Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8958/2005-6
Relator: ANA LUÍSA GERALDES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1 - De acordo com a nova redacção do art. 377° do Código de Trabalho, os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste actividade.
2 - Na graduação de créditos deve atender-se à ordem seguinte: a de que o crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social.
3 - Assim, os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação passaram a gozar de privilégio imobiliário especial por força do artigo 377° da Lei nº 99/2003 (Código do Trabalho).
4 - Tendo, inclusivamente, sido revogadas, quer a Lei nº 17/86, quer a Lei nº 96/2001, por tal Código – cf. art. 21º, nº 2, alíneas e) e t).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – 1. Nos presentes autos de reclamação de créditos que correm por apenso à acção de declaração de falência nº 614/00, em que foi declarada falida “FN… , S.A.”, foram reclamados diversos créditos.

2. Na sequência da respectiva tramitação processual, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos pelo Tribunal “a quo” (Tribunal de Comércio de Lisboa), a fls. 4.559 a 4.635.
Sentença que graduou os créditos reclamados da seguinte forma, a fls. 4630, na parte que aqui nos interessa:
“Pelo produto da venda do imóvel apreendido para a massa (auto de fls. 4 do Apenso C):
1º - Rateadamente os créditos dos trabalhadores referidos em B);
2º - Rateadamente os créditos reclamados pelos credores:
- Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo CRL, no montante de 189.363,84;
- Central Banco Investimento, S.A., no montante de 747.954,12;
3º - Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo CRL, no montante de 645.310,88 Euros.

3. Tais entidades têm constituídas a seu favor hipotecas sobre o imóvel apreendido para a massa. Hipotecas válidas e registadas.

4. Inconformados com a graduação dos seus créditos, os referidos Bancos credores interpuseram o presente recurso de Apelação.
São, pois, Recorrentes:
- Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, CRL, e
- O Central - Banco de Investimentos, S.A.

5. Nas suas conclusões alegam, em síntese, os Recorrentes, que a sentença “a quo” ao graduar os créditos dos trabalhadores garantidos pelo privilégio imobiliário geral em 1º lugar, e relegando para 2° lugar os créditos dos Recorrentes/Bancos garantidos por hipoteca, violou as seguintes normas:
a) O art. 12° da Lei 17/86 e o art. 4° da Lei 96/2001, e nomeadamente o art. 686° n.º 1, 735° n.º 3, 748°, 749° e 751°, todos do Código Civil, na medida em que a tais créditos garantidos por privilégio imobiliário geral se aplica o disposto no art. 749° do CC, e não o disposto no art. 751º, também do CC, pois esta última norma é, apenas, aplicável, aos privilégios imobiliários especiais e não também aos privilégios imobiliários gerais.
b) E não estando abrangidos pelo art. 751º do CC, os créditos dos trabalhadores deverão ficar graduados em 2° lugar, nos termos do art. 749° do Código Civil, logo a seguir aos créditos dos Bancos/Recorrentes que gozam de garantia de hipoteca.
c) O art. 2° da Constituição da República Portuguesa, por violação dos princípios constitucionais de confiança e de segurança jurídica, estando ferida de inconstitucionalidade, quando interpretadas aquelas mesmas normas no sentido de que os créditos dos trabalhadores que gozam do privilégio imobiliário geral prevalecem sobre os créditos hipotecários dos Recorrentes/Bancos.

6. Foram oferecidas contra-alegações.

7. Corridos os Vistos legais, Cumpre Apreciar e Decidir.


II – Enquadramento Fáctico-Jurídico:

1. Os factos com relevância para a decisão são os que constam do relatório que antecede.

2. A questão jurídica a decidir reside na seguinte:
- Saber se, na graduação de créditos, os créditos dos trabalhadores prevalecem ou não sobre os créditos garantidos por hipoteca;
- Se existe violação dos princípios constitucionais de confiança e de segurança jurídica – art. 2º da CRP - , quando interpretados no sentido de que os créditos dos trabalhadores, que gozam do privilégio imobiliário geral, prevalecem sobre os créditos hipotecários dos Bancos Recorrentes.

E a resposta não pode deixar de ser no sentido da não sufragação do entendimento vertido na Apelação.
Vejamos porquê.

3. Quanto à prevalência dos créditos dos trabalhadores:

3.1. As questões suscitadas no presente recurso reconduzem-nos à problemática de saber se existe ou não prevalência da hipoteca sobre o privilégio imobiliário geral criado por legislação avulsa, posterior ao Código Civil, no que concerne aos créditos laborais.
Quanto a nós entendemos que essa prevalência não existe, ou melhor, ela cabe, em primeira mão, aos créditos laborais, pelas razões que iremos aduzir.
Não ignoramos, contudo, a existência de jurisprudência que defende entendimento contrário. Porém, temos para nós que um entendimento dessa natureza não pode, nos tempos que correm, ser mantido, em virtude das alterações que se registaram na lei e às quais não se pode deixar de valorar ou ficar, de todo, indiferente.

