Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | IVO NELSON CAIRES B. ROSA | ||
| Descritores: | CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário (da responsabilidade do Relator): I-Face à nova redação do artigo 40.º do DL 15/93, introduzida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, mesmo que a aquisição ou detenção, das substâncias compreendidas nas tabelas i a iv, se reporte a uma quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio do agente, tal atuação constitui uma mera contraordenação. II-O tribunal recorrido ao ter concluído que os factos 4 e 5 estão provados com base numa regra que não é da experiência comum, mas sim com base num subjetivismo do julgador, cometeu um erro notório na apreciação da prova. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório Por sentença proferida a ... de ... de 2025, foi o arguido condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido nos termos do artigo 25º, alínea a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei 15/93, de 22/01, e Tabelas I-B e I-C, anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão. *** Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1. O presente recurso versa sobre a violação do artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) e c) do CPP, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e por erro notório na apreciação da prova. 2. O arguido foi condenado pela prática de crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º do DL n.º 15/93), quando apenas se provou que detinha consigo: 7,120 g de canábis (folhas e sumidades), correspondendo a quantidade inferior a 1 dose; 5,192 g de cocaína com fenacetina, correspondendo em conjunto a cerca de 1 dose, num total aproximado de 2 doses. 3. O relatório pericial é claro ao afirmar que a canábis apreendida corresponde a quantidade inferior a 1 dose, não existindo qualquer indício de embalamento, balança, dinheiro ou outros elementos objetivos de tráfico. 4. Nenhuma testemunha, designadamente os OPC intervenientes, presenciou ato de venda, cedência ou transporte de estupefaciente, nem foi recolhida qualquer prova nesse sentido. 5. O arguido confessou, de forma coerente, que o produto se destinava exclusivamente ao seu consumo. 6. A alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, ao artigo 40.º, n.º 3, da Lei da Droga, estabelece uma presunção de consumo quando a quantidade apreendida seja inferior ao consumo médio individual correspondente a 10 dias, presunção que se verifica in casu. 7. A sentença recorrida desconsiderou esta alteração legislativa e, sem qualquer fundamento fáctico objetivo, reconduziu a conduta do arguido ao crime de tráfico de menor gravidade, invertendo indevidamente o ónus da prova e violando o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). 8. A fuga do arguido perante a polícia não pode, só por si, ser interpretada como indício de tráfico, tratando-se antes de reação compreensível de quem transportava consigo pequena quantidade de droga para consumo. 9. O Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova, ao dar como provado que o arguido pretendia ceder a terceiros a substância estupefaciente mediante contrapartida monetária, sem que exista qualquer suporte factual ou probatório nesse sentido. 10. Tal decisão viola ainda os artigos 127.º e 118.º do CPP, porquanto desconsiderou a prova pericial, substituindo-a por meras suspeições dos OPC. 11. Ao enquadrar a conduta do arguido no artigo 25.º do DL n.º 15/93, quando apenas se verificam os pressupostos do artigo 40.º, n.º 3, da Lei da Droga (na redação atual), a sentença recorrida incorre em errada subsunção jurídico-penal. 12. O entendimento do Tribunal recorrido resulta numa interpretação normativa inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, da presunção de inocência e do contraditório (artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 5, e 32.º, n.º 2, da CRP). 13. A pena do recorrente deveria ter sido reduzida para os 12 meses de prisão substituída por multa, nos termos do disposto no artigo 45º do CP. 14. Deve, pois, ser revogada a decisão recorrida, absolvendo-se o arguido da prática do crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25.º do DL n.º 15/93, e qualificando-se a conduta como posse para consumo nos termos do artigo 40.º, n.º 3, do mesmo diploma, na redação da Lei n.º 55/2023. 