de 25 de Setembro de 2006 e é confirmado na exposição de motivos constante da Proposta de lei nº 389/2005, de 24 de Novembro de 2005 que deu origem à Lei nº 14/2006
II- Esse objectivo de descongestionamento, de interesse público não se exprimiu na letra da lei (ver artigo 74.º do Código de processo Civil) limitando a regra de competência territorial apenas às acções enquadráveis na designada litigância de massas; a lei, muito mais ampla, tutela o interesse do consumidor e o acesso aos tribunais de modo efectivo com a alteração em matéria de competência territorial que tem como corolário o pretendido objectivo de descongestionamento dos tribunais
III- Por isso, à luz do texto legal e das respectivas motivações evidenciadas pelo legislador, pode o intérprete considerar que foi inequívoca a intenção os legislador de revogar a lei especial em matéria de competência territorial constante do artigo 21.º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro pela lei geral constante das alterações introduzidas pela lei nº 14/2006, de 26 de Abril conquanto não sejam atingidas - e não são - as finalidades procedimentais e de direito material que são visadas nos diplomas de natureza especial onde se consagra o especial regime de competência territorial
IV- Não afectadas tais finalidades, pode entender-se que a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril revogou o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.
(S.C.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. F, sub-rogada nos direitos do alienante de veículo com reserva de propriedade, intentou na comarca de Lisboa providência cautelar de apreensão de veículo automóvel e respectivos documentos nos termos do artigo 15º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro contra Joaquim Domingues Santos residente no Fundão.
2. O tribunal considerou-se incompetente em razão do território face ao disposto no artigo 74º do Código de Processo Civil com a redacção dada pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril pois, de acordo com o disposto no artigo 83º/1, alínea c) do C.P.C., sendo competente para os procedimentos cautelares o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva, é competente o Tribunal do Fundão pois nele deve ser proposta a acção principal de que depende a providência.
3. A acção principal, no caso vertente, será, de acordo com o disposto no artigo 18.º/1 do DL 54/75, a acção de resolução do contrato de alienação muito embora o requerente da providência tenha invocado a rescisão do contrato de financiamento.
4. A decisão, ora sob recurso, considerou que o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro segundo o qual “ o processo de apreensão e as acções relativas aos veículos apreendidos são da competência do tribunal da comarca em cuja área se situa a residência habitual ou sede do proprietário” deve considerar-se revogado pela nova redacção dada ao artigo 74º do C.P.C..
5. Reconhecendo a sentença que este preceito se traduz em norma especial face à norma geral de competência constante do artigo 74º do C.P.C, o que conduz à aplicabilidade da regra do artigo 7.º do Código Civil “lei geral não revoga lei especial”, certo é que, no caso, deve considerar-se verificada a excepção à dita regra a que alude o mesmo preceito: “ excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.
6. Importa, assim, prossegue a decisão recorrida,
“ atender às condições específicas do tempo em que a lei é aplicada, devendo o intérprete presumir que na fixação os sentido e alcance da lei o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º do Código Civil).
7. Ora, ainda segundo a decisão recorrida, foi intenção os legislador proteger o consumidor face aos litigantes de grande dimensão, aproximando o centro de decisão da lide do seu local de residência, poupando-se ao consumidor, parte contratualmente mais desfavorecida, as despesas inevitavelmente ocasionadas pela deslocação da lide para local diverso, ”reconhecendo-se que tais encargos seriam melhor suportados por entidades dotadas de organização empresarial, orientadas para a prossecução do lucro e possuindo maior disponibilidade de recursos económicos.
Pretendeu ainda o legislador reduzir as consequências nocivas da litigância de massas, designadamente a concentração de acções num reduzidíssimo número de tribunais e a decorrente distorção na aplicação da justiça com os inevitáveis prejuízos para a desejada celeridade
Assim sendo, contrariaria a lógica do sistema e a intenção do legislador considerar intocado pelo regime introduzido pela Lei nº 14/2006 o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 1´2 de Fevereiro.
Impõe-se, assim, concluir que foi intenção do legislador derrogar o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, inequivocamente demonstrado”.
8. A recorrente, reconhecendo embora a indiscutível intenção do legislador, explanada na proposta da referida lei, considera que a situação de facto não está abrangida pois “ não se encontra preenchida a premissa da litigância de massas que visa o ressarcimento pecuniário do crédito e que entope a disponibilidade dos tribunais para a resolução de litígios de maior complexidade e urgência”.
