Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3/16.0PAPST.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRÁTICA REITERADA
HUMILHAÇÃO PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O crime de violência doméstica, autonomizado pela primeira vez pelo legislador, através da Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que alterou o Código Penal, visa proteger, em nossa opinião, não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes, ao nível do bem jurídico, a integridade pessoal, prevista no artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, em que se funda o Estado Português.

II - Tendo em conta a definição do tipo legal, verifica-se que o crime de violência doméstica não exige a prática reiterada dos actos objectivos previstos no mesmo por parte do agente, mas exige que os mesmos se traduzam na humilhação da vítima ou numa especial desconsideração pela mesma.

III - A "humilhação pública" a existir, resulta dos comportamentos inadequados e anti-sociais que ambos os arguidos demonstram no seu relacionamento conjugal, como, aliás, o comprovam as várias condenações a que foram sujeitos. Os arguidos humilham-se a si próprios ao procederem nos moldes que resultam dos factos provados, inexistindo uma supremacia de um sobre o outro, de modo a poder considerar-se, no caso concreto, que é vítima do referido crime de violência doméstica.

IV - Não podendo o crime de violência doméstica ser cometido em reciprocidade por ambos os cônjuges, não nos parece que a circunstância de o arguido, após mais uma discussão na sua residência e troca de palavras junto a um estabelecimento com a arguida, ter ido no encalce desta e se ter aproximado do veículo em que ela se encontrava, possa se traduzir numa sujeição da mesma a "humilhação pública ou desonra".
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9@ Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório

Na Comarca da Madeira, Instância Local de Competência Genérica de Porto Santo, por sentença de 15/01/2017, constante de fls. 271. a 279, foram os arguidos,

S...,

H...,

Absolvidos da acusação contra si deduzida, nos seguintes termos:

a)      Absolver a arguida S..., da prática do crime de violência doméstica p.e.p. pelo art.21522 n21 a) e 4 do C.P. (e ainda que sob forma convolada para o tipo de ofensa à integridade física simples p.e.p. pelo art.21432 n21 do C.P., nos termos do art.21432 n22 do C.P. e 482, 492 do C.P.P.);

Absolver o arguido H..., da prática do crime de violência doméstica p.e.p. pelo art.21522 n91 a) e 4 do C.P. (e ainda que sob forma convolada para o tipo de ofensa à integridade física simples p.e.p. pelo art.°1432 n°1 do C.P., nos termos do art.°143° n°2 do C.P. e 48°, 492 do C.P.P.).

* * *

Não se conformando o Ministério Público interpôs recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 287 a 308, com as seguintes conclusões: (transcrição)

1) Na sentença proferida o tribunal a quo deu como provado, entre outros factos, que o arguido H..., no dia 22 de maio de 2016, pelas 15 horas e 15 minutos, iniciou uma discussão com a arguida S..., no interior da sua residência, a qual só terminou porque o arguido H... decidiu abandonar essa residência.

Mais resultou provado que nesse mesmo dia, pelas 2 horas e 10 minutos, na Avenida xxx, na ilha do Porto Santo, o arguido H..., movido por ciúmes, aproximou-se da arguida S..., que se encontrava no estabelecimento denominado "MO...", acompanhada do seu irmão, M…, e questionou-a sobre a razão da mesma se encontrar naquele local.

Mais resultou provado que, nessas circunstâncias, dirigiu-se a M… interrogando se aquele pretendia arranjar outro marido para a arguida, momento em que esta abandonou o local e se deslocou para o estabelecimento denominado “T...”, sito na Rua xxx, na ilha do Porto Santo.

Mais resultou provado que o arguido H... decidiu ir no encalce da arguida até esse estabelecimento e assim que a arguida S... se apercebeu disso, deslocou-se ao seu veículo automóvel que estava estacionado junto ao estabelecimento "MO..." e sentou-se no seu interior.

Resultou ainda provado que o arguido H... continuou no encalce da arguida Sónia, aproximou-se do veículo automóvel em que esta se encontrava, altura em que a arguida saiu do interior desse veículo e abordou o arguido.

Mais resultou provado que, sem que nada o fizesse prever, os arguidos agarraram-se e começaram a agredir-se mutuamente, acabando por ser projetados para o chão e que essas agressões só tiveram fim com a intervenção do irmão da arguida, de algumas pessoas que se encontravam no local e dos Agentes da PSP do Porto Santo que ali chegaram, os quais afastaram os arguidos entre si.

Resultou ainda provado que no percurso para o Centro de Saúde e no interior da viatura policial, o arguido disse várias vezes que iria cortar a arguida toda, fazendo o gesto com a mão junto ao seu pescoço, simulando que a ia degolar.

Mais sabiam os arguidos que ao agirem dessa forma e publicamente, causavam-se mutuamente, não só as lesões físicas descritas, como também um sentimento de desrespeito, desonra e humilhação, atentando contra as suas dignidades humanas e atuando com total indiferença para com os deveres de respeito e cooperação.

Os arguidos agiram, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal.