15. A douta sentença violou os dispositivos legais acima indicados. *** O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência. *** A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela improcedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância. *** Não foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P em virtude de não ter sido emitido um parecer autónomo. II - Questões a decidir: Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, há que analisar e decidir: Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Erro notório na apreciação da prova Da subsunção jurídico-legal. O entendimento do Tribunal recorrido resulta numa interpretação normativa inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade, da presunção de inocência e do contraditório (artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 5, e 32.º, n.º 2, da CRP). Medida da pena. Da substituição da pena de prisão por multa. *** III – FUNDAMENTAÇÃO A sentença recorrida tem o seguinte teor (transcrição): Factos Provados: 1) No dia ........2025, às 18h50m, o arguido encontrava-se junto ao n.º 23 da ..., em Lisboa. 2) Na ocasião referida em 1), o arguido aperceber-se da presença de agentes da Polícia de Segurança Pública, encetou fuga em direção à .... 3) Nessa altura, o arguido tinha na sua posse: - 1 (uma) embalagem de canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 7,120 gramas; - 1 embalagem com cocaína (cloridrato) e fenacetina, com o peso líquido total de 5,192 gramas. 4) A canábis e a cocaína apreendidas na posse do arguido destinavam-se a ser, por si, comercializadas a terceiros. 5) Ao atuar do modo acima descrito, o arguido: - Conhecia as características e natureza estupefaciente dos produtos que detinha e destinava ceder a terceiros, mediante contrapartida monetária, realizando mais-valias; - Sabia que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei; - Agiu de forma livre, voluntária e conscientemente; - Sabia que a sua conduta era criminalmente punida por lei. 6) No certificado do registo criminal do arguido, consta que o mesmo foi condenado: Em ...-...-2019, transitada em julgado em ...-...-2019 pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade na pena de 3 meses de prisão suspensa por 1 ano, extinta em ...-...-2020. Em ...-...-2022, transitada em julgado no dia ...-...-2023 pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos com regime de prova. 7) O arguido: - Vive em casa dos pais, com estes; - Aufere, mensalmente, da sua atividade profissional, cerca de € 960,00 líquidos, que é a sua única fonte de rendimento, dos quais afeta, mensalmente, € 300,00 às despesas da referida habitação; - Não é titular de qualquer meio de transporte próprio; - Não tem filhos. O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto pelo seguinte modo: - Auto de apreensão que constituiu fls. 6/7, o qual se encontra assinado pelo arguido, na qualidade de possuidor, demonstrativo da apreensão ao mesmo dos produtos estupefacientes referidos no facto provado n.º 3). - Guia de entrega de estupefaciente que constitui fls. 9, demonstrativa que a cocaína se encontrava no interior de um saco de plástico e a liamba no interior de um outro saco de plástico, tipo ZIP. - Relatório pericial elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária que constitui fls. 27, no qual consta os pesos referidos no facto provado n.º 3), quais as substâncias ativas presentes nos produtos aí mencionados, bem como, igualmente, embora não seja matéria de facto descrita na acusação, do respectivo grau de pureza e do número de doses médias individuais diárias, calculado segundo a Portaria 94/96, de 26.03. - Declarações do arguido, o qual admitiu como verdadeira toda a factualidade descrita nos factos provados números 1) a 3), com exceção de que, para além da haxixe (liamba/erva), que disse ter comprado, no ..., momentos antes de ser intercetado pela polícia, e que destinava ao seu consumo, a outra substância que se encontrava na sua posse fosse cocaína, na medida em que, afirmou que se tratava de uma “anestesia para os dentes”, que lhe foi entregue por um indivíduo que trabalha no ..., que já tinha encontrado duas ou três vezes e que disse não ser consumidor, porque estava com dor de dentes (explicou ao tribunal que disse ao referido indivíduo que estava com dores de dentes e que lhe pediu para lhe dar uns comprimidos), antes de ter comprado o aludido haxixe. Confrontado com a questão porque é que não tomou logo a substância, disse que ia comprar a erva. - Depoimento da testemunha BB, agente da Polícia de Segurança Pública, o qual, na parte