9. E, não fora a especialidade do mercado automóvel nomeadamente pela rápida desvalorização e perecimento dos bens objecto do mesmo, e não haveria razão para se manter no tempo o procedimento cautelar previsto pelo Decreto-Lei nº 54/75,de 12 de Fevereiro […]
10. Embora a situação de facto se reconduza ao Direito do Consumo, o facto de estar em causa o accionamento de uma garantia bem como a fragilidade daquela explanada no artigo 19 sempre exige uma revogação expressa pelo legislador do regime jurídico criado pelo Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro”.
Apreciando:
11. A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril ao consagrar o domicílio do devedor como “ critério relevante para aferição do tribunal competente” insere-se no declarado objectivo de descongestionamento dos tribunais na sequência do Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais conforme Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30 de Maio, o que expressamente se salienta na Resolução do Conselho de Ministros nº 122/2006 de 7 de Setembro de 2006, DR.Iª Série, nº185 de 25 de Setembro de 2006.
12. Também na exposição de motivos constante da Proposta de lei nº 389/2005, de 24 de Novembro de 2005 se salientou, prosseguindo a mesma ideia de descongestionamento dos tribunais, que se
“ previu, entre outras medidas, a «introdução da regra de competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, sem prejuízo das especificidades da litigância característica das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto».
A adopção desta medida assenta na constatação de que grande parte da litigância cível se concentra nos principais centros urbanos de Lisboa e do Porto, onde se situam as sedes dos litigantes de massa, isto é, das empresas que, com vista à recuperação dos seus créditos provenientes de situações de incumprimento contratual, recorrem aos tribunais de forma massiva e geograficamente concentrada […]
Ao introduzir a regra da competência territorial do tribunal da comarca do demandado para este tipo de acções, reforça-se o valor constitucional da defesa do consumidor – porquanto se aproxima a justiça do cidadão, permitindo-lhe um pleno exercício dos seus direitos em juízo – e obtém-se um maior equilíbrio da distribuição territorial da litigância cível.
O demandante poderá, no entanto, optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o demandado seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o demandado tenha domicílio nessa mesma área. No primeiro caso, a excepção justifica-se por estar ausente o referido valor constitucional de protecção do consumidor; no segundo, por se entender que este intervém com menor intensidade. Com efeito, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, não se afigura especialmente oneroso que o réu ou executado singular continue a poder ser demandado em qualquer das demais comarcas da área metropolitana em que reside, nem se descortinam especiais necessidades de redistribuição do volume processual hoje verificado em cada uma das respectivas comarcas”.
13. Não oferece, portanto, qualquer dúvida - e o recorrente está de acordo com tal entendimento - que a Lei nº 14/2006 tem em vista a protecção equilibrada dos interesses do consumidor, o acesso efectivo aos tribunais e o descongestionamento dos tribunais.
14. O descongestionamento dos tribunais resultante da litigância de massas está na base da alteração das regras de competência territorial impondo-se oficiosidade que traduz manifestação da prevalência do interesse público. Numa segunda ordem de preocupações parece estar a protecção do consumidor e o efectivo acesso ao direito.
15. Desta forma de encarar as prioridades do legislador, resultaria para o intérprete, que queira afirmar a “ intenção inequívoca do legislador” de revogar a lei especial pela lei geral, reconhecer que a lei especial é uma daquelas que está abrangida nos declarados pressupostos que levaram o legislador a alterar as regras de competência territorial.
16. Admitindo que as alterações em sede de competência territorial visaram as acções da chamada litigância de massas, então, Se não for possível afirmar com toda a certeza, que é naturalmente sempre uma certeza relativa tratando-se de revogação não expressa, que as acções e procedimentos cautelares referidos na lei especial se reconduzem à litigância de massa, concluir-se-ia, dados os limites apertados da letra da lei (artigo 7.º/3 do Código Civil), que a interpretação revogatória não vai ao encontro da vontade efectiva do legislador (“ intenção inequívoca do legislador”) antes encontra o seu suporte numa vontade presumível do legislador.
