Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8537/2006-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: PROVEITO COMUM
PROVA DOCUMENTAL
DOCUMENTO
MATÉRIA DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Numa acção em que se pretenda a condenação solidária do cônjuge, responsabilizando-o por dívida contraída pelo outro cônjuge em razão do proveito comum, a prova do casamento configura-se como constitutiva do direito invocado e não meramente circunstancial, impondo-se, por conseguinte, a junção de documento em conformidade com o disposto nos artigos 1615.º do Código Civil, 485.º, alínea d) do Código de Processo Civil e artigo 1º,alínea d) e 134.º e seguintes do Código do Registo Civil).
II- O proveito comum do casal constitui asserção de direito, importando que sejam alegados os factos concretos que permitam ao julgador concluir em termos de direito no sentido da sua verificação, não satisfazendo a alegação em que se diz que o empréstimo “ reverteu em proveito comum do casal dos RR, por o veículo se destinar ao seu património comum” (artigo 1691.º,n.º1, alínea c) do Código Civil).

(SC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I - Relatório

1. BANCO […]S.A. demandou HELENA […] e marido LUÍS […], pedindo que os RR sejam condenados, solidariamente entre si, a pagar-lhe a quantia de 7.752,90€, acrescida de 765,43€ de juros vencidos até 6 de Janeiro de 2005, 30,62€ de imposto de selo sobre estes juros e ainda os juros que sobre aquele capital se vencerem à taxa anual de 17,16%, até integral pagamento, bem como o imposto de selo que à referida taxa de 4% sobre estes juros recair.

2. Alega para tanto que com vista à aquisição de um veículo automóvel, concedeu à R. crédito sob forma de um contrato de mútuo, no montante de 7.000,00€ com juros à taxa nominal de 13,16% ao ano, devendo a importância do empréstimo, e os juros referidos, bem como o prémio de seguro de vida, serem pagos em 60 prestações, mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 10 de Janeiro de 2003.

Ficou igualmente acordado que em caso de mora, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada de 13,16%, acrescida de 4 pontos percentuais.

A R. contudo não pagou a 18ª prestação com vencimento em 10 de Junho de 2004 e seguintes, vencendo-se todas.

O empréstimo referido reverteu em proveito comum do casal dos RR, por o veículo se destinar ao seu património comum, sendo assim o R. solidariamente responsável com a R. pelo pagamento das importâncias peticionadas.

3. Citados, os RR. não contestaram.

4. A A. foi convidada a apresentar nova petição inicial, alegando matéria de facto adequada à expressão do direito invocado no concerne ao proveito comum do casal, tendo a mesma declinado o convite.

4. Proferida sentença, foi a acção julgada parcialmente procedente, e em consequência foi condenada a R. a pagar a quantia de 7.752,90€, acrescida de juros de mora já vencidos no valor de 765,43€ e do imposto de selo sobre estes juros no valor de 30,62€, bem como os juros que se vencerem à taxa anual de 17,6%, desde 7.01.2005, até integral pagamento, bem como o imposto de selo, que à taxa legal, sobre estes juros recair, sendo o Réu absolvido, do pedido contra si formulado.

5. Inconformada, veio a A. interpor recurso de apelação, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
· Na sentença recorrida o Senhor Juiz a quo errou ao julgar a presente acção improcedente e não provada quanto ao R. marido, ora recorrido, com fundamento na falta de demonstração do casamento dos recorridos RR, atento o A. não ter alegado e provado factos que demonstrassem o proveito comum do casal dos RR, ora recorridos.
· Os RR recorridos, apesar de terem sido regularmente citados para os termos da acção, não apresentaram contestação, nem deduziram oposição, designadamente não impugnaram que fossem casados entre si, pelo que o casamento dos recorridos deveria ter sido considerado provado.
· Acresce que na presente acção não se está perante direitos indisponíveis, pelo que a vontade das partes é plenamente eficaz para produzir os efeitos jurídicos que pela acção se pretende obter, sem a necessidade da junção da certidão para prova do casamento dos mesmos, razão pela qual o R. marido, ora recorrido, deveria ter sido condenado, solidariamente com a R. sua mulher, também recorrida no pedido.
· O documento autêntico só é mesmo necessário para a prova do casamento nas acções de estado e não aquelas em que o casamento não representa propriamente o “tema decidendum”, desde que não haja disputa das partes sobre a sua existência.
· É pois legalmente admissível a prova do casamento dos RR por confissão, nos termos e de harmonia com o disposto nos art.º 1º, n.º1, d) 4º e 211, do Código de Registo Civil, e do art.º 484, do Código de Processo Civil.
· Os recorridos foram regularmente citados para os termos da presente acção, não a tendo contestado, nem deduzido qualquer opinião, não impugnando, pois o seu casamento, pelo contrário, confessando-o.
· Porque os factos articulados pela A., ora recorrente e confessados pelos RR, ora recorridos se trata, devia o Sr. Juiz a quo ter considerado provado nos autos a matéria de facto não impugnada – e assim demonstrada - constante do art.º 17 da petição inicial – ou seja o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR., nos termos e de harmonia com o disposto nos art.º 463, n.º1, 484, n.º1, do CPC e condenado, por isso, ambos os RR, ora recorridos, solidariamente entre si, no pedido dos autos. Tanto mais que,
· Contrariamente ao entendido pelo Sr. Juiz a quo, a alegação de que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR, não só não é meramente conclusiva como contém em si mesma matéria de facto relevante para a decisão dos autos, que, uma vez provada -  como é o caso – impõe a condenação de ambos os RR, ora recorridos, solidariamente entre si, no pedido dos autos.
· Verifica-se, assim, a responsabilidade do recorrido marido, R. na acção pelo pagamento da importância reclamada na acção, nos termos e de harmonia como o disposto no art.º 1691, n.º1, c) do CC.
· Ao decidir como decidiu na sentença recorrida o Sr. Juiz a quo violou, interpretou e aplicou erradamente o disposto nos artigos 463, n.º1, e 484, n.º1, do CPC e no artigo 1691, n.º1, c), do CC.
6. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Os factos
Na sentença sob recurso, por confissão, foram considerados como provados os seguintes factos:

1. A A. no exercício da sua actividade comercial, e com destino segundo informação prestada pela R. mulher, à aquisição de um veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula […], por contrato constante de título particular datado de 3.12.2002, concedeu à dita R. crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, tendo-lhe assim emprestado a importância de 7.000,00€;
2. Nos termos desse contrato, a quantia emprestada vencia juros à taxa nominal de 13,16% ao ano, devendo a importância do empréstimo, e os juros referidos, bem como o prémio de seguro, ser pagos, nos termos acordados, em 60 prestações, mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10.01.2003, e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes;
3. O pagamento de cada uma das prestações efectuar-se-ia por transferência bancária a efectuar aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações.
4. Nos termos acordados, a falta de pagamento de qualquer das referidas prestações na data do respectivo vencimento implicava o vencimento imediato de todas as demais;
5. Mais foi acordado entre a A. e a R. que em caso de mora sobre o montante em débito, acrescia a título de cláusula penal, uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada – 13,16% - acrescida de 4 pontos percentuais.
6. Das prestações referidas a R. não pagou a 18ª e seguintes, vencida a primeira em 10 de Junho de 2004.
7. A R. não providenciou pelas referidas transferências bancárias para pagamento das ditas prestações, que não foram feitas, e nem o R. ou quem quer que fosse por ele, as pagou à A.
8. O valor de cada prestação era de 180,30€.

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III – O Direito

Como se sabe, o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões (1) nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso (2), artigos 684º, nº 3, e 690º, nº 1, 660º, nº 2, e 713º, todos do CPC, pelo que a apreciar está a pretendida prova por confissão do casamento dos Recorridos, bem como comunicabilidade da dívida decorrente do contrato ter revertido em proveito comum do casal formado pelos mesmos.

Com efeito, pretende a Recorrente que no caso sob análise é admissível a prova do casamento por confissão, resultante da falta da contestação dos Apelados, sendo assim a vontade das partes plenamente eficaz para produzir os efeitos pretendidos nos autos, mas também, e contrariando o decidido, deve-se entender que o alegado no art.º 17 da petição inicial, isto é, o empréstimo reverteu em proveito comum do casal dos RR – atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal dos RR, não é meramente conclusivo, mas sim matéria de facto relevante, e apurada por não contestada, importando, necessariamente, na condenação solidária dos Apelados.

Apreciando.

Não se questiona que o casamento, é um contrato civil, que está sujeito a registo obrigatório, sendo feita a sua prova mediante certidão emanada da entidade competente, artigos 1577, 1651, 1669, e 364, n.º1 do CC, e artigos 1, n.º1, d) e 2, 3 e 4 do CRCivil.

Assim sendo, e de forma linear, pode dizer-se que sempre que a parte deseje invocar em juízo a existência de casamento como facto constitutivo do direito a que se arroga, deverá juntar, ou providenciar que seja junta, a respectiva certidão comprovativa, sendo ineficaz para tanto a confissão.

Não se desconhece que por vezes a mera alegação da sua existência, não contrariada, é tomada em conta em temos do conhecimento da pretensão formulada em juízo, o que se verifica em circunstâncias em que o casamento não releva de forma primordial para o respectivo conhecimento.

Ora, se atentarmos que em situações como a sob a análise a existência do casamento se configura como constitutivo do direito invocado no concerne à pretendida condenação solidária do Recorrido, e não como mero facto circunstancial despojado de tal relevância, pode-se concluir, que a respectiva prova deveria de ser feita com recurso ao documento legalmente definido para tanto.

Mas mesmo não perfilhando tal entendimento, ainda assim, e adiantando, não pode proceder a pretendida responsabilização do Recorrido nos termos do preceituado na alínea c) do n.º1, do art.º 1691, do CC.
 