2)      Apesar da objetiva gravidade e censurabilidade das condutas do arguido H... que foram consideradas como provadas na sentença recorrida, entendeu a Mma. Juíza, face à matéria de facto dada como provada que, os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em causa estariam preenchidos, contudo, o tribunal a quo concluiu que, resultando que houve agressões mútuas entre os cônjuges, arguidos, inexiste ascendente de qualquer um dos cônjuges sobre o outro, o que importa o afastamento do tipo legal de violência doméstica.

3)      Analisandos os factos dados como provados nesta decisão, à luz do disposto na alínea a), do n.° 1, do artigo 152.°, do Código Penal, que tipifica o crime de violência doméstica que ao arguido H... vinha imputado na acusação, verifica-se que a sentença recorrida violou este imperativo legal ao estabelecer um patamar de exigência de preenchimento do conceito de violência doméstica a cônjuge completamente desajustada (por desvalorizar) do grau de exigência legalmente consagrado para o efeito, como resulta da interpretação sistemática desta norma, bem como do sentido da evolução legislativa verificada nesta matéria no nosso ordenamento jurídico-penal.

4)      Salvo o devido respeito, a tese em apreço ofende o espírito e a letra do artigo 25.°, da Constituição da República Portuguesa, surgindo, nos dias de hoje como totalmente descabida.

5)     Assim, a questão que se coloca, como objeto essencial deste recurso que apenas versa matéria de direito e apenas quanto à absolvição do arguido H..., é a da impossibilidade lógica-jurídica da interpretação dada à alínea a), do artigo 152.°, do Código Penal, nesta decisão do tribunal a quo, face ao conceito de violência doméstica consagrado no nosso ordenamento jurídico-penal, redundando uma flagrante violação do espírito e da letra daquela norma jurídica.

6)      Assim, dispõe esse artigo que "Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge"; (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.".

7)     O crime de violência doméstica encontra-se inserido, na sistemática do Código Penal, no Capítulo III (Crimes contra a Integridade Física), do Título I (Crimes contra a pessoa), da Parte Especial do Código.

8)      Com efeito, o referido crime é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.

9)     No que concerne ao bem jurídico tutelado pela incriminação, a ratio do artigo 152.°, do Código Penal, não está "na proteção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana", indo muito mais além "dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos, designadamente, as humilhações, provocações, ameaças, ou curtas privações de liberdade de movimentos.

10)   O bem jurídico protegido, pela incriminação é a saúde, bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, neste sentido, ainda sobre a redacção anterior do preceito, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 132.

O tipo legal de crime de violência doméstica visa proteger a pessoa individual e a sua dignidade humana.

11)    A incriminação contribui desta forma e em uníssono, com outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.° 1, do artigo 25.°, da Constituição da República Portuguesa, em integridade moral e física.

12)   O tipo objetivo da incriminação inclui, além das condutas de "violência" física, a "violência" psicológica, verbal e sexual, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.

13)    Ora, no caso vertente, o arguido H... é marido da arguida S..., residindo ambos na mesma habitação e perante o conjunto fáctico apurado, não restam dúvidas que o arguido H... com a sua conduta preencheu, praticou os factos de que vinha acusado.

14)    Desde logo, porque o arguido sujeitou a sua esposa a humilhações públicas, para além de situações de violência física, ofendendo a sua dignidade, enquanto ser humano, violando o seu direito à saúde psíquica e mental.

15)   O arguido, com a sua conduta, ofensiva de vários direitos da ofendida, demonstrou não ter o mínimo de respeito pela mesma, até porque a ofendida sendo sua esposa, lhe merece todo o respeito.

16)    A Mma. Juíza a quo restringiu a sua valoração dos factos, única e exclusivamente, às agressões mútuas existentes entre os arguidos e desvalorizou a perseguição pertinaz que o arguido fez à arguida e a consequente humilhação pública.

17)    Segundo os factos dados como provados e aos quais já se fez referência, o arguido H... perseguiu a arguida S..., primeiro até ao estabelecimento denominado "MO...", abordando-a nesse local, depois até ao estabelecimento denominado “T...”, abordando-a nesse local, pela segunda vez, e, após, até ao veículo da mesma, abordando-a pela terceira vez, revelando com o seu comportamento, não só a perseguição, mas o controle da vida da arguida, limitando a sua liberdade de ação.

O arguido agiu movido por ciúmes, tendo até questionado o irmão da arguida S..., se aquele pretendia arranjar marido para ela....

18)   Salvo o devido respeito, a Mm.a Juíza a quo desvalorizou totalmente esta conduta do arguido, a qual, a nosso ver, revela um tratamento incompatível com a dignidade e liberdade da arguida S....

19)   Sufragar a tese da sentença recorrida redundaria, assim, em manifesta e inadmissível desvalorização de princípios fundamentais do ser humano, tais como a liberdade de ação e decisão.

20)    Na verdade, desvalorizar a perseguição constante de um cônjuge relativamente ao outro, humilhá-lo publicamente, ameaçar de morte é atentatório à dignidade da arguida S....

21)   De salientar que todos os factos integrantes do ilícito foram perpetrados pelo arguido H... com dolo direto, tendo este agido sempre com a intenção de atingir a saúde física e psíquica da ofendida e atuado de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei - vd. n.° 1, do artigo 14.°, do Código Penal.