17. Não parece, por outras palavras, que se possa reconduzir a expressão da intenção inequívoca revogatória do legislador à ideia de que os propósitos do legislador abrangiam seguramente, e em primeira linha, as acções que se reconduzem à designada litigância de massas, mas não se limitam a estas por abrangerem igualmente aquelas acções em que se tutela o interesse do consumidor e o efectivo acesso ao direito, pontos estes que são claramente evidenciados na decisão recorrida.
18. Na origem das alterações ao artigo 74.º do Código de Processo Civil está em primeira linha o descongestionamento dos tribunais, a preocupação numa maior racionalização e aproveitamento do parque judiciário, questão de interesse público, a que se segue a ideia de tutelados interesses do consumidor e efectivo acesso ao direito.
19. Tudo isto significa que, para o efeito de se acolher uma inequívoca interpretação revogatória, teremos de considerar verificados na lei especial todos os elementos que levaram o legislador a revogar a lei geral; será, portanto, a ser assim, estranha ou menos compreensível dizer-se, por exemplo, que não é pelo facto de as acções relativas aos veículos apreendidos em processos de apreensão instaurados nos termos do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro não se reconduzirem à litigância de massas que ficam excluídos da razão de ser ( a efectiva protecção do consumidor e o acesso ao direito) que esteve na origem da alteração ao artigo 74º do Código de Processo Civil. É que essa razão de ser abrange primacialmente o descongestionamento das acções enquadráveis nessa litigância de massas.
20. Importa, no entanto, ponderar que, a ser assim, se exige, no plano interpretativo, para efeito de se descortinar a intenção inequívoca do legislador, que se reconduza a opção do legislador no que toca à lei especial a um conjunto de factores que acabaram por não impregnar a lei geral. O artigo 74.º do Código de processo civil não limita a sua esfera de actuação às acções enquadráveis na designada litigância de massas até porque não existe um critério que permita definir esse tipo de litigância. As acções que se enquadram nesse âmbito são, abstraindo das instauradas por empresas fornecedoras de serviçosde utilidade pública (água, gás, electricidade, comunicações) normalmente acções respeitantes a dívidas emergentes de prestações ou créditos não pagos por empresas potenciam o lucro possibilitando ao consumidor comprar primeiro e pagar depois. O sucesso das transacções e o insucesso na satisfação pontual dos créditos é que vai ditar o maior ou menos número de acções judiciais.
21. No entanto, se analisarmos o artigo 74.º do Código de processo Civil o que salta á vista é a protecção do consumidor - pessoa singular - e o critério da proximidade. Dir-se-á então que a vontade inequívoca do legislador, expressa na letra da lei, foi afinal a protecção do consumidor e a sua possibilidade de efectivo acesso aos tribunais sendo o descongestionamento dos tribunais a consequência dessa tutela, não relevando se a acção em causa é ou não enquadrável na litigância de massas. Então, por esta via, já aquela afirmação ( ver supra 19 não se mostra destituída de razão) e podemos, assim sendo, secundá-la.
22. Por outras palavras: a protecção do consumidor e o efectivo acesso aos tribunais está na géneses das alterações contempladas pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril e o legislador inequivocamente exprimiu esses propósitos na letra da lei, não distinguindo, para o efeito, o tipo de litigância, de massas ou outra, verificando-se que essa opção legal vai conduzir a um descongestionamento dos tribunais - um dos objectivos do Governo - precisamente porque muitas dessas acções são de facto acções de dívida,
23. Outra das razões apontadas pelo recorrente passa pela natureza especial do mercado automóvel que reclamou a introdução do particular regime do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.
24. Mas também aqui se justifica salientar que o entendimento da decisão recorrida no sentido de que houve uma revogação da aludida norma especial (artigo 21º do DL 54/75) por isso mesmo resultar da intenção inequívoca do legislador, atentas as razões que o levaram a alterar o artigo 74º do C.P.C. prescrevendo um regime de competência territorial de conhecimento oficioso (ver artigo 110º/1, alínea a) do C.P.C.), um tal entendimento, dizíamos, não afronta os objectivos que foram visados com a publicação do Decreto-Lei nº 54/75.
25.. Não se trata, como é bom de ver, de considerar revogado in totum o Decreto-Lei nº 54/75, mas apenas uma das suas normas, precisamente o artigo 21º, que tem em vista um particular regime de competência territorial em que se concentra no tribunal do domicílio do credor a competência para as acções relativas aos veículos apreendidos e de igual modo para os respectivos processos de apreensão.