que interessa (não interessa a factualidade que se considera provada porque admitida como verdadeira pelo arguido, bem como a que resulta provada por via de prova pericial), relatou que, na situação em apreço, o arguido foi abordado, porque assim que viu a polícia, evidenciou uma postura nervosa/evasiva, e, por, também, já ser conhecido por parte dos colegas que estavam consigo (disse ser os colegas CC e DD), tendo sido questionado se tinha algo de ilícito com ele, ao que o mesmo mostrou logo um saco de plástico, tipo ZIP, que continha a liamba e um outro saco que continha cocaína, razão pela qual foi questionado qual era o destino que pretendia dar a tais produtos, não tendo o mesmo respondido. Mais relatou que, quando estavam a dialogar com o arguido, o mesmo encetou fuga, tendo sido posteriormente intercetado. - Depoimento da testemunha EE, agente da Polícia de Segurança Pública, o qual, grosso modo, corroborou o depoimento da testemunha BB, com exceção de como se encontravam acondicionados os produtos estupefacientes (referiu a existência do saco de plástico, tipo ZIP), tendo aditado que ele os seus colegas se encontravam fardados e que o nervosismo evidenciando pelo arguido se efetivou através de ter olhado para trás duas ou três vezes, após os ter visto. Mais disse que o arguido lhes transmitiu que destinava os produtos estupefacientes ao seu consumo, porém, posteriormente, confrontado se tinha a certeza de tal afirmação, respondeu negativamente. - Relativamente à demais factualidade não abrangida pelos meios de prova supra aduzidos, como seja toda a descrita nos factos provados números 4) e 5), o tribunal socorreu-se das regras da experiência comum, por não ser crível, de todo, face à remanescente factualidade fixada como provada, equacionar qualquer outra hipótese. Apreciando, ademais, criticamente os meios de prova ante elencados, cumpre evidenciar que o tribunal não valorou as declarações do arguido, na parte em que afirmou que a cocaína que se encontrava na sua posse não era cocaína, uma vez que a prova pericial acima mencionada contraria ostensivamente a sua versão, e consequentemente a afirmação de que não sabia que estava na posse de cocaína, pois que, se assim se considerasse, ficaria por explicar a extraordinária coincidência de o arguido se ter queixado que estava com dores de dentes e o conhecido a que fez referência, que até disse não ser consumidor, lhe ter entregue cocaína. Ademais, ficaria por explicar a razão pela qual o mesmo indivíduo, ao invés de lhe ter entregue um comprimido, conforme disse que solicitou ao mesmo, lhe entregou pó, que, curiosamente, é comummente utilizada para adulterar a cocaína, isto é, “cortar a cocaína”, devido à sua aparência semelhante. De igual modo, não valorou as declarações do arguido, na parte em que disse que o haxixe se destinava ao seu consumo, porque mentiu em tribunal, ao dizer que a cocaína não se tratava de cocaína, resultando do que ante se explanou que sabia tratar-se desta substância, depreendendo o tribunal que tenha feito esta afirmação em razão de tentar desresponsabilizar-se criminalmente pelo facto de estar na posse desta substância. Certificado de registo criminal do arguido. *** Cumpre apreciar os fundamentos do recurso. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova. Como resulta da lei, o Tribunal da Relação pode conhecer da questão de facto por duas vias: a primeira através da impugnação alargada com apelo à prova gravada, se tiver sido suscitada, conforme resulta do artigo 431º do CPP; - a segunda pela análise dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP. Quanto à primeira situação, estamos perante um típico erro de julgamento, previsto no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Neste caso - erro de julgamento - o recurso pretende a reapreciação da prova gravada ou documentada perante o tribunal recorrido, havendo que a ouvir em sede de recurso. Numa situação como esta, a apreciação do recurso não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova gravada ou constante de documentos ou outros meios de prova inseridos no processo, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP. Cumpre precisar que nestas situações, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria a ter lugar perante o tribunal da relação, com base na audição de gravações, antes constituindo um mero “remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Quanto ao recurso da decisão facto com base nos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, que é que a está aqui em causa, cumpre referir que esta norma legal estabelece que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e o erro notório na apreciação da prova. Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso, como resulta do artigo 426º do CPP, o reenvio do processo, caso não os possa suprir, para novo julgamento. Conforme resulta das conclusões de recurso, o recorrente apontou à decisão recorrida os vícios decisórios previstos na alínea a) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, ou seja, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova. Segundo o recorrente, o tribunal recorrido ao dar como provado que o arguido pretendia ceder a terceiros a substância estupefaciente mediante contrapartida monetária, sem que exista qualquer suporte factual ou probatório nesse sentido, cometeu um erro notório na apreciação da prova. Conforme é dito no Ac. do TRC de 12-6-2019, no processo nº 1/19.5GDCBR.C1: “Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adotada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objeto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal”. Dito de outro modo, este vício existe quando a matéria de facto fixada na sentença ou no acórdão é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, ou seja, quando da factualidade, provada ou não provada, que consta na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser investigados pelo tribunal recorrido, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Por sua vez, o erro notório previsto no artigo 410º nº 2 al. c) do CPP é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da análise do texto da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência. Como é jurisprudência pacífica só há erro notório na apreciação da prova quando for de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão. Existe este erro quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria, com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência. Isto é, o erro tem de ser detetável no próprio texto e contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. Segundo Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro”. Este erro não ocorre se a discordância resultar da forma como o tribunal recorrido apreciou a prova. Na verdade, o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão seguida pelo tribunal recorrido não conduz ao vício de erro notório na apreciação da prova. Definidos os vícios, cumpre proceder à sua análise. Tendo em conta as motivações de recurso e as respetivas conclusões constata-se que o recorrente, quanto ao primeiro apontado vício decisório, não identifica quais os factos que, no seu entender, o tribunal recorrido omitiu e que se mostram essenciais, ou seja, o recorrente não identifica em que se traduz a invocada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Na verdade, analisada a sentença verifica-se que a mesma contém todos os factos necessários à decisão encontrada, na medida em que se mostram descritos os factos constitutivos do crime imputado, bem como a concretização factual no que respeita às condições pessoais e económicas do arguido necessários à determinação da medida da pena. Deste modo, sem necessidade de maiores considerações, conclui-se que a decisão recorrida não padece do apontado vício. Atentemos agora no erro notório na apreciação da prova. Ao invocar o vicio de erro notório o recorrente não pretende questionar o conteúdo da prova, nomeadamente a prova testemunhal, mas a utilização que foi dada à prova no sentido de suportar a demonstração dos factos provados sob os pontos 4 e 5, na medida em que o tribunal, segundo o recorrente, valorizou a prova contra as regras da experiência comum e contra critérios legalmente fixados. Com efeito, o recorrente invoca que o tribunal a quo errou ao dar como provado que o produto estupefaciente encontrado na sua posse estava destinado a ser, por si, comercializado a terceiros, mediante contrapartida monetária, realizando mais-valias. A questão suscitada pelo recorrente é, assim, suscetível de configurar erro notório na apreciação da prova, nos termos acima descritos, na medida em que os factos provados 4 e 5, como resulta da motivação da sentença, foram dados como provados com base nas regras da experiência comum, por não ser crível, face à remanescente factualidade fixada como provada, equacionar qualquer outra hipótese. Conforme sobressai da sentença, em particular da motivação de