22)   Pelo que e em conclusão, em face da matéria que resultou provada, resta referir que o arguido, com a sua conduta, preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime sub judice, cometendo, assim, um crime de violência doméstica.

23)    E nem se diga, como vem referido na sentença do tribunal a quo que, os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica estão preenchidos, mas por as agressões serem mútuas, inexiste ascendente de qualquer um dos cônjuges sobre o outro, afastando o tipo legal de violência doméstica.

24)   Se estão preenchidos os elementos do tipo e não se verifica nenhuma das causas de exclusão da ilicitude e da culpa, como se pode absolver o arguido?

25)    Acresce que, como já se referiu, os atos praticados pelo arguido não se circunscrevem apenas a agressões mútuas, havendo um plus, de perseguição, humilhação pública, desonra e que, apesar da objetiva gravidade e censurabilidade das condutas do arguido que foram consideradas como provadas na sentença recorrida, o mesmo foi absolvido do crime de violência doméstica.

26)   Pelo que, face à factualidade dada como provada e com os fundamentos supra mencionados, divergindo, assim, do tribunal a quo, estão reunidas todas as condições e pressupostos legais (concretamente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal) para responsabilizar criminalmente o arguido H... pelos factos dados como provados, que correspondem ao crime de violência doméstica, devendo, consentaneamente, o mesmo ser condenado.

27) A decisão de absolver o arguido do crime que lhe vinha imputado deve ser revogada, devendo a mesma ser substituída pela condenação do arguido no crime de violência doméstica por que foi acusado, por se encontrarem preenchidos todos os elementos do tipo legal respectivo e por não existir qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, ou qualquer outro obstáculo à punição.

Nestes termos e nos melhores de direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deverá ser revogada a sentença recorrida.

V.as Exas., porém farão a costumada

JUSTIÇA (fim de transcrição)

***

Os arguidos não responderam ao recurso.

Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer de fls. 319, aderindo ao recurso do Ministério Público da 12 Instância, manifestando-se pela procedência do mesmo.

Foi cumprido o disposto no artigo 417°, n°2, do Código de Processo Penal, não tendo havido respostas.

Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

II       Fundamentação

1.      É pacífica a jurisprudência do STJ1 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.2

Da leitura dessas conclusões o recorrente Ministério Público apenas coloca a este Tribunal, como questão a decidir, o saber se a factualidade dada como provada integra a prática pelo arguido H... do crime de violência doméstica por que vinha acusado.

Para uma melhor compreensão da questão colocada vejamos, em primeiro lugar, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados e qual a fundamentação jurídica expendida na decisão.

2. O Tribunal a quo deu como provados, os seguintes factos: (transcrição)

1.      Os arguidos S...e H... são casados entre si desde 12.12.1996 e residem na Ruaxxx, na ilha do Porto Santo.

2.     Fruto desse casamento nasceram R…, a 23.12.1996 e C…, a 29.05.2002, com aqueles residentes.

3.      Na constância desse matrimónio têm sido frequentes as discussões e agressões entre os arguidos.

4,      Pela prática de alguns desses factos, a arguida S... foi condenada em 01.04.2016, no âmbito do processo n.° 124/14.7PAPST, que decorreu termos no J1, da Instância Local, Secção de Competência Genérica do Porto Santo, pela prática de factos ocorridos a 24.12.2014, num crime de violência doméstica qualificada, na pessoa do cônjuge, ora arguido.      

5.     No dia 22 de maio de 2016, pelas 15 horas e 15 minutos, os arguidos iniciaram uma discussão no interior da sua residência, a qual só terminou porque o arguido H... decidiu abandonar essa residência.

6.      Nesse mesmo dia, pelas 2 horas e 10 minutos, na Avenida xxx, na ilha do Porto Santo, o arguido H..., movido por ciúmes, aproximou-se da arguida S..., que se encontrava no estabelecimento denominado "MO...", acompanhada do seu irmão, M…, e questionou-a sobre a razão da mesma se encontrar naquele local.

7.     Nessas circunstâncias, dirigiu-se a M… interrogando se aquele pretendia arranjar outro marido para a arguida, momento em que esta abandonou o local e se deslocou para o estabelecimento denominado “T...”, sito na Rua xxx, na ilha do Porto Santo.

8.     O arguido decidiu ir no encalce da arguida até esse estabelecimento e assim que a arguida S... se apercebeu disso, deslocou-se ao seu veículo automóvel que estava estacionado junto ao estabelecimento "MO..." e sentou-se no seu interior.

9.     O arguido H... continuou no encalce da arguida Sónia, aproximou-se do veículo automóvel em que esta se encontrava, altura em que a arguida saiu do interior desse veículo e abordou o arguido.

10.   Sem que nada o fizesse prever, os arguidos agarraram-se e começaram a agredir-se mutuamente, acabando por ser projetados para o chão.

11.    Essas agressões só tiveram fim com a intervenção do irmão da arguida, de algumas pessoas que se encontravam no local e dos Agentes da PSP do Porto Santo que ali chegaram, os quais afastaram os arguidos entre si.