26. Concentração vantajosa, sem dúvida, para os credores, por facilitar o seu trabalho de organização processual, mas sem qualquer útil correspondência no plano da execução judicial visto que a apreensão do veículo quase sempre se efectuaria na comarca do local da residência do devedor sendo inclusivamente contraproducente ao nível da organização judiciária por contribuir para a concentração massificada de litígios nas comarcas sede das empresas credoras.
27. No entanto, no que respeita já à questão da utilidade e efectividade do procedimento especial em si mesmo, não se vê que o afastamento da regra constante do referido artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75 traga qualquer inconveniente ao requerente.
28. As vantagens do descongestionamento e da protecção do consumidor alcançadas com a aplicação das novas regras em matéria de competência territorial não afectam as vantagens que continuam a advir para o credor com a apreensão os veículo nos termos eficientes que a lei lhe faculta por via do procedimento cautelar especial contemplado nos artigos 15º e seguintes do Decreto-Lei nº 54/75.
29. A intenção inequívoca do legislador revogar lei especial por lei geral e a declaração expressa de revogação são coisas diferentes.
30. No entanto, como refere o Prof. Oliveira Ascensão, “ também não podemos tomar a atitude oposta e dizer que tudo é questão de interpretação da nova lei, pois assim suprimiríamos arbitrariamente a palavra inequívoca que exige uma posição qualificada por parte da lei. Não basta que da nova lei se retire uma intenção, é necessário que essa intenção seja inequívoca.
31. Tudo somado, supomos que o artigo 7.º/3 impõe uma presunção no sentido da subsistência da lei especial. Se não houver uma interpretação segura no sentido da revogação, ou se uma conclusão nesse sentido não for isenta de dúvidas, intervém, a presunção do artigo 7.º73 e a lei especial não é revogada” (O Direito. Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, pág. 263).
32. Se há uma declaração expressa como sucederia, por exemplo, se a lei n.º 14/2006, de 26 de Abril encerrasse preceito prescrevendo o afastamento de todas as regras que estivessem em colisão com a nova redacção, a revogação seria expressa posto que obrigasse a verificar se determinada lei regulava a matéria em termos opostos à lei geral; isto poderia levar em certos casos a um esforço interpretativo. Trata-se, porém, de uma interpretação dirigida à lei em si, não de uma interpretação dirigida, como impõe o artigo 7.º/3 do Código Civil “ à intenção inequívoca do legislador” que há-de estar projectada na lei mas que pode ser apurada com base no elemento histórico.
33. Mas podendo resultar das próprias regras interpretativas o entendimento de que há uma vontade inequívoca do legislador, essa declaração interpretativa parece pressupor o reconhecimento de que no caso concreto a intenção inequívoca do legislador, ponderados os seus confessados propósitos, se orienta decisivamente para a revogação da norma especial.
34. Assim, considerando a expressão da vontade manifestada na referida proposta de lei que, como se disse, vem na sequência de um conjunto de medidas que têm por objectivo descongestionar os tribunais e assegurar com mais efectividade o direito de acesso aos tribunais, afigura-se- -nos que a vontade do legislador aponta no sentido da revogação das normas de competência territorial que colidam com tais objectivos desde que não sejam atingidos as finalidades procedimentais e de direito material que são visadas nos diplomas de natureza especial onde se consagra o especial regime de competência territorial.
35. Aceita-se, portanto, que, por via interpretativa, se atinja um resultado que atribua ao legislador uma intenção inequívoca de revogação, constituindo esse “ inequívoco” algo que acresce à ideia de que houve da parte do legislador uma intenção, uma mera intenção, de revogar.
36. Não é fácil, como se vê, definir-se o elemento que aponta para uma inequívoca intenção e, por isso, o Prof. Vaz Serra perguntava se “ não será de entender que o n.º3 do artigo 7.º do Código Civil não tem mais valor do que qualquer outra norma legal de que resulte, ainda que não inequivocamente, a vontade de revogar a lei especial precedente? (Ver Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 99.º, pág. 334).
37. A vontade inequívoca do legislador há-de encontrar-se nas declarações que precederam e acompanharam a lei, há-de revelar-se no texto da lei que seja expressão dos propósitos, tudo a permitir ao intérprete a certeza, sempre relativa, justificativa de um juízo revogatório pronunciado pelo intérprete, omitido pelo legislador.