3.2. A questão em si remete-nos para a noção legal de hipoteca e de privilégio creditório.
Sem pretendermos ser exaustivos, salientamos tão só os preceitos com impacto decisório para a matéria a apreciar e decidir: os artºs 686º, nº 1, 733º e 751º, todos do CC.
Do cotejo de tais normativos alguns princípios importa reter:
- o de que a hipoteca só confere ao credor o direito de ser pago com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial;
- privilégio creditório é a faculdade que a lei concede a certos credores de serem pagos;
- os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros e preferem à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.

Numa visão meramente simplista dir-se-ia que tais princípios, só por si, já seriam suficientes para se defender que a hipoteca tem de ceder perante o privilégio imobiliário de créditos laborais concorrentes...
Mas em matéria de privilégios não podemos ficar por aqui.
3.3. Com efeito, sabe-se que o legislador teve a preocupação de criar e estabelecer na lei quais os privilégios creditórios que gozam de preferência, quer no que concerne aos privilégios mobiliários, quer imobiliários.
Fazendo-o em sucessivos diplomas legais avulsos.

Temos assim, no que concerne aos créditos laborais, e numa primeira fase, a publicação da Lei nº 17/86, de 14/6, que, no seu art. 12º preceitua que:
“1. Os créditos emergentes de contrato individual de trabalho, regulados pela presente lei gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
2. Os privilégios dos créditos referidos no n.º 1, ainda que resultantes de retribuições em falta antes da entrada cm vigor da presente lei, gozam de preferência tios termos do número seguinte, incluindo os créditos respeitantes a despesas de justiça,..
3. A graduação dos créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.º l do art. 747° do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no art. 737° do mesmo Código.
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas a Segurança Social.
4. Ao crédito de juros de mora é aplicável o regime previsto no número anterior”.

Por sua vez o art. 4º da Lei nº 96/2001, de 20/8, estabelece que:
“1. Os créditos emergentes de contrato de trabalho ou da sua violação não abrangidos pela Lei nº 17/86, de 14 de Junho, gozam dos seguintes privilégios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário geral.
3. Os privilégios dos créditos referidos no nº 1 ainda que sejam preexistentes à entrada em vigor da presente lei, gozam de preferência nos termos do número seguinte, sem prejuízo, contudo, dos créditos emergentes da Lei nº 17/86 e dos privilégios anteriormente constituídos com direito a ser graduados antes da entrada em vigor da presente lei.
4. A graduação créditos far-se-á pela ordem seguinte:
a) Quanto ao privilégio mobiliário geral, antes dos créditos referidos no n.º l do art. 747° do Código Civil, mas pela ordem dos créditos enunciados no art. 737° do mesmo Código.
b) Quanto ao privilégio imobiliário geral, antes dos créditos referidos no art. 748° do Código Civil e ainda dos créditos devidos à Segurança Social.”

Ou seja: resulta dos segmentos normativos citados que os créditos de natureza laboral devem ser sempre graduados em primeiro lugar, à frente dos demais credores, mesmos dos que tem o crédito garantido por hipoteca.

3.4. Esta interpretação foi sendo rejeitada por alguma jurisprudência e ainda recentemente por um Acórdão do STJ (Ac. datado de 24/09/2002), com base na orientação seguida pelo Tribunal Constitucional que julgou inconstitucionais as normas constantes do art. 2º do Dec. Lei nº 512/76, de 3 de Julho, e art. 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, quando interpretadas no sentido de que o privilégio imobiliário geral nelas conferido prefere à hipoteca (Cf. Ac.do Trib. Const. Nº 160/00, de 22/3/00, publicado in D.R. de 10/10/00, II Série).
Mas cremos, salvo o devido respeito, que sem razão, pois a inconstitucionalidade aí decretada teve como pano de fundo a análise de questões de natureza jurídica diversa daquela que agora nos prende e urge apreciar.

3.5. Relativamente ao regime jurídico a aplicar – se o previsto no art. 751º do CC, se o regime previsto no art. 749º do CC – têm sido veiculados entendimentos díspares quer na doutrina quer na jurisprudência, com opiniões para todas as sensibilidades.
Veja-se, por exemplo, quanto a esta última, Menezes Cordeiro, em “Salários em Atraso e Privilégios Creditórios”, in ROA, Ano 58, Julho de 1998, págs. 665 e segts, onde se expõem as razões que determinam tal entendimento, podendo igualmente ler-se que “norma alguma contempla o valor preferencial do privilégio imobiliário geral, figura expressamente rejeitada no Código Civil” – cf. também o art. 735º, nº 3, do CC.
Cremos, contudo, que o regime a aplicar é o que se mostra vertido no art. 751º do CC, quanto mais não seja porque constitui a única norma de direito substantivo que regula este tipo de privilégios - os imobiliários e a sua oponibilidade a terceiros, bem como a preferência relativamente a outras garantias, v.g., a hipoteca (No mesmo sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto, de 14/11/2005, in WWW.dgsi.pt,JTRP00038500).

E tanto assim é que, mais recentemente, o legislador estabeleceu-o de forma clara e redutora, aquando da publicação, a 27 de Agosto de 2003, do Código de Trabalho (Lei nº 99/2003), entrado em vigor a 1 de Dezembro de 2003.
Estatuindo, no art. 377° do Código de Trabalho, expressamente que:
“1 - Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios:
a) Privilégio mobiliário geral;
b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste actividade. (Sublinhados nossos)
2 - A graduação de créditos faz-se pela ordem seguinte:
a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 747 do Código Civil;
b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no nº 1 do artigo 748° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à Segurança Social“.

Ou seja: os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação passaram a gozar de privilégio imobiliário especial por força do artigo 377° da Lei nº 99/2003 (Código do Trabalho).
Tendo, inclusivamente, sido revogadas, quer a Lei nº 17/86, quer a Lei nº 96/2001, por tal Código – cf. art. 21º, nº 2, alíneas e) e t).

Se dúvidas existiriam anteriormente sobre a melhor solução a adoptar, hoje, atento o quadro normativo legal existente, a questão não pode resolver-se de molde diversa daquela que aqui propomos, o que permite desde já defender que esta será por ventura também a melhor interpretação em face das dúvidas então suscitadas e mesmo à face das normas anteriores vigentes.
Com efeito, a alteração agora consagrada não pode deixar de ser interpretada como tendo existido por parte do legislador a vontade, e quiçá, até, a necessidade, de pôr cobro às especulações jurídicas reinantes, optando claramente pela protecção dos trabalhadores nesta matéria.
Consignando assim, por via legislativa, os privilégios creditórios imobiliários especiais no citado artigo 377° da Lei 99/03, de 27/08, dessa forma mantendo o nível de protecção anteriormente atribuído aos trabalhadores e pondo fim a tantas e tão diversas especulações teóricas e jurisprudenciais.

3.6. Face ao exposto, a conclusão que se impõe, como a mais coerente tendo em atenção o quadro normativo legal vigente, é a de que os créditos dos trabalhadores devem ser graduados em primeiro lugar, uma vez que gozam de privilégio imobiliário especial, preferindo, assim, à hipoteca que as Recorrentes detêm sobre o imóvel em causa, nos termos do artigo 751° do C.C.
Consequentemente, bem decidiu o Tribunal “a quo”, mantendo-se a sentença recorrida e a respectiva graduação dos créditos dos trabalhadores em primeiro lugar pelo pagamento pelo produto da venda do imóvel apreendido para a massa falida (cf. auto de fls. 4 do apenso C).

3.7. Quanto à lei aplicável à graduação dos créditos dos trabalhadores, terá de se atender à que vigorava à data em que tais créditos se venceram – em Junho de 2001.
Destarte, também bem andou o Tribunal “a quo” quando decidiu aplicar a legislação em vigor à data da rescisão dos contrato de trabalho, isto é, a Lei nº 17/86, de 14/06, conjugada com a anterior redacção do artigo 751º do Código Civil, e não o Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, que só entrou em vigor em data muito posterior a esta, mais concretamente em 15 de Setembro de 2003 (cf. seu art. 23º).

4. Finalmente, também não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade em termos de pôr em causa os princípios de confiança e de segurança do comércio jurídico.
Realça-se que é o próprio legislador ordinário que procurando assegurar a tutela constitucional da retribuição devida ao trabalhador – cf. art. 59º, nº 1, alínea a), da Constituição da Rep. Portuguesa - confere aos créditos dos trabalhadores essa mesma tutela criando as garantias especiais aí referidas, como forma de o proteger, enquanto elemento notoriamente mais frágil numa cadeia empresarial em que está inserido.
E em qualquer situação de falência são os trabalhadores os mais prejudicados com a perda, desde logo, dos seus próprios locais de trabalho, para já não se falar do não recebimento de salários por inexistência de meios ou bens da empresa falida.
Ciente desta realidade, agravada pelo número de falências que ocorrem no nosso País, teve o Estado a preocupação de estabelecer alguma justiça social, dando prevalência aos créditos laborais em relação aos demais credores, incluindo o próprio Estado.
Defender-se o contrário do que pugnamos seria criar situações potenciadoras de desigualdades acentuadas, pondo em crise, isso sim, o princípio constitucional referido, bem como a paz e o equilíbrio sociais.

5. E não se diga que a existência de privilégios imobiliários gerais ou especiais pode afectar a segurança do comércio jurídico. Os privilégios imobiliários resultam da lei e todas as entidades, nomeadamente as Recorrentes, no âmbito do exercício da sua actividade empresarial, não desconhecem, por certo, que os créditos emergentes do contrato de trabalho, num quadro jurídico desta natureza, gozam de privilégio imobiliário nos termos supra referidos.

6. Em Conclusão:
- Os créditos dos trabalhadores prevalecem sobre os créditos garantidos por hipoteca.
- E, nesta medida, falece a Apelação.

III - Decisão:
- Termos em que se acorda em julgar improcedente a presente Apelação.
Custas pelos Apelantes.

Lisboa, 9 de Março de 2006



Ana Luísa de Passos Geraldes (Relatora)
Fátima Galante
Ferreira Lopes