12.    A arguida, aproveitando-se da circunstância dos Agentes da PSP estarem a abordar o arguido, começou a correr em direção a este para voltar a agredi-lo, sem lograr efeito, porque foi impedida por um Agente da PSP.

13.    Em consequência direta e necessária das agressões infligidas pelas arguida Sónia, o arguido H... sofreu um corte incisivo na região frontal da cabeça, pelo que foi transportado, pelos Agentes da PSP, ao Centro de Saúde do Porto Santo, tendo sido realizada, nessa região, sutura cirúrgica com 4 pontos.

14.   No percurso para o Centro de Saúde e no interior da viatura policial, o arguido disse várias vezes que iria cortar a arguida toda, fazendo o gesto com a mão junto ao seu pescoço, simulando que a ia degolar.

15.    Ao atuar da forma supra descrita, o arguido H... causou sofrimento na sua mulher, S..., em consequência das dores e lesões decorrentes das agressões descritas, o que quis e conseguiu.

16.   Ao atuar da forma supra descrita, a arguida S... agiu com o propósito de molestar o corpo e saúde do seu cônjuge, o arguido H... e causar-lhe dores físicas e ferimentos, o que conseguiu.

17.    Ao praticarem os factos descritos, os arguidos agiram sempre com intenção concretizada de se maltratarem mutuamente, tendo-se atingido na sua integridade física.

18.   Mais sabiam os arguidos que ao agirem dessa forma e publicamente, causavam-se mutuamente, não só as lesões físicas descritas, como também um sentimento de desrespeito, desonra e humilhação, atentando contra as suas dignidades humanas e atuando com total indiferença para com os deveres de respeito e cooperação.

19.    Os arguidos agiram, em todos os momentos, com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos pela lei penal.

Antecedentes Criminais

20.   Os arguidos possuem os seguintes antecedentes criminais registados:

S...

a) Sentença proferida no proc.124/14.7PAPST, transitada em julgado 02-05-2016, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica p.e.p. pelo art.°152° n°1 a) do C.P., na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa por 2 anos e 1 mês.

H...

b)     Sentença proferida no proc.109/01.3PBPST, transitada em julgado 16-12-2002, pela prática de 1(um) crime ofensas à integridade física simples p.e.p. pelo art.° 143° n°1 do C.P., na pena de 150 dias de multa, à taxa diária 3,00€, num total de 450,00E(quatrocentos e cinquenta euros).

c)      Sentença proferida no proc.313/02.7PBPST, transitada em julgado 02-12-2003, pela prática de 1(um) crime ofensas à integridade física simples p.e.p. pelo art.° 143° n°1 do C.P., na pena de 100 dias de multa, à taxa diária 8,00€, num total de 800,00E(oitocentos euros).

d)     Sentença proferida no proc.251/04.9PTFUN, transitada em julgado 16-12-2002, pela prática de 1(um) crime ofensas à integridade física simples p.e.p. pelo art.° 143° n°1 do C.P., na pena de 150 dias de multa, à taxa diária 3,00€, num total de 450,00E(quatrocentos e cinquenta euros).

e)      Sentença proferida no proc.251/04.9PTFUN, transitada em julgado 22-05-2006, pela prática de 1(um) crime de condução em estado de embriaguez p.e.p. pelo art.° 292° n°1 do C.P., na pena de 80 dias de multa, à taxa diária 5,00€, num total de 400,00€(quatrocentos euros).

f)      Sentença proferida no proc.116/08.5PBPST, transitada em julgado 07-01-2009, pela prática de 1(um) um) crime de condução em estado de embriaguez p.e.p. pelo art.° 292° n°1 do C.P., crime de desobediência p.e.p. pelo art.°348° n°2 do C.P. ex vi do art.°154° n°2 do C.E. na pena de 165 dias de multa, à taxa diária 6,00€, num total de 990,00€(novecentos e noventa euros), pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo prazo de 8 meses.

g)     Sentença proferida no proc.107/10.6PAPST, transitada em julgado 16-05-2012, pela prática de 1(um) um) crime de ofensa à integridade física simples p.e.p. pelo art.°143° n°1 do C.P., na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa por igual período sujeita a regime de prova.

h)      Sentença proferida no proc.96/12.2PAPST, transitada em julgado 29-04-2013, pela prática de 1(um) crime de resistência e coacção sobre funcionário p.e.p. pelo art.°347° n°1 do C.P. e 1(um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez p.e.p. pelo art.°292° n°1 e 69° n°1 a) do C.P., na pena de 6meses de prisão, suspensa pelo período de 1(um) ano, sujeita a regime de prova; pena acessória de inibição de condução de veículos motorizados de 9 meses.

i) Sentença proferida no proc.21/13.3TAPST, transitada em julgado 24-03-2014, pela prática de 1(um) crime de desobediência simples p.e.p. pelo art.°348° b) do C.P., na pena de 3 meses de prisão.