38. Se analisarmos o elemento histórico e sistemático referente à aludida disposição legal (artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75), veremos que a acção declarativa de que depende o procedimento cautelar de apreensão do veículo é a acção de resolução do contrato de alienação para a qual tem legitimidade o titular do registo de reserva de propriedade (artigo 18º do Decreto-Lei nº 54/75).
39. Ora, ao tempo, o artigo 74º do C.P.C. não contemplava os pedidos de resolução do contrato de alienação.
40. Assim sendo, ou seja, se a lei não dispusesse de forma diversa tratando especialmente estes casos como fez pelo referido DL 54/75, a regra aplicável seria a geral - o tribunal do domicílio do réu (artigo 85º/1 do C.P.C.) - e, quanto ao procedimento cautelar, valeria a regra constante do artigo 83º/1, alínea c) do C.P.C., o tribunal competente seria, portanto, o tribunal em que devia ser proposta a acção respectiva.
41. O DL 54/75 orientou-se manifestamente pela via da protecção do interesse do credor, regulando designadamente um ponto - a competência territorial - de uma forma que não teria acolhimento à luz das normas da lei processual civil então aplicáveis.
42. A partir da revisão de 1995/1996 as regras de competência territorial inseridas no artigo 74º do C.P.C. passaram a incluir os casos de resolução do contrato por falta de cumprimento, atribuindo-se ao credor a faculdade de optar ou pelo tribunal do lugar onde a obrigação devia ser cumprida ou pelo tribunal do domicílio do réu.
43. É, no entanto, ainda o interesse do credor que prevalece; este regime não afasta o regime imperativo que consta do artigo 21º do DL 54/75 que impõe o tribunal territorialmente competente.
44. Como se vê, as razões que ditaram a alteração do artigo 74º do C.P.C. são bem diferentes daquelas que levaram quer à imposição do regime consagrado no artigo 21º do DL 54/75 quer às que motivaram a alteração do artigo 74º do CPC com a revisão de 1995/1996.
45. Razões novas e diferentes a justificarem agora uma interpretação igualmente nova e diferente.
46. As regras de competência territorial que foram alteradas respeitam às acções, não aos procedimentos cautelares.
47. No entanto, não estaríamos face a uma objecção sustentável visto que o processo de apreensão segue o destino das acções relativas aos veículos apreendidos e, por conseguinte, não faria sentido uma interpretação revogatória que dissociasse a competência territorial que respeita ao procedimento da competência territorial respeitante à acção principal.

Concluindo:
I- A Lei nº 14/2006, de 26 de Abril ao consagrar o domicílio do devedor como “ critério relevante para aferição do tribunal competente” insere-se no declarado objectivo de descongestionamento dos tribunais na sequência do Plano de Acção para o Descongestionamento dos Tribunais conforme Resolução do Conselho de Ministros nº 100/2005, de 30 de Maio, o que expressamente se salienta na Resolução do Conselho de Ministros nº 122/2006 de 7 de Setembro de 2006, DR. Iª Série, nº185 de 25 de Setembro de 2006 e é confirmado na exposição de motivos constante da Proposta de lei nº 389/2005, de 24 de Novembro de 2005 que deu origem à Lei nº 14/2006
II- Esse objectivo de descongestionamento, de interesse público não se exprimiu na letra da lei (ver artigo 74.º do Código de processo Civil) limitando a regra de competência territorial apenas às acções enquadráveis na designada litigância de massas; a lei, muito mais ampla, tutela o interesse do consumidor e o acesso aos tribunais de modo efectivo com a alteração em matéria de competência territorial que tem como corolário o pretendido objectivo de descongestionamento dos tribunais
III- Por isso, à luz do texto legal e das respectivas motivações evidenciadas pelo legislador, pode o intérprete considerar que foi inequívoca a intenção os legislador de revogar a lei especial em matéria de competência territorial constante do artigo 21.º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro pela lei geral constante das alterações introduzidas pela lei nº 14/2006, de 26 de Abril conquanto não sejam atingidas - e não são - as finalidades procedimentais e de direito material que são visadas nos diplomas de natureza especial onde se consagra o especial regime de competência territorial
IV- Não afectadas tais finalidades, pode entender-se que a Lei nº 14/2006, de 26 de Abril revogou o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.

Decisão: nega-se provimento ao recurso confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 22 de Março de 2007
(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)