Em causa está, neste âmbito, a invocada suficiência dos factos articulados pela Apelante no artigo 17º da petição inicial, isto é que o empréstimo concedido reverteu em proveito comum do casal dos RR, - atento até o veículo referido se destinar ao património comum do casal, para obter o efeito jurídico pretendido, isto é, a já mencionada responsabilização do Recorrido, pela dívida contraída pela Recorrida, e consequentemente a condenação solidária dos mesmos a satisfazer o respectivo pagamento.

Com efeito, no atendimento do preceito legal em referência, impendia sobre a Apelante, como autora, o ónus de alegar e provar os factos concretos que fundamentavam sua pretensão, art.º 264, n.º1, 467, n.º1, c), do CPC, e art.º 342, n.º1, do CC, isto é, e para além da existência do casamento, a subsistência deste aquando da celebração do contrato de mútuo pelo cônjuge administrador, nos limites dos seus poderes de administração, assim como o proveito comum do casal.

Independentemente da questão da prova da existência do casamento, é patente que a petição inicial é omissa quanto à sua subsistência, e aos poderes de administração, mas é também insuficiente, em termos fácticos, quanto ao proveito comum, até porque no caso dos autos o mesmo não se presume, n.º3, do mencionado art.º 1691, do CC.

Na realidade, se o proveito comum pode ser uma realidade socialmente estendível, certo é que não se confunde com o sentido que vulgarmente a expressão possa ter (3), pois é, sobretudo, um conceito jurídico, traduzido numa conclusão a extrair de factos naturalísticos que o suportam, factos esses cuja prova poderá ser feita por confissão, no caso de falta de impugnação (4).

Aceitando-se em termos da distinção entre questões de facto e de direito, que quanto às primeiras se pretende apurar as ocorrências da vida real, eventos materiais ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, enquanto as questões de direito se reportam à interpretação e aplicação da lei (5), sabe-se que em termos práticos nem sempre a distinção assume tal clareza, podendo contudo reter-se que se está no âmbito de matéria de facto quando a averiguação da existência daquelas ocorrências, eventos ou mudanças, se faz sem recurso à interpretação de qualquer norma, ou com base em critério juridicamente fixado.

Tal não significa que a questão de facto deva ser necessariamente simples. Com efeito a mesma poderá revestir-se de complexidade, comportando ela própria juízos valor, na realização dos quais se exclui qualquer norma ou critério jurídico, sendo que nesse caso sempre competirá ao julgador formular a conclusão a retirar dos factos alegados, e provados, para tanto (6).

Desta forma, voltando à situação dos autos, visando a Apelante responsabilizar o Recorrido por uma dívida contraída pela Recorrida, importava que tivesse alegado os factos materiais que em concreto permitiriam ao julgador concluir que teria existido proveito comum, questão sem dúvida complexa, envolvendo juízos de facto, mas também de direito, e na qual está, sobretudo, em causa o fim ou intenção objectiva com que a dívida foi contraída, e não o resultado que sobreveio (7).

Ora, a formulação adoptada pela Apelante na petição inicial (8), isto é, que o empréstimo reverteu em proveito comum do casal traduz-se, efectivamente, numa conclusão jurídica, omitindo os factos materiais, premissas do juízo efectuado, sendo também insuficiente no concerne ao fim, ou intenção objectiva, com que a dívida foi contraída, a indicação realizada de o empréstimo ter sido feito para a aquisição de um veículo automóvel, destinando-se ao património comum do casal.

Em conformidade, conclui-se que por incumprido o ónus de alegação por parte da Recorrente, nos termos legalmente estipulados, inexistem nos autos os factos materiais necessários à responsabilização do Apelado, nos termos do art.º 1691, n.º1, c) do CC.

Improcedem, assim, na totalidade, as conclusões formuladas pela Recorrente.
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IV – DECISÃO

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

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Lisboa, 14 de Novembro de 2006

Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo



_______________________________-_________
1.-As questões que devem ser conhecidas reportam-se às pretensões formuladas, não estando o julgador obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista. sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está aquele sujeito às razões jurídicas invocadas também pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.

2.-Com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras.

3.-Cfr. Ac. STJ de 7.3.2006, in CSTJ, ano XIV, tomo 1, pag. 110, e seguintes, referindo que tem um sentido mais preciso, e daí que tenha de ser alegada a factualidade com que se possa integrar esse conceito no juízo a fazer pelo julgador, sintetizando que o particular ou vulgar sentido e alcance da expressão que a lei utiliza integra uma questão complexa que envolve direito e facto.

4.-Como resulta do disposto no art.º 784, do CPC, apenas os factos podem ser reconhecidos por falta de contestação.

5.-Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, III volume, pág. 206 e seg

6.-Cfr. Ac.STJ acima citado.

7.-Cfr. Ac. STJ acima citado, Ac RL de 24.06.99, CJ, Ano XXIV, Tomo III, pág. 133.

8.-A Apelante não aceitou o convite feito para apresentar matéria de facto adequada à expressão do direito que apresentou.