21. Condições económicas, sociais e pessoais

S...

a) A arguida é a mais velha de três irmãos, sendo que o pai trabalhava como serralheiro e garantia a subsistência do agregado e a progenitora ocupava-se das tarefas domésticas e da educação dos filhos.

b) A arguida admite ter assistido a alguns episódios de conflito familiar, que desvaloriza, descrevendo uma dinâmica pautada por sentimentos de partilha.

c) A arguida investiu na sua formação que prosseguiu para além da escolaridade obrigatória tendo concluído o 9° ano, tendo o seu percurso profissional ocorrido sobretudo no ramo da restauração, como cozinheira, caracterizando-se e sendo descrita como uma pessoa com capacidades e hábitos de trabalho.

d) Ainda adolescente iniciou um relacionamento amoroso com o ofendido e co-arguido do qual engravidou, sendo que o filho mais velho nasceu quando contava 16 anos de idade, precipitando a sua inserção no universo de trabalho.

e) O relacionamento conjugal tem sido afetado por múltiplos fatores, destacando-se os hábitos alcoólicos do ofendido, a instabilidade profissional do casal, particularmente do marido, as dificuldades económicas vividas e a instabilidade emocional da arguida.

f) A arguida reside com o ofendido, o filho de 19 anos, ambos desempregados, e a filha de 14 anos, estudante, com os quais partilha um imóvel adquirido com crédito bancário.

g) A instabilidade e elevada conflituosidade vividas num passado recente determinaram a sinalização e o acompanhamento da filha mais nova pelo sistema de promoção e proteção.

h) Actualmente o casal retrata uma fase maior estabilidade e proximidade relacional, pautado pela partilha de responsabilidades e rotinas, procurando transmitir uma imagem estabilizada da dinâmica conjugal, não sendo percetíveis desníveis de poder na relação.

i) A arguida encontra-se a trabalhar informalmente como empregada de balcão num estabelecimento local e verbaliza satisfação por esta ocupação, pela qual aufere de rendimentos próprios, aos quais acresce o subsídio de desemprego do ofendido, sendo caracterizada uma situação económica carenciada, considerando os encargos do casal que incluem o pagamento do crédito habitação e a manutenção de duas viaturas automóveis.

j) A arguida ocupa o seu tempo livre em casa, onde se dedica a tarefas domésticas e a prestação de cuidados e acompanhamento educativo da filha mais nova.

k) A arguida não possui historial de abuso de substâncias, contudo, manifesta sinais de instabilidade e fragilidade emocional que se concretizam em lacunas ao nível da capacidade de autocontrolo e sintomatologia ansiosa e depressiva, pelo que beneficia de acompanhamento no centro de saúde local, estando prescrita a toma de ansiolítico em situações de maior inquietação.

l) A arguida manifesta elevada ativação emocional face ao desenrolar do presente processo, verbalizando sentimentos como apreensão e angústia, com desvalorização dos factos que motivaram a sua condenação anterior que remete para uma pessoa com lacunas na interiorização dos normativos sociais.

m) Ainda assim, é capaz de reconhecer lacunas ao nível da sua capacidade de assertividade, gestão de conflitos e autocontrolo.

n) A sua postura tem sido de colaboração, não obstante alguma defensividade face ao seu envolvimento com o sistema de justiça.

H...

o) O arguido desenvolveu-se no seio de uma família numerosa e com reduzidos recursos económicos.

p) O pai trabalhava no ramo da construção civil e à mãe cabia a gestão doméstica e a educação dos filhos.

q) A dinâmica familiar foi abalada pelos hábitos alcoólicos do progenitor e o arguido refere ter presenciado episódios de violência doméstica, ainda que os relate de forma neutra e os mesmos pareçam não ter tido um impacto significativo no seu desenvolvimento.

r) Ainda adolescente, deslocou-se com a família para o Porto Santo, onde permanece desde então.

s) O percurso escolar do arguido foi marcado pelo absentismo e reduzido investimento.

t) Abandonou o sistema de ensino após a conclusão do 4° ano, após várias retenções, e sem concluir a escolaridade obrigatória.

u) Foi na adolescência que ocorreram as suas primeiras experiências de trabalho no ramo da construção civil, no qual chegou a trabalhar por conta própria, ainda que sem realizar descontos para o sistema de protecção social.

v) A ingestão de bebidas alcoólicas iniciou-se para o arguido no final da adolescência, sendo descritos consumos regulares destas substâncias durante a vida adulta.

w) Aos 22 anos de idade casou com a ofendida e coarguida, na altura menor de idade e grávida do primeiro filho.

x) Apesar de serem verbalizados sentimentos de afeto e proximidade entre o casal, o relacionamento conjugal possui um historial de instabilidade e tem sido afetado pelos hábitos alcoólicos e irregularidade profissional do arguido, as dificuldades económicas vividas e a instabilidade emocional da ofendida.

y) O arguido reside em casa própria, que construiu com recurso a crédito bancário e que partilha com a esposa e os filhos do casal que contam 19 e 14 anos de idade.

z) O filho mais velho encontra-se desempregado e a filha mais nova frequenta o 7° ano de escolaridade e é acompanhada pelo sistema de promoção e proteção, considerando a instabilidade e elevada conflituosidade conjugal, bem como, uma situação anterior que determinou a condenação da ofendida pela prática de um crime de violência doméstica.