facto, verifica-se que o tribunal recorrido, partindo do alegado pelas duas testemunhas que abordaram o arguido (agentes da PSP), nomeadamente por estas terem afirmado que o arguido “evidenciou uma postura nervosa/evasiva, e, por, também, já ser conhecido por parte dos colegas que estavam consigo (disse ser os colegas CC e DD), tendo sido questionado se tinha algo de ilícito com ele, ao que o mesmo mostrou logo um saco de plástico, tipo ZIP, que continha a liamba e um outro saco que continha cocaína, razão pela qual foi questionado qual era o destino que pretendia dar a tais produtos, não tendo o mesmo respondido”, concluiu, com apelo às regras da experiência comum, que o produto que detinha, apesar de ser em quantidade reduzida (1 embalagem de canábis (folhas e sumidades floridas ou frutificadas), com o peso líquido de 7,120 gramas e 1 embalagem com cocaína (cloridrato) e fenacetina, com o peso líquido total de 5,192 gramas), estava destinado à venda a terceiros. Na verdade, da motivação de facto relativa aos factos 4 e 5, ou seja, quanto à venda a terceiros do produto apreendido ao arguido, não resulta da matéria de facto provada, nem da análise crítica da prova, em particular dos depoimentos produzidos em audiência, qualquer referência a ato de venda/cedência a terceiros, por parte do arguido, quanto ao produto estupefaciente. Deste modo, a conclusão do tribunal recorrido, conforme se extrai da análise crítica da prova, não se fundou em prova direta, mas sim em inferências feitas a partir das regras da experiência comum. Ou seja, partindo do facto de o arguido estar na via pública na posse do produto estupefaciente apreendido, ser conhecido dos agentes da PSP (não sabemos em que circunstâncias ou o motivo), por ter mostrado, ao ser abordado pela PSP, uma postura nervosa e evasiva e ter encetado uma fuga, chegou à conclusão que o produto apreendido não estava destinado ao consumo próprio, mas à venda a terceiros. Resulta, também, da sentença que o arguido prestou declarações através das quais admitiu estar na posse do produto apreendido e que o mesmo estava destinado ao seu consumo, quanto ao haxixe e quanto à outra substância – cocaína- referiu não ser consumidor mas que a mesma se tratava de uma “anestesia para os dentes”, em virtude de estar com dor de dentes, que lhe foi entregue por um indivíduo que trabalha no ..., que já tinha encontrado duas ou três vezes. Resulta, ainda, do relatório do LPC, junto a fls. 27, (mencionado na sentença recorrida em termos de motivação de facto), ou seja, da prova pericial, que a canábis apreendida ao arguido tinha um grau de pureza de 0.7 % e seria inferior a uma dose, enquanto que a cocaína tinha um grau de pureza de 6.1 % e daria para uma dose, tudo calculado segundo a Portaria 94/96, de 26.03. Assim, tudo consiste em saber se existe alguma regra da experiência que permita concluir, para além de toda a dúvida razoável (o mais exigente standard de prova) que pelo facto de alguém estar na posse de uma quantidade de produto estupefaciente em quantidade inferior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias e ao ser abordado pelos agentes da PSP mostrar uma atitude nervosa e evasiva, que esse produto está destinado à venda a terceiros e não ao consumo próprio. Como se pode ler no AC. do STJ de 6-7-2022 no processo nº 3612/07.6TBLRA.C2.S “As regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria”, que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extração de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil”. Prossegue o mesmo acórdão dizendo que que “as regras da experiência não são meios de prova, instrumentos de obtenção de prova, mas antes raciocínios, juízos hipotéticos de conteúdo genérico, assentes na experiência comum, independentes dos casos individuais em que se alicerçam, com validade, muitas vezes, para além da hipótese a que respeitem, permitindo atingir continuidades, imediatamente, apreensivas nas correlações internas entre factos, conformes à lógica, sem incongruências para o homem médio e que, por isso, legitimam a afirmação de que dado facto é a natural consequência de outro, surgindo com toda a probabilidade forte, próxima da certeza, sem receio de se incorrer em injustiça, por não estar contaminado pela possibilidade física, mais ou menos arbitrária, impregnado de impressões vagas, dubitativas e incredíveis” Ora, tendo em conta o que devemos entender por regras da experiência comum e a forma como o tribunal recorrido as utilizou para