aa) O arguido não tem logrado manter uma ocupação laborai estável.

bb) No decorrer de 2015 integrou um Programa Ocupacional de Desempregados, auferindo atualmente o subsídio de desemprego que, aliado aos rendimentos da ofendida, que trabalha como empregada de loja, garante a subsistência do agregado, ainda que seja referenciada uma situação económica frágil e carenciada, considerando os encargos com o crédito à habitação e com a manutenção de duas viaturas automóveis.

cc) O arguido assume consumos regulares de bebidas alcoólicas e de canabinóides cujo impacto desvaloriza, quer no plano da saúde, como ao nível do ajustamento social e das relações familiares.

dd) Atualmente, encontra-se em acompanhamento no centro de saúde da área de residência, a nível da problemática alcoólica, no âmbito da medida coação a que foi sujeito no presente processo e do processo de promoção e proteção da filha.

ee) No meio social de inserção é percepcionado como um indivíduo reativo e agressivo particularmente sobre o efeito de substâncias psicoativas.

ff) Ambos os arguidos auferem cerca de 500,00€ e 270,00€ mensais, respectivamente, pagando 300,00€.

gg) O arguido aceita sujeitar-se a tratamento à dependência alcoólica. (fim de transcrição)

3. O tribunal recorrido, ao nível da fundamentação jurídica, expendeu o seguinte: (transcrição)

Apurados os factos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo.

O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos do tipo legal de crime.

Vem imputado ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado p. e p. pelo art.° 152° n. 1 al. a) do C. P.

Dispõe o artigo 152° do C.P., na redacção dada pelo D.L19/2013 de 21/02: «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.".

O bem jurídico protegido pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.

Como resulta do preceito legal, o elemento objectivo do tipo de ilícito em causa consiste na prática de maus-tratos físicos ou psíquicos.

Nestes termos, o C.P. concretiza o tipo objectivo do ilícito da violência doméstica por recurso a técnica remissiva para um conceito jurídico-normativo, ele próprio objecto de incriminação legal autónoma, no artigo 152°-A do C.P.

Por sua vez, o próprio conceito de maus-tratos, sejam estes físicos ou psíquicos é integrado pelos tipos legais de crime específicos, correspondentes à prática isolada e separada de cada uma das condutas, face aos quais se encontra em concurso, pelo que os respectivos preceitos legais se encontram conexionados através de relações de especialidade (em relação aos crimes de ofensa à integridade física simples ou qualificada, crime de ameaça simples ou agravada, crime de coacção simples, crime de sequestro simples, coacção sexual do art.° 163° n°2 do C.P. violação do art.° 164° n°2 do C.P. importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes do art.° 172° n°2 e 3 do C.P. crimes contra a honra) ou de subsidiariedade expressa (face aos crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos).

O tipo objectivo do ilícito da violência doméstica é, pois, integrado por uma pluralidade de tipos legais, os quais disciplinam autonomamente a componente fáctica subsumível ao âmbito deste.

Assim, para o preenchimento deste tipo legal é necessária a prática de

a)       maus tratos físicos — integrado pelo crime de ofensa à integridade física simples (art.° 143° do C.P.), ou;

b)       maus-tratos psíquicos — integrado pelos crimes de ameaça simples ou agravada(art.° 153° e 155° do C.P.)coacção simples, difamação e injúrias, simples e qualificadas (art.° 180°, 181° e 184° do C.P.), ou;

c)        privações da liberdade — sequestro simples (art.° 158° do C.P.), ou;

d)        ofensas sexuais — coacção sexual prevista no artigo 163° n°2, violação (art.° 164° n°2), importunação sexual, abuso sexual de menores dependentes (172° n°2 e 3 do C.P.).

O tipo fica preenchido com a prática de um acto isolado prescindindo-se, desde a alteração legal operada pela L.59/2007 de 04/09, do elemento de reiteração.

Neste sentido, entre outros, Acórdão T.R.G. de 10-09-2012, no Proc. 1011/11.6GBBCL.G1, Relator Fernando Chaves, disponível em www.dgsi.pt: "1. Para a realização do crime de violência doméstica, torna-se necessário que o agente reitere o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo. II. Porém, admite-se, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge.".

Ainda, Acórdão TRG de 15-10-2012, no Proc. 639/08.6GBFLG.G1, Relator Fernando Monterroso, disponível em www.dgsi.pt: «I. A revisão do C.P. de 2007 ultrapassou a querela de se saber se para o crime de violência doméstica (ou de «maus tratos», como era a epígrafe da anterior redação do art° 152° do CP) bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a 'reiteração' de comportamentos. II. Actualmente, o segmento «de modo reiterado ou não» introduzido no corpo da norma do n° 1 do citado art° 152° do CP, é unívoco no sentido de que pode bastar só um comportamento para a condenação. III. A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos. III. Há «maus tratos» quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima.».

O tipo subjectivo reveste carácter doloso, em qualquer das suas modalidades (directo, indirecto e eventual). No caso do crime agravado pelo resultado, o resultado agravante é imputável ao arguido, se ele tiver procedido negligentemente em relação a este resultado — art.° 18° do C.P.

O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude de relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.

c(C), propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica com vítimas menores ou ocorridos diante de menores, por se considerar que os menores são vítimas» indirectas dos maus-tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante dos menores.» - PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo in ob. cit. 13º anotação ao artigo 152° do C.P., pg.466.

Ora, resulta da matéria dada como provada — 3 a 19 — a existência da prática por ambos os arguidos, contra cada um dos mesmos de actos integrante do conceito de maus-tratos físicos e psíquicos (as agressões dirigidas aos ofendidos/arguidos) actos estes ofensivos do corpo e saúde física e psíquica de ambos os arguidos, integradores, porém, apenas do tipo objectivo característico da ofensa à integridade física simples - art.° 143° n°1 do C.P.

Atenta a factualidade dada como provada, também o tipo subjectivo (da conduta ofensiva) se encontra preenchido, na modalidade de dolo directo, uma vez que os arguidos previram e quiseram praticar as acções anteriormente referidas, bem como, o de censurabilidade, tendo o arguido agido de forma livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida (art.° 14° n° 1 do C.P.) — pontos 17 a 19.

Porém, resulta que quer as agressões foram mútuas, quer inexiste ascendente de qualquer um dos conjugues sobre o outro — pontos 5 a 14, 21 h) - o que importa o afastamento do tipo legal de violência doméstica:

Entre outros: Acórdão do T.R.P., Proc.31/09.5GCVLP.P1, Relatora Manuela Paupério, datado de 09-01-2013, disponível em www.dgsi.pt: "1 - O bem jurídico tutelado pelo art. 152.° do CP, é plural e complexo, visando, essencialmente, a defesa da integridade pessoal (física e psíquica) e a proteção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal.11 — Este tipo legal de crime previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio ou uma subjugação sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e a reconduz a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação.III - O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade.".

Sem prejuízo, constata-se que se encontra integrado o tipo legal de ofensas à integridade simples - pontos 1 a 19 — (cremos que, a forma qualificada do art.°145° n°1 a) e 2 do C.P. se encontra afastada, tendo em conta que a circunstância agravante não opera de per si, pela qualidade de cônjuge, impõe-se uma especial censurabilidade do agente e relevância da circunstância agravativa no contexto dos factos para ambos os agentes (aqui o juízo não é unívoco), que cremos difícil de descortinar numa agressão mútua, entre ambos os contendentes, num cenário de exaltação[1].

Porém, como resulta dos autos, não existiu queixa dos arguidos, tendo o procedimento criminal sido tramitado como violência doméstica, no âmbito de um crime público.

Sem prejuízo, num entendimento de boa-fé do exercício das funções públicas, dever-se-á considerar que, se o M.P. iniciou os autos como crime público os lesados poderão criar a expectativa jurídica da desnecessidade de apresentação de queixa formal, não devendo ser confrontados com um posterior arquivamento/não-pronúncia ou absolvição estritamente fundado na inexistência de pressupostos de responsabilidade criminal, esgotado que já se encontre o prazo da mesma.

Porém, no caso dos autos, os arguidos/ofendidos manifestaram oposição na "conversão" da denúncia ao M.P. em queixa válida, bem como, ao prosseguimento do processo penal.

Neste exposto, impõe-se absolver os arguidos do crime de violência doméstica por falta de preenchimento do seu tipo objectivo/subjectivo, bem como, em convolação da ofensa à integridade física simples por falta de pressuposto da punibilidade penal — a existência de queixa.

Igualmente, tendo em conta a completa omissão dos elementos subjectivos e de censurabilidade do tipo legal de ameaça, não se poderá convolar o ponto 14 por alteração da qualificação jurídica para o referido tipo legal, pois tal não implicaria apenas uma alteração substancial ou não substancial dos factos ou de qualificação jurídica, mas uma completa adição de todos os elementos da responsabilidade criminal, sob cuja inadmissibilidade a jurisprudência fixada já se pronunciou — AUJ 1/2015, Relator Rodrigues Costa, DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27: "A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358. ° do Código de Processo Penal.".

No caso em apreço, igualmente, tendo em conta a absolvição dos arguidos quanto à prática do crime de violência doméstica — art.° 152° n°1 a) e 4 do C.P. - não possui aplicação legal o preceituado no âmbito da L.116/2009 de 16/09. (fim de transcrição)

4. Analisemos a pretensão do recorrente.

O         Ministério Público entende que os factos dados como provados integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, no que respeita ao arguido H..., e, nessa medida, o mesmo deve ser condenado por tal crime.

Adiantando desde já a solução, diremos não ter razão o Ministério Público.

O         artigo 152, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tipifica o crime de violência doméstica, ao que aqui interessa, nos seguintes termos:

1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Tendo em conta esta definição do tipo legal, verifica-se que o mesmo não exige a prática reiterada dos actos objectivos previstos no mesmo por parte do agente, mas exige que os mesmos se traduzam na humilhação da vítima ou numa especial desconsideração pela mesma.

O crime de violência doméstica, autonomizado pela primeira vez pelo legislador, através da Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, que alterou o Código Penal, visa proteger, em nossa opinião, não apenas a saúde, seja ela física, psíquica e mental, mas, antes, ao nível do bem jurídico, a integridade pessoal, prevista no artigo 25º da Constituição da República Portuguesa, ligado à defesa da dignidade da pessoa humana[2], em todas as suas dimensões, em que se funda o Estado Português[3].

Neste sentido, o artigo 152° do Código Penal, visa punir condutas violentas quer no plano físico, psíquico, moral, verbal ou sexual, quer a liberdade, nas suas várias dimensões, tendo como sujeito passivo as pessoas identificadas na norma, que se apresentam, aos olhos do legislador, como especialmente vulneráveis, em razão de uma relação familiar ou equiparada.

As condutas integradoras do ilícito manifestam-se através de um exercício ilegítimo de poder ou domínio sobre a vida, a integridade física e sexual, a liberdade e a honra, do outro, caracterizado, as mais das vezes, por um estado de tensão, de medo, ou de sujeição da vítima, a qual chega a não ter vida própria e ser um mero objecto.

Sendo o bem jurídico protegido pela norma a dignidade da pessoa humana, nas suas várias dimensões e as condutas violadoras da mesma as referidas, tendo em conta os factos dados como provados, não se percebe como podem os mesmos integrar os elementos objectivos ou subjectivos do referido crime.

Na verdade, não podendo o crime de violência doméstica ser cometido em reciprocidade por ambos os cônjuges, não nos parece que a circunstância de o arguido H..., após mais uma discussão na sua residência e troca de palavras junto a um estabelecimento com a arguida S…, ter ido no encalce desta e se ter aproximado do veículo em que ela se encontrava, possa se traduzir numa sujeição da mesma a "humilhação pública ou desonra" como defende o Ministério Público.

A não prova da "humilhação pública ou desonra" é, desde logo, desmontada pela circunstância de a arguida S…, ao ver o arguido H... junto ao seu veículo, sair do mesmo e começarem-se a agredir mutuamente. Mesmo depois de separados por alguns populares e agentes da PSP, a arguida S…, já na presença dos elementos da PSP, aproveitando a circunstância de os agentes estarem a abordar o arguido H..., começou a correr em direcção ao mesmo para voltar a agredi-lo no que foi impedida pelos agentes.

A "humilhação pública" a existir, resulta dos comportamentos inadequados e anti-sociais que ambos os arguidos demonstram no seu relacionamento conjugal, como, aliás, o comprovam as várias condenações a que foram sujeitos. Os arguidos humilham-se a si próprios ao procederem nos moldes que resultam dos factos provados, inexistindo uma supremacia de um sobre o outro, de modo a poder considerar-se, no caso concreto, que é vítima do referido crime de violência doméstica.

Não estão, pois, preenchidos, em relação a nenhum dos arguidos, os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica, devendo manter-se a absolvição de ambos.

Assim, para além do que ficou dito e estando este Tribunal de recurso de acordo com a decisão recorrida, subscrevemos a fundamentação da mesma, para a qual se remete, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 425.2, n.º 5, do Código de Processo Penal[4]

Em resumo, tal como o Tribunal a quo, entendemos que o arguido H..., não cometeu o crime de violência doméstica por que foi acusado, improcedendo o recurso do Ministério Público e mantendo-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos.

III      Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Sem custas por não serem devidas - artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo

Penal.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e quatro páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmo. Juiz Desembargador Adjunto — art. 94.2, n.° 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 01 de Junho de 2017.

Antero Luís

João Abrunhosa

______________________________________________________

[1] Acórdão do T.R.P., Proc.1133/13.9PHMTS.P1, Relator José Carreto, datado de 08-07-2015, disponível em www.clgsi.pt: "I — O processo penal, atenta a sua natureza acusatória e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade, impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza, da precisão e da completude dos atos imputados, de forma que o arguido deles se possa eficazmente defender.11 — O crime de Violência doméstica não é, nem pode ser, um crime que, no final da vivência em comum de duas pessoas, vistoriando retroativamente, vá julgar o modo como o casal viveu a vida em comum e puni-los como se fosse um crime de "regime".

[2]  Neste sentido, Declaração e Plataforma de Acção em Pequim, da ONU, de 1995, in http://www.cite.gov,pt/ asstsciteldovvnloads/universais/Beijing Declaration and Platformfor Action.pdf.

[3] O Prof. Figueiredo Dias, está entre os consideram que o bem jurídico protegido é o da saúde pública na sua complexidade —No mesmo sentido, Taipa de Carvalho, comentário ao art.° 152.° do Código Penal Anotado, e ainda, Miguez Garcia e Castela Rio, Código Penal Anotado, pág. 616, dando conta da não uniformidade doutrinária sobre esta matéria

[4] Veja-se sobre a constitucionalidade da norma e do dever de fundamentação, por todos, acórdão do Tribunal Constitucional n° 408/2007 de 11 de Junho de 2007, in http://www.tribunalconstituclonal.pt /tc/acordaos/20070408.html