dar como provados os factos em causa, constata-se, desde logo, que existe uma confusão entre o que são regras de convencimento pessoal do próprio tribunal, naturalmente legitimas, e aquilo que são regras da experiência comum para a generalidade das pessoas. Pelo facto de o tribunal recorrido ter ficado convencido que o arguido ao mostrar um comportamento nervoso, encetar uma fuga e já ser conhecido dos agentes da PSP, sem sabermos qual a razão, pretendia comercializar o produto apreendido e não destinar ao seu consumo, não faz disso uma regra comum à generalidade das pessoas. Na verdade, não há nada, em termos de observação empírica de factos anteriores que nos habilite a formular uma generalização e concluir que quem, estando na posse de uma quantidade de estupefaciente compatível com o consumo pessoal, ficar nervoso ao ser abordado pela PSP e encetar uma fuga, que destina esse produto à venda. Com efeito, ficar nervoso com a presença da PSP e encetar uma fuga ao ser abordado pela autoridade policial não nos permite concluir, sem mais, que a pessoa em causa se dedica ao tráfico de estupefacientes, sobretudo quando o mesmo está na posse de quantidade compatível com o consumo médio individual durante o período de 10 dias. Há que não esquecer que a detenção para consumo não é permitida por lei e que a mesma constitui uma contraordenação, o que poderá justificar a atitude do arguido ao não querer ser confrontado com a autoridade policial. Para além disso, face à nova redação do artigo 40.º do DL 15/93, introduzida pela Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro, mesmo que a aquisição ou detenção, das substâncias compreendidas nas tabelas i a iv, se reporte a uma quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio do agente, tal atuação constitui uma mera contraordenação. Daqui decorre que o tribunal recorrido ao ter concluído que os factos 4 e 5 estão provados com base numa regra que não é da experiência comum, mas sim com base num subjetivismo do julgador, cometeu um erro notório na apreciação da prova. Verifica-se, ainda, que o tribunal recorrido ao não considerar a quantidade de produto estupefaciente apreendida, sobretudo quando essa quantidade está dentro do consumo médio individual durante 10 dias, cometeu um erro notório na apreciação da prova ao desconsiderar, sem a devida fundamentação, a prova pericial resultante do relatório do LPC. De acordo com o expendido no Ac. do STJ de 20/09/2017 no processo nº 596/12.4 JABRG.G2.S, o erro notório “verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio” Em suma, nenhuma das regras usadas na motivação de facto para apreciar a prova constitui uma regra de experiência comum aceitável e nenhuma presunção foi invocada, de forma justificada, pelo tribunal recorrido na apreciação na prova, ocorrendo, deste modo, erro notório na apreciação da prova. Incorreu, assim, a sentença recorrida no erro-vício da decisão em matéria de facto consagrado no artigo 410º n.º 2 al. c) do CPP. Dispõe o artigo 426º nº 1 do CPP “que sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento…” Constando dos autos todos os elementos de prova necessários, é possível suprir o vício e modificar a decisão de facto proferida, pelo que não se justifica reenviar o processo para novo julgamento. Assim, os pontos de facto provados em questão passam a ter a seguinte redação: A canábis e a cocaína apreendidas na posse do arguido destinavam-se ao seu consumo pessoal. O arguido conhecia as características e natureza estupefaciente dos produtos que detinha. Os pontos de facto não provados são os seguintes: A canábis e a cocaína apreendidas na posse do arguido destinavam-se a ser, por si, comercializadas a terceiros, mediante contrapartida monetária, realizando mais-valias; Sabia que a aquisição, detenção e comercialização de produtos estupefacientes é criminalmente punida por lei. *** Do enquadramento jurídico-penal. Alega o recorrente que ao enquadrar a conduta do arguido no artigo 25.º do DL n.º 15/93, quando apenas se verificam os pressupostos do artigo 40.º, n.º 3, da Lei da Droga (na redação atual), a sentença recorrida incorre em errada subsunção jurídico-penal. in casu o arguido, ora recorrente, foi acusado e condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade p e p pelo artigo 25º do DL 15/93 de janeiro. Tendo em conta a alteração da matéria de facto há reequacionar se a conduta do arguido integra o crime pelo qual se mostra condenado ou se, pelo contrário, integra agora o ilícito previsto no artigo 40º - detenção para consumo. Cumpre precisar, antes de mais, que a mera aquisição e detenção, não se demonstrando a respectiva finalidade, continuam a consubstanciar, só por si, actos típicos de tráfico de estupefacientes previstos no art. 21º do D.L. 15/93 – e, por correspondência, no respectivo art. 25º. Deste modo, para o preenchimento do tipo legal em causa basta a mera aquisição ou detenção ilícita de produtos estupefacientes incluídos na respetiva tabela anexa, desde que essa detenção ou aquisição não seja para exclusivo consumo pessoal, não sendo pois necessário que a detenção do produto estupefaciente se destine à posterior cedência a terceiros. Também corresponde à realidade, como alega o recorrente, que na atual redacção do art. 40º do D.L. 15/93, a aquisição ou detenção de uma quantidade de droga superior ao consumo médio individual por mais de dez dias não é criminalmente relevante desde que fique demonstrado que a mesma se destina exclusivamente ao consumo pessoal, independentemente da respetiva quantidade. Em todo o caso, mesmo que não fique demonstrado que o produto estupefaciente é para ceder a terceiros, nenhuma presunção ocorre de que a droga é para o seu consumo. Na verdade, torna-se necessário demonstrar que aquela quantidade está destinada ao consumo pessoal do detentor do produto. O actual nº 3 do art. 40º do D.L. 15/93 estatui que «A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo». O que reforça a ideia que é necessário, nestes casos, fazer prova que aquele produto está destinado ao consumo do detentor. Por sua vez, nas situações em que aquisição e a detenção de produto estupefaciente em quantidade não superior ao consumo médio individual por mais de dez dias, desde que não existam atos de cedência a terceiros, constitui uma presunção de que se destina ao consumo do detentor. Dos factos provados resulta que o arguido estava posse de produto estupefaciente. Resulta da prova pericial que a quantidade de produto estupefaciente detida pelo arguido se reconduzia a quantidade inferior a uma dose de canábis e a uma dose de cocaína, valores que se enquadram dentro do consumo médio individual durante o período de 10 dias. Mais resulta que o arguido destinava esse produto ao seu consumo pessoal. Resulta não provado que o arguido destinava esse produto à cedência a terceiros. Assim sendo, fica afastado, desde logo, a possibilidade de enquadrar a conduta do arguido no âmbito do artigo 25º do DL 15/93. Como vimos, a Lei n.º 55/2023, de 8 de setembro [que veio clarificar o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro], em vigor desde o dia 1 de outubro de 2023, alterou o artigo 40.º nos seguintes termos: Artigo 40.º Consumo 1 - Quem, para o seu consumo, cultivar plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. 2 - A aquisição e a detenção para consumo próprio das plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior constitui contraordenação. 3 - A aquisição e a detenção das plantas, substâncias ou preparações referidas no n.º 1 que exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias constitui indício de que o propósito pode não ser o de consumo. 4 - No caso de aquisição ou detenção das substâncias referidas no n.º 1 desde que exceda a quantidade prevista no número anterior e desde que fique demonstrado que tal aquisição ou detenção se destinam exclusivamente ao consumo próprio, a autoridade judiciária competente determina, consoante a fase do processo, o seu arquivamento, a não pronúncia ou a absolvição e o encaminhamento para comissão para a dissuasão da toxicodependência. 5 - No caso do n.º 1, o agente pode ser dispensado de pena. Em face do exposto, a conduta do arguido enquadra-se no nº 2 do artigo 40º configurando uma contraordenação. Assim sendo, impõe-se a absolvição do arguido quanto ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido nos termos do artigo 25º, alínea a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei 15/93, de 22/01. Em face do agora decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso. IV–Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, absolve-se o arguido quanto ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido nos termos do artigo 25º, alínea a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei 15/93, de 22/01. Sem custas Notifique Lisboa, 20-11-2025 (Elaborado e integralmente revisto pelo relator) Ivo Nelson Caires B. Rosa Marlene Fortuna Paula Cristina Borges